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Agir com Palavras: A Teoria dos Actos de Linguagem de John Austin Teresa Mendes Flores mfl[email protected] Escola Superior de Comunicação Social Índice 1 Austin e a Filosofia Analítica 1 2 Performativos e Constatativos 3 3 Condições de validade dos performa- tivos 5 4 Condições de validade dos Constatati- vos 10 5 Identidade entre condições de vali- dade 11 6 Para uma Teoria Geral dos Actos de Linguagem 14 7 Bibliografia 18 Sumário Este texto, escrito em 1994 no âmbito do Mestrado em Ciências da Comunicação da Universidade Nova de Lisboa, faz a revisão das principais ideias de John Austin apresen- tadas na sua obra mais emblemática How to do things with words , publicada pela pri- meira vez em 1962. Esta obra reúne um con- junto de conferências de Austin proferidas em 1955 na Universidade de Harvard e onde o autor generaliza o alcance da sua distin- ção inicial entre enunciados performativos e constatativos em direcção a uma mais apro- fundada Teoria Geral dos Actos de Lingua- gem. O seu estudo continua a merecer o maior interesse para as áreas da Filosofia da Lin- guagem e das Teorias da Comunicação, onde Austin permanece, ainda hoje, uma figura in- contornável no desenvolvimento das concep- ções pragmáticas da linguagem. Acreditamos, por isso, que este texto pode contribuir para a melhor compreensão das problemáticas da linguagem, em particular para os alunos e iniciados nesta área de es- tudos. 1 Austin e a Filosofia Analítica No conjunto de conferências proferidas em 1955 por ocasião das famosas palestras Wil- liam James da Universidade de Harvard, John Austin abriu caminho a uma nova abor- dagem das problemáticas referentes à lingua- gem e à constituição da significação e do sentido. Significação e sentido que adquirem recortes distintos. Na verdade, Austin desenvolve o seu tra- balho como contraponto à tradição mais dura da filosofia analítica que concentrava o seu esforço no estudo da lógica formal de modo

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Agir com Palavras: A Teoria dos Actos de Linguagemde John Austin

Teresa Mendes [email protected]

Escola Superior de Comunicação Social

Índice1 Austin e a Filosofia Analítica 12 Performativos e Constatativos 33 Condições de validade dos performa-

tivos 54 Condições de validade dos Constatati-

vos 105 Identidade entre condições de vali-

dade 116 Para uma Teoria Geral dos Actos de

Linguagem 147 Bibliografia 18

SumárioEste texto, escrito em 1994 no âmbito doMestrado em Ciências da Comunicação daUniversidade Nova de Lisboa, faz a revisãodas principais ideias de John Austin apresen-tadas na sua obra mais emblemática How todo things with words , publicada pela pri-meira vez em 1962. Esta obra reúne um con-junto de conferências de Austin proferidasem 1955 na Universidade de Harvard e ondeo autor generaliza o alcance da sua distin-ção inicial entre enunciados performativos econstatativos em direcção a uma mais apro-

fundada Teoria Geral dos Actos de Lingua-gem.

O seu estudo continua a merecer o maiorinteresse para as áreas da Filosofia da Lin-guagem e das Teorias da Comunicação, ondeAustin permanece, ainda hoje, uma figura in-contornável no desenvolvimento das concep-ções pragmáticas da linguagem.

Acreditamos, por isso, que este texto podecontribuir para a melhor compreensão dasproblemáticas da linguagem, em particularpara os alunos e iniciados nesta área de es-tudos.

1 Austin e a Filosofia AnalíticaNo conjunto de conferências proferidas em1955 por ocasião das famosas palestras Wil-liam James da Universidade de Harvard,John Austin abriu caminho a uma nova abor-dagem das problemáticas referentes à lingua-gem e à constituição da significação e dosentido. Significação e sentido que adquiremrecortes distintos.

Na verdade, Austin desenvolve o seu tra-balho como contraponto à tradição mais durada filosofia analítica que concentrava o seuesforço no estudo da lógica formal de modo

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a discernir as regras formais de validade dasproposições, que assistem às leis básicas eaceitáveis do raciocínio correcto (Récanati,1970: 185). Assim, os sistemas lógicos sãoequiparados a uma linguagem com o seu vo-cabulário e as suas regras sintácticas de boaformação das expressões. Os matemáticose filósofos próximos dos Principia Mathe-matica de Bertrand Russel, de certo entusi-asmados com a elegância e grau de exacti-dão dos seus sistemas lógicos e das lingua-gens artificiais que desenvolviam, depressaprocuraram associar este logicismo ao fun-cionamento de uma suposta linguagem geralprimeira. Daqui resulta a aplicação às lin-guagens naturais das mesmas regras de va-lidade dos sistemas lógicos artificiais. Aslinguagens naturais eram consideradas umamanifestação imperfeita dessa “língua lógicaessencial” devido ao seu grau de incerteza.Nesta concepção, que também depressa serelativiza dada a pluralidade de sistemas ló-gicos, a distinção entre significação e sen-tido, bem como entre frase e afirmação, nãoé pertinente.

O sentido reside na frase enquanto asser-ção ou afirmação (do inglês “statement”) ela-borada a partir de um código, de uma estru-tura gramatical com determinadas relaçõessintácticas e determinado valor semântico,segundo relações lógicas determinadas. Osentido resume-se a essa significação formaldentro de um quadro lógico que define osenunciados legítimos que se distinguem dosenunciados absurdos e dos enunciados fal-sos. A afirmação é a única forma lógica pos-sível e tem como característica o seu carácterverificável. É esta referencialidade, esta ca-pacidade de descrever um estado de coisas,que permite distinguir se a afirmação é ver-

dadeira ou falsa e, consequentemente, se éou não válida.

Daqui resulta pois, a subsunção da frasee da afirmação já que esta é a única funçãoenunciativa reconhecida e, de certa forma,daqui também resulta a indistinção entreenunciado (“statement”) e enunciação (“ut-terance”). Nesta perspectiva analítica, a fraseé o objecto de estudo por excelência umavez que se parte do princípio que ela encerraem si todo o sentido. A linguagem natural,pouco susceptível a uma tal redução, era, porisso, considerada pelos formalistas um sis-tema imperfeito, obscuro e complicado cujaestrutura não aparece de forma transparente.

Para Austin parece claro que tal modeloapriorístico da linguagem ( a tal língua pri-meira) esbarra com enormes dificuldades noque se refere à sua aplicabilidade à lingua-gem quotidiana, nomeadamente pela cargaindexical desta última, ou seja, nela existemelementos que só adquirem sentido na situ-ação enunciativa e que remetem para o actode enunciação, tais como “eu”, “tu”, “aqui”ou “hoje”, os quais não se poderiam sim-plesmente remeter para o absurdo. A re-cusa daquele modelo por parte de Austin temainda que ver com a diversidade de modossegundo os quais os enunciados podem fun-cionar. Austin refere, de resto, que os fi-lósofos não puderam negar aquilo que mui-tos gramáticos várias vezes assinalaram: quepara além das afirmações existem as inter-rogações, as exclamações, as ordens, os de-sejos, as concessões, de alguma forma ex-pressas por expedientes gramaticais como apontuação e a organização sintáctica das fra-ses. Expedientes estes que mais não são doque marcas imperfeitas da oralidade, do actoenunciativo, que para Austin não pode ser

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compreendido a partir de um ponto de vistaexclusivamente gramatical1.

Austin refere-se a esta problemática logona primeira conferência: “(...) Muitos dosproblemas que embaraçaram tradicional-mente os filósofos surgiram a partir de umerro: o de considerar como puras e simplesafirmações de factos, enunciações que são(em um ou mais sentidos não gramaticais eque têm o seu interesse) ou absurdas ou ex-pressões cuja intenção é completamente di-ferente”. Por isso, acrescenta: “Tornou-secomum defender que um grande número deenunciações ("utterances") que se asseme-lham a afirmações, não são de forma algumadestinadas a descrever ou a transmitir infor-mações puras e simples de factos”(Austin,1975: 2).

É a partir desta constatação de que as afir-mações, verdadeiras ou falsas, não são aúnica modalidade de funcionamento da lin-guagem que Austin será levado a desenvol-ver uma concepção pragmática segundo aqual a linguagem não é simplesmente um sis-tema simbólico de representação do mundo,expresso nas afirmações, mas que permite arealização de determinado tipo de actos quecumprem outras funções. Esses actos inter-vém no mundo, sob diversas formas, tendocapacidade de transformar as propriedadesdas coisas, pessoas, acções e interacções queexistem ou acontecem no mundo.

Falar é, portanto, intervir no mundo, é jáagir. Mas Austin não limita a capacidade ac-cional da linguagem ao simples facto de fa-lar, que é uma ocorrência no mundo inegávelmas que pode não ser mais do que isso, pode

1 O que o afasta claramente da pragmática indexi-cal. A propósito consultar LATRAVESSE, François,La Pragmatique, Bruxelles, Pierre Mardaga.

não realizar acto algum mais do que esse.Ora Austin preocupar-se-à, acima de tudo,com os actos que estando de certa forma paraalém da linguagem, são realizados atravésdela. A sua concepção de acção não cor-responde inteiramente a uma perspectiva ins-trumental que relaciona causalmente meiose fins, a partir de uma finalidade visada. Sebem que nos actos que realizamos quando fa-lamos exista uma certa intencionalidade queprevê produzir determinados efeitos a partirde determinados meios, a acção não se re-sume, para Austin, a estes casos.

Assim, ao longo das doze conferências pu-blicadas neste livro,Austin procura sistema-tizar as modalidades de intercepção entre fa-lar e agir: que tipo de actos podemos realizarao falar ou pelo facto de falar? Distinção quese tornará pertinente no seu esboço final deuma Teoria Geral dos Actos de Fala (“spe-ech acts”)2.

2 Performativos e ConstatativosAs suas investigações começam por opôr asafirmações no sentido que lhes atribuíam osfilósofos da primeira analítica e a que Austinchama constatativos, aos enunciados perfor-mativos, que não afirmam nem negam nada,mas que realizam um acto quando são pro-nunciados, e a respeito dos quais não é possí-vel aplicar o critério da boa ou má adequaçãoaos factos para concluir da sua veracidade oufalsidade.

Estes enunciados não descrevem nenhumestado de coisas, mas realizam qualquercoisa ao serem pronunciados e pelo facto deo serem.

2 Pode também traduzir-se por "Actos de Dis-curso"ou "Actos de linguagem".

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Os exemplos típicos: “Declaro a sessãoaberta” proferido pelo presidente da mesanum congresso; “Sim” ( aceito esta mu-lher como minha fiel e legítima esposa),proferido pelo noivo na cerimónia matri-monial; “Nomeio esta ponte “Ponte Vascoda Gama”” pronunciado pelo Ministro dasObras Públicas ao cortar a fita; “Prometotelefonar-te amanhã” proferido, por exem-plo, entre dois amigos. Estes enunciadosnão informam ou descrevem a declaração deabertura da sessão do congresso, o que al-guém disse num casamento nem sequer in-formam sobre um telefonema. Eles realizamefectivamente ( sob dadas condições) a aber-tura da sessão, o casamento e a promessa emcausa. São num sentido forte verdadeiros ac-tos.

Como explicita Austin: “Nestes exemplosparece claro que enunciar a frase (nas con-dições apropriadas, evidentemente), não énem descrever aquilo que supostamente euestou a fazer ao falar assim, nem afirmarque o faço: é fazê-lo. Nenhuma das enun-ciações citadas é verdadeira ou falsa (...).Proponho chamar-lhe frase performativa ouenunciação performativa, ou, para abreviar,um performativo (...): Indica que produziruma enunciação é realizar uma acção - nor-malmente, não se considera que essa produ-ção seja apenas dizer alguma coisa” (Aus-tin, 1975: 6).

O que podemos verificar relativamente aosperformativos, dirá o autor, é se estes enun-ciados resultam ou não resultam. O que fazcom que ordenar, prometer, apostar ou no-mear sejam actos válidos? Em que condi-ções “Sim” (aceito esta mulher como minhafiel e legítima esposa) realiza o matrimónio?Como é que, sob que modalidades, “Peço-te

que me coloques esta carta no correio” é umenunciado legítimo?

De um ponto de vista puramente formalou lógico não é possível apurar estes diver-sos modos de funcionamento. Austin proce-derá, por isso, ao desvendamento das condi-ções de validade destes enunciados introdu-zindo para o efeito factores exteriores à pró-pria linguagem, factores de uma natureza di-versa, que relevam em grande parte do con-texto social em que o acto é produzido, dasua relação com um ritual estabelecido. Di-zer só realiza o acto pretendido de forma fe-liz sob dadas condições processuais que im-plicam quem diz o quê, como, sob que mo-dalidades, a quem, quando, onde, com queintenções e com que efeitos.

A noção de acto performativo é, pois, in-dissociável das relações interlocutivas de di-versa ordem que os falantes estabelecem en-tre si. Aqui se delinea a distinção a quehá pouco aludiamos, entre significação deuma frase (que dependerá do código da lín-gua), e o seu sentido, fenómeno mais com-plexo resultante do processo de contextua-lização a que está associada a enunciação.O que aproxima os estudos relativos à lin-guagem dos seus usos quotidianos3, ou seja,dos processos comunicacionais que têm lu-gar numa dada comunidade e em dadas situ-ações e contextos. Equivalerá também, comoveremos, à generalização de uma certa per-formatividade a todos os usos da linguagem.

A oposição constatativos/performativostem um valor operativo fundamental para asdescobertas de Austin mas, se não será exac-tamente ultrapassada, ganhará outra dimen-

3 Austin integra o grupo de filósofos ligados à se-gunda fase da filosofia analítica, grupo que se dedicouao estudo empírico, descritivo e analítico, da lingua-gem quotidiana.

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são no quadro da generalização da naturezaaccional da linguagem que Austin acabarápor defender na sua teoria geral.

A razão fundamental desta viragem (“sea-change”) prende-se, por um lado, com a ob-servação de que as condições de validadeou de felicidade dos enunciados performa-tivos são igualmente pertinentes se aplica-das aos enunciados constatativos. Inver-samente, as condições de validade destesenunciados, avaliados em termos de veraci-dade/falsidade, são extensíveis sob diversasformas aos performativos. Por outro lado,deve-se ainda à impossibilidade de distinguirclaramente as formas dos enunciados perfor-mativos e constatativos já que não existe ne-nhum critério gramatical que permita fazer,de forma segura, tal distinção. Esta viragemfoi decisiva para e evolução das teses de Aus-tin.

3 Condições de validade dosperformativos

A noção completamente nova de enunciadoperformativo conduziu Austin a examinardetalhadamente os diversos casos em que di-zer algo corresponde à realização de um actocom o objectivo de compreender as condi-ções que os tornam possíveis.

Isola seis tipos de condições de felicidadeprofundamente relacionadas com o aspectoritual (e num sentido mais estrito, instituci-onal), intrínseco a este tipo de actos (Searle,1969). Esta dimensão ritualizada e conven-cional é de resto extensível a certos actos fí-sicos (quer impliquem ou não a enunciação)que cumprem socialmente determinadas fun-ções (o soldado que faz continência à pas-sagem do sargento) e que Austin aproxima

dos actos performativos. Por outro lado, e in-versamente, os performativos podem, muitasvezes, ser totalmente substituídos por gestos:cumprimentar alguém apenas levantando ochapéu; ordenar que fechem a porta apon-tando com o dedo; evidenciar respeito des-cobrindo a cabeça ao entrar numa igreja, etc.O que nos remete para a dimensão simbólicadas acções humanas de falar e agir bem comopara a sua dimensão comportamental.

As enunciações performativas adquiremsentido e eficácia se e só se as regras seguin-tes se verificarem:

“(AI) Deve existir um procedimento, re-conhecido por convenção, dotado porconvenção de um determinado efeito ecompreendendo o enunciado de determi-nadas palavras por determinadas pes-soas em certas circunstâncias. Alémdisso,(A2) é preciso que em cada caso as pes-soas e as circunstâncias sejam as queconvém para que se possa invocar o pro-cedimento em questão.(BI) O procedimento deve ser executadopor todos os participantes ao mesmotempo correctamente e,(B2) integralmente.(TI) Quando o procedimento - comoacontece muitas vezes - supõe naquelesque a ele recorrem determinados pensa-mentos, quando depois deve provocar umdeterminado comportamento da parte deum ou outro dos participantes, é precisoque a pessoa que toma parte no procedi-mento ( e deste modo o invoca) tenha, defacto, estes pensamentos ou sentimentos,e que os participantes tenham a intençãode adoptar o comportamento implicado.Além disso,

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(T2) devem depois, de facto, comportar-se assim” (Austin, 1975:14)

Em resumo, a enunciação performativacomporta a execução correcta e completa deum procedimento convencional, reconhecidopor todos os participantes e que impliquea enunciação de determinadas palavras (oenunciado performativo propriamente dito),por determinadas pessoas em determinadascircunstâncias apropriadas, com sinceridadee implicando um comportamento conformeno futuro.

A não observância de qualquer destas re-gras implica o insucesso do acto pretendido.No entanto, cada regra afecta o enunciado demaneira distinta, não sendo, por isso, equi-valentes.

Austin distingue as primeiras quatro (A1,A2, B1 e B2), que a não se verificarem tor-nam o acto nulo e não realizado, das duas úl-timas (T1 e T2) cujo não cumprimento nãoafecta a sua realização (o acto considera-se, para todos os efeitos, como consumadoe manifestamente legítimo) mas mais não édo que um simples abuso dos procedimen-tos. Neste caso o locutor não tem qualquerintenção de cumprir aquilo a que a realiza-ção do acto o compromete. A cláusula dasinceridade não foi cumprida.

Austin denominou Insucessos (“misfires”)o primeiro tipo de “infelicidade” que com-porta actos pretendidos mas vazios e, por-tanto, nulos. Ao segundo tipo chamou Abu-sos que correspondem a actos puramenteverbais, proferidos "da boca para fora",como se costuma dizer comunmente de al-guém que fala sem ter a intenção de cumpriraquilo a que o seu enunciado obriga. Estelocutor simula um comprometimento e, por-tanto, abusa dos procedimentos invocados.

Mas tanto os Insucessos (falha das regrasA e B) como os Abusos (falhas das regrasT) comportam tipos de infelicidade diferen-tes, consuante falhem predominantemente ascondições A ou B, no primeiro caso, e T1 ouT2 no segundo.

Examinemos primeiro os Insucessos. Seas condições A não são seguidas, estamosperante um Apelo Indevido ou um Acto Inter-dito (“misinvocation” ou “Act disallowed”).Já se falharem as condições B, trata-se deuma Execução Falhada ou Acto Viciado(“Misexecution” ou “Act vitiated”).

Mas há ainda que distinguir os casos 1 e2. Se o Acto Interdito se verifica porque in-voca um procedimento que não é reconhe-cido por convenção então, não se cumpre acláusula A1 e o acto também não se cum-pre ( Austin não deu a este caso um nomeespecífico). Mas se o acto falha porque aspessoas, as circunstâncias ou os objectos nãosão adequados (condição A2) então, estamosna presença de um Emprego Indevido (“mi-sapplication”).

Imaginemos o caso do porteiro da Assem-bleia da República que, tomando indevida-mente o lugar do Presidente, dirige-se ao ple-nário correcta e completamente, quem sabese até com sinceridade, e declara: “A ses-são está aberta”. Ora, ele não está investidode poder reconhecido por todos para o fazer.O acto é considerado nulo e a sessão não foiaberta. Diferentemente seria se se tratasse deabrir a porta ou se, por exemplo, o Presidenteo tivesse investido desse poder durante a suaausência.

Tomemos agora o caso do Presidente daAssembleia que profere a mesma declaraçãoque o porteiro, tantas vezes já por si pro-ferida, mas em circunstâncias que não re-clamam esse comportamento ( estando por

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exemplo em férias, ou não existindo ne-nhuma sessão para abrir). O poder de abrira sessão que lhe é conferido e legítimo é–lhe apenas reconhecido nas circunstânciasconvencionais previstas no âmbito das suascompetências. Imaginemos ainda que o pro-fere relativamente a um objecto que o nãoreclama. Por exemplo “Declaro o livroaberto”. Ora o livro para estar ou não estaraberto não implica nem exige que a enuncia-ção performativa em causa ocorra.

Pegando ainda neste exemplo, imagine-mos que o mesmo Presidente em vez de de-clarar a sessão aberta, como tantas vezes ofez, resolve inventar uma nova fórmula, des-conhecida dos membros da câmara. Dizendopor exemplo: “Como hoje está sol e eu estoubem disposto, comece o falatório”, o que atéseria ofensivo; ou ainda, decidia dirigir-se-lhes numa outra língua que não o portuguêssem que nada o justificasse. Imediatamente asua idoneidade seria posta em causa pelos di-versos intervenientes no procedimento. Esteé o caso A1, que referimos acima.

Convem salientar que os diversos tipos deinsucesso a que, em princípio, estão sujei-tos todos os actos podem ocorrer simultane-amente. Por outro lado, as definições aquiapresentadas não são inteiramente precisasou livres de alguns problemas. Austin chamaa atenção para este facto na terceira e quartaconferências, alertando para os perigos daaparente simplicidade das suas formulações.

Assim, pode acontecer que em determi-nados casos, numa dada circunstância e im-plicando determinadas pessoas, não existamprocedimentos reconhecidos. O que é quedetermina a aceitabilidade e eficácia de umqualquer enunciado que aí se execute? Podetambém acontecer que um determinado pro-cedimento, antes reconhecido e convencio-

nal, deixe de o ser (Austin toma como exem-plo o duelo) ou que seja reconhecido por al-guns mas não seja por todos (o que coloca oproblema de saber a partir de quantos parti-cipantes legítimos um procedimento se con-sidera reconhecido).

Em muitas ocasiões quotidianas, que sãotantas vezes informais, estes conceitos ( o re-conhecimento, as pessoas, os objectos e cir-cunstâncias apropriadas) não têm um recortepreciso. Diz Austin que está na naturezamesma de cada procedimento que os limitesda sua aplicabilidade e a sua definição per-maneçam vagos. Aqui reencontramos a pro-blemática do acto institucional, a que já alu-dimos. Este é o performativo por excelênciapois corresponde a situações amplamente co-dificadas. François Récanati, no seu posfácioà edição francesa da obra de Austin, define-os como “actos que só existem relativamentea uma instituição humana. Fazer Rock noXadrez, assinalar o final de uma partida nofutebol, casar, condenar alguém a três anosde prisão (...) são alguns exemplos de actosinstitucionais. Para voltar aos enunciadosperformativos, certas fórmulas verbais sãoconvencionalmente associadas à realizaçãodesses actos. Para casar, para baptizar al-guém, é preciso pronunciar certas palavras.Sendo convencionais e arbitrárias, o sentidodessas fórmulas interessa pouco. Mas acon-tece que muitas vezes a fórmula convenci-onal que serve para realizar o acto, tornaexplícito, ao nomeá-lo, o acto que realiza”(Récanati, 1970: 193).

Esta reflexividade é característica de cer-tos performativos a que Austin chama explí-citos, que evitam a ambiguidade própria aformas mais primárias do performativo (vermais à frente), e que estão sobretudo ligadosa estas situações institucionais e fortemente

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regulamentadas. Terá sido a forma históricae socialmente encontrada de controlar a in-certeza que sempre afecta os actos. Assim,“Eu te baptizo”, “Eu prometo”, “Condeno-oa...”, “Eu nomeio-o”, “Aposto que..” ou “Eujuro” são formas explícitas de performativosque realizam aquilo que expressamente di-zem.

Voltando aos insucessos, vejamos destavez, as Execuções Falhadas (condições B1 eB2). Pode acontecer que as pessoas, as cir-cunstâncias e o procedimento invocado se-jam os adequados, mas não sejam realizadoscorrectamente (B1), caso em que estamosperante uma Acção Defeituosa (“Flaw”), ouque os procedimentos não sejam realizadosintegralmente (B2), caso em que nos encon-tramos perante um impedimento ou um Obs-táculo (“Hitch”).

O insucesso devido a defeitos (Acção De-feituosa) atinge o desempenho do acto per-formativo que não decorre segundo a formaprevista. O padre que se engana no nomeda criança que baptiza, no nome dos noven-tes que casa ou dos defuntos que recomendaa Deus, é um exemplo típico. No nossoexemplo, o Presidente que para abrir a ses-são a declara encerrada, ou depois de a de-clarar aberta constata que todos os deputa-dos abandonam o parlamento, pode tambémilustrar este caso. Ao que parece estes defei-tos podem verificar-se em qualquer um dosaspectos do ritual, implicados na realizaçãodo acto: a falta das alianças num casamento,ou a não comparência das testemunhas (quepode também confundir-se com o insucessoA2); ou então, o ministro que declara o Mu-seu aberto ao público e depois não consegueabrir a porta porque a chave encravou na fe-chadura; ou ainda os casos em que ao inau-

gurar uma nova estátua, o inaugurante nãoconsegue retirar a bandeira que a cobre.

As fórmulas implícitas (caso dos perfor-mativos primários) ou as expressões incertas(caso em que alguém diz que “a corrida paraesse dia foi anulada” mas não especifica quecorrida), são também incluidas nas AcçõesDefeituosas quando a interpretação é defei-tuosa. Este facto, mais uma vez levanta oproblema da rigorosa aplicação destas con-dições: até que ponto temos de verificar se anossa mensagem foi bem compreendida paraque o acto se realize? Até que ponto, a boaou má interpretação afecta o sucesso das ac-ções?

Estas são questões que Austin deixa emaberto. Como a questão de saber o quedevemos entender por “todos os participan-tes”, cláusula que aparece nas condições B.Na condição que acabámos de ver, todos osparticipantes devem desempenhar correcta-mente o procedimento, mas resta saber exac-tamente a quem se aplica. Para que o Presi-dente abra a sessão é necessário que os depu-tados se comportem como tal e não abando-nem o hemiciclo como se a sessão estivesseencerrada. Mas, e se alguns permaneceremnos seus lugares e outros sairem? Com quan-tos é que o acto se considera bem sucedido?4

O mesmo se pode aplicar para os insuces-sos de tipo B2, os Obstáculos. A condiçãoB2 prevê que o procedimento seja executadointegralmente por todos os participantes. Oexemplo típico de um obstáculo é o do noivoque diz “sim”, na cerimónia do casamento,mas a noiva diz “não”.

Austin levanta para este caso algumasquestões menos evidentes: é necessário que

4 É essa a razão que leva, geralmente, a Lei a defi-nir quórum de funcionamento.

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alguém aceite para que a dádiva exista? Paraque haja nomeação tem de existir o consen-timento da pessoa nomeada? A quantas pes-soas nos referimos em cada caso quando di-zemos “por todas as pessoas”? Pode sem-pre dar-se o caso de alguém não realizar oacto em questão de forma correcta e com-pleta e nem sempre afectar o acto da mesmamaneira.

Mas, estas questões são de alguma formaincontornáveis dada a complexidade dos fe-nómenos e não invalidam a formalizaçãoaustiniana. Por outro lado, todas as acçõesadmitem um grau variável de incerteza, tantomais elevado quanto menos formalizada econvencional for a acção. Isto implica quesejam tomadas por essencialmente válidasacções onde, por vezes, as condições não secumpram à risca. O que de alguma forma,dizemos nós, remeterá para a existência demecanismos de consenso.

Resta-nos examinar o último par de con-dições (as condições T1 e T2), referentes àsinceridade dos pensamentos, sentimentos eintenções do locutor no acto de dizer. Comovimos, estas condições não interferem na re-alização do acto (na sua consumação), o actoé legítimo para todos os efeitos. Só não re-sulta porque o locutor não tem qualquer in-tenção de levar a efeito o comprometimentoque realiza através da enunciação. E é jus-tamente para simular esse comprometimentoque ele a realiza.

Para o locutor insincero, as palavras sãouma estratégia de simulação que comporta-rão, eventualmente, outros fins que as ultra-passam. Prometer sem ter a intenção de cum-prir, aconselhar uma coisa que penso não sera melhor para o meu interlocutor ou desejarfelicidades sem sentir o que digo, são exem-plos de falsas intenções, pensamentos e sen-

timentos. No entanto, a promessa, o conse-lho e as felicitações ocorreram de facto e es-tão em ordem. Mas, as palavras não têm aquio peso devido, são de certa forma desvirtua-das. “Palavras leva-as o vento”, diz o povo.

Dizer equivale assim, a um acto de com-prometimento (uma espécie de contrato tá-cito ou não), um comprometimento que teráas suas regras para que o enunciado possa jo-gar (“play” e “non-play”). Austin percebeubem esta dimensão implicadora da enuncia-ção, e assinala-a na distinção, nem semprefácil de aplicar, entre a sinceridade que o lo-cutor tem que ter no acto da enunciação, aquie agora (T1), e o seu comportamento futuro,que deverá ser regido de acordo com esseacto de dizer. Eis-nos aqui, plenamente, nadimensão performativa da linguagem: o queeu digo determina o meu comportamento e odos meus parceiros, tanto no presente comono futuro.

Este fenómeno atravessa todo e qualqueracto de dizer. Não se aplica apenas à pro-messa ou à ordem que são casos notáveis doperformativo. É exactamente aqui, na análisedas formas de jogar ou não jogar dos enun-ciados em geral, que Austin vai reencontraros constatativos e constituir as bases para re-pensar a distinção inicial.

Mas antes de avançarmos, assinalemosainda a distinção entre pensamento, enunci-ado e verdade5. O enunciado, pelo facto de

5 Pensar, sentir e ter a intenção são conceitos nemsempre claramente distintos, como assinala Austin naquarta conferência. Quando prometo devo ter a in-tenção, mas não será também que devo pensar que ooutro gostaria que eu fizesse aquilo que é objecto daminha promessa mais do que penso que ele não dese-jaria, e que devo pensar que o posso realizar? Quandodigo “Parabéns!” estou a expressar um sentimento oua enunciar um pensamento?

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ser proferido, dá a entender que eu penso oque ele enuncia, mas não implica que sejaverdade. Eu posso crer que afirmo uma ver-dade e enganar-me. Posso errar, dar um mauconselho, ou proferir um juizo injusto semcrer estar a fazê-lo. Estes casos são distintosda mentira pura e simples, onde o que falhaé a condição de sinceridade: eu acredito queo que digo é falso, mas dou a entender queo não é. Inversamente, posso dizer uma ver-dade e pensar que o não é.

É esta dimensão lógica que ultrapassa asquestões até aqui canónicas da verdade oufalsidade dos enunciados e da sua contradi-ção ou coerência, que relança os estudos so-bre a linguagem quotidiana. De facto, comoo próprio Austin refere “Há mais maneirasde matar um gato que afogá-lo em man-teiga”.

4 Condições de validade dosConstatativos

Era sabido que uma afirmação podia não jo-gar quer por ser falsa, quer por ser absurda(ao nível sintáctico ou ao nível semântico).Mas Austin vai analisar formas mais sub-tis de uma afirmação não estar em ordem.Para isso, distinguirá a pressuposição (“pre-supose”), a implicação (“entail”) e o dar aentender (“imply”): três dimensões lógicasassociadas à enunciação; três maneiras deuma asserção não jogar sem que seja falsaou completamente ininteligível.

Quando afirmo qualquer coisa como “Osfilhos do João são carecas”, se afirmasse oseu contrário, a saber “Os filhos do João nãosão carecas”, em ambos os casos pressupu-nha que o João tem filhos; simultaneamente,dou a entender, no primeiro caso, que acre-

dito que os filhos do João são carecas, e nosegundo, que creio que o não sejam; por ou-tro lado, afirmar que são carecas implica quenão possa afirmar ao mesmo tempo que nãoo são ( é o caso da contradição que não deveser confundida de todo com a implicação).Assim, “Os filhos do João são carecas” im-plica “Alguns filhos do João são carecas”,mas já não implica “Todos os filhos do Joãosão carecas e nenhum é careca”. Por outrolado, se eu afirmar agora que o são, essa afir-mação compromete-me de tal forma que nãoposso afirmar depois, que o não são, a nãoser que explicite que me enganei.

Resumindo: Se o João não tem filhos,qualquer afirmação a propósito deles é nulapor falta de referente - é o caso da pressu-posição. O que pressupõe a existência doreferente é o facto de se falar dele, de o no-mear. A enunciação baseia-se sempre em de-terminados pressupostos. A característica dapressuposição é o facto dela não ser afectadapela afirmação ou pela negação do enunci-ado, como acabámos de ver.

Se eu digo que os filhos do João são care-cas, o facto de o dizer implica-me, no sentidoem que eu dou a entender implicitamente,que acredito no que afirmo, pois caso con-trário não o afirmaria. Este implícito de ve-racidade da enunciação é uma característicabem curiosa da linguagem. Qualquer enun-ciado, mesmo constatativo, implica a exis-tência de um "eu"que o enuncia e as rela-ções entre o eu que diz e o que o eu diz, ea forma como o diz, são afinal o cerne dasquestões aqui em análise. Afirmar "Os filhosdo João são carecas e eu creio que não sãocarecas"não está em ordem porque não possoafirmar uma coisa e pensar outra. Posso sim,como vimos, mentir, o que implica que eunão dê a entender que penso o contrário do

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que digo. É, se quisermos, uma utilização(abusiva) desta implicitação.

Quanto à implicação, ela caracteriza-sepor uma relação causal simétrica, a saber:que p implica q, e inversamente ∼p (nãop)implica ∼y (não y).Para uma implicaçãoestar em ordem, se afirmo p, logo afirmo q,e se nego p, logo tenho que negar q. O que,como vimos, não acontece no caso da pres-suposição. Na implicação não posso afirmare negar a mesma coisa, ao mesmo tempo.

Esta análise alarga em muito o que tinhasido dito em relação aos enunciados consta-tativos, sobretudo porque Austin vai compre-ender a íntima relação entre estes aspectos eas formas de infelicidade dos performativos.

5 Identidade entre condições devalidade

De facto, tudo o que acabámos de dizeraplica-se aos enunciados performativos. To-memos o exemplo do enunciado perfor-mativo "Deixo-te o meu relógio em testa-mento". Este enunciado pressupõe que eu te-nha um relógio. Mesmo que eu diga “Não tedeixo o meu relógio em testamento”, a exis-tência do relógio é pressuposta. Se não ti-ver nenhum relógio, o acto não resulta porfalta de referente. O mesmo é dizer, apli-cando a teoria das infelicidades, que o acto énulo (vazio ou não realizado).

Este enunciado dá a entender que eu te-nho a intenção de legar o meu relógio. Aeste respeito o caso da promessa é mais ex-plícito. Eu posso ter prometido (informal-mente) a alguém que lhe daria o meu reló-gio, sem ter a mínima intenção de o fazer.No entanto, ao prometer dou a entender queo pretendo fazer. Este caso é equivalente ao

anterior, em que eu sugiro que creio na cal-vice dos filhos do João. Podemos estabele-cer aqui uma identidade com a condição defelicidade T1 (a sinceridade). Dar a entenderqualquer coisa que eu não penso, não sintoou não tenho a intenção de realizar, é assim,um abuso dos procedimentos.

O mesmo se passa com a implicação. Aolegar o meu relógio a uma pessoa não oposso, no mesmo testamento, legar a ou-tra. Afirmar coisas incompatíveis no mesmoenunciado aplica-se tanto aos constatativoscomo aos performativos. Desejar as boasvindas a alguém e depois tratá-la mal énão estar em ordem em relação à impli-cação. Aplicando a teoria da infelicidadedos performativos, equivale a não cumprira regra T2 (não agir conforme o compro-misso implicado pela enunciação). Aquilo aque noutro texto Austin chamou “Quebra deCompromisso”(Austin, 1989:45).

Vimos, portanto, que o enunciado cons-tatativo está sujeito às infelicidades tantoquanto o enunciado performativo e que essasinfelicidades “são quase as mesmas” (Aus-tin, 1989:53)

Vejamos ainda dois pontos: 1) se as con-dições de felicidade A e B são aplicáveisaos constatativos; 2) se o critério de ver-dade/falsidade também é aplicável aos per-formativos.

Parece óbvio, quanto ao primeiro ponto,que da mesma forma que para dar uma or-dem o locutor tem de se encontrar nas cir-cunstâncias adequadas e dirigir-se à pessoacerta, também para afirmar qualquer coisa olocutor tem de estar em condições de o fa-zer. Assim, numa conferência subordinadaa um assunto, não é pertinente que o oradordiscurse sobre outro assunto qualquer. Tam-bém não poderá fazer toda e qualquer afir-

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mação: pode estar mal informado, ou nãoter meios de o fazer, ou não ser a pessoa au-torizada para produzir esta ou aquela decla-ração. Pode, por isso, não se encontrar emposição de o fazer (condições A). Mas podetambém acontecer que o conferencista digaalguma coisa que não quer dizer, ou que seengane (B1), ou ainda que, por qualquer mo-tivo, seja interrompido (B2). Caso profirauma afirmação não apropriada terá de sofreras consequências de um julgamento menosfavorável por parte do auditório.

Os enunciados constatativos sujeitam-seentão também, às condições A e B.

Quanto ao segundo ponto, já vimos que osperformativos pressupoem, implicam e dão aentender que determinadas afirmações sejamverdadeiras. Mas é ainda possível examiná-los segundo um outro ponto de vista. Mesmosatisfazendo todas as condições de sucesso(validade), é possível perguntar se o actoassim realizado foi correcto: tratou-se deum bom conselho? A condenação terá sidojusta? A repreensão foi merecida’? Terá aminha promessa agradado realmente ao meuinterlocutor?

Trata-se aqui, da confrontação com a situ-ação na qual e em relação à qual o enunci-ado foi formulado. O que é, de certa forma,o mesmo que se passa na averiguação daverdade ou falsidade. Claro que pode sem-pre considerar-se que neste último caso a re-lação é mais directa. Austin não o crê eassinala para isso que “Aquilo que temos,de facto, sob a designação de “verdadeiro”não é nem uma simples qualidade nem umarelação, nem uma coisa qualquer, mas an-tes toda uma dimensão de crítica” (Austin,1989:57).

As afirmações assumem uma determinadarelação, mais ou menos precisa, que funci-

ona para certos casos como verdadeira e paraoutros não. Dizer “A cidade da Covilhã ficaa 298 Km de Lisboa"é uma afirmação ver-dadeira se não quisermos chegar ao pontode saber quantos metros, centímetros e milí-metros distam aquelas cidades uma da outra.De resto, não existe uma forma, senão apro-ximada, de medir aquela distância. Aqueleenunciado aproximado é então razoável paradeterminados fins e em determinados con-textos. Noutros, provavelmente, seria sufici-ente dar uma impressão subjectiva dizendo,por exemplo, “A cidade da Covilhã é muitolonge de Lisboa”.

A questão da verdade é assim, enquadradanum plano crítico. A propósito, vale a penatranscrever o que afirma Austin: “Poder-se-à fazer uma ideia, talvez não muito clara, doque seja essa crítica; o que é claro é que háuma série de coisas a considerar e a levar emconta no âmbito dessa dimensão: os factos,sim, mas também a situação de quem falou, afinalidade com que falava, o auditório, ques-tões de precisão, etc. Se nos contentarmoscom os limites de asserções duma simplici-dade idiota ou ideal nunca conseguiremosseparar o verdadeiro do justo, do equitativo,do merecido, do preciso, do exagerado, etc.,o panorama do pormenor, o elaborado doconciso e tudo o mais” (1989:57)

Parece então, podermos dizer que existeuma dimensão constatativa em todo o enun-ciado performativo e uma dimensão per-formativa em todo o enunciado constata-tivo. Será então pertinente continuar aopô-los? De facto, Austin constatou quetambém não é possível encontrar um cri-tério gramatical que permita tal distinção,e logo no final da quarta conferência rei-tera a importância de se considerar em todoo acto de fala, incluindo as afirmações, a

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situação total de fala: “Vemos que para ex-plicar aquilo que pode funcionar mal nas.

Afirmações não basta, como sempre se feztradicionalmente, concentrar a nossa aten-ção apenas na frase em causa (se é verdadeque tal coisa existe). Se queremos compreen-der o paralelismo que existe entre as afirma-ções e as enunciações performativas, e comoumas e outras são afectadas por certos defei-tos, é necessário considerar a situação total- o acto de fala por inteiro. Assim, o acto defala total, na situação enunciativa total estáa tornar-se tão importante como tem sido alógica: e assim, estamos a assimilar a enun-ciação constatativa à performativa” (Aus-tin, 1975:52)

De facto, o enunciado constatativo tam-bém é produzido e adquire sentido e rele-vância numa dada situação enunciativa, i.e.num contexto, cujos contornos Austin defi-niu, de certa forma, ao elaborar a despista-gem das condições de validade dos enunci-ados, dos factores que interferem na sua fe-licidade. Estes factores parecem poder valeraqui como factores contextuais.

De qualquer modo, uma afirmação con-tinua a ser distinta de uma ordem, de umapromessa ou de um pedido. Mas de todo,se não há distinção ao nível das condiçõessusceptíveis de afectar ambos os enunciados,Austin também não encontra nenhum crité-rio gramatical que os permita distinguir se-guramente. Isto porque o performativo as-sume frequentemente formas não explícitas.

Eu tanto posso prometer dizendo “Pro-meto ir ver-te amanhã”, como afirmandosimplesmente “Vou ver-te amanhã”. No pri-meiro caso temos a forma normal do perfor-mativo : um verbo na primeira pessoa do sin-gular, no presente do indicativo e na voz ac-tiva. O segundo, é a forma primitiva do per-

formativo já que o enunciado é mais incertoquanto ao valor em que deve ser tomado.Austin prefere chamar-lhe performativo pri-mário, em vez de implícito como parecerianatural, porque considera que a explicitaçãose deve a uma evolução da linguagem e dasociedade cuja complexidade induziu a umuso mais preciso da linguagem : “Podemosimaginar que fórmulas precisas são um fe-nómeno bastante recente na evolução da lin-guagem e que andam ligadas à evolução dasformas mais complexas da sociedade e da ci-ência”(Austin, 1975: 48)

Existe uma segunda forma normal do per-formativo, mais comum em enunciados quese apresentam sob forma escrita: neste caso,o verbo aparece na voz passiva e na segundaou terceira pessoas do presente do indica-tivo. Teremos, por exemplo: “Os visitan-tes são convidados a experimentar o mate-rial exposto no nosso stand”. O teste paradecidir da performatividade deste género deenunciados é o de se colocar atrás a parti-cula “Pelo presente (aviso)” ( a palavra in-glesa “hereby”).

Outro teste para “detectar” performativosé a assimetria existente entre a primeirapessoa do presente do indicativo do verbo(quando se trata de um verbo explicitamenteperformativo), e as outras pessoas e tempos.É que quando o valor do enunciado é perfor-mativo, i.e. quando através dele se está a rea-lizar um acto, esta realização só pode ocorrer“na boca” da própria pessoa que quer reali-zar o acto em causa, aqui e agora. "Prometoque..."é a única fórmula explícita possívelpara realizar o acto de prometer. Dizer “Pro-meti que...” já não é o próprio acto de prome-ter, é uma descrição do que fiz. Mas, quandoprometi utilizei a fórmula na primeira pessoado singular no presente do indicativo. De

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igual modo, “Ele promete que...” ou “Eleprometeu que...” não são o próprio acto deprometer.

Estes testes podem aplicar-se aos casosduvidosos como o são os performativos pri-mários, cujo uso é bastante frequente na lin-guagem corrente, e que não possuem ne-nhuma destas formas ditas normais. Por ou-tro lado, um enunciado performativo podefrequentemente ser substituído por gestos ouentoações, e uma palavra como “Cão” escritanum portão pode substituir perfeitamente oenunciado “As pessoas estranhas são avisa-das de que existe aqui um cão perigoso”.

De qualquer forma, Austin acredita nautilidade destes testes que só têm relevân-cia pelo facto de não existir uma únicaforma possível de enunciar um performativo.Constatativos e performativos não se distin-guem, então, de forma absoluta. Que pen-sar do enunciado “Afirmo que...”? Ele tomaa forma de um performativo, mas deve sertomado essencialmente como verdadeiro oufalso.

No entanto, e apesar de tudo, qualquer in-terlocutor é normalmente capaz de distinguiras afirmações das promessas, dos avisos, dasordens, etc. Por isso, Austin não vai abando-nar por completo a sua distinção. Vai consi-derar cada um destes regimes do enunciadocomo tipos diferentes de actos. Um enunci-ado com valor de afirmação é distinto de umoutro com valor de ordem. Eles realizam ac-tos diferentes. São diferentes tipos de acçõesque realizamos quando falamos. A distinçãoperformativo/ constatativo será assim, inte-grada numa teoria mais geral da acção.

Austin vai, então, pegar de novo na noçãode acto e tentar isolar que tipo de actos estãoimplicados na enunciação. O que fazemossempre que falamos?

6 Para uma Teoria Geral dosActos de Linguagem

Nas últimas conferências publicadas emHow to do Things With Words, Austin vaichegar a uma formalização que abriu muitoscaminhos às concepções pragmáticas da lin-guagem, sobretudo devido ao seu esboço deuma teoria dos valores ilocutórios.

Ao tentar repensar o conceito de acção,isola três tipos de actos envolvidos na enun-ciação, vista enquanto acção: os actos locu-tórios, os ilocutórios e os perlocutórios.

O primeiro tipo de acto corresponde aoacto de dizer. Independentemente do que sediz, dizer é uma ocorrência no mundo. Aus-tin chama-lhe locução ou acto locutório eanalisa-o nestes termos:

“Podemos convir (..) que dizer algo:A. a) é sempre efectuar este acto: produ-zir certos sons (acto “fonético”); a enun-ciação é uma fonação;A.b) é sempre efectuar este acto: pro-duzir certos vocábulos ou palavras (i.e. certos tipos de sons que pertencema um determinado vocabulário, e en-quanto precisamente lhe pertencem) se-gundo uma determinada construção (i. e.de acordo com uma determinada gramá-tica, e enquanto precisamente se confor-mam com ela), com uma determinada en-toação etc. Chamaremos a este acto umacto “fático”, e a enunciação, o acto deproduzir um “fema”(“pheme”);A.c) é geralmente efectuar este acto: em-pregar um fema ou as suas partes cons-tituintes num sentido mais ou menos de-terminado, e com uma referência maisou menos determinada (“sentido” e “re-ferência” reunidos constituem a “signi-

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ficação” (“meaning”.) Chamaremos aeste acto um acto rético ("rhetic”), ea enunciação, o acto de produzir um“rema” (“rheme”)”.(Austin, 1975: 92)

Num sentido minimalista, falar é produ-zir sons (acto fonético), mas não é produ-zir um som qualquer, é pronunciar sons dedeterminado tipo a que chamamos vocábu-los, na medida em que estão previstos numacerta língua, e produzimo-los segundo umadeterminada ordem, isto é, conformes a umagramática (acto fático). Isto porque teremosem vista usar esses vocábulos de acordo comum determinado sentido e uma determinadareferência (acto rético).

Um acto locutório é a conjugação destestrês actos (fonético, fático e rético), que têmuma validade analítica, mas cada enunciadopode colocar em relevo um ou outro des-tes aspectos. Assim, podemos reportar umacto fático, dizendo: “Ele disse “Sai!””; ouacentuar o acto rético, através do enunciado:“Ele disse-me para sair” ; ou salientar o as-pecto fonético: “Disse Junho e não Julho”.Ou seja, o facto de ter dito qualquer coisa(este último exemplo), o que foi dito efecti-vamente e o sentido com que foi dito.

Austin concedeu às relações entre actosfáticos e réticos alguma atenção (embora es-teja mais preocupado com os outros dois ti-pos de actos, o ilocutório e o perlocutório).Assim, o mesmo fema pode assumir diferen-tes sentidos e referências, constituindo poisdiferentes remas. Austin, refere-se aqui àdistinção (que Peirce foi o primeiro a notar)entre Type (o código que consigna um deter-minado modelo ideal) e "token (as diversasactualizações do modelo). Austin sustenta,portanto, a possibilidade de utilizar tokens de

um mesmo type mas com sentidos diferen-tes, apontando para outra direcção. Por outrolado, em casos extremos, também podemosconceber a utilização de femas que não apon-tam para nenhum rema (embora o contrárionão seja possível): podemos repetir mecani-camente o que alguém disse, ou murmurardistraidamente uma frase que nos ocorreu,ou lêr uma inscrição latina sem compreendero seu sentido.

Mas estas questões não esgotam o pro-blema aqui em análise: “Quando efectua-mos um acto locutório, usamos o discurso:mas em que sentido preciso é que o estamosaí a usar? É que existem numerosas fun-ções ou maneiras segundo as quais podemosusar o discurso, e para o nosso acto faz umagrande diferença (..) saber de que maneiraou em que sentido o estamos a usar em cadaocasião. É completamente diferente tomaro enunciado como um conselho, uma sim-ples sugestão ou uma ordem; como uma pro-messa propriamente dita ou como uma inten-ção vaga” (Austin, 1975:99).

Às diferentes maneiras segundo as quaispodemos usar o enunciado, Austin chama“força ilocutória” (“illucotionary force”) ouvalor ilocutório de um enunciado. Para alémde realizarmos um acto locutório quando di-zemos algo, é preciso saber como é que es-tamos a tomar o que dizemos. Nos termosde Austin: é preciso saber o que estamos aefectuar ao dizer algo. Um acto ilocutórioé, assim, “um acto efectuado ao dizer algo(“in saying”), por oposição ao acto de dizeralgo”, e continua Austin, “chamarei à teoriadas diferentes funções linguísticas que estãoaqui em questão a teoria dos “valores ilocu-tórios”” (1975: 99)

Perguntar ou responder, informar, avisar

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ou atestar qualquer coisa, anunciar um vere-dicto, prometer ou julgar, nomear ou criticar,a par de afirmar ou descrever, eis alguns dosvalores ilocutórios estudados por Austin.

Eis, portanto, aqui compreendida a opo-sição inicial entre os constatativos e os per-formativos. Eles são ambos actos de lin-guagem com um valor ilocutório distinto.O que acontece, propõe Austin, é que cadaum destes enunciados põe diferentementeem evidência o seu valor ilocutório. Assim,na enunciação constatativa negligenciamoso seu valor ilocutório, para salientarmos osseus aspectos locutórios. Preocupamo-nossobretudo com o aspecto referencial, com asua adequação aos factos (com a verdade oufalsidade, ou seja, com a referência e o sen-tido). Na enunciação performativa damossobretudo conta da dimensão ilocutória daenunciação e deixamos de lado a dimensãoda correspondência aos factos. Mas em qual-quer das enunciações temos um acto de lin-guagem completo.

Este compreende ainda, um terceiro acto:o acto perlocutório, que considera aquilo quefazemos pelo facto ("by saying") de dizer-mos algo. Relaciona-se com os efeitos indi-rectos, não convencionais e nem sempre in-tencionais, associados à enunciação: “Dizerqualquer coisa provocará (..) certos efeitossobre os sentimentos, os pensamentos, os ac-tos do auditório, ou daquele que fala ou deoutras pessoas ainda. E nós podemos falar( ..) com a intenção ou o propósito de sus-citar esses efeitos. (....) Chamamos a um talacto um acto perlocutório ou uma perlocu-ção”(Austin, 1975: 99). Mas, o perlocutórionão depende nem se confunde com a inten-ção. O facto de dizermos a alguém “Cuidadocom o cão”, que é um acto ilocutório com o

valor de aviso, pode assustar essa pessoa semque fosse essa a nossa intenção.

No domínio da acção, salienta o autor, osactos provocam cadeias de outros actos, e omesmo se passa, portanto, com os actos delinguagem. Mas, então, como distinguir umasequência de actos ilocutórios de um efeitopropriamente perlocutório? Os actos ilocu-tórios também produzem efeitos, mas serãoesses efeitos do mesmo tipo, ou seja, serãoeles efeitos perlocutórios? Isto não nos afas-tará da própria linguagem, perdendo esta dis-tinção o seu valor analítico?

De facto Austin preocupar-se-à em distin-guir melhor estes dois tipos de actos. Assimcomo o acto ilocutório não é uma consequên-cia do locutório pois, embora o implique,dele não depende (caso contrário não seriapossível atribuir diferentes valores ilocutó-rios à mesma locução, como efectivamenteacontece tanta vez), também o tipo de efei-tos do ilocutório e do perlocutório não sãoos mesmos. O acto ilocutório implica a pro-dução de certos efeitos para que seja bem su-cedido, mas a produção de consequências sóé característica do perlocutório.

Um acto ilocutório bem sucedido en-volve três tipos de efeitos (ou de sentidosem que podemos tomar a palavra). Deve:1) assegurar-se que foi bem compreendido(como avisar alguém se ela não me perce-ber?); 2) realizar aquilo para que se des-tina (devendo distinguir-se esse efeito dasconsequências que o ultrapassam, ou quepode induzir); e 3) convidar a “responder”sempre que exija uma réplica, convencional-mente estabelecida (provocar uma respostase se tratou de um acto de interrogação; dizer“sim” num casamento depois da pergunta dopadre, etc.) .

Diferentemente, o perlocutório trata dos

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efeitos colaterais, ao nível dos sentimentos,pensamentos e acções, que os enunciadossuscitam em quem os diz e nos outros. Umamesma promessa pode provocar os mais di-versos efeitos perlocutórios, os quais não in-terferem na própria realização do acto, comoé o caso dos três sentidos de efeito asso-ciados aos ilocutórios. As séries de con-sequências perlocutórias não só não impli-cam objectivos definidos (posso assustar al-guém sem ter a intenção) como não são con-vencionais.

A grande distinção entre actos ilocutóriose perlocutórios é que os primeiros são sem-pre convencionais e os segundos não6. Tantouns como os outros podem ser efectuadossem o uso de palavras, mas mesmo nestascircunstâncias o acto não verbal tem de serconvencional para merecer o nome de ilocu-tório. Pelo contrário, os actos perlocutóriosnão são convencionais, mesmo que os possa-

6 O que não deixa de ser problemático, já que nemsempre é fácil determinar os limites entre convenci-onal e não convencional e, consequentemente, distin-guir entre um efeito que é resposta a um acto de ilocu-ção (por exemplo, obedecer a uma ordem; responder auma pergunta; acatar um conselho ou uma recomen-dação, etc.) e uma consequência, uma sequência deacções propriamente perlocutórias. Se, à partida, nosparece óbvio que existe uma clara distinção entre oaspecto ilocutório da linguagem (o que estou a fazerao dizer: estou a afirmar, a perguntar, a ordenar oua prometer qualquer coisa?), e o aspecto perlocutório(o que provoco pelo facto de ter afirmado, perguntado,ordenado ou prometido?), num olhar mais atento nemsempre é fácil discernir. Até porque os efeitos per-locutórios poderão ser infinitos. Por outro lado, estadistinção é importante uma vez que o sentido passatambém por esses efeitos perlocutórios, o que lançaa investigação para o campo do interaccionismo sim-bólico. É que , na verdade, estes efeitos e a sua per-cepção e manipulação por parte dos intervenientes deuma interacção fazem parte do contexto que orientaessa mesma interacção.

mos suscitar por actos que o sejam. Por isso,são também mais difíceis de definir.

Assustar, ameaçar, convencer, seduzir, dis-suadir, persuadir, impedir e importunar sãoalguns exemplos de verbos que designam ac-tos perlocutórios, os quais podem ser sus-citados por diferentes ilocuções. Estes ver-bos dizem-se perlocutórios, pois que se re-ferem a uma acção desse tipo. Explicitam-na. No entanto, diferentemente de muitosdos verbos ilocutórios, eles não fazem o quedizem. Eu não humilho ninguém dizendo:“Humilho-te!”. Posso, com certeza, depoisde proferir palavras para humilhar, explicitarque a minha intenção é, de facto, humilharo meu interlocutor: “Com isto te humilho!”ou suscitar no outro a interrogação: “Estás ahumilhar-me?”. Mas será que esta explicita-ção não descamba num acto ilocutório?

Ao contrário dos verbos ilocutórios comoprometer, avisar, informar, ordenar, julgar,afirmar etc., os testes dos performativosacima descritos não se aplicam aos perlocu-tórios. Para estes, Austin aponta a possibili-dade de verificar se o sentido em que “pelo,facto de” é utilizado, é um sentido instru-mental, indicando um método que vise atin-gir qualquer coisa, a causa de qualquer coisa.Por exemplo : “Convenci-o pelo facto de lhemostrar as provas”. Mostrar as provas cons-titui o modo como consegui convencê-lo, foidevido ao facto de o fazer que o convenci.Esta série causal está, então, muito próximadaquilo que Austin quer dizer com acto per-locutório.

Com esta formulação Austin contribuiudecisivamente para uma mudança na concep-ção da linguagem e dos fenómenos de sen-tido. Assim, passa a não ser possível conce-ber a linguagem independentemente dos seus

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usos quotidianos vistos como actos de lin-guagem de diversa ordem, ocorrendo numasituação integral de discurso, onde as afirma-ções e os conceitos de veracidade ou falsi-dade não ocupam nenhuma posição privile-giada.

Os enunciados constatativos e performati-vos, vimo-lo já, dissolvem-se na teoria dosvalores ilocutórios, de que eles são doisexemplos: uns acentuando o aspecto locutó-rio, outros o aspecto ilocutório. Austin dizque esta oposição é uma espécie de teoriaparticular no interior de uma teoria geral dosactos de linguagem.

Austin vai, também, retomar a sua listados performativos explícitos à luz desta novateoria geral. Consegue identificar cinco clas-ses de valores ilocutórios:

1. Os Veridictivos, como condenar, absol-ver, sustentar, decretar, calcular, estimaretc., que anunciam veredictos (normal-mente relacionados com os actos judici-ais);

2. Os Exercitivos, como designar, no-mear, ordenar, dirigir, comandar, demi-tir etc., que reenviam ao exercício depoderes ou influências;

3. Os Promissivos, como prometer, estardecidido a, projectar, pretender, jurar,asseverar etc., que realizam promessasou compromissos;

4. Os Comportamentativos, como pedirdesculpa, agradecer, felicitar, deplorar,cumprimentar, desejar as boas vindasetc., que dizem respeito a atitudes ecomportamentos sociais;

5. Os expositivos, como afirmar, negar,identificar, relatar, informar, dizer, con-

jecturar etc., a partir dos quais realiza-mos uma exposição.

Antes de terminarmos, lugar ainda parasalientar que o valor locutório corresponderápara Austin, à ideia de significação que eletoma como “sense and reference” da distin-ção russelliana e que opõe a “meaning”, osentido propriamente dito, o qual assume asmodalidades pragmáticas da enunciação queele introduz com este trabalho.

O seu trabalho também não recobre os do-mínios da linguagem poética ou dos usospouco sérios (as brincadeiras) que a lingua-gem permite.

A sua concepção de pragmática distingue-se igualmente do pragmatismo americano,de Peirce ou Dewey, segundo o qual a aceita-bilidade de uma expressão dependia dos seusresultados. Ora, como vimos existem inúme-ros casos de insucesso na linguagem.

7 BibliografiaAUSTIN, John L. (1975), How to do things

with words, 1962, Oxford UniversityPress, 2a Edição.

(1989) “Performativo – Constativo” inPINTO DE LIMA, Linguagem e Ac-ção: Da filosofia analítica à linguísticapragmática, Lisboa, Apáginastantas, 2a

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LATRAVESSE, François, La Pragmatique,Bruxelles, Pierre Mardaga.

PINTO DE LIMA (1989), Linguagem e Ac-ção: Da filosofia analítica à linguísticapragmática, Lisboa, Apáginastantas, 2a

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RÉCANATI, François, (1970)“Du positi-visme logique à là philosophie du lan-gage ordinaire: naissance de la prag-matique” in Austin, Quand Dire c’estfaire, Ed. Seuil, Posfácio, pp. 185/203.

SEARLE, J.R. (1969) Speech Acts, Cam-bridge University Press ( trad. Fr.: Ac-tes de Langages, Paris, Herman, 1972).

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