aula 13 - o lugar do cinema e imagem-violência

19
0 LUGAR DO CINEMA Talvez as primeiras perguntas que surjam a partir da delimitação desse movediço campo de pesquisa - definido por palavras-chave como vio - lência, cinema e sociedade - sejam: como se define essa relação entre arte (cinema) e sociedade? O que se búsca ao olhar para os filmes em questão? Ou, mais simplesmente: o cinema influencia, manipula, de- termina comportamentos (violentos, no caso)? Não pretendo responder a todas essas perguntas, embora as considere relevantes. Isso porque optéi por dirigir ao cinema um. olhar interpreta- tive, já que, como Geertz (2004), considero a arte não simples reflexo da sociedade, mas um modo de pensamento sobre a vida social. Meu interesse não está, portanto, no plano instrumental: não tenho como objeto a investigação da capacidade do cinema de influenciar o público, determinar comportamentos ou sugerir ações, nem prtfçSJro nos filmes retratos exatos das sociedades que os produzem. Percebo-os mais como as interpretações que as sociedades constróem de si mesmas, impregnadas de seus valores, categorias e contradições.114 114 Caiiiby Novaes & Menezes, 1998.

Upload: mayara-albuquerque

Post on 03-Sep-2015

216 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

O lugar do cinema e Imagem-violência

TRANSCRIPT

  • 0 LUGAR DO CINEMA

    Talvez as primeiras perguntas que surjam a partir da delimitao desse movedio campo de pesquisa - definido por palavras-chave como violncia, cinema e sociedade - sejam: como se define essa relao entre arte (cinema) e sociedade? O que se bsca ao olhar para os filmes em questo? Ou, mais simplesmente: o cinema influencia, manipula, determina comportamentos (violentos, no caso)?No pretendo responder a todas essas perguntas, embora as considere relevantes. Isso porque opti por dirigir ao cinema um. olhar interpretative, j que, como Geertz (2004), considero a arte no simples reflexo da sociedade, mas um modo de pensamento sobre a vida social.Meu interesse no est, portanto, no plano instrumental: no tenho como objeto a investigao da capacidade do cinema de influenciar o pblico, determinar comportamentos ou sugerir aes, nem prtfSJro nos filmes retratos exatos das sociedades que os produzem. Percebo-os mais como as interpretaes que as sociedades constrem de si mesmas, impregnadas de seus valores, categorias e contradies.114

    114 Caiiiby Novaes & Menezes, 1998.

  • Im a g e m -v io l n c ia

    Em A arte como sistema cultural, Geertz delineia sua teoria semitica da arte.115 Primeiramente, reitera a necessidade de perceber a arte como um sistema cultural: a definio de arte em qualquer sociedade no seria nunca totalmente intraesttica, j que as obras teriam significncia cultural. Assim, afirma que estuclar arte explorar uma sensibilidade essencialmente coletiva. Isso porque a capacidade de perceber significados em pinturas (ou poemas, melodias, construes, potes, peas, esttuas) seria, como todas as outras capacidades humanas, produto de uma experincia coletiva que a transcende.Os filmes, certamente, podem ser introduzidos na lista de objetos artsticos elaborada por Geertz. A observao do fenmeno cinema aponta ainda para o fato de a experincia coletiva determinar, alm da capacidade de perceber significados, a prpria compreenso da linguagem e suas inovaes. Basta lembrar as reaes dos primeiros espectadores, numa poca em que o prprio cinema no se constitua em experincia compartilhada: o espanto, no mnimo, tomou conta do pblico que assistia ao filme dos Lumire A chegada do trem estao (LArrive d'un Train en Gare de la Ciotat).116 Tambm a introduo de elementos prprios linguagem cinematogrfica, como o close up, teve que ser assimilada: para a moa que acabara de ver sua primeira sesso de cinema, o espetculo teria sido horrvel. Como nos conta Balzs,117 ela teria visto homens feitos de'pedaos: a cabea, os ps, as mos, um pedao aqui, um pedao ali, em lugares diferentes.

    m Uma teoria cla arte, portanto, , ao mesmo tempo, uma teoria da cultura e no um empreendimento autnomo. E, sobretudo se nos referimos a uma teoria semitica da arte, esta dever descobrir a existncia desses sinais na prpria sociedade, e no em um mundo fictcio de dualidades, transformaes, paralelos e equivalncas (Geertz,2004, p. 165).

    116 Cabe notar que Gunning questiona a alegada ingenuidade dos espectadores, que, segundo vrios relatos, teriam sado correndo das salas, diante da imagem do trem em movimento. Para o autor, em vez de confundir a imagem com a realidade, o espectador se espanta com sua transformao atravs da nova iluso produzida pelo movimento projetado. [...] quem deixa o espectador atnito a natureza inacreditvel da prpria iluso (Gunning, 1995, p. 54).

    117 Balzs, in Canevacci, 1990a, p. 39.

    70

  • 0 lugar do cinem a

    Se fosse ao cinema hoje, a mesma moa provavelmente assistiria a outro po de fragmentao de corpos, ao qual alguns assistem horrorizados, e do qual outros, acostumados linguagem, conseguem at mesmo rir...Estabelecida a relao entre arte e sociedade, Geertz analisa sua especificidade. Exemplifica com o caso Yoruba.'Nessa cultura, diz, as linhas esto em toda a parte: esttuas, potes, rostos. Para os Yoruba, linhas' significam civilizao. Mas, pergunta sobre o que aconteceria com a sociedade Yoruba se as esculturas deixassem de trabalhar a finura da linha, ele responde: Nada muito mensurvel, somente algumas coisas que os Yoruba sentem no poderiam ser ditas e, com o tempo, talvez, deixassem de ser sentidas. Isso porque, para Geertz, a conexo central entre arte e vida coletiva no est em um plano instrumental, mas no semitico.

    As anotaes coloridas de Matisse e as linhas Yoruba no celebram a estrutura social. Elas materializam um modo de experimentar.118 A arte projetada para demonstrar que ideias so visveis, audvei|, tteis.119

    . De volta anlise flmica, cabe notar que, nos estudos culturalistas, citados anteriormente, a relao entre filmes e vida coletiva se dava ainda no plano instrumental: a arte seria reflexo da vida, nos filmes estariam impressos os comportamentos de quem os produzia. Uma anlise a partir da proposta de Geertz teria comofioco as relaes entre cinema/arte e categorias por meio das quais os homens pensam e elaboram a vida. Ao pesquisador que se debrua sobre objetos artsticos, Geertz atribui a tarefa da realizao de uma etnografia dos veculos de significado, que considere os signos no como cdigos a serem decifrados, mas modos de pensamento, idiomas a serem interpretados.

    Uma imagem, uma fico, um modelo, uma metfora, a briga de galos um meio de expresso; sua funo no nem aliviar as paixes sociais nem exacerb- -las mas exibi-las em meio s penas, ao sangue, s multides e ao dinheiro.120

    118 Geertz, 2004, p. 146-150.Ibidem, p. 18-1.

    120 Geertz, 1989.

    ' 71

  • A etnografia de Clifford Geertz sobre a briga de galos na sociedade bali- nesa inspira a reflexo a respeito das relaes entre cinema e sociedade. Isso porque o autor atribui briga o estatuto de arte. Assim, se invertemos a analogia, temos esboada com penas e sangue sua teoria semitica da arte. Apresento e discuto, a seguir, algumas de suas proposies, tomando-as emprestadas para pensar meu prprio objeto.Sobre a especificidade do campo artstico, e sua independncia em relao manuteno da estrutura social, diz Geertz: a briga de galos, como a poesia, nada faz acontecer, ou seja, no se modifica realmente o status de ningum..!21A arre teria a propriedade de sintetizar a experincia social cotidiana. Essa ideia fundamental para compreendermos o potencial que filmes possuem'para captar e expor estilos de vida, tendncias comportamentais, sensibilidades coletivas.

    Como qualquer forma de arte [...] a briga de galos corna compreensvel a experincia comum, cotidiana, apresentando-a em termos de atos e objetos dos quais foram removidas e reduzidas (ou aumentadas, se jfeferirem) as consequncias, prticas ao nvel da sirnples aparncia, onde seu significado pode ser articulado de forma mais poderosa e percebido com mais exatido.122

    A arte teria a capacidade atribuda por Geertz tambm etnografia de retirar as maisculas dos grandes temas da humanidade, apresentando-os em situaes, personagens e cores tangveis. Diz Geertz: tal qual Rei Lear e. Crime e castigo, a briga de galos assume temas como "morte, masculinidade,

    .'raiva, orgulho, perda, beneficncia, oportunidade, tornando-os significativos - visveis, tangveis, apreensveis reais num sentido ideacional.123Geertz ressalta airida a necessidade de olhar para a briga de galos como o faz o analista literrio com os livros, buscando, alm dos sentidos

    Imn^im-violncia

    u Geetz, 1989, p. 310.123 Ibidem, p. 310-1.125 Ibidem, p. 311.

  • () iii^ar rio cinema

    literais, os figurados: afinal, a briga, ou a arte, imagem, fico, modelo, metfora, meio de expresso e tem como funo exibir paixes sociais.m Ela , sobretudo, exemplar: no significa uma imitao da pontuao da vida social balinesa, nem uma representao dela, nem mesmo tuna expresso dela um exemplo dela, cuidadosamente preparado. I2> No limite, ela fornece um comentrio metassocial, sua funo interpretativa: uma leitura balinesa da experincia balinesa, uma estria sobre eles que eles contam a si mesmos.126

    No ofcio de poeta narrar o que aconteceu; sim, o de representar o que poderia acontecer.Aristteles, Potica

    Se, por um lado, ainda so atuais as inquietaes sobre a funo do cinemase ele influencia, ensina, manipula, determina comportamentos etc. , por outro, sabemos que as indagaes sobre as relaes entre arte e sociedade no so recentes. Aristteles, em sua Potica., j apontava para a especificidade da poesia: ela no narrao do acontecido, mas representao do possvel. exatamente nessa passagem do vivido ao imaginado que nascem os filmes e as brigas de galos.

    A matana na rinha de galos no um retrato de como as coisas so literalmente entre os homens, mas, de um ngulo particular, dc eutno elas so do ponto de vista da imaginao, o que bem pior. [...] ela nos conta menos o que acontece do que o tipo de coisas que aconteceria, o que no o caso, se a vida fosse arte e pudesse ser livremente modelada por estilos de sentimento.127

    IM Idem.I2 Geertz, 1989, p. 313. VJ' Ibidem, p. 316.I2' Ibidem, p. 314, 318.

    73

  • Imanei n -v io le i k u i

    A ltima questo de Geertz que trago para c parece tambm ecoar de formulaes aristotlicas. O filsofo pensara em possveis efeitos da representao artstica sobre os espectadores. Como j observei anteriormente, Aristteles atribuiu representao do repugnante materializada na tragdia - uma dimenso catrtica, de purificao dos sentimentos representados, sejam eles a piedade ou o horror. Geertz no fala em catarse, mas reconhece que as formas artsticas quartetos, naturezas- -mortas e brigas de galos - no so meros reflexos de uma sensibilidade preexistente e representada analogicamente, mas agentes positivos na criao e manuteno de tal sensibilidade.128Muito j se discutiu acerca das potencialidades catrticas do cinema. No que se refere aos filmes de ao violenta, falou-se, por exemplo, sobre sua influncia na agressividade do espectador, que seria canalizada, purificada, sublimada durante a sesso, e no realizada" em atos violentos cotidianos. Como j afirmei, no tenho como objeto a anlise de tais efeitos, apesar de no desconsiderar, em absoluto, estudos que o faam. Creio, como Geertz, no papel determinante da arte na criao e manuteno da sensibilidade coletiva. Mas preciso salienta?que meu olhar dirige-se sobretudo ao discurso (textual e imagtico) dos filmes a respeito da sensibilidade contempornea sobre violncia, manifesta em situaes, personagens e sensaes que sintetizam relaes sociais, modos de ver e de se relacionar com o mundo. Alguns desses filmes, efetivamente, questionam a sensibilidade que observam n| mundo ou sintetizada em outros filmes - e propem novas sensibilidades. As estratgias das quais, se utilizam.variam, mas, em comum, ohjetivam cutucar - s vezes, criar sensibilidades.

    I2S Ibidem, p. 319.

    7 4

  • 2MAGEM-VOLNCIA

    Em meados cie 1995, iniciei a pesquisa que elegia como objeto a representao da violncia no cinema ficcional contemporneo. O tema, potencialmente muito amplo, surgiu a partir da inquietao provocada por algumas sesses de cinema. Nestas, cenas com detallies de violncia fsica extrema - como a tortura de um policial ou uma injeo de adrenalina no peito de uma m ulher193 eram recebidas com gargalhadas da plateia e debates empolgantes da crtica especializada. Eu perguntava inicialmente pelo sentido das imagens, da reao do pblico, levantava a hiptese do surgimento de novas formas de representao da violncia e tambm de outra sensibilidade para a violncia - vivida e imaginada.A partir de ento, a pesquisa filmogrfica consistiu no acompanhamento de mostras de filmes, estreias, lanamentos em vdeo, cobertura cia mdia, material terico produzido,'conversas com espectadores, amigos. Assistia aos filmes buscando identificar semelhanas e diferenas em suas estratgias narrativas, recorrncias temticas e imagticas. Realizei algumas descries interpretativas cle filmes inteiros, analisei roteiros, cenas,

    193 Respectivamente, dos filmes Ces de aluguel (Reservoir Dogs) e Ptdp Fiction Tanp de violncia (Pidp Fiction), ambos dirigidos por Quentin Tarantino.

  • Im ag m i- v io ln e ia

    sequncias, planos. Trabalhei ra com o conjunto da obra, ora.com o "fragmento, isolando imagens a partir de uma perspectiva comparativa,Entre mais de 50 filmes consultados, selecionei cerca de 10 para a filmografia central da pesquisa. Essa seleo levou em conta o destaque que os filmes obtiveram nas discusses a respeito da violncia, na mdia e no meio cientfico, mas tambm teve como objetivo circunscrever obras que tematizassem o que identifiquei como o problema central da pesquisa.Na anlise inicial dos filmes, percebi que algumas das imagens mais violentas e, por isso, polmicas e provocativas estavam em filmes que, de alguma forma, problematizavam a prpria violncia miditica, ou, mais especificamente, flmica. Esses filmes, por um lado, apresentavam im agens da violncia - atos de violncia fsica implicando um (ou vrios) agressor(es) e uma (ou vrias) vtima(s). Por outro lado, estas eram imagens violentas em sua construo: provocavam no espectador tenso, susto, ansiedade ou nojo, seja por sua elaborao rtmica, seja pela representao grotesca194 do ato violento. A esse tipo de construo visual, caracterizado pelo duplo carter da relao entre imagens e Mtblncia, chamei imagem-violncia. Tema e ao mesmo tempo forma, a violncia nesses filmes revelava-se como linguagem, no limite, metalinguagem.Apresento a seguir duas anlises flmicas realizadas a partir de diferentes estratgias: a primeira tem como objeto _o filme em si, assistido inicialmente no cinema e, posteriormente, revisto vrias vezes em vdeo. Na segunda, tenho como base um contato inicial com o filme, em uma sesso de cinema, a leitura de seu roteiro,195 publicado em portugus.196 Esses

    194 Ducrot eTodorov (1977) diferenciam a representao grotesca da realista. A primeira supervalorizaria alguns elementos do cotidiano, retirando-os de seu contexto.mais geral e, consequentemente, esvaziando o realismo da situao.

    195 Tarantino, 1995.156 Com o lanamento do filme em vdeo, pude rev-lo para rapensar alguns pontos da

    anlise. No entanto, esta foi feita basicamente a partir da primeira sesso assistida e da anlise do rotei.ro.

    104 .

  • textos, nos quais o foco da anlise a obra como um todo, e no um recorte dela a partir de um nico problema, revelam-se como uma possibilidade analtica e interpretativa introdutria anlise de recorrncias temticas e imagticas. A partir desse olhar mais abrangente porque sem um filtro muito evidente , pude identificar algumas das problemticas comuns a vrios dos filmes e eleger como centro da discusso as relaes entre a comunicao visual reprodutvel e a violncia. *

    Imagem-violncia

    10-5

  • ]map.*m-\ ioicndn

    Ces de aluguel (Reservoir Dogs,Quentin Tarantino, EUA, 1992)

    Uma descrio inteipfetativaSinopse; aps um conturbado assalto a uma joalheria, membros da quadrilha de assaltantes profissionais renem-se em um depsito espera dos demais. Nesse espao, discutem o assalto, o que vo fazer, e procuram descobrir quem, entre eles, seria o traidor/delator, em clima de presso e tenso.Aberturas 7 minutos de durao. Durante os 2 minutos iniciais, a cmera 'faz um travellinglateral, com cortes pouco perceptveis, mostrando homens, vestidos em ternos e gravatas pretos, sobre camisas brSicas, discutindo, mesa de um caf/lanchonete, o sentido da msica Like a Virnn , de Madonna, enquanto o mais velho deles (Joe) fica repetindo nomes de mulheres que encontra em uma agenda. O corte do movimento se d quando um deles (Mr. White) tira a agenda de joe, sob o preif-xto de que est cansado da repetio dos nomes. Inicia-se uma discusso, e ouvimos a primeira frase que situa a relao entre eles: Joe, voc quer que eu atire nele?, pergunta um dos homens, srio. Em" seguida, risadas quebram a tenso e a cmera volta ao movimento circular, s parando outra vez quando Joe pede para os demais deixarem a gorjeta para a garonete.Nesse primeiro movimento, em menos de 2 minutos, Tarantino nos d pistas do comportamento de seus personagens e das relaes -entre eles, apesar de, at ento, nada sabermos sobre suas vidas, profisses, relaes sociais etc. j fica claro' quem que manda na situao e temos uma vaga ideia sobre a personalidade de cada um. O texto, expresso nos dilogos repletos de grias e palavres, tambm nos fornece pistas para entrar no universo, predominantemente masclino, que ser desenvolvido durante o filme. J nesse momento, o cineasta introduz alguns exemplos de seus dilogos irnicos, por meio dos quais tece comentrios sobre a prpria

    1 0 6

  • lm a j in -v i t i i ic i i

    cultura norte-americana, como a relao com dolos pop e o costume de dar gorjetas a garonetes.Andrzej Seku.la, diretor cl.e fotografia do filme, afirmou em entrevista [->? ter sugerido um movimento circular de cmera para revelar os personagens gradualmente. Essa proposta da revelao lenta dos personagens ser seguida em todo o filme, que se utiliza de flashbacks individuais corno estratgia que prope vrios narradores cada qual conta sua histria impedindo o predomnio de um nico ponto de vista.Cabe notar ainda o artifcio imagtico usado para criar a tenso: a cmera gira em torno dos personagens, de forma leve, mas quando a conversa comea a esquentar so inseridos cortes diretos de maior conlrontao.Crditos; somente aps esses 7 minutos iniciais sero identificados o elenco e a equipe tcnica. Para um filme que vai primar pela violncia, a sequncia sobre a qual so inseridos os crditos soa como poesia. Aps um fade (escurecimento da tela), entra a trilha sonora com a voz rouca de um locutor de rdio apresentando o K-Billy Super Sound of70's. A cmera revela ento os personagens do caf andando na rua, em cmera lenta, numa quase coreografia, enquanto os crditos identificam os atores, um por um, e, por fim, identifica-os como os Reservoir Dogs. Novo fade e a ficha tcnica do filme.Nada sabemos ainda sobre os personagens, mas nos parecem, sem dvida, simpticos. No nos so oferecidos elementos para classific-los como bons ou maus, rnas so belos. Na imagem dos gngsteres caminhando em um movimento mais lento que o normal,198 introduz-se uma diferena, alguma coisa naqueles personagens nos seduz.

    1.7 Pizzello, 1992.1.8 Sekula, na entrevista citada, afirma'que o uso da cmera lenta foi proposital: Ta-

    rantino era contra a filmagem em velocidades rpidas, porque o 'step-printing (efeito d ps-produo que resulta na cmera lenta) nos daria um movimento muito mais fluido e potico. Ns queramos dar a esses gngsteres um tipo de lentido no natural (traduo da autora).

    107

  • Imagem-violncia

    Em uma anlise a partir de ftogramas de Sergei Eisenstein, Roland Barthes (1990) percebe nessas imagens a existncia de trs nveis de sentido. O primeiro nvel o informativo, o da comunicao, no qual est reunido todo o conhecim ento trazido pelo cenrio, vesturio, personagens, relaes entre eles etc. O segundo nvel seria o simblico, estratificado em referencial, diegtico, eisensteiniano e histrico. Estamos aqui no plano da significao. O terceiro nvel o mais complexo. Barthes no o nomeia, aproxima-o da poesia, situa-o no plano da significncia. Diferentemente do sentido simblico, esse terceiro sentido no intencional, bvio. Ao contrrio, demais, se apresenta como um suplemento que minha inteleco no consegue absorver bem, por isso o sentido obtuso.199A reflex-o acerca desse sentido me foi sugestiva para a anlise de alguns filmes, entre eles, este que aqui exponho. Para Barthes, a"beleza pode inteivir como um sentido obtuso.200 Perceber no filme de gngster a beleza como um elemento constituinte parecia-me contraditrio. Mas lembrava Barthes: o sentido obtuso a prpria contranamtiva; disseminado, reversvel, preso sua prpria durao, pode apeng.inaugurar outro corte, diferente daquele dos planos, sequncias e sintagmas.201Creio que a beleza, a leveza e a potica disseminada em momentos fugidios dessa abertura conduzem a um estranhamento que se colocar de diversas maneiras em outros momentos do filme. No mnimo, adiantamP:que no estamos no plano do bvio, do esperado. *Mas, acabados os crditos, Tarantino nos aponta sua arma. Na primeira cena do filme, a tela negra acompanhada pelos grunhidos de um dos personagens apresentados (Mr. Orange, saberemos, um policial disfarado): Vou morrer!, grita. Em seguida, nos apresentada sua imagem: um ho-

    195 Barthes, 1990, p. 47.200 Ibidem, p. 52.201 Ibidem, p. 56.

    1 0 8

  • mem completamente ensanguentado. Est no banco de um carro dirigido por Mr. White, que segura sua mo c tenta consol-lo, berrando com ele.Aos 10 minutos de filme, os dois chegam a um depsito onde acontece a maior parte do filme. Durante 4 minutos, Tarantino nos revela a relao que se estabeleceu entre os dois. H uma ternura em seus gestos e vozes. Ao mesmo tempo, fica claro que so homens fora da lei. A cena relativamente longa e o fluxo incessante do sangue do homem ferido nos indicam que no est para ocorrer um salvamento genial, no devemos esperar uma sada herica.Aos 14 minutos, entra Mr. Pink, agitado, nervoso, levantando j a hiptese de uma traio. Ele e Mr. W hite vo at o banheiro, onde discutem e se arrumam em um ambiente iluminado, amplo e limpo. A tomada em profundidade. A cmera se aproxima de novo-quando acendem o cigarro. H um contraste entre a situao tensa iniciai e esta ento apresentada: a amplido desse espao - reforada pela tomada em profundidade - e a situao de limpeza - h gua para lavar o rosto, pente para o cabelo - fornecem uma pausa aos personagens e a ns, espectadores.Aos 20 minutos, acontece o primeiro flashback: a narrao imagtica da fuga de Mr. Pink. ele o narrador. Vemos uma perseguio policial, troca de tiros. Ele rouba um carro para fugir. Tudo acontece rpido, como sua fala. A cena tem pouco mais de 1 m inuto. De volta ao banheiro, o dilogo:

    M r. Pink: M atei tiras. M ato u algum?M r. W hite: Alguns tiras.Mr. Pink: No matou gente?Mr. WhitefS tiras.

    Com esse primeiro flashback sabemos que houve algo, uma perseguio, tiros, mortes, alm de tomarmos contato com o tipo de relao que

    , existe entre os protagonistas, a polcia e a violncia: profissional. Mas o sabemos atravs do olhar de Mr. Pink, um homem de fala rpida e expresso nervosa. E assim sua descrio. Entre as imagens do flashback,

  • lmn1iM'ii'Siiltnciii

    no constavam os rostos dos policiais tnortos nem a cena do assalto. No nos so dados subsdios para julgar os gngsteres. No proposra uma identificao com um grupo ou outro, poiiciais ou bandidos. Essa estrutura narrativa antimaniquesta ser reforada em todo o filme.O segundo flasbback de Mr. White. Sendo ele o narrador, interessante notar a relao que se estabelece entre o gngster e Joe, o chefe. Joe sempre mostrado de baixo para cima pela cmera, o que enfatiza a hierarquia dada. Mr. W hite conhece a ordem a ser seguida. Seu flashback introduz alguns elementos-clichs do cinema de gngsteres: a iluminao meia-luz e o usque traduzem intimidade, confiana, amizade masculina e um certo glamour da profisso.Aps o flashback, aproxima-se o momento de uma revelao. Mr. Pinkfala sem parar, mas a cmera est fixa em Mr. W hite. Lentamente., aproxima- -se em zoom de seu rosto. Mr. W hite confessa ento que contou seu nome a Mr. Orange (o ferido). A omisso do nome era a regra nmero um da quadrilha. Da os apelidos coloridos. No entanto, em um momento de proximidade entre os homens, entre um deles e a moisfe - , a regra subvertida. O movimento da cmera que se aproxima' m zoom do rosto do confessor denuncia profundidade subjetiva, e ser utilizado em outros momentos com o mesmo fim.Mas a confisso apenas o incio da discusso entre os dois gngsteres, que culmina com a dupla ameaa de assassinato. Cada um mantm a outro sob a mira de seu revlver. No auge da tenso, a cmera afasta-se lentamente para encontrar, a alguns metros, Mr. Blonde, a frieza em pessoa: sua voz rouca e sua figura Coca-Cola na mo, culos escuros - interrompem, por segundos, 0 clima de tenso que estava dado.Uma troca nervosa de perguntas tambm interrompida quando Mr. Blonde leva os outros dois homens para fora do depsito, onde mostra a eles, no bagageiro de seu carro, um policial preso. Antes de nos revelar o contedo do bagageiro, a cmera nos revela os sorrisos dos gngsreres, num misto de alvio, sadismo e felicidade.

    1 1 0

  • limiii-in-viol^iict

    "A narrativa mais uma vez interrompida com um flasbbnck. Agora, o narrador Mr. Blon.de. Mais longo qu os primeiros (dura 8 minutos), este nos revela a intimidade de M.r. Blonde com Eddie, um dos gngs-' teres, filho de joe, mas a mesma relao de respeito e inferioridade para. com o chefo (a cmera continua olhando-o de baixo para cima). A histria de Mr. Blonde, que acabara de sair da cadeia aps cumprir pena por um crime encomendado.por Joe, introduz outra relao valorizada no universo dos personagens: a fidelidade.De volta para o tempo narrativo central, ouvimos a voz do locutor de programa de rdio, do incio do filme. Nice Guy Eddie mostrado no carro, ao telefone. O som do rock aumenta e, aos 45 minutos, a cmera revela os trs, Mr. Blonde, Mr. W hite e Mr. Pink, entrando no depsito, chutando o policial. A cena corta diversas vezes para o carro com Eddie. A trilha sonora e a montagem da cena - uma das poucas em que o plano-sequncia interrompido com a introduo de externas do carro em movimento - mudam o ritmo que se im punha at ento. De certa forma, a mudana rtmica confere uma espcie de alvio narrativa, que se sobrepe crueldade e violncia da situao d.o policial sendo golpeado. O filme ganha em agilidade ao mesmo tempo que se supera em violncia. O que quer o cineasta? Tornar-nos simpticos violncia? Talvez outra declarao sua responda pergunta: Eu amo misturar as emoes, que o pblico possa rir e, em seguida, ficar assustado, para depois rir de novo... E sobretudo que ele se interrogue sobre suas reaes ,:o:

    ' A frase ilustra um d.os pontos centrais da narrativa de Tarantino. Na maioria dos filmes policiais ou d.e ao violenta, somos levados a tal nvel de tenso e torcida pelo mocinho que, no momento das mortes violentas (dos bandidos), atingimos uma espcie de catarse, alvio prazeiroso. j nos filmes do cineasta, nos sentimos acuados, tensos. Mas a violncia no alivia essa tenso. Ao contrrio, os momentos de distenso so seguidos

    202 Tarantino, in Parra & Allouch, 1994 (traduo da autora).

    111

  • Imagejn -violncia

    de mais violncia. A risada ainda ecoa quando somos bombardeados com outro ato de crueldade. Ao contrrio de catarse, incmodo. .De volta: Eddie entra no depsito e sai com Mr. White e Mr. Pink. Ficam ss Mr. Blonde (o coot), Mr. Orange (o policial disfarado) e o refm. Enfim ss, diz Mr. Blonde. O gangster liga o rdio no programa K-Billy Super Sound o f7 0 s e, danando, inicia a tortura do policial.A cmera acompanha a dana do gngster, interrompida, s vezes, por cios es do rosto ensanguentado e amordaado do policial, em desespero. Tenso e leveza so sobrepostas. Mr. Blonde corta o rosto do policial com uma lmina. A cmera se desloca para a esquerda. Ouvimos gritos. Mr. Blonde entra em quadro com a orelha do policial. Foi to bom para voc quanto foi para mim?, pergunta orelha...Mr. Blonde sai d esconderijo, vai at o carro,pega um galo de combustvel. O ambiente externo calmo, a trilha sonora substituda por vozes da vizinhana. De volta ao depsito, vai danando em direo ao policial.A msica volta para acompanh-lo. Molha-o com a gasolina, tira sua mordaa. O policial suplica que pare. A msica interrompida, Mr. Blonde acende o isqueiro. Vai queim-lo - supomos , quando lacertado por trs tiros. A cmera mostra ento Mr. Orange, ensanguentado, atirando.A emera faz um movimento circular, mostra Mr. Blonde caindo, ao fundo, se aproxima 'em close do poiicial, quase queimado vivo, sem orelha e tentando dizer algo. Uma hora de filme e parece que chegamos ao momento de maior tenso e, talvez, de resoluo desta com a morte de Mr. Blonde. Os sobreviventes se identificam como policiais e vamos ento a o flashback de Mr. Orange, o policial disfarado. Longa, com 23 > minutos, esta parece ser a histria que elucida as demais, j que identifica o traidor, o responsvel pela situao.Ser Mr. Orange o heri do filme? Embora desconfiemos que no, s o saberemos depois. Ento, vamos histria. Mr. Orange um policial que consegue infiltrar-se na quadrilha. Assistimo-lo treinandq a representao de uma histria para convencer os bandidos de que ele um deles.

    1 1 2

  • Imijem-violncii

    Conhecemos seu apartamento, pequeno, sem muitos mveis, mas com um crucifixo em non e um pster cio Surfista Prateado. E atravs de Mr. Orange que saberemos como foi planejado o crime, que entenderemos melhor a personalidade do chefo e o clima do grupo, sempre tenso (ou seria a sua impresso do clima, j que um intruso no universo).Vemos aqui os minutos anteriores ao crime e, em seguida, a fuga, quando, em um tiroteiro, ele, um policial disfarado, presencia Mr. White atirar contra vrios policiais, matando-os. Em uma cena muito rpida, vemos os policiais gritando, enquanto seus corpos pulam, perfurados por balas. Um primeiro plano mostra a expresso de sofrimento de Mr. Orange. Sons de sirenes e helicpteros. Os dois, Mr. Orange e Mr. White, param um carro para roub-lo, mas a motorista, uma mulher, atira em Mr. Orange, que retribui o tiro, matando-a. A cmera mostra ento Mr. Orange atnito. Ele ajudado por Mr. White. A cena que segue a mesma do inciQ do filme, com Mr. Orange, ensanguentado, gritando no carro.Sob o olhar do narrador-Mr. Orange, a morte mostrada com pesar: ele sofre a morte dos policiais, sofre a morte da mulher (uma civil, no criminosa). No entanto, a mesma reao no nos mostrada quando da morte de Mr. Blonde..Na lgica do policial, apenas a morte de seus iguais e de civis inocentes sentida.Cabe ainda notar que, nessa cena, ao contrrio daquela da tortura, a ao violenta explicitada na tela. O realismo ultraviolento das balas perfurando o policial assusta mais que o ato no mostrado da orelha sendo coitada? Acredito que no, Saturado pelas imagens miditicas da violncia, nosso olhar j no agredido por estas. Parecemos estar estranhamente indiferentes.

    Passados quase 90 minutos do filme, termina o flashback e volta-se para o depsito. Entra Eddie, pedindo explicaes sobre a morte de Mr. Blonde,.que, j sabemos, era seu amigo. Mr. Orange diz que ele iria matar o policial, mat-lo e que, em seguida, fugiria com as joias. Eddie no acredita. Sem pestanejar, mata com um tiro o policial, deixando

    113

  • em-viou'iu'ii!claro para rodos a irrelevncia desce, A cena continua em prohm di de campo, m ostrando vrias aes ao m esm o tem po.Em prim eiro plano, o policiai m orto; atrs, Eddie; mais atrs, Mr. Orarifli cado; e, circulando, Mr. Pink, que raz ainda mais um a brincadeira com a orelha. Vemos, em close, M r. O range ensanguentado. Em seguida, um piano de Eddie, de baixo para cim a (a mesma posio de cmera usada para m ostrar a relao de poder de Joe, em. suas conversas corn os gngsteres que contratara). M r. W h ite esc ao lado de Mr. Orange, acariciando-o. Eddie fala de sua relao com Mr. Blonde, o m orto. Ao fundo, vemos chegar joe. M r. W hite defende Mr. Orange, que, segundo Joe, seria o provvel delator.C om um a hora e meia de filme, a tenso chega ao ponto m xim o, joe aponta a arma para.M r. O range, Mr. W hite m ira Joe, Eddie m ira Mr. W hite e Mr. P ink ten ta acalm-los, lem brando o profissionalismo, u rn plano em profundidade m ostra os trs gngsteres se am eaando - um m ira o outro, com o na cena an terio r entre M r. W hite e Mr. Pink, Mr. O range est no cho. Eddie erica com Mr. W hite e, em seguida, ouvimosO O y;-.os tiros. No plano gerai, sem um destaque especial, vemos M r. P ink saindo com a mala. U m travelling m ostra os corpos cados. O uvim os os grunhidos cie Mr. W hite (que no m orreu) e Mr, Orange. Eles se abraam. Sirenes policiais ao fundo. Mr. O range, enfim, diz: Desculpe, Larry. Eu sou um tira. L am ento.A cmera, imvel, m ostra Larry (o nom e real de Mr. W hite) ainda aca-

    -riciando o rosto de Mr. O range, enquanto solta um grunhido. Ento, Larry levanta a arm a e a aproxim a do rosto de Mr. Orange. Close lento. Ouvim os tiros distantes. Vozes de policiais ordenam que Larry largue a arma. A cmera no m ostra os policiais, mas aproxima-se de Larry, em um close de seu rosto, que sofre. Ele atira (apenas ouvimos, a imagern na teia a de seu rosto). O uvim os ento um a rajada de balas e o corpo cie Larry sai de quadro, ao cair para trs. Fica um a imagem desfocada cla parede.Crditos de ercerram ento; com msica.

    li:

  • Pulp Fiction - Tempo de violncia (Pulp Ficlion, Quentin Tarantino, EUA, 1994)

    Observaes a partir da anlise do roteiroA anlise de Pulp Ficlion, segundo filme de Tarantino, foi realizada nr; n- cpalm ente a partir de seu roteiro. Q uando se aborda um roteiro ap:; a:r assistido ao filme inevitvel lem brar das cenas, associar os personagens aos atores que os interpretam , A im agem ser sem pre a referncia. No entanto , a fora dos dilogos e a descrio de cenrios e at figurinos detalhada por T arantino so at mais evidenciadas no material escrito. D iferentem ente do cinema, o livro nos perm ite retornos, e com isso so %possveis a construo e a desconstruo da histria, a m ontagem cio quebra-cabea, a busca da interpretao.Em Pulp Fiction, trs histrias, que se cruzam , so contadas. A numera co das cenas -a apresentada, po r T arantino (1995) no roteiro impresso.

    Abertura - Cena 1A prim eira histria a de um casal de assaltantes que planeja m udanas no rum o de suas vidas. Vo com ear a assaltar lanchonetes. A discusso c a deciso se passam dentro cle um a lanchonete, com o na abertura de Ces de etluguel. A cena term ina com o incio do assalto.c>

    Crditos

    Cenas 2 a 8A segunda histria a de um a dupla de gngsteres - urn branco, Vin ce111, e um negro, Jules - que vai a um apartam ento acertar contas, o que significa assassinar alguns rapazes. Eles teriam tentado enganar Marcellus, o chefe da quadrilha.