atravessando deleuze

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    edson passetti*

    Um territrio no se restringe a um local fsico, nemserve de referncia para uma utopia. um possvel es-pao a ser habitado de maneira nmade, como a filoso-fia de Gilles Deleuze. Ele no propriedade de algum,nem terra de ningum; neste territrio e nesta filosofia

    se desdiz o credo dos evolucionistas que viam os nma-des como destruidores da natureza. Tambm no se podedizer que h uma filosofia de Gilles Deleuze, mas simuma filosofia deleuziana da diferena, em que o filsofono est sozinho, no o mestre que requer discpulos,mas que rene para compartilhar. Trata-se de uma filo-sofia da diferenae no de uma filosofia diferente, mo-rada dos habituais freqentadores dos modelos.

    Quando Gilles Deleuze escrevia em companhia deFlix Guattari, eles no se conformavam em diluir umno outro, ou estabelecer uma identidade de autoria du-

    pla. Ambos soterravam a autoria individual do escri-

    * Professor no Departamento de Poltica e no Programa de Ps-Graduao emCincias Sociais da PUC-SP e Coordena o Nu-Sol. Publicou entre outros livrosAnarquismos e sociedade de controle, So Paulo: Cortez, 2003.

    verve, 8: 42-48, 2005

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    tor soberano intelectual, do O ao UM. Propunham esituavam a relao entre, no percurso desterritorializanteem que partilhamos ritmos diferentes e somos iguaispor fazer coexistir nossas diferenas.1 Entre Deleuze eGuattari, neste lugar escolhido que vai de um ao outro,eles se encontravam desafiando no territrio dos platse no no das propriedades. Assim, filosofia da diferenaaproxima e propicia a coexistncia ao jovem iracundo e

    ao experimentado elaborador de conceitos. Ela provocaa inveno de percursos.

    Nmades so conhecedores de derivas, escapam deitinerrios estabelecidos, tramam movimentos estra-nhos a quem os quer andando em crculos, no vaivmda reta, derrapando em curvas, deslizando sem rumopelas encostas ou tentando, ainda que esbaforidos, darmais um passo adiante sob a asfixiante presso da al-titude. O territrio no s geogrfico e no se res-tringe relao superfcie-profundidade. Ultrapassa oque pode ser capturado por uma fronteira, o interior de

    uma rea contornada por uma jurisdio da preserva-o como a do santurio ecolgico ou da segurana dapropriedade privada. Nmades atravessam territrios,desgovernam-se sem perder o rumo, deslocam frontei-ras, no so apanhados pelas semelhanas ou mode-los; no so migrantes que se deslocam de um pontoao outro. So poucos e muitos, pequenos e grandes,baixos e altos, areos e subterrneos, esto em ban-dos, redes ou fluxos. So diferentes. Provocam diferen-as. Diferenciam pelos transtornos e intensidades.Resistem. So mquinas de guerra. No so militares

    em luta pelo Estado, soldados remunerados ou merce-nrios matando para sobreviver, comandos que dizi-mam ou submetem os perdedores como escravos. Sa-bem que a vida uma batalha. No fogem do combate.

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    Deleuze andou com Bergson, Espinoza, Nietzsche, emuitos tantos outros vivos e nem to mortos assim. Quan-do saiu da vida se preparava para escrever sobre Marx2,um Marx atualizado na crtica ao capitalismo, e possivel-mente, um Marx entreos anarquistas, antes do manifestoe longe da ditadura do proletariado.

    Deleuze forneceu pistas para travessias areas, ter-restres, subterrneas, interiores. Alertou para as cap-turas, ampliou linhas de fuga, conectou e desconectoumoleculares e molares, e constatou que se o futuro co-letivo das revolues est ultrapassado, nenhum devirrevolucionrio pessoal-intransfervel pode ser pacifica-do pela sociedade de controle, esta sociedade que emer-giu aps a II Guerra Mundial, pautada pela comunica-o instantnea, controle contnuo e regime do inaca-bado.3 Deixou de sobreaviso os crentes na democracialembrando que sua existncia requer muita, muitamisria, e estraalhando, neste tempo atual e babaca,com o tanto de gente que pretende melhorar as condi-

    es de pobreza, administrando o Estado o sonho dedireita, do centro, de uma nefasta esquerda.

    Deleuze afirmava que a cada poca de deserto segueoutra de exploso cultural. Se Maio de 68foi um aconte-cimento explosivo, era preciso no se manter imvel di-ante dos ridos tempos atuais do incio dos anos 1990, quando constatava a dificuldade que tinha um jovempara atravessar tamanha solido. Os espaos desrti-cos restauram a transcendncia, favorecem o retornoa uma filosofia universitria e dificultam a filosofiacomo criao. fora deste bolor acadmico que a filo-

    sofia como criao faz funcionar os conceitos no cam-po da imanncia, como o de sociedade disciplinar, deMichel Foucault, com quem Deleuze manteve conver-saes intensas, inclusive no silncio que habitou asrelaes entre eles por certo tempo. Para Deleuze, foi

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    Foucault quem levou mais longe a criao de concei-tos e a ele dedicou um livro homnimo escrito depoisde sua morte. Por sua vez, Foucault, que com ele escre-vera uma Introduo geral4 obra de Nietzsche, sabia quea importncia de Deleuze atravessava a fronteira da filo-sofia. Ao apresentar O anti-dipoaos leitores em lnguainglesa finaliza dizendo: o livro faz pensar com freqn-cia que s h humor e jogo ali onde entretanto algo de

    essencial se passa, algo que da maior seriedade: o bani-mento de todas as formas de fascismo, desde aquelas co-lossais, que nos envolvem e nos esmagam, at as formasmidas que fazem a amarga tirania de nossas vidas coti-dianas.5 Nas conferncias do Brasil, no incio dos anos1970, Michel Foucault dedica especial ateno ao mes-mo O anti-diposublinhando que dipo no seria poisuma verdade da natureza, mas um instrumento de li-mitao e coao que os psicanalistas, a partir de Freud,utilizam para conter o desejo e faz-lo entrar em umaestrutura familiar definida por nossa sociedade em um

    determinado momento. Em outras palavras, dipo, se-gundo Deleuze e Guattari, no o contedo secreto denosso inconsciente, mas a forma de coao que a psica-nlise tenta impor na cura a nosso desejo e a nossoinconsciente. dipo um instrumento de poder, umacerta maneira do poder mdico e psicanaltico se exer-cer sobre o desejo e o inconsciente.6 Michel Foucaultesperava que o sculo se tornasse deleuziano.7

    Em 2001, Daniel Colson, professor de Sociologia naUniversit de Saint-tienne, em Lyon, publicou um es-pecial volume sobre o anarquismo traando um percurso

    que vai de Proudhon a Deleuze.8

    O dicionrio de Colsonest povoado de Deleuze, com seus criativos conceitos,acompanhando o leitor interessado em anarquia comoimanncia, esta estranha unidade que abarca o mltiplochamada anarquia.

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    Colson chama ateno para o renascimento tericoda anarquia na segunda metade do sculo XX, depois deum longo eclipse, e se dispe a persistir atento s pos-sveis parcerias libertrias que povoem a desestabilida-de das sagradas hierarquias. Convida-nos a andar comDeleuze, e com tantos outros com os quais a anarquiaestabelece afinidades secretas, trazendo-lhe a potn-cia da sade. Lembra, ainda, com preciso, que as afi-

    nidades anarquistas tambm dependem do tempera-mento dos envolvidos, de diferentes formas de sensibi-lidades, jeitos de fazer, predisposies, enfim, asafinidades libertrias como se poderia presumir noso da ordem da ideologia. Uns andam com Deleuze,outros com Deleuze e tantos mais, traando mais anar-quias segundo suas afinidades. Na anarquia cabemmultiplicidades, e dentre elas a diferena de perma-necer menore afastado da transcendncia iluminista.

    Deleuze dizia que seu melhor livro junto com Guattarichama-se Mil plats, um livro para uma poca que no era

    a sua. Este longo livro foi escrito, segundo Deleuze, comoum agrupamento molecular, como na composio musi-cal.9 Com muito estilo Deleuze levava, em companhia deGuattari, a diferentes plats e a andar por rizomas, micro-polticas, devires, tratado de nomadologia, aparelho de cap-tura, o liso e o estriado, palavras contendo mais do quesonoridades estranhas, mas histrias afirmando singula-ridades. Os escritos de Deleuze encorajam os anarquistasa situarem-se no entre, um lugar escolhido que vai de umao outro, sem dar sossego ao modelo, ao idntico, ao mes-mo.

    Deleuze foi um professor que apreciava tambm aaula como uma concepo musical.10 Para ele a audi-o de uma pea no deve ser interrompida, mesmo quealgumas partes paream confusas. Da mesma manei-ra, as dvidas de uma aula podem estar resolvidas mi-

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    nutos aps seu trmino e as questes mais pertinentesaparecerem na abertura da aula seguinte. Assim eleinventou um sistema com seus estudantes, contornan-do a regra fixa da aula magistral.

    Mas a alegria de viver no espera pela morte, podeestar em sua antecipao, desgastando o estatuto dosuicdio. Deleuze no perdeu tempo em julgar. Abalou-se e abalou muita gente. Tomara que Foucault tenhaacertado e que este sculo seja deleuziano e com muitaanarquia. Que o desejo seja a vontade de gozo no encon-tro atual!

    Notas

    1 Gilles Deleuze e Claire Parnet Dilogos. Traduo de Elosa Arajo Ribeiro.So Paulo, Escrita, 1998.

    2 Gilles Deleuze. Meu prximo livro vai chamar-se Grandeza de Marx inPeter Pl Pelbart e Suely Rolnick (orgs) Cadernos de Subjetividade/Gilles Deleuze.Traduo de Martha Gambini. So Paulo, Ncleo de Estudos e Pesquisas daSubjetividade/PUC-SP, jun. 1996, pp. 26-30.

    3 Gilles Deleuze. Poltica in Conversaes. Traduo de Peter Pl Pelbart. SoPaulo, 34 Letras, 1992, pp. 207-226.

    4 Michel Foucault e Gilles Deleuze. Introduo geral (s obras filosficascompletas de Nietzsche) in Manoel Barros da Motta (org) Michel Foucault.Arqueo logia das cinc ias e histria dos sistemas de pensamento. Coleo Ditos eEscritos II. Traduo de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro, Forense Universitria,2000, pp. 36-39. Importa ainda indicar a importante entrevista realizada porambos Larc, em 1972, conhecida por Os intelectuais e o poder, In ManoelBarros da Motta (org) Michel Foucault. Estratgia, poder-saber. Coleo Ditos eEscritos IV, Trad. Vera Lucia Avellar Ribeiro, Rio de Janeiro, Forense Univer-sitria, 2003, pp. 37-47.

    5 Michel Foucault. O Anti-dipo: uma introduo vida no fascista. Tradu-o de Jos Fagundes Ribeiro. In Peter Pl Pelbart et al (orgs), op. cit., p. 200.

    6 Michel Foucault. A verdade e as formas jurdicas, Traduo de Roberto C. M.Machado e Eduardo J. Morais. Rio de Janeiro, PUC-Rio/Nau, 1996, pp. 29-51.

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    RESUMO

    Deleuze como parceria anarquista, a relevncia de suas aborda-

    gens e a dimenso libertria da afinidade.

    Palavras-chave: Deleuze, anarquia, afinidades anarquistas.

    ABSTRACT

    Deleuze as anarchist partnership, the relevance of his approaches

    and the libertarian dimension of affinity.

    Keywords: Deleuze, anarchy, anarchists affinities.

    7 Michel Foucault. Theatrum Philosophicum in Manoel B. da Motta (org),op. cit., p. 230.

    8 Daniel Colson. Petit lexique philosophique de lanarchisme. De Proudhon Deleuze.Lyon, Le Livre de Poche, Biblio Essais, 2001.

    9O abecedrio de Gilles Deleuzefoi um vdeo gravado em VHS por Claire Parnet,em 1988, e somente veiculado aps a morte de Deleuze, segundo acordo entreambos. Circula pela Internet a verso original e uma traduo em lngua portu-guesa.

    Recebido para publicao em 6 de junho de 2005 e confirmado em

    4 de julho de 2005.