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    AULA 02

    PRINCPIOS DE INTERPRETAO DA BBLIA Prof. Augustus Nicodemus Lopes

    PARTE I - POR QUE PRECISAMOS INTERPRETAR A BBLIA?

    Introduo

    Nem todos se apercebem do fato de que toda leitura de um texto envolve um processo de interpretaodo mesmo. No existe compreenso de um texto sem que haja interpretao, mesmo que esta leitura seja dojornal e o processo de interpretao acontea inconscientemente.

    Sendo um texto, a Bblia no foge a esta regra. Cada vez que a abrimos e lemos, buscando entender amensagem de Deus para ns, engajamo-nos num processo de interpretao. Como Palavra de Deus, a Bbliadeve ser lida como nenhum outro livro. Mas, tendo sido escrita por homens, ela deve ser interpretada comoqualquer outro livro. Alm disto, a Bblia est distante de ns em diversos aspectos, como veremos adiante, oque faz com que nossa leitura dela exija um esforo consciente de interpretao. Ler a Bblia, em certosentido, diferente de lermos a revista Veja.

    H muitas pessoas que ficam desanimadas com as controvrsias e as polmicas que existem nos meiosintelectuais onde se estuda a Bblia. Elas consideram desnecessrio o estudo mais srio da Bblia. Alguns atpensam que estudos acadmicos da Bblia so uma barreira espiritualidade e ao crescimento da Igreja.Podemos entender a atitude de pessoas assim, pois realmente existe muito academicismo e intelectualismorido e infrutfero em muitos crculos evanglicos.

    Por outro lado, rejeitar o estudo da Bblia no vai resolver o problema, pois continuamos diante de umtexto antigo, distanciado de ns, escrito em outras lnguas e que precisa ser interpretado para poder serentendido. Alguns dizem: "Vamos deixar de lado estas questes e simplesmente ler a Bblia como ela ".Infelizmente, uma leitura assim no possvel. No existe leitura e entendimento de um texto sem que hajainterpretao, mesmo que esta interpretao se processe de forma inconsciente. O objetivo desta aula levantar alguns aspectos da natureza da Bblia que tornam indispensvel um esforo consciente parainterpret-la.

    A Bblia como livro humano

    O fato de que a Bblia no caiu pronta do cu, mas que foi escrita por diferentes pessoas em diferentespocas, lnguas e lugares, alerta-nos para o que alguns estudiosos tm chamado de distanciamento. Ofenmeno do distanciamento aparece em diversas reas:

    Distanciamento temporal -- A Bblia est sculos distante de ns. Seu ltimo livro foi escrito pelofinal do sculo I da Era Crist, o que nos separa temporalmente em ceerca de dois milnios. A distnciatemporal, num mundo em constantes mudanas, faz com que a maneira de encarar o mundo, os aspectosculturais e lingsticos dos escritores da Bblia se percam no passado distante. Portanto, como qualquerdocumento antigo, a Bblia precisa ser lida levando-se isto em conta. Os princpios de interpretao da Bbliaprocuram condies de transpor este abismo temporal.

    Distanciamento contextual -- Os livros da Bblia foram escritos para atender a determinadassituaes, que j se perderam no passado distante. verdade que ao serem includos no cnon bblico, elespassaram a ser relevantes para a Igreja universal. Por outro lado, recuperar o contexto em que estes livrosforam escritos essencial para entendermos melhor a sua mensagem. As cartas de Paulo foram escritasvisando atender s necessidades de igrejas locais. No posso entender corretamente o ensinamento do apstolo

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    sobre o uso do vu pelas mulheres (1 Corntios 11) se no estiver consciente do problema que estavaacontecendo na Igreja relacionado com a participao das mulheres no culto. Igualmente, 1 Joo toma outrarelevncia quando fico consciente de que Joo estava escrevendo contra a influncia de uma forma incipientede gnosticismo nas igrejas da sia Menor. Ou ainda, que o livro de Habacuque foi escrito num contexto deiminente invaso por potncias estrangeiras. A mensagem do evangelho de Marcos fica mais clara quandodescobrimos que Marcos escreveu provavelmente para ajudar os crentes romanos a enfrentar as provaes quesofriam por causa de Cristo. E o livro de Jonas -- especialmente a atitude de Jonas contra os ninivitas -- ganhamaior clareza quando descubro que havia uma antipatia natural dos judeus contra os ninivitas por causa dosseus grandes pecados. Os princpios de interpretao da Bblia procuram transpor as dificuldades criadas peladistncia contextual.

    Distanciamento cultural -- O mundo em que os escritores da Bblia viveram j no existe. Est nopassado distante, com suas caractersticas, costumes, tradies e crenas. Muito embora a inspirao dasEscrituras garanta que sua mensagem seja relevante para todas as pocas, devemos lembrar que estamensagem foi registrada numa determinada cultura, da qual traos foram preservados na Bblia. Os princpiosde interpretao da Bblia devem levar em conta o jeito de escrever daquela poca, a maneira de expressarconceitos e ilustrar as verdades, para poder transpor a distncia cultural.

    Distanciamento lingstico -- As lnguas em que a Bblia foi escrita tambm j no existem. Nose fala mais o hebraico, o grego e o aramaico bblicos nos dias de hoje, mesmo nos pases onde a Bblia foiescrita. Como cada lngua tem seu jeito prprio de comunicar conceitos (apesar de uma estrutura comum atodas), princpios de interpretao da Bblia devem levar em conta estas peculiaridades. O conhecimento doparalelismo hebraico certamente nos ajuda a entender os Salmos melhor, bem como os profetas.

    Distanciamento autorial -- Devemos ainda reconhecer que teramos uma compreenso mais exatada mensagem de alguns textos bblicos reconhecidamente obscuros se os seus autores estivessem vivos.Poderamos perguntar a eles acerca destas passagens complicadas que escreveram e que continuam at hojedividindo os melhores intrpretes quanto ao seu significado. Por exemplo, Pedro poderia nos esclarecer o queele quis dizer com "Cristo foi e pregou aos espritos em priso". Ou ainda, Paulo poderia nos dizer o que elequis dizer com "o que faro os que se batizam pelos mortos?". Mateus poderia finalmente tirar a dvida sobreo sentido da frase de Jesus "no terminaro de percorrer as cidades de Israel at que venha o Filho doHomem". Daniel poderia nos esclarecer a quem ele se referia por Ciro (de quem no temos registro fora daBblia) e porque considerava Belsazar filho de Nabucodonosor, quando era filho de Nabonido. Noendossamos o que alguns estudiosos afirmam, que com a morte do autor perdeu-se a possibilidade derecuperar-se a inteno dos mesmos. A razo que a inteno deles sobrevive no que escreveram. Mascertamente a ausncia do autor faz com que a interpretao de textos obscuros seja necessria. Princpios deinterpretao devem levar em conta o distanciamento autorial, e buscar meios de recuperar a inteno delesnos prprios textos que escreveram.

    O distanciamento, portanto, exige de ns a tarefa de interpretar. Interpretar exatamente tentartranspor o distanciamento em suas vrias formas, como mencionadas acima, e chegar ao sentido exato dotexto. De forma geral, o ponto central da mensagem da Bblia to claro que pode ser entendido por todos,mesmo os que no esto conscientes do distanciamento. A prova disto que a Igreja vem se mantendo viva eativa atravs dos sculos, sendo composta em sua quase absoluta maioria de pessoas que no tm treinamentoteolgico, histrico e lingstico que permitiriam uma leitura mais informada das Escrituras. Por outro lado,uma maior exatido e clareza acerca de todos os aspectos da mensagem bblica no poder ser alcanada seminterpretao consciente.

    Seria importante perguntar at que ponto o lado humano das Escrituras possibilitaram a entrada deerros na mesma. Esta uma questo bastante controversa e certamente no poderemos abord-la de formaexaustiva aqui. Apenas reafirmaremos nossa convico de que a Bblia a verdadeira Palavra de Deus, comas seguintes qualificaes:

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    1. Ao dizermos que a Bblia verdadeira em tudo que afirma no estamos negando que erros decopistas se introduziram no longo processo de transmisso do texto. Seria negar a realidade. A inerrncia umatributo dos autgrafos, ou seja, do texto como originalmente produzido pelos autores inspirados por Deus.Muito embora hoje no tenhamos mais os autgrafos, pela providncia divina podemos recuper-los quaseque em sua totalidade atravs da ajuda de ferramentas como a baixa crtica ou a manuscritologia bblica.

    2. Tambm no estamos dizendo que os autores bblicos receberam conhecimento pleno eonisciente acerca do mundo e das cincias, ao escreverem. Eles se expressaram nos termos e dentro doconhecimento disponvel naquela poca, acomodando a verdade revelada em termos do que sabiam domundo. Assim, eles falam que o sol nasce num lado do cu e se pe no outro, ou ainda mencionam que o solparou no cu (Josu). Do ponto de vista rigorosamente cientfico estas declaraes so inexatas. Ou ainda, nolivro de Levtico, se diz que a lebre rumina e que o morcego uma ave. Sabemos que as duas coisas no soverdade: lebres no ruminam e morcegos no so aves. Os autores bblicos, entretanto, expressaram a verdadedivina acomodando-se ao conhecimento de sua poca, quando se pensava que o sol de fato girava em torno daterra, que todos os animais que mexiam com a boca aps comer eram ruminantes e que tudo que tivesse asas evoasse era ave!

    3. Tambm no estamos dizendo que podemos explicar todas as partes da Bblia em termosabsolutamente satisfatrios. Por exemplo, a harmonia dos Evangelhos continua sendo um desafio para autorescomprometidos com a inerrncia bblica, pois nem sempre consegue-se achar uma explicao absolutamentesatisfatria para os problemas levantados pelas aparentes discrepncias entre os Evangelhos. Ou ainda, pelasdiscrepncias entre 1-2 Crnicas e 1-2 Reis. No entanto, no podemos aceitar solues que impliquem numadiminuio da autoridade das Escrituras, sugerindo contradies ou erros. prefervel aguardar at que maisinformaes nos ajudem a achar solues compatveis com a natureza da Escritura e sua divina origem.

    4. Por ltimo, importante acrescentar que no estamos dizendo que as tradues da Bblia soinerrantes. Muito embora possamos ler com confiana a Bblia em nossa lngua, reconhecemos que em muitoscasos os tradutores tiveram que tomar decises relacionadas com a melhor maneira de traduzir umdeterminado termo ou expresso, e que tais decises, no sendo inspiradas por Deus, nem sempre foram ascorretas.

    A Bblia como livro divino

    Por outro lado, o fato de que a Bblia foi inspirada por Deus, sendo assim a Sua Palavra, deve serlevado em conta por aqueles que desejam interpret-la corretamente. A divindade e a humanidade dasEscrituras devem ser mantidas em equilbrio. Quando enfatizamos uma em detrimento da outra, acabamos porcair em algum dos erros hermenuticos que caracterizam a histria da interpretao crist das escrituras.

    Este foi o grande problema do mtodo histrico-crtico de interpretao, que surgiu com oIluminismo, adotando os pressupostos racionalistas quanto s Escrituras, contrrios sua origem divina. Aotratar a Bblia exatamente como qualquer outro livro de religio, deixando de levar em conta sua inspirao edivina autoridade, os estudiosos e professores cristos influenciados pelo racionalismo acabaram pordesenvolver um mtodo de interpretao que no aceitava o conceito de revelao, inspirao e providnciade Deus. Como resultado, a Bblia passou a ser vista, no como Palavra de Deus em sua inteireza, mas como oregistro da f de comunidades religiosas, primeiro a judaica e depois a crist. Continha erros crassos, e seuslivros individuais eram trabalhos compostos de retalhos de fontes contraditrias e refletiam mais opensamento dos que a escreveram do que as realidades histricas e espirituais que pretendiam transmitir.

    Mas, uma atitude oposta igualmente perigosa. Muitos movimentos e grupos religiosos esquecem ofenmeno do distanciamento e encaram a Bblia como se fosse um livro cado do cu, e cuja interpretaodepende somente de orao, jejum e plenitude do Esprito Santo. Evidentemente, sendo a Palavra de Deus,precisamos de comunho com Deus e da iluminao do Esprito para o conhecimento salvador das Escrituras.Porm, a utilizao consciente de princpios de interpretao compatveis com a natureza da Bblia faro com

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    que este conhecimento nos chegue de forma mais exata e completa. Precisamos ter cuidado, porm, para nocairmos no erro de pensar que somente aqueles que tm treinamento profissional em princpios deinterpretao podero chegar ao conhecimento da mensagem das Escrituras.

    Muitos dos princpios de interpretao bblicos, praticados diariamente por todos os leitores da Bblia,so simples, lgicos e evidentes, como por exemplo, a interpretao de uma palavra luz do seu contexto. Istofazemos diariamente, na leitura do jornal, de notcias pela Internet e lendo um email. Num certo sentido, ler aBblia envolve as mesmas regras que ler estas coisas. A natureza divina da Bblia, por sua vez, provoca umoutro tipo de distanciamento, que expressa-se nestas reas:

    Distanciamento natural -- a distncia entre Deus e ns imensa. Ele o Senhor, criador de todasas coisas, do cu e da terra. Somos suas criaturas, limitadas, finitas. Nossa condio de seres humanos impelimites nossa capacidade de entender e compreender as coisas de Deus. No impede a possibilidade desteconhecimento, com certeza, mas o limita. O fato de sermos seres humanos tentando entender a mensagemenviada pelo Deus criador em si s representa um distanciamento. A distncia entre a criatura e o Criador, tofreqentemente mencionada nas Escrituras, tem seus efeitos tambm na nossa hermenutica. Princpios deinterpretao no podem ignorar isto e pensar que bastam ferramentas hermenuticas corretas para quepossamos entender a Deus. O distanciamento provocado pela nossa humanidade deve procurar ser transpostopor princpios de interpretao que reconheam a necessidade da iluminao do Esprito.

    Distanciamento espiritual -- o fato de que somos pecadores impe ainda mais limites nossacapacidade de interpretao da Bblia. Somos seres afetados pelo pecado tentando entender os desgnios doDeus puro e santo. A Queda um conceito espiritual, mas com certeza no pode ser deixado de lado emqualquer sistema interpretativo das Escrituras. Transpor o abismo epistemolgico causado pela Queda certamente o ponto de partida. A regenerao e a converso so a resposta de Deus a esta condio.

    Distanciamento moral -- a distncia que existe entre seres pecadores e egostas e a pura e santaPalavra que pretendem esclarecer. A corrupo de nossos coraes acaba por introduzir na interpretao dasEscrituras motivaes incompatveis com o Autor das mesmas. Infelizmente a histria da Igreja mostra comodiferentes grupos manipulam as Escrituras para defender, provar e dar autoridade a seus pontos de vista.Certamente existem pessoas sinceras, embora equivocadas. Mas no podemos negar que o distanciamentomoral acaba nos levando a torcer o sentido das Escrituras, procurando us-la para nosso fins nem semprelouvveis. No pargrafo seguinte mencionamos alguns exemplos.

    A Bblia tem sido usada como prova das mais conflitantes teorias e idias, o que mostra que ler eentender imparcialmente a sua mensagem no to fcil e costumeiro assim. A Bblia foi usada pelosprotestantes de pases colonizadores para justificar a escravido, usando textos do Antigo e Novo Testamentosque falam da escravido sem contudo aboli-la (Ex. 21.2-6). Os seus opositores usaram tambm a Bblia paradefender as idias abolicionistas, usando a parbola do bom samaritano e "amars o teu prximo como a timesmo".

    A Bblia tambm foi usada para provar que os judeus deveriam ser perseguidos, que a guerra santacontra os muulmanos era a vontade de Deus, que os protestantes brancos so uma raa superior, paraexecutar as bruxas, para impedir o casamento dos padres, para defender a masturbao, para justificar o abortoe a eutansia, para regular o tamanho das saias e do cabelo das mulheres crists, para prover aceitao efortalecimento dos homossexuais, para proibir ingerncia de qualquer tipo de bebida alcolica, para proibirtransfuso de sangue, para proibir o servio militar, para defender a poligamia nos dias de hoje, para defendero suicdio religioso em massa, etc. O catlogo imenso.

    Tudo isto mostra que no to fcil "simplesmente ler a Bblia e fazer o que ela diz". Nuncadesanimemos da possibilidade (muito real!) de entendermos com clareza o ensinamento das Escrituras, masreconheamos humildemente que nunca poderemos ter uma compreenso unnime de todas as suas passagenscomplicadas. Sabendo que a Bblia vem de Deus, temos nimo para busc-lo em orao, suplicando a Suagraa e Sua iluminao em nossa tarefa como intrpretes.

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    Muitos estudiosos modernos, cansados do mtodo histrico-crtico, tm proposto novos mtodos deinterpretao que levem em conta o carter divino das Escrituras. Defendem princpios de interpretao queestejam atentos no somente aos aspectos humanos da Bblia como literatura religiosa, mas especialmente simplicaes da sua divina origem e natureza, bem como da nossa dupla condio de humanos e pecadores.

    Concluso

    Conforme vimos acima, a dupla natureza da Bblia provoca um distanciamento temporal e espiritualque precisa ser transposto, para que possamos chegar sua mensagem. Pela Sua misericrdia, Deus tmguiado e abenoado a Igreja atravs dos sculos, mesmo quando ela esqueceu-se de levar em conta estesaspectos. Porm, isto no nos isenta de buscarmos compreender de forma mais exata e completa a revelaoque Deus fez de si mesmo. E nisto, o uso consciente de princpios de interpretao compatveis com anatureza das Escrituras de inestimvel valor.

    Mtodo de Interpretao Bblica

    A Bblia a Palavra de Deus. Mas, algumas das interpretaes derivadas dela no so. Existem muitasseitas, cultos e grupos cristos que usam a Bblia declarando que as suas interpretaes so as corretas. Muitofreqentemente, no entanto, as interpretaes no apenas diferem dramaticamente umas das outras, como soclaramente contraditrias. Isto no significa que a Bblia seja um documento contraditrio. Antes, o problemaest naqueles que a interpretam e/ou nos mtodos que eles usam.

    Como ns somos pecadores, somo incapazes de interpretar perfeitamente a palavra de Deus todo otempo. O corpo, a mente, a vontade e as emoes so afetadas pelo pecado e tornam a interpretao 100%exata uma impossibilidade. Isto no significa que entender corretamente a palavra de Deus seja impossvel.Mas que devemos nos aproximar Sua palavra com cuidado, humildade e razo. Adicionalmente, nsprecisamos o que de melhor ns poderamos necessitar: a direo do Esprito Santo na interpretao daPalavra de Deus. Alm do mais, a Bblia inspirada por Deus e dirigida ao Seu povo. O Esprito Santo nosajuda a compreender o que a Palavra de Deus significa e como aplic-la em nossas vidas.

    No nvel humano, para minimizar os erros que possam advir das nossas interpretaes, ns precisamosconhecer mtodos bsicos de interpretao da Bblia. Eu irei listar alguns destes princpios na forma dequestes e ento aplic-los a uma passagem da Escritura.

    Eu sigo os seguintes princpios como linhas-mestras para examinar uma passagem. Elas no soexaustivas e nem absolutas.

    1. Quem escreveu/falou a passagem e para quem era endereada? 2. O que a passagem diz? 3. Existe alguma palavra ou frase nesta passagem que precise ser examinada? 4. Qual o contexto imediato? 5. Qual o contexto mais amplo exposto no captulo e no livro? 6. Quais so os versculos relacionados ao assunto da passagem e como eles afetam a compreenso

    desta? 7. Qual o fundo histrico e cultural? 8. Qual a concluso que eu posso tirar desta passagem? 9. As minhas concluses concordam ou discordam de reas relacionadas nas Escrituras ou com outras

    pessoas que j estudaram esta passagem? 10. O que eu posso aprender e aplicar minha vida?

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    A fim de ajudar a entender como estas questes podem afetar a sua interpretao de uma passagem, euescolhi uma que, quando examinada atentamente, pode fazer voc chegar a concluses muito diferentes. Eudeixarei que voc determine a exatido da minha interpretao.

    A passagem que eu vou usar Mt 24:40 "Dois homens estaro no campo; um ser levado e o outroser deixado".

    1. Quem escreveu/falou a passagem e para quem era endereada?

    Jesus pronunciou as palavras e elas foram registradas por Mateus. Jesus falou aos Seus discpulos em resposta a uma pergunta, que iremos ver mais tarde.

    2. O que a passagem diz?

    A passagem diz simplesmente que um dos dois homens que esto fora, no campo, ser levado. Ela nodiz onde, porque, quando, ou como. Ela s diz que um ser levado. Ela no define que o campo pertena aalgum ou a algum lugar em particular.

    3. Existe alguma palavra ou frase nesta passagem que precise ser examinada?

    Nenhuma palavra, nesta passagem em particular, realmente necessita que ns a examinemoscuidadosamente, mas para seguirmos este exerccio, eu usarei a palavra "levar". Usando uma Concordncia deStrong e um Dicionrio de Palavras do Novo Testamento, eu posso verificar qual a palavra grega e aprendera respeito dela. A palavra no Grego "paralambano". Ela significa: "1) tomar, tomar para si mesmo, trazerpara junto de si, 2) receber alguma coisa por transmisso."

    Um ponto que vale a pena mencionar acerca do estudo das palavras que o seu significado podemudar de acordo com o seu contexto. Assim, examinando como a palavra usada em mltiplos contextos, oseu significado pode reveber novas dimenses. Por exemplo, a palavra "amor", no grego "agapao." Elageralmente refere-se ao "amor divino." Isto pode parecer bvio, j que esta a palavra usada em Jo 3:16 comeste significado. No entanto, a mesma palavra usada em Lc 11:43, onde Jesus diz: "Ai de vocs, fariseus,porque amam os lugares de honra nas sinagogas e as saudaes em pblico!" (NVI). A palavra usadaaqui "agapao." Parece que o significado da palavra pode tornar-se alguma coisa na linha de "totalmentecomprometido com."

    No entanto, ns devemos tomar o cuidade de no usar o significado de uma palavra em um contextoem outro contexto. Por exemplo: 1) Este novo cadete verde. 2) A rvore verde. O primeiro verde significa"novo ou inexperiente." O segundo significa a cor verde. Poderamos impor o significado de um contexto emoutro? Sim, mas no seria uma boa idia.

    4. Qual o contexto imediato?

    o lugar onde a passagem est inserida. O contexto imediato da nossa passagem o seguinte, Mt24:37-42, "Como foi nos dias de No, assim tambm ser na vinda do Filho do Homem. 38 Pois nos diasanteriores ao dilvio, o povo vivia comendo e bebendo, casando-se e dando-se em casamento, at o dia emque No entrou na arca; 39 e eles nada perceberam, at que veio o dilvio e os levou a todos. Assimacontecer na vinda do Filho do Homem. 40 Dois homens estaro no campo: um ser levado e o outro serdeixado. 41Duas mulheres estaro moendo num moinho: uma ser levada e a outra deixada. 42 Portanto,vigiem, porque vocs no sabem em que dia vir o seu Senhor" (NVI).

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    Imediatamente podemos perceber que a pessoa levada no verso 40 comparada a pessoa levada noverso 39. Isto , que as pessoas que foram "levadas" so do mesmo tipo.

    Uma pequena questo precisa ser feita agora. Quem foi levado no verso 39? Foi No e sua famlia ouforam as pessoas que estavam comendo e bebendo? A resposta a esta pergunta pode nos ajudar a entendermelhor a passagem original. O prximo passo na interpretao da passagem nos ajudar a entend-la aindamais.

    5. Qual o contexto mais amplo exposto no captulo e no livro?

    Uma passagem deve ser sempre examinada dentro do seu contexto. No apenas no contexto dos versosimediatamente antes e depois dela, mas tambm no contexto do captulo e at do livro na qual ela est escrita.

    O discurso de Jesus do qual esta passagem foi tirada, comea com uma pergunta. Jesus tinha acabadode sair do templo e no verso 2 disse aos Seus discpulos que "..no ficar aqui pedra sobre pedra; sero todasderrubadas." Ento no versculo 3, os discpulos perguntam a Jesus: "Dize-nos quando acontecero essascoisas? E qual ser o sinal da sua vinda e do fim dos tempos?" (NVI). Ento, Jesus comea a profetizaracerca das coisas que viriam no fim dos tempos. Ele falou de falsos Cristos, tribulao, do sol se escurecendo,do Seu retorno e dos dois homens no campo onde um ser levado e outro ser deixado.

    O contexto escatolgico. Isto signiufica que ele est tratando das ltimas coisas, ou do tempoprximo ao retorno de Jesus. Muitas pessoas acham que este versculo de Mt 24:40 refere-se ao arrebatamentomencionado em 1 Ts 4:16-17. Pode ser. Mas interessante notar que o contexto do versculo sugere que omau que ser levado, e no o bom.

    Neste momento voc pode estar pensando que este mtodo de interpretao da passagem no bom.Depois de tudo, o verso "um ser levado e o outro deixado" realmente acerca do arrebatamento. Certo? Bem,pode ser. Como voc pode ver, ns todos chegamos Bblia com idias pr-concebidas. Algumas vezes elasesto certas, outras, erradas. Ns sempre deveramos estar prontos a ter a nossa compreenso da Bbliadesafiada pelo que dito. Se ns no estivermos dispostos, ento somos presunosos. E Deus est distante dosoberbo ( Sl 138:6).

    6. Quais so os versculos relacionados ao assunto da passagem e como eles afetam acompreenso desta?

    Acontece que existe uma passagem relacionada, na verdade, paralela, encontrada em Lc 17:26-27."Assim como foi nos dias de No, tambm ser nos dias do Filho do Homem. 27O povo estava comendo,bebendo, casando-se e sendo dado em casamento, at o dia em que No entrou na arca. Ento veio o dilvio edestruiu a todos. "(NVI).

    Rapidamente, ns descobrimos que estes versos relacionados sem dvida afetam a nossa maneira deentender a passagem inicial. Est claro nesta passagem de Lucas que aqueles que foram levados pelo dilvioeram aqueles que estavam comendo, bebendo e se dando em casamento . Em outras palavras, no foram aspessoas boas que foram levadas, foram as ms.

    Como voc pode ver, isto tem um profundo impacto na maneira como compreendemos nossapassagem em Mt 24:40. O contexto no sugere que aquele que est no campo que ser levado no o mau?Como este contexto afeta as minhas idias pr-concebidas acerca deste verso? Vamos ler o versculonovamente, mas agora dentro do seu contexto imediato: Mateus 24:37-42, "Como foi nos dias de No, assimtambm ser na vinda do Filho do Homem. 38 Pois nos dias anteriores ao dilvio, o povo vivia comendo ebebendo, casando-se e dando-se em casamento, at o dia em que No entrou na arca; 39 e eles nadaperceberam, at que veio o dilvio e os levou a todos. Assim acontecer na vinda do Filho do Homem. 40 Doishomens estaro no campo: um ser levado e o outro ser deixado. 41Duas mulheres estaro moendo num

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    moinho: uma ser levada e a outra deixada. 42 Portanto, vigiem, porque vocs no sabem em que dia vir oseu Senhor" (NVI).

    O que que voc acha agora? Quem foi levado, o bom ou o mau? Ento, este verso faz refernciaao arrebatamento ou no? S perguntando.

    De interesse correlato uma passagem em Mt 13:24-30 onde Jesus conta a parbola do semeadorque semeou a boa semente no seu campo e algum, depois, semeou joio. Os servos perguntaram se elesdeveriam ir imediatamente e arrancar o joio. Mas, no verso 30, Jesus diz "Deixem que cresam juntos at acolheita. Ento direi aos encarregados da colheita: juntem primeiro o joio e amarrem-no em feixes paraser queimado; depois juntem o trigo e guardem-no no meu celeiro." (NIV)

    O ponto digno de nota aqui que o primeiro a ser ajuntado o joio, e no o trigo. Isto fica aindamais interessante quando Jesus explica a parbola em Mt 13:36-43 e estabelece que eles sero atirados fornalha.

    Adicionalmente, quando nos voltamos para Lc 17, que a passagem paralela de Mt 24, nsdescobrimos que os discpulos fizeram a Jesus outra pergunta por causa da resposta de Jesus que dizia "doisestaro no campo e um ser levado." No verso 37 eles perguntam, "Onde, Senhor?" perguntaram eles. Ele[Jesus] respondeu, "Onde houver um cadver; ali se ajuntaro os abutres."

    Eles sero levados a um lugar de morte.

    7. Qual o fundo histrico e cultural?

    Esta uma questo mais difcil de responder. Ela requer um pouco mais de pesquisa. Umcomentrio digno de ser examinado aqui, j que ele usualmente prov um pano de fundo histrico e culturalpara ajudar a desvendar o texto.

    Neste contexto, Israel estava debaixo da lei romana. Eles estavam proibidos de exercer a puniocapital (pena de morte) e de custear uma guerra. Roma estava dominando a pequena nao. O judasmo eratolerado apesar da liderana romana. Alm de tudo, Israel era um pequeno pas oriental com um povo que erafantico pela sua religio. Ento, Roma permitiu que Israel fosse governado por polticos judeus marionetes.

    O templo era o lugar de adorao da comunidade israelense. Ali os sacrifcios de sangue eramoferecidos pelo sumo sacerdote para a expiao dos pecados da nao. Levaram 46 anos para contru-lo (Jo2:20). Jesus disse que o templo seria destrudo; o que gerou a pergunta que O levou a fazer o discurso quecontm a passagem examinada.

    8. Qual a concluso que eu posso tirar desta passagem?

    Desde que o contexto da passagem sugere que o mau que ser levado, eu estou concluindo queaquele que ser levado no campo no ser o bom, mas sim o mau. Eu tambm sou tentado a concluir que omaus sero levados ao lugar de julgamento.

    9. As minhas concluses concordam ou discordam de reas relacionadas nas Escrituras ou comoutras pessoas que j estudaram a esta passagem?

    Eu j apresentei outras passagens que me permitem chegar a concluso que cheguei. No entanto,isto no est de acordo com todos os comentrios que eu tenho lido acerca deste verso. Neste ponto eunecessito apresentar minha concluso a outros para ver o que eles pensam. S porque eu estudei a Palavra echeguei a uma concluso no significa que ela esteja correta. Mas no significa que esteja errada, no entanto.

    Consultar outras pessoas, examinar a palavra de novo e buscar a Deus humildemente e a suailuminao. Eu s posso ter a esperana de chegar melhor concluso possvel acerca da passagem.

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    10. O que eu posso aprender e aplicar minha vida?

    A Interpretao da Escritura tem um propsito: Entender a Palavra de Deus mais exatamente. Comum melhor entendimento da Sua palavra, ns poderemos aplic-la rea a que ela se destina. No nosso caso, apassagem revela uma rea do futuro e uma poca de julgamento. A aplicao, ento, que Deus executar ojulgamento sobre os injustos no fim dos tempos.

    Concluindo:

    Este artigo somente uma demonstrao. Ele bsico e no cobre todos os pontos da interpretaobblica. Mas isto j d uma direo e um exemplo de como voc deve aplicar. Como eu disse antes, ore. Leia aSua Palavra. Examine as Escrituras o melhor que voc puder para um melhor entendimento e melhor preparo.Seja humilde na sua abordagem e teste tudo o que concluir pela prpria Bblia.

    Uma ltima coisa: voc concordou com a minha concluso?

    PARTE II - ASPECTOS DA INTERPRETAO

    Introduo

    O objetivo desta aula e da seguinte estudar alguns aspectos da interpretao que so fundamentaispara uma correta compreenso das Escrituras. So aspectos que devem ser levados em conta pelo intrprete aoprocurar chegar ao sentido da Palavra de Deus. Estes aspectos decorrem do fato que a Bblia um livro divinoe humano ao mesmo tempo. Desta forma, alguns dos aspectos so pertinentes somente interpretao daBblia, enquanto que outros, interpretao de textos antigos em geral.

    A BBLIA UM LIVRO DIVINOPortanto, devemos levar em considerao o aspecto "espiritual" dainterpretao. Ou seja, precisamos considerar o papel do Esprito Santo nainterpretao (aspecto pneumolgico)

    A BBLIA UM LIVRO HUMANOPortanto, devemos levar em considerao que a Bblia, sendo um textoantigo, demanda consideraes gramaticais, literrias, histricas eteolgicas para sua interpretao.

    Mais uma vez lembremos que adotamos uma interpretao reformada das Escrituras. O que istosignifica? Em poucas palavras, um sistema de interpretao que:

    est historicamente associado ao mtodo gramtico histrico de interpretao, adotado, usado edefendido pelo Reformadores.

    tem como pressuposto a inspirao e veracidade das Escrituras; procura estar sensvel aos estudos modernos de cincias correlatas que podem trazer algum auxlio

    interpretao do texto bblico. Apresentamos nesta aula dois importantes aspectos da interpretao reformada das Escrituras que

    devem ser levados em conta pelo exegeta reformado. Estes aspectos so derivados da natureza das Escrituras,como expostos na aula anterior.

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    1. Aspecto pneumolgico

    Podemos dividir em duas etapas a obra do Esprito Santo em comunicar a verdade de Deus: Revelao, que foi o primeiro estgio, objetivo em sua natureza. Consistiu na atuao do Esprito

    nos autores bblicos e no texto que produziram, de tal forma a termos o registro infalvel da Palavra de Deus. Iluminao, que subjetivo, consiste na iluminao de nossa mente para compreender a verdade

    revelada nas Escrituras. com este segundo estgio que nos ocuparemos aqui. A atuao iluminadora do Esprito de Deus na leitura e compreenso das Escrituras uma dimenso

    freqentemente ignorada por estudiosos comprometidos com o mtodo histrico-crtico e com seuspressupostos. Para eles, no h qualquer interferncia ou participao de Deus no processo de compreenso. Aexegese um processo absolutamente mecnico, uma simples aplicao de mtodos supostamente cientficos.Veja o que disse o biblista catlico Severino Croatto em seu livro "Hermenutica":

    No existe uma hermenutica bblica diferente de outra filosfica, sociolgica, literria e outras. Hapenas uma hermenutica geral, da qual existem muitas expresses regionais. O mtodo e o fenmenocoincidem em todos os casos. verdade, contudo, que a hermenutica bblica tem uma caracterstica talvezindita por assumir textos de uma longa trajetria de criao e reelaborao, originados em um povo com umitinerrio igualmente longo, unificado por uma concepo linear e teleolgica da histria que exige um grandetrabalho interpretativo. Esta fecundidade hermenutica ser bem assinalada no decorrer deste estudo.

    Para Croatto, a nica diferena entre a Bblia e outros livros que ela um texto antigo que tem umconceito peculiar de histria.

    O SenhorJesusprometeu adireo doEsprito SuaIgreja

    Porm, para os estudiosos comprometidos com a inspirao das Escrituras, a atuao do Espritodeve ser levada em conta, considerando a natureza da mensagem bblica e a situao de cegueiraespiritual a que o homem est sujeito (reveja o distanciamento espiritual e moral quemencionamos na aula passada).Devemos interpretar a Bblia levando em conta o que ela diz acerca do papel do Esprito Santo noprocesso de interpretao. H uma srie de textos bblicos que tratam desta relao. Nem todosforam escritos de forma direta sobre o assunto, mas nos trazem princpios gerais sobre a obra doEsprito sobre a comunicao da verdade de Deus:

    Joo14.26

    O Senhor Jesus prometeu aos apstolos que o Esprito haveria de ensin-los em todas as coisas e osfaria lembrar de tudo que Ele havia dito. O cumprimento desta promessa deu-se primariamente napregao apostlica e na composio das Escrituras. Porm, ela tem uma aplicao ainda hoje, quandoo povo de Deus l as Escrituras buscando a iluminao do Esprito.

    Joo16.13-15

    Nesta passagem o Senhor prometeu aos apstolos que o Esprito haveria de gui-los a toda verdade. OSenhor referia-se ao conhecimento de Deus, e no a um conhecimento amplo de todas as coisas. Estapromessa cumpriu-se nos escritores do Novo Testamento, que registraram de forma infalvel a Palavrade Deus. E podemos contar que o Esprito hoje nos conduz a reconhecer a verdade da Palavra deDeus.

    1Corntios2.10-11,13

    Nesta passagem o apstolo Paulo refere-se obra iluminadora do Esprito, revelando s nossas mentesa verdade da Palavra de Deus. No se trata de uma nova revelao, mas da iluminao de nossa mentee corao, capacitando-nos a receber a revelao de Deus, que a Bblia.

    2Corntios3.14-16

    Nesta passagem, onde mostra a superioridade da nova aliana sobre a antiga, Paulo explica que somente pelo Esprito de Deus que existe liberdade hermenutica para ler-se o Antigo Testamento. OAT um livro "fechado" at que o vu hermenutico seja removido pela converso ao Senhor Jesus.

    1 Joo2.20,27

    Nestes versos, o apstolo Joo fala da "uno" que vem de Deus e que nos habilita a saber as coisas deDeus. A maioria dos estudiosos entende que Joo refere-se ao Esprito Santo, em seu papel deiluminar os crentes quanto verdade de Deus.

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    Considerando a origem divina das Escrituras, a natureza espiritual de sua mensagem e o problemacriado pelo pecado no entendimento do homem, evidente que carecemos da atuao iluminadora do Espritode Deus para podermos entender a mensagem que Deus revelou nas Escrituras. Os textos bblicos acimamostram isto.

    Principais questes:

    Embora haja pouca dvida entre os estudiosos evanglicos de que o Esprito desempenha de fato umpapel no processo interpretativo, a grande questo saber exatamente qual este papel. E nisto osevanglicos tm apresentado diversas e diferentes solues. Entender mais claramente o papel do Esprito importante em nosso desejo de estabelecer e usar princpios de interpretao que nos conduzam ao sentidoreal dos textos bblicos. Corremos, por um lado, o risco de exagerarmos na funo do Esprito, e cairmosnuma hermenutica carismtica. Por outro, podemos ignor-la, caindo numa exegese mecnica e rida.Queremos o equilbrio.

    As principais questes levantadas pelos estudiosos so estas:

    I. Qual exatamente o papel do Esprito na interpretao? Ele revela novos sentidos aointrprete que vive uma vida de orao e comunho com Deus? Ou apenas ilumina oentendimento para que ele possa crer naquilo que seu trabalho exegtico j descobriu?

    II. Qual a relao entre espiritualidade e exegese? At que ponto a minha espiritualidadeinfluencia a minha exegese? A minha vida de orao tem a ver com a eficcia da minhainterpretao?

    Principais respostas

    Os estudiosos tm dado diversas e diferentes respostas a estas questes. Vejamos algumas das maisimportantes.

    John StottJohn Stott -- este conhecido estudioso afirma que somente o Esprito de Deus podeinterpretar o livro de Deus, visto que seu prprio autor. Os autores bblicos falarammovidos pelo Esprito (2 Pe 1.21); consequentemente, sendo o autor ltimo da Bblia, oEsprito pode nos levar ao sentido do que fez escrever. Stott descreve que tipo de pessoa oEsprito ilumina (The Interpretation of the Bible, pp. 157-9): O regenerado ou nascido de novo (Jo 3.3; 1 Cor 2.14); O humilde (Mt 11.25-26); O obediente (Jo 7.17); O comunicativo (?)

    Esta posio sugere que sem a iluminao do Esprito ningum pode entender a sua mensagem. Aoscrentes humildes, obedientes e comunicativos, Deus concede o verdadeiro sentido das Escrituras.

    Moiss Silva -- Ele defende no artigo "A Funo do Esprito da Interpretao Bblica" que nossaespiritualidade no tem qualquer influncia na preciso da exegese bblica. Reagindo contra a idia de quepessoas cheias do Esprito iro ter uma exegese mais exata do texto do que outras que no so to espirituais,Silva argumenta que em sua maior parte a exegese consiste na aplicao metodolgica de regras deinterpretao, conhecimento da gramtica e da sintaxe, conhecimento da cultura e da histria -- coisas queindependem do estado espiritual de quem faz a exegese (veja o artigo de Silva nas Referncias desta aula).

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    Ele sugere que pessoas descrentes mas preparadas hermeneuticamente faro uma exegese melhor doque crentes piedosos sem preparo algum. A ao do Esprito far diferena apenas quanto aplicao dosresultados da interpretao. Sem negar a atuao do Esprito na vida do exegeta crente, Silva defendeentretanto que o resultado da exegese depende mais da nossa capacidade como intrpretes do que de algumato miraculoso de revelao do Esprito.

    Daniel B. Wallace -- ele argumenta que o papel do Esprito produzir convico da verdade, mais doque dar conhecimento dela. O Esprito d testemunho da verdade quando algum abre as Escrituras e comeaa ler. Wallace entende o papel do Esprito em termos do que Paulo chama de "testemunho do Esprito aonosso esprito" (Rm 8.16), e que Calvino chamou de "o testemunho interno do Esprito". aquela persuasointerna operada pelo Esprito, convencendo-nos da verdade. Wallace entende que isto que o Esprito faz. Eleno d conhecimento novos, nem novas revelaes, mas simplesmente testifica conosco de que estamos dianteda verdade (veja seu artigo nas Referncias).

    Considerando que existem muitas divergncia entre cristos sinceros e piedosos quanto a determinadospontos das Escrituras, Wallace sugere que o Esprito s d testemunho dos pontos centrais da Escritura. Poreste motivo, os cristos se dividem quanto a pontos secundrios, pois no h testemunho do Esprito quanto aeles. A dificuldade com a posio de Wallace que ela introduz uma distino entre doutrinas centrais esecundrias que variar de acordo com a tradio e as convices de algum. Por exemplo, na lista de Wallaceconstam como doutrinas secundrias o papel da mulher na liderana, a doutrina da inerrncia da Bblia, otempo que Deus levou para criar o mundo e os dons espirituais. Nem todos concordariam com a lista deWallace.

    Tentando achar um caminho

    Apesar das divergncias quanto ao modo e intensidade da atuao do Esprito na interpretao, pensoque podemos fazer algumas afirmaes em busca de um caminho que leve em considerao as principaispreocupaes dos diferentes posicionamentos quanto ao assunto;

    1. necessrio orar e labutar (o lema de Calvino) para entendermos corretamente as Escrituras:orar por iluminao do Esprito e labutar estudando as Escrituras, usando todos os recursos disponveis.

    2. Quanto mais algum entristece o Esprito de Deus, desobedecendo as Escrituras e diminuindo orespeito por sua autoridade, mais e mais tender a torcer o texto (2 Pe 3.15-16).

    3. Os que crem que o Esprito de Deus intervm de forma direta no mundo, estaro emmelhor condio de interpretar os relatos bblicos sobre profecias e milagres. Os incrdulos tendero ainterpretar estas passagens como vaticinia ex eventu e mitolgicas, perdendo de vista a inteno do texto.

    4. O objetivo da exegese no somente adquirir conhecimento, mas sermos transformados pelopoder do Esprito, atravs da Palavra. Assim, devemos ler as Escrituras abertos para sermos transformadospelo Esprito (2 Co 3.18).

    5. No devemos pressupor que nossa exegese ser correta se simplesmente orarmos e somosespirituais. O castigo para a preguia e falta de estudo srio ser uma exegese forada e superficial. O Espritode Deus no me transmitir miraculosamente conhecimentos que eu posso adquirir estudando.

    2. Aspecto Teolgico

    Um outro importante aspecto dentro dos princpios de interpretao da Bblia a influncia dospressupostos, da experincia e de outros fatores inconscientes na leitura do texto sagrado, especialmentedaquilo que cremos em relao a Deus e s Escrituras.

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    DETERMINISMO NA INTERPRETAO?Alguns grupos utilizam-se de forma inadequada dainfluncia do contexto social e outros na leitura daBblia, ao ponto de fazerem da Bblia um apoio para suaideologia. Afirmam que uma leitura da Bblia feita pelospobres e oprimidos da Amrica Latina seressencialmente diferente daquela feita por brancosamericanos de classe mdia. Embora possamos concordar que o contexto social e oambiente vivencial do leitor possibilitem a descoberta deaspectos e nuanas da mensagem da Bblia, penso que ir longe demais afirmar que pobres e ricos jamaispodero concordar em sua leitura das Escrituras, a noser que o rico faa uma opo pelos pobres e que ospobres se engajem na prxis poltica de libertao social.Este "determinismo" do ambiente social nos rouba davalidade na interpretao da Palavra de Deus.

    Conceitos geraisAs afirmaes abaixo tem como alvo abordar algunspontos essenciais deste aspecto da interpretao.No existe interpretao "neutra" -- Os estudiososracionalistas, entusiasmados com o pretenso poder darazo para alcanar a verdade atravs da anlise lgica,condenaram qualquer atitude ou convico anterior investigao, que pudesse j condicionar o resultado damesma. Neste sentido, insistiram em deixar de fora daexegese "cientfica" da Bblia idias pr-concebidassobre ela, como a sua inspirao e infalibilidade. O queno quiseram ver na poca foi que simplesmentesubstituram pressupostos teolgicos por filosficos,como a concepo do universo como sendo um sistemafechado de causa e efeito e uma concepo dialtica(hegeliana) da histria.

    1. O papel dos pressupostos teolgicos sempre foi destacado pela Igreja -- Em nossos dias, depoisda obra de Schleiermacher, Gadamer, Saussure, Bultmann e Derrida, vemos um abandono gradual da utopiaracionalista e uma nova apreciao pelo envolvimento do intrprete na exegese. Pode parecer a alguns queseja uma conquista da hermenutica ps-moderna. Mas, na verdade, a Igreja reformada sempre ensinou quesem f e sem o auxlio do Esprito no se pode entender a Bblia corretamente.

    A natureza da revelao e do entendimento garantem a validade nainterpretao -- Muito embora nossos pressupostos teolgicos formemperspectivas dentro das quais o conhecimento da verdade revelada se fazpossvel, isto no torna viciados os resultados da nossa investigao, ao pontode se relativizar irremediavelmente toda interpretao. Na verdade, ospressupostos teolgicos corretos acerca de Deus e da Escritura nos colocamnuma posio de melhor entender a sua mensagem. isto que faz com quecristos do mundo todo, com diferentes horizontes de compreenso, vindos dediferentes culturas e que passaram por diferentes experincias, consigaminterpretar a Bblia da mesma forma, ao ponto de chegarem aos mesmosresultados (adaptados e acomodados sua linguagem e cultura): Cristo morreupelos nossos pecados, ressuscitou literalmente de entre os mortos, est a direitade Deus e vir para julgar os vivos e os mortos.

    PRESSUPOSTOSUNIVERSAISNo devemos exagerar ainfluncia dos pressupostos aoponto de relativizarcompletamente a interpretao.Lembremos que entre ospressupostos de cada leitor estoalguns que so comuns a todoser humano: sua humanidadebsica, o funcionamento padrodo crebro humano, o sistemaestrutural universal dalinguagem, a universalidade dasexperincias e emoeshumanas, e especialmente oDeus imutvel, que se revela aoshomens pela natureza, pelaconscincia e pela Palavra.

    2. essencial o uso correto do crculo hermenutico -- "Crculo hermenutico" refere-se interaoentre o texto e o leitor. O leitor se aproxima do texto trazendo seu horizonte de compreenso e l o textodentro dos limites deste horizonte. O texto, em troca, desafia o leitor a rever criticamente seus pressupostos emud-los. Aps estas mudanas, o leitor novamente aproxima-se do texto, com seu horizonte agora maisdefinido pelo prprio texto. E a fecha-se o crculo. J que pressupostos so inevitveis, bem como o crculohermenutico, devemos estar constantemente revendo estes pressupostos luz do texto, deixando que aPalavra de Deus nos transforme. O problema no so os pressupostos, mas pressupostos incompatveis com a

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    natureza do texto bblico. O problema com os exegetas histrico-crticos que no se deixam desafiar nemtransformar pela Bblia.

    Pressupostos Reformados

    Na tabela abaixo mencionamos alguns dos principais pressupostos teolgicos que nos do perspectivasdentro das quais podemos interpretar as Escrituras com competncia:

    A existncia deDeus

    Deus existe e atua na histria. Milagres e profecia so possveis. Portanto, podemos interpretaros relatos da atividade sobrenatural de Deus como histria e no mito. Nada impede que oCristo da f tenha sido o mesmo Jesus da histria.

    RevelaoProgressiva

    Deus se revelou progressivamente. A revelao no foi dada de uma nica vez, da mesmaforma, numa mesma poca e s mesmas pessoas. Portanto, devo ler o texto bblicocomparando as suas diferentes partes, considerando que as mesmas tm uma unidade bsicamas que existe desenvolvimento dentro delas.

    Inspirao eAutoridade

    Os escritores bblicos foram movidos pelo Esprito, de tal forma que seus escritos soinspirados por Deus. Portanto, so autoritativos e infalveis. Devemos interpretar suas partesdifceis sem recorrer a solues que impliquem na presena de erros, contradies ouinverdades nelas.

    Histria daRedeno

    A Bblia deve ser lida como o registro dos atos redentores de Deus na histria. Estes atosforam interpretados e registrados por escritores inspirados por Deus. Portanto, a Bblia deveser lida, no como um manual de cincias, astronomia, geografia ou fsica, mas como um livroteolgico.

    Cristo Devemos ler a Bblia sabendo antecipadamente que Cristo a substncia de todos os tipos esmbolos do AT, do pacto da graa e de todas as promessas. Que os sacramentos, genealogias ecronologias da Escritura nos mostram as pocas e tempos de Cristo. Cristo, portanto, aprpria substncia, centro, escopo e alma das Escrituras.

    Cnon O cnon protestante das Escrituras a coleo feita pela Igreja de livros que ela reconheceuque foram dados pela inspirao de Deus. Cada livro deve ser lido e entendido dentro destecontexto cannico, que o contexto apropriado para a interpretao. Podemos usar materialextra-bblico para esclarecer determinadas passagens, mas os limites do cnon determinam ohorizonte da exegese.

    Aplicao

    Para concluirmos esta aula, examine a gravura ao lado. Identifique-se com algum dos personagens einterprete a mensagem da gravura para sua vida, para o momento em que voc est vivendo.

    Escreva uma mensagem ao professor dizendo de que forma a sua teologia e seu ambiente vivencialdeterminam a interpretao da mensagem da gravura.

    Que diferena faria se a mensagem fosse interpretada por um pobre ou um rico? Uma mulher ou umhomem?

    E qual a concluso que voc poderia tirar para a interpretao bblica?