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Assistência Religiosa em Portugal na Grande Guerra Actas do Colóquio Internacional “A Grande Guerra – Um Século Depois”, Academia Militar, 2015, pp. 193-211. António Costa Canas Museu de Marinha/CINAV/CIUHCT [email protected] Introdução Uma explicação prévia antes do início do texto. Este argo teve a sua origem numa palestra, realizada por iniciava do Serviço de Assistência Religiosa das Forças Armadas e das Forças de Segurança. O objevo da palestra era recordar todos aqueles que parciparam no primeiro conflito mundial. Optou-se por seguir essencialmente alguns estudos já realizados sobre o tema proposto, não se tendo levado a cabo invesgação de arquivo. Por uma questão de jusça importa realçar a invesgação da Professora Maria Lúcia de Brito Moura, que serviu de base a grande parte da informação apresentada na secção dedicada à assistência religiosa. O objevo principal deste texto é apresentar um conjunto de informações sobre o modo como se processou a assistência religiosa aos militares portugueses, em situações de combate, durante a Grande Guerra, ocorrida entre 1914 e 1918. Das leituras levadas a cabo, o primeiro aspeto que saltou à vista foi a existência de um autênco divórcio entre a Igreja e o Estado, durante a Primeira República. Essa divisão materializava-se na Lei da Separação. Uma vez que existe uma relação estreita entre esta forma de os dirigentes republicanos encararem a religiosidade e a forma

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Assistência Religiosa em Portugal na Grande Guerra

Actas do Colóquio Internacional “A Grande Guerra – Um Século Depois”, Academia Militar, 2015, pp. 193-211.

António Costa Canas

Museu de Marinha/CINAV/CIUHCT

[email protected]

Introdução

Uma explicação prévia antes do início do texto. Este artigo teve a sua origem

numa palestra, realizada por iniciativa do Serviço de Assistência Religiosa das Forças

Armadas e das Forças de Segurança. O objetivo da palestra era recordar todos aqueles

que participaram no primeiro conflito mundial. Optou-se por seguir essencialmente

alguns estudos já realizados sobre o tema proposto, não se tendo levado a cabo

investigação de arquivo. Por uma questão de justiça importa realçar a investigação da

Professora Maria Lúcia de Brito Moura, que serviu de base a grande parte da informação

apresentada na secção dedicada à assistência religiosa.

O objetivo principal deste texto é apresentar um conjunto de informações

sobre o modo como se processou a assistência religiosa aos militares portugueses, em

situações de combate, durante a Grande Guerra, ocorrida entre 1914 e 1918.

Das leituras levadas a cabo, o primeiro aspeto que saltou à vista foi a existência

de um autêntico divórcio entre a Igreja e o Estado, durante a Primeira República. Essa

divisão materializava-se na Lei da Separação. Uma vez que existe uma relação estreita

entre esta forma de os dirigentes republicanos encararem a religiosidade e a forma

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194 Actas do Colóquio Internacional “A Grande Guerra: Um Século Depois”

como se iniciou o processo de assistência religiosa às tropas, começaremos por uma

análise da relação Igreja-Estado na Primeira República. Para melhor entendermos este

relacionamento convém referir alguns antecedentes desta questão.

Num segundo momento será apresentado um breve resumo daquilo que foi a

guerra, em especial do seu início e do envolvimento português no conflito. O assunto

não será analisado de uma forma detalhada, pretendendo-se apenas mostrar o contexto

em que ocorreu a assistência religiosa às tropas.

O tema central do trabalho será desenvolvido em seguida. Será apresentada

a principal legislação que enquadrou a assistência religiosa em campanha. Será

igualmente dado algum relevo às discussões que se geraram sobre a necessidade, ou

não, de providenciar esse tipo de apoio espiritual. Finalmente, mostrar-se-á a forma

como atuaram os capelães militares na Flandres.

Terminaremos com as conclusões. Sem pretender estar a apresentar essas

conclusões na introdução, vale a pena destacar que procurámos um fio condutor para

o nosso raciocínio. Nota-se uma mudança de atitude no relacionamento Igreja-Estado,

sendo esse o tópico principal a realçar na conclusão.

A Igreja e a República

Conforme afirmado na Introdução, as relações entre a Igreja e o Estado foram

bastante conturbadas durante a Primeira República. No entanto, a situação não era

nova, tendo ocorrido anteriormente diversas situações de tensão. Um desses momentos

ocorreu durante o reinado de D. José, muito por influência do seu principal ministro,

o Marquês de Pombal1. A política levada a cabo pelo Marquês assentava num modelo

governativo que ficou conhecido como Despotismo Esclarecido. Apesar de aberta às

ideias iluministas, esta forma de governo baseava-se num poder absoluto do monarca.

Sendo a Igreja vista, nalgumas circunstâncias, como uma forma de oposição a esta

forma de governar, foi limitada na sua forma de atuação, ocorrendo um processo

de secularização da sociedade. Embora a sociedade portuguesa continuasse a ser

essencialmente católica, a Igreja em Portugal ficava bastante dependente do poder

da coroa. Assistiu-se ao fim de vários dos privilégios eclesiásticos e à publicação de

legislação regulando o funcionamento da Igreja. Em 1759 ocorreu a expulsão dos jesuítas

do território português. As medidas tomadas procuravam ainda que se avançasse para

uma situação de “independência” em relação ao Papa, assistindo-se em 1760 a um corte

de relações diplomáticas com a Santa Sé, embora as mesmas fossem reatadas algum

tempo depois2.

1 Poderiam ser indicados outros anteriores momentos de tensão. Contudo, para o nosso objetivo basta mostrar alguns exemplos, bastando portanto recuar até ao Pombalismo.2 Para aprofundar este assunto consulte-se: José Pedro Paiva, “Igreja e Estado – II. Época Moderna”, Carlos Moreira de Azevedo [Dir.], Dicionário de História Religiosa de Portugal. Volume C-I, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, pp. 393-401.

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Passado algum tempo, Portugal conheceu uma mudança significativa na sua vida

política, com a Revolução Liberal. A partir de 1820, Portugal entrou num processo que

levará à instauração de uma monarquia liberal, a qual conduzirá a uma laicização da

sociedade. Um dos marcos desse processo foi o surgimento do casamento civil, com

o mesmo valor legal do casamento religioso. O liberalismo não foi implementado de

uma forma pacífica. O país conheceu uma Guerra Civil, que opôs as tropas dos dois

irmãos, Pedro e Miguel, filhos de D. João VI. No período em que esteve no poder, D.

Miguel nomeou diversos membros do clero, não sendo estas nomeações reconhecidas

pelo irmão. Em 1833 dá-se um corte de relações diplomáticas com a Santa Sé, sendo

as mesmas reatadas em 1841. Outra marca emblemática do liberalismo foi a extinção

das ordens religiosas masculinas, ocorrida em 1834, tendo sido nacionalizados os bens

destas3.

A monarquia constitucional caiu no dia 5 de outubro de 1910, quando se

implantou em Portugal um regime republicano. Entre as elites republicanas existiam

diversos livres-pensadores que defendiam uma sociedade onde a Igreja tivesse pouca ou

nenhuma influência. Para estes, o atraso que o país conhecia em termos económicos e

sociais era devido, essencialmente, à influência que a Igreja exercia junto das populações.

Além disso, o catolicismo era geralmente conotado com os ideais monárquicos, graças a

uma ligação estreita entre as ideias de Deus, Pátria e Rei. Não admira pois que logo após

o 5 de outubro se tenham tomado medidas no sentido de reduzir este poder da Igreja.

Assim, logo no dia 8 de outubro de 1910 foram repostos dois antigos diplomas: o do

Marquês de Pombal que expulsara os jesuítas e o de 1834 que extinguia os conventos.

Este sentimento anticatólico era tão forte nestes tempos iniciais da república que o

ministro Afonso Costa afirmou estar convicto que em duas gerações acabaria com o

catolicismo em Portugal:

[…] está admiravelmente preparado o povo para receber essa lei [da

Separação]; e a acção da medida será tão salutar que em duas gerações

Portugal terá eliminado completamente o catolicismo, que foi a maior

causa da desgraçada situação em que caiu [...]4

Considerando esta atitude, percebe-se facilmente a publicação de um diploma

que regula a separação entre a Igreja e o Estado. Através do decreto com força de lei

de 20 de abril de 1911 essa separação foi implementada. O texto do decreto é bastante

extenso e detalhado, cerca de cinco páginas, com 197 artigos. Vale a pena transcrever

partes de alguns desses artigos, para se entender o espírito que presidiu à publicação

deste decreto.

3 Este tema encontra-se desenvolvido em: Manuel Braga da Cruz, “Igreja e Estado – II. Época Moderna”, Carlos Moreira de Azevedo [Dir.], Dicionário de História Religiosa de Portugal. Volume C-I, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, pp. 401-411.4 Cf. Ana Teixeira Gaspar, “A Lei da Separação do Estado das Igrejas e as suas implicações no concelho de Oeiras”. Comunicação apresentada nos IX Encontros de História Local de Oeiras que decorreu no dia 15 de Outubro de 2010. Nas transcrições atualizou-se a ortografia.

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196 Actas do Colóquio Internacional “A Grande Guerra: Um Século Depois”

A religião católica deixa de ser religião oficial. O texto do decreto não proíbia o

exercício da religião, referindo apenas que a religião católica, seguida pela esmagadora

maioria da população, deixava de ser a religião oficial, e que todas as confissões deviam

ter tratamento semelhante:

A partir da publicação do presente decreto, com força de lei, a religião

católica apostólica romana deixa de ser a religião do Estado e todas

as igrejas ou confissões religiosas são igualmente autorizadas, como

legítimas agremiações particulares, desde que não ofendam a moral

pública nem os princípios do direito político português.5

A religião passa a ser considerada um assunto do foro particular. Fica vedada aos

órgãos do Estado a participação em quaisquer atos de cariz religioso:

O Estado, os corpos administrativos e os estabelecimentos públicos não

podem cumprir direta ou indiretamente quaisquer encargos cultuais,

nem mesmo quando onerarem bens ou valores que de futuro lhes sejam

doados, legados ou por outra forma transmitidos com essa condição,

que será nula para todos os efeitos, aplicando-se, de preferência, os

respetivos bens ou valores a fins de assistência e beneficência, ou de

educação e instrução.6

O culto público passa a ser equiparado a uma reunião regendo-se pelas mesmas

regras que regulavam o direito de associação, de qualquer natureza:

O culto particular ou doméstico de qualquer religião é absolutamente

livre e independente de restrições legais.7

É também livre o culto público de qualquer religião nas casas para isso

destinadas, que podem sempre tomar forma exterior de templo; mas

deve subordinar-se, no interesse da ordem pública e da liberdade e

segurança dos cidadãos, às condições legais do exercício dos direitos de

reunião e associação e, especialmente, às contidas no presente decreto

com força de lei.8

Para o exercício do culto religioso deveriam ser criadas associações, destinadas a

acolher essa prática. Os fiéis só poderiam contribuir financeiramente para as atividades

religiosas mediante a entrega dos seus donativos a estas associações:

5 Lei da Separação, Art. 2.º.6 Lei da Separação, Art. 6.º.7 Lei da Separação, Art. 7.º.8 Lei da Separação, Art. 8.º.

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Os membros ou fiéis de uma religião só podem coletivamente

contribuir para as despesas gerais do respetivo culto por intermédio de

qualquer das corporações, exclusivamente portuguesas, de assistência

e beneficência, atualmente existentes em condições de legitimidade

dentro da respetiva circunscrição [...]9

Todos os bens patrimoniais da Igreja foram expropriados, passando para a posse

do Estado:

Todas as catedrais, igrejas e capelas, bens imobiliários e mobiliários,

que têm sido ou se destinavam a ser aplicados ao culto público da

religião católica e à sustentação dos ministros dessa religião e doutros

funcionários, empregados e serventuários dela, incluindo as respetivas

benfeitorias e até os edifícios novos que substituíram os antigos, são

declarados, salvo o caso de propriedade bem determinada de uma

pessoa particular ou de uma corporação com personalidade jurídica,

pertença e propriedade do Estado e dos corpos administrativos [...]10

Aos membros do clero que assim o desejassem, poderia ser paga uma pensão

vitalícia. Estes padres pensionistas eram, na maior parte dos casos, aqueles que mais se

identificavam com os ideais republicanos, acabando muitos deles por ter problemas com

a hierarquia da Igreja.

Os ministros da religião católica, cidadãos portugueses de nascimento,

ordenados em Portugal, que à data da proclamação da República

exerciam nas catedrais ou igrejas paroquiais funções eclesiásticas

dependentes da intervenção do Estado, e que não praticaram

depois disso qualquer facto que importe prejuízo para este ou para

a sociedade, nomeadamente dos previstos no artigo 137º do Código

Penal, agora substituído pelo artigo 48º do presente decreto com força

de lei, poderão receber da República uma pensão vitalícia anual, que

será fixada tendo em atenção as seguintes circunstâncias:[...]11

Até à implantação da república existiam capelães adstritos a diversos organismos

do Estado, nomeadamente às Forças Armadas. Com esta lei é extinta a função de capelão,

passando estes a exercer outras funções no âmbito do Estado. É interessante verificar a

preocupação em fiscalizar estes ex-capelães, no exercício das suas novas funções:

A situação material dos capelães e outros ministros da religião católica,

que estavam adstritos a estabelecimentos ou serviços do Estado, tais

9 Lei da Separação, Art. 17.º.10 Lei da Separação, Art. 62.º.11 Lei da Separação, Art. 113.º.

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como escolas, regimentos, hospitais, asilos e prisões, será regulada

em diploma especial pelo governo, que procurará dar destino a esses

indivíduos nos próprios estabelecimentos e serviços, como empregados

de secretaria, ou como professores devidamente fiscalizados.12

Uma preocupação constante dos republicanos era evitar as influências nefastas

que os padres poderiam exercer na sociedade. Por essa razão, era fundamental garantir

um controlo efetivo da sua atuação. Esse controlo começava logo na formação que lhes

era ministrada nos seminários:

O Governo fará verificar por professores de instrução superior ou

secundária, da sua escolha, o funcionamento interno dos seminários,

o regime escolar e o sistema das provas finais, podendo mandar

encerrar aqueles em que houver graves abusos, ou nomear comissões

administrativas para provisoriamente dirigirem aqueles que os legítimos

direitos do Estado forem insistentemente desacatados.13

Como foi anteriormente afirmado, a letra da lei não revelava qualquer

animosidade em relação ao catolicismo. Contudo, a realidade foi bem diferente, nos

primeiros tempos da república. Como já se disse, os jesuítas, que entretanto tinham

voltado a Portugal, foram expulsos. Muitos outros clérigos foram presos e registaram-se

perseguições diversas. Dentro da própria estrutura da Igreja assistiu-se a divisões, fruto

da existência de padres que optaram por aceitar a pensão do estado, enquanto outros

não a quiseram.

Concluímos esta secção, dedicada à lei da separação, com uma análise, feita

anos mais tarde, dos efeitos desta lei. O autor da citação que se segue era Ministro

das Finanças do governo que aprovou o diploma. Segundo ele, o decreto que temos

analisado contribuiu bastante para que uma parte significativa da população deixasse

de se identificar com as ideias republicanas:

[…] a separação, tal como foi redigida, e na forma como foi executada,

constitui uma das mais fortes causas do divórcio duma grande parte da

opinião pública em Portugal em face da República [...]14

A Grande Guerra

A Grande Guerra, designação dada por aqueles que a viveram, resultou de uma

série de tensões e disputas, especialmente nas colónias, entre diversos estados europeus.

Não é este o local para analisar essas questões, pelo que será apenas apresentada uma

12 Lei da Separação, Art. 155.º.13 Lei da Separação, Art. 187.º.14 José Relvas, Memórias Políticas, vol. I, Terra Livre, Lisboa, 1977, p. 161.

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pequena mostra dos factos mais relevantes, tendo em atenção o modo como tal se refletiu em Portugal.

O acontecimento que provocou a deflagração do conflito foi o atentado de 28 de junho de 1914, em Sarajevo. Neste, os tiros de um jovem sérvio levaram à morte do arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do Império Austro-húngaro. Como resposta a este ato, o Império Austro-húngaro declarou guerra à Sérvia, a 28 de julho de 1914. Devido ao sistema de alianças que se tinha estabelecido nos anos anteriores, vários países envolveram-se no conflito, apoiando um lado ou o outro.

Quando o conflito começou, a maioria das pessoas acreditavam que o mesmo terminaria rapidamente, e que no Natal daquele mesmo ano tudo estaria resolvido. Era uma guerra “desejada” pelos principais intervenientes, que consideravam que ela seria a via para resolver as questões pendentes entre os diversos estados. Por esse motivo era também vista como a “última” guerra, pois serviria para acabar com todas as guerras. Esta ideia está patente num conjunto de artigos que o escritor inglês H. G. Wells começou a publicar em jornais londrinos, logo após a deflagração do conflito. Estes artigos foram mais tarde reunidos em livro.

E Portugal? Inicialmente o país mantém a neutralidade, pois era esse o desejo de Inglaterra, e todas as decisões tomadas sobre a participação portuguesa nesta guerra estarão dependentes da “aprovação” inglesa. Este alinhamento português com os Aliados ficou logo definido cerca de uma semana após o início do confronto. A 7 de agosto de 1914, o Congresso aprovou uma resolução que definia a posição a seguir pelo país, colocando-se como apoiante da Grã-Bretanha. Ainda no final do mesmo ano, uma outra sessão do Congresso deu plenos poderes ao governo para honrar os compromissos do país, onde e quando necessário.

Embora o país vivesse uma época bastante conturbada, com uma grande influência de fações monárquicas, e com divisões dentro dos republicanos, a maioria das elites nacionais defendeu a entrada na guerra. Neste ponto existiu consenso entre republicanos e monárquicos. São várias as razões que explicam esta vontade de Portugal entrar na guerra. Entre estas merece destaque o receio de o país vir a perder as suas colónias africanas, cobiçadas tanto por Ingleses como por Alemães.

O mencionado receio era justificado. Embora Portugal não tenha entrado for-malmente na guerra, logo no seu início, os confrontos contra os Alemães começaram logo em 1914, com ataques contra os territórios das províncias ultramarinas, nomeadamente no norte de Moçambique e no sul de Angola. Pode afirmar-se que em África Portugal esteve envolvido no conflito desde os seus primeiros dias. Menos de um mês após a declaração de guerra da Áustria à Sérvia, morria o primeiro militar português em combate. Foi o Sargento Enfermeiro de Marinha Eduardo Rodrigues da Costa, que comandava um posto na fronteira do Rovuma, no norte de Moçambique. No dia 25 de agosto de 1914, tropas alemãs atacaram este e mataram toda a sua guarnição: seis soldados africanos e o seu chefe, o mencionado sargento.

Assistência Religiosa em Portugal na Grande Guerra

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200 Actas do Colóquio Internacional “A Grande Guerra: Um Século Depois”

Apesar do que se passava em África, Portugal manteve-se neutral, embora desse um apoio explícito aos Ingleses. Mas o desejo de ter uma participação ativa permaneceu. Nos primeiros dias de 1916, a Inglaterra pediu a Portugal que procedesse ao apresamento de todos os navios alemães e austro-húngaros que se encontravam nos portos nacionais. Em 23 de fevereiro de 1916 esses navios foram apresados, passando a ser usados por Portugal, ou cedidos aos Ingleses. Face a esta ação por parte de Portugal, a 6 de março de 1916 a Alemanha declarou guerra a Portugal.

A Assistência Religiosa

Apesar da separação entre Igreja e Estado, explicada anteriormente, a população portuguesa continuava a contar com um número bastante elevado de pessoas com convicções religiosas, com predomínio dos católicos. As autoridades eclesiásticas preocuparam-se, desde o início do conflito com a assistência religiosa às tropas que fossem enviadas para campanha. Esta preocupação estava mais direcionada para os militares que eventualmente viessem a ser envolvidos em combates no território europeu.

Em carta de 4 de janeiro de 1915, do Cardeal Patriarca, D. António Mendes Belo, para o Presidente da República, Manuel de Arriaga, é colocado o problema da assistência religiosa em campanha. Portugal não estava formalmente em guerra, apesar de em África já se combater contra os Alemães. No entanto, existia uma vontade forte de que a nossa participação se efetivasse, com o envio de tropas para a frente europeia. Era fundamental o apoio religioso aos soldados que para aí fossem enviados. D. António aponta o exemplo das várias nações beligerantes, que tinham todas uma preocupação com esta vertente assistencial15.

Manuel de Arriaga, um moderado entre os republicanos, procurou não hostilizar os católicos. Respondeu que o problema era essencialmente da Igreja, mas que esta dispunha dos meios suficientes para lidar com a questão. Sugeriu o recurso aos antigos capelães militares podendo ser complementados por outros padres que se mostrassem disponíveis para apoiar as tropas16.

A questão voltou a colocar-se, de uma forma premente, com a entrada de Portugal na guerra, em 1916. Pouco mais de uma semana após a declaração de guerra, por parte da Alemanha, surgiu um documento que procurava esclarecer a posição dos católicos, face ao conflito. Em 19 de março de 1916, o Cardeal Patriarca dirigiu aos católicos a Exortação ao clero e fiéis do Patriarcado por ocasião da declaração de guerra. Neste texto, D. António apelava aos católicos para defenderem a sua pátria. Pretendia assim dissipar as dúvidas que muitos tinham sobre o patriotismo dos católicos, e ao mesmo tempo demonstrar que a Igreja não defendia uma postura germanófila, sendo muitas vezes acusada disso por várias fações republicanas, dominadas por livres-pensadores17.

15 Maria Lúcia de Brito Moura, Nas trincheiras da Flandres. Com Deus ou sem Deus, eis a questão, Lisboa, Edições Colibri, 2010, pp. 7-8.16 Ibidem, p. 9.17 Ibidem, pp. 9-10.

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O assunto foi bastante debatido. Por um lado, uma parte significativa daqueles que defendiam as ideias republicanas mais vincadas olhavam com desconfiança para a possibilidade de os padres terem um papel ativo na linha da frente. Acreditavam que a ação dos religiosos seria perniciosa, minando a moral dos soldados. Por outro lado, assistiu-se a exortações patrióticas levadas a cabo por muitos capelães. Os jornais, de ambos os lados, entraram no debate, por vezes de uma forma muito acesa, noutros casos procurando conciliar ambas as posturas antagónicas. Por exemplo, questionava- -se por que motivo apenas os católicos deveriam ter apoio religioso, quando nas fileiras poderiam existir fiéis de outras confissões? E sugeria-se que, uma vez que a mobilização abrangeria uma percentagem significativa dos homens adultos, entre estes encontrar--se-ia certamente indivíduos em condições de garantir o apoio religioso, os chamados “padres-soldados”18.

O debate acima mencionado sucedeu em simultâneo com a preparação do Corpo Expedicionário Português (CEP) que foi feita em Tancos, após a declaração de guerra. Era notória a necessidade de regulamentar a questão da assistência religiosa, devendo o problema estar solucionado quando as tropas fossem enviadas para França. Em 30 de novembro de 1916 foi publicado o Decreto 2869. Este diploma tinha um articulado que deixava a situação pouco clara. Basicamente dizia que os generais poderiam permitir a assistência religiosa, deixando assim ao livre arbítrio dos chefes militares a possibilidade de essa assistência existir, ou não19.

Alguns dias antes da partida do primeiro contingente de tropas portuguesas foi publicado um outro diploma, Decreto 2942, de 18 janeiro de 1917, que definia as regras segundo as quais se deveria processar a assistência religiosa às tropas. De acordo com o texto do decreto, era autorizada a assistência religiosa em campanha, a ser realizada por ministros das diferentes confissões religiosas que eram seguidas pelos militares destacados. Os capelães integravam as forças, sendo graduados em alferes e não auferindo qualquer soldo. Deviam ser voluntários para desempenhar a função e poderiam ser antigos capelães militares20.

Este decreto não agradou nem aos católicos nem àqueles que se opunham à assistência religiosa em campanha. Os católicos consideravam que a decisão de não pagar soldo aos capelães tinha por objetivo reduzir a mobilização de eventuais voluntários. Defendiam que o pagamento poderia ser feito com o dinheiro da Bula da Cruzada, de que o Estado se tinha apropriado no ano anterior. Insurgiam-se igualmente contra a equiparação a alferes. Davam como exemplo a França, berço dos ideais republicanos, onde os capelães eram equiparados a capitão21.

O exemplo daquilo que se passava com os contingentes de outros países envolvidos no conflito terá pesado certamente na decisão de providenciar o apoio religioso às tropas expedicionárias. Num ofício de 5 de agosto de 1917, o chefe do Serviço

18 Ibidem, pp. 11-19.19 Ibidem, p. 19.20 Ibidem, p. 20.21 Ibidem, pp. 20-21.

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de Saúde do CEP, dá a entender que a questão da assistência religiosa preocupava os

militares britânicos, sob cujo comando se encontravam as tropas portuguesas:

Quando voltei da minha missão em Inglaterra expus a S. Excia. o

Ministro da Guerra e a V. Exa. a necessidade de as tropas serem

acompanhadas por padres católicos. O facto de o Estado português

não reconhecer uma religião oficial não fez que a grande maioria dos

portugueses deixasse de ser católica nem o Estado pretende intervir

nas crenças religiosas de cada um.

Os perigos da guerra trazem situações em que os que têm crenças

sentem a necessidade de confortos dos que consideram categorizados

para tal [...]22

Apesar de descontentes com a situação, os católicos não ficaram parados.

Pelo contrário, parece que o facto de o Estado não providenciar pagamento de soldo

aos capelães serviu como elemento mobilizador da maioria dos católicos. Maria Lúcia

Moura defende que até à publicação do Decreto 2942, a hierarquia católica acreditou

que o estado pagaria o vencimento aos capelães que viessem a ser mobilizados. Quando

percebeu que tal não ia acontecer, então organizou-se para encontrar uma alternativa

dentro da Igreja, para que eles tivessem uma remuneração23.

Foi criada a Comissão Central de Assistência Religiosa em Campanha, que

funcionava na sede do Patriarcado de Lisboa. Este organismo coordenava a receção de

todos os donativos e o seu encaminhamento para as tropas em França. A origem dos

donativos era bastante variada. Nas paróquias procedia-se à recolha de fundos, que

eram enviados para as respetivas dioceses. Organizou-se uma Subscrição Nacional,

sendo publicadas, nos jornais católicos, listas dos benfeitores. Algumas dádivas eram

bastante generosas, destacando-se diversos membros da aristocracia, alguns exilados

no estrangeiro. Diversas comunidades de Portugueses emigrados no estrangeiro

deram também o seu apoio. Os oficiais de um regimento de artilharia, desejando

ter um capelão, decidiram contribuir cada um com um dia de soldo. Quando se

encerraram as contas da Comissão..., em 1920, verificou-se a existência de um saldo

bastante positivo, prova do sucesso alcançado. E os donativos não se limitaram apenas

a dinheiro, sendo oferecidos bens diversos, nomeadamente agasalhos, objetos de

culto e livros24.

Apesar do êxito da iniciativa, nos primeiros tempos não se augurava este

sucesso. Tal facto não impediu que o número de padres voluntários para acompanhar

as tropas excedesse largamente o valor autorizado. Assim, em fevereiro de 1917 o

número de candidatos era superior a sessenta. Mas o processo de embarque dos que

22 Apud Ibidem, p. 21.23 Ibidem, p. 35.24 Ibidem, pp. 35-39.

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acabaram selecionados foi demorado. O processo de candidatura envolvia uma certa burocracia, que implicava autorizações da hierarquia eclesiástica e depois uma série de procedimentos administrativos no Ministério da Guerra. Existem suspeições de que alguns processos teriam desaparecido propositadamente, com o intuito de impedir a participação de alguns padres. Um dos processos que desapareceu foi o do cónego José do Patrocínio Dias, que viria a ser escolhido para chefiar o Corpo de Capelães do CEP25.

O número de capelães autorizados era de quinze, numa proporção de um capelão por cada 3 000 soldados. Maria Lúcia Moura refere que apenas em maio de 1917 se encontravam em França os quinze capelães autorizados, fornecendo o nome dos mesmos assim como a indicação da respetiva paróquia, quando a conseguiu identificar26.

De referir que na internet existe um portal com informação bastante detalhada sobre a assistência religiosa em campanha. Neste aparece também uma listagem dos padres que integraram o CEP. Aqui surge a indicação de que em abril de 1917 teriam partido para França dezassete capelães. Os quinze primeiros nomes coincidem com a listagem de Maria Lúcia Moura, tendo sido acrescentados os nomes dos padres Paulo Evaristo Alves, de Coimbra, e Manuel Roiz Silveira, de Cela, Alcobaça27.

O referido portal fornece mais um conjunto de informações sobre o movimento dos capelães militares. Em junho de 1917 teriam partido mais seis capelães para França. No ano seguinte, entre maio e julho de 1918, partiram dezasseis para França. Alguns destes já tinham estado lá antes, regressando à zona de combate. Para África também acabaram por ir capelães. Para Moçambique seguiu, em fevereiro de 1918, um contingente de seis capelães tendo como chefe o padre Alfredo Bento da Cunha. Quase no final da guerra, em agosto de 1918, ainda partiram três capelães para França. Alguns dos capelães enviados com o CEP tiveram que regressar, por motivos de saúde. Pelo menos um deles, o capelão Alexandre Pereira de Carvalho, foi expulso do CEP em outubro de 1917, devido a troca de correspondência, considerada menos respeitosa28. Também nestes dados se nota alguma divergência entre a informação constante do portal e aquela que está na obra de Maria Lúcia Moura. Geralmente, o portal menciona os mesmos nomes que a autora refere, acrescentando depois mais alguns. Note-se que a obra de Maria Lúcia Moura aparece mencionada na bibliografia utilizada pelos autores do portal.

Entretanto, em finais de 1917 Sidónio Pais assumiu o poder. A sua postura perante a Igreja era bastante mais tolerante tendo ocorrido diversas alterações na questão da assistência religiosa enquanto ele esteve à frente dos destinos do país. Em janeiro de 1918 foram feitos convites para que mais capelães se oferecessem como voluntários. Este convite surgiu na sequência do pedido do próprio comandante do CEP, que via o número de capelães ser reduzido por razões diversas. Nesta altura, mantinham-se as condições previstas no diploma de janeiro de 1917. A burocracia

25 Ibidem, p. 47.26 Ibidem, p. 49.27 http://www.momentosdehistoria.com/MH_05_03_04_Exercito.htm.28 Ibidem.

Assistência Religiosa em Portugal na Grande Guerra

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204 Actas do Colóquio Internacional “A Grande Guerra: Um Século Depois”

continuava a ser um obstáculo à aceitação de novos voluntários. Só depois do desastre de 9 de abril é que realmente foram enviados mais capelães para a frente29.

Em meados do ano de 1918 foi publicada nova legislação que introduziu

importantes alterações ao decreto 2942. O Decreto 4489, de 4 de junho de 1918, é

composto por apenas dois artigos. O primeiro destes forneceu uma nova redação

para alguns dos artigos do diploma do ano anterior. Assim, passou a ser autorizado

o pagamento de soldo aos capelães. Outra alteração significativa que este diploma

introduziu foi a possibilidade de transferência de padres que tinham sido mobilizados

como militares das várias armas30.

Na sequência deste decreto foram apresentados vários pedidos de transferência,

embora tenham sido recusados muitos deles. No entanto, nos casos em que se recusou

a transferência, os militares foram autorizados a celebrar nas suas unidades31.

A assistência religiosa deixou de se restringir à frente de combate:

2.ª Ao artigo 1.º é aditado o seguinte § único:

«§ único. A assistência religiosa a que se refere este artigo será também

prestada nos hospitais militares ou militarizados, navios, asilos,

depósitos e quaisquer formações ou estabelecimentos, no país ou fora

dele, onde haja doentes, feridos, mutilados ou repatriados de guerra»32.

Como se processou a atuação dos capelães na frente? Nos primeiros tempos

foi muito complicada, uma vez que eram vistos com desconfiança. Apenas estavam

autorizados a prestar assistência quando a mesma fosse solicitada. À chegada a Aire

sur la Lys, primeira sede do Quartel-general português, os capelães colocaram à porta

da igreja informação sobre o horário das celebrações. Apenas estavam a fazer algo

semelhante ao que viam os ingleses fazer. O comandante do CEP recebeu logo um

telegrama do governo a informar que eram proibidos atos de propaganda religiosa e

que os prevaricadores deveriam ser repatriados33.

Os funerais de militares eram momentos em que as palavras dos capelães

eram escutadas com atenção por livres-pensadores. Muitas vezes as exortações dos

padres eram consideradas como ações de propaganda. Uma circular de 13 de julho de

1917, assinada pelo Chefe do Estado-Maior do CEP, colocava diversas restrições aos

movimentos dos capelães, definindo que os mesmos deveriam permanecer junto do

comando superior deslocando-se até às tropas apenas quando a sua presença fosse

solicitada. Esta circular provocou mal-estar entre os capelães, uma vez que os impedia

de estar junto das tropas, no dia-a-dia. No entanto, a sua reação foi de acatarem as

29 Maria Lúcia Moura, Nas trincheiras da Flandres..., pp. 99-92.30 Diário do Governo, I série, nº 142 de 28 de junho de 1918, pp. 1013-1014.31 http://www.momentosdehistoria.com/MH_05_03_04_Exercito.htm.32 Diário do Governo, I série, nº 142 de 28 de junho de 1918, p. 1014.33 Maria Lúcia Moura, Nas trincheiras da Flandres..., pp. 54-55.

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205

determinações da ordem de serviço, evitando assim que a sua presença no CEP fosse

posta em causa34.

Outra situação que revela bem os obstáculos colocados à ação dos capelães

foi a proibição de envio de determinados livros, oferecidos pela Comissão Central

de Assistência Religiosa em Campanha. Uma ordem dos Serviços Postais Militares

determinava o seguinte:

Ordem Serviço SPM, nº 49, de 27 de Agosto de 1917,

Por ordem de Sua Ex.ª o General [Tamagnini de Abreu], em virtude do

determinado por sua Ex.ª o Ministro da Guerra [Norton de Matos], as

forças que fazem parte do CEP não podem receber os seguintes livros:

O livro do Soldado Português, pelo Padre José Lourenço de Matos;

O Manual do Soldado Português, adotado pela Comissão Central de

Assistência Religiosa em Campanha.

Porque o primeiro contém doutrina contra as Instituições vigentes e

à Constituição Política da República e o segundo porque o seu título

quase indica que todos os soldados portugueses são católicos o que

não é verdade. V.Ex.ª aprenderá e remeterá a esta secretaria [Quartel-

-general do CEP] todos os exemplares que aí deem entrada.35

Pelo menos em relação a um dos livros, O Manual do Soldado Português, a

Comissão Central de Assistência Religiosa em Campanha encontrou uma solução.

Alterou o título para O Manual do Soldado Português Católico. Nos livros já impressos,

colocava-se um carimbo com a palavra acrescentada36.

Com o passar do tempo, a situação foi-se alterando e os capelães começaram

a ser aceites mesmo por aqueles que eram os mais fervorosos opositores à sua

presença. Para tal terá contribuído a atitude dos próprios padres, que evitaram reagir

aos tratamentos menos próprios a que eram por vezes sujeitos. Mas também foi muito

importante o contacto com os militares estrangeiros. Os Ingleses pediam às autoridades

militares portuguesas o envio de um sacerdote, sempre que um militar português era

hospitalizado. Os livres-pensadores mais radicais perceberam que a França republicana

não era um país do qual se tinham banido todas as “crenças obscurantistas”, facto que

levou muitos a moderar a sua atitude anticatólica. Era comum encontrar representações

de Cristo crucifixado à beira das estradas, sendo objeto de veneração por muita gente.

Acontecia por diversas vezes essas figuras estarem intactas no meio de terrenos

totalmente destruídos por bombardeamentos, o que levava muitos a acreditar que tal

apenas foi possível graças a um milagre37.

34 Ibidem, pp. 57-58.35 http://www.momentosdehistoria.com/MH_05_03_04_Exercito.htm.36 Maria Lúcia Moura, Nas trincheiras da Flandres..., p. 59.37 Ibidem, pp. 59-60.

Assistência Religiosa em Portugal na Grande Guerra

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206 Actas do Colóquio Internacional “A Grande Guerra: Um Século Depois”

O Corpo de Capelães afirmou-se no terreno, através da celebração de

missas, que por vezes incluíam elementos da população local. Eram particularmente

importantes as missas realizadas antes da partida dos batalhões para as trincheiras,

onde o perigo de morte era elevado. Nessas circunstâncias realizavam-se celebrações

coletivas envolvendo milhares de soldados, sendo concedida uma absolvição geral,

nos casos em que era impossível ouvir todos os militares em confissão individual. Os

soldados deixaram de ter vergonha de demonstrar a sua fé e passou a ser comum

encontrar objetos piedosos nas unidades que se deslocavam para a frente38.

Obviamente que os sacerdotes tinham um papel importante na realização de

funerais, sempre que o militar tinha demonstrado o desejo de ter um funeral católico.

Aliás, esta foi a situação vivida nos primeiros tempos, em que vários comandantes

das unidades militares determinaram que os militares que desejassem ter um funeral

católico deveriam declarar isso mesmo. Tendo-se verificado que praticamente todos

os desejavam, a situação inverteu-se e apenas não era feito no caso dos militares que

declarassem expressamente que não o queriam39.

Outra vertente onde os capelães se distinguiram foi na ocupação dos tempos

livres dos soldados que ficavam de reserva na retaguarda. Nos primeiros tempos, esses

tempos livres eram ocupados nos chamados estaminets, estabelecimentos comerciais

geridos pelos habitantes locais. Os militares de outros países já contavam com

estruturas que proporcionavam atividades para esses tempos de lazer, nomeadamente

os pavilhões do Triângulo Vermelho (protestante). Provavelmente esta associação

serviu de modelo à Casa do Soldado, espaço organizado pelos capelães, para que os

soldados portugueses pudessem ter um local de convívio. A primeira destas casas foi

inaugurada em outubro de 1917, em Laventie, recebendo a designação de Casa de

Recreio da 3º Brigada de Infantaria. As instalações proporcionavam um espaço onde

os soldados tinham aos seu dispor livros e jornais, podiam praticar “jogos honestos”,

como damas, dominó, entre outros, e comprar artigos essenciais, a preços módicos.

Existiam instrumentos musicais que podiam ser usados por aqueles que frequentavam

os espaços40.

A presença de capelães junto dos soldados tornou-se algo comum e aceite

pelas chefias. Eles passaram a acompanhar as tropas onde consideravam que era

mais necessária a sua presença. Como resultado desta atividade, os capelães que

integraram o CEP acabaram por estar envolvidos em situações bastante complexas,

muitas delas em combate, debaixo de fogo. Quando ocorreu a batalha de La Lys,

praticamente todos os capelães que se encontravam em França estavam na linha da

frente. A 1ª Divisão portuguesa tinha sido rendida pela 2ª Divisão, alguns dias antes

do fatídico 9 de abril. Uma vez que vários padres tinham regressado a Portugal por

razões diversas, nomeadamente de saúde, D. José do Patrocínio pediu àqueles que

38 Ibidem, pp. 66-68.39 Ibidem, p. 58.40 Ibidem, pp. 75-77.

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integravam a 1ª Divisão que não retirassem com ela para a retaguarda, reforçando

assim o apoio à 2ª Divisão, na linha da frente. Apenas estava na retaguarda o padre

Tavares de Pina, embora contrariado41.

A atuação dos capelães foi merecedora dos mais rasgados elogios. O Corpo de

Capelães recebeu um louvor coletivo, abrangendo todos os padres que o integravam.

Além deste, foram atribuídos diversos louvores individuais e condecorações, pela ação

dos sacerdotes em combate. Além das suas funções, eles foram também enfermeiros,

psicólogos, estafetas e nalgumas situações assumiram inclusivamente o comando de

grupos de homens desorientados com a confusão gerada pela ofensiva alemã42.

Segue a listagem das condecorações atribuídas aos diferentes sacerdotes. De

realçar que se trata de algumas das mais altas distinções concedidas a militares:

• Ângelo Pereira Ramalheira

• Cruz de Guerra de 4ª Classe

• Manuel Caetano

• Cruz de Guerra de 2ª Classe

• Cavaleiro da Ordem de Cristo com palma

• José Manuel de Sousa

• Oficial da Ordem de Cristo com palma

• Luís Lopes de Melo

• Cruz de Guerra de 2ª Classe

• Cavaleiro da Torre e Espada, de Valor, Lealdade e Mérito

• José do Patrocínio Dias

• Cruz de Guerra de 2ª Classe

• Medalha de Prata da Classe de Bons Serviços em Campanha

• Álvaro Augusto dos Santos

• Oficial da Ordem de Cristo com palma43

Foram ainda distinguidos dois capelães que não se encontravam em La Lys no

dia 9 de abril de 1918. O padre Jacinto de Almeida Mota, que estava embarcado, a

acompanhar feridos, recebeu a medalha de prata – letra C, pela sua atuação quando se

encontrava na frente, e o padre António Rebelo dos Anjos foi feito Cavaleiro da Ordem de

Cristo, pelo apoio aos militares da 6ª Brigada, por ocasião de duros bombardeamentos

que a mesma sofreu44.

41 Ibidem, pp. 80-81.42 Ibidem, p. 81.43 Ibidem, pp. 82-84.44 Ibidem, p. 84.

Assistência Religiosa em Portugal na Grande Guerra

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208 Actas do Colóquio Internacional “A Grande Guerra: Um Século Depois”

Vale a pena transcrever parte do louvor atribuído ao padre Luís Lopes de Melo,

que viria a receber a mais alta condecoração militar portuguesa, a Torre e Espada, de

Valor, Lealdade e Mérito:

[…] que demonstrou por ocasião do bombardeamento da ambulância

1; pela decisão e iniciativa como nos dias 9, 10, 11, e 12 de Abril se

manteve na frente, percorrendo as estradas em busca de feridos e

conduzindo-os às ambulâncias e ainda pelo denodado esforço com

que contribuiu para o salvamento do material hospitalar. Ao tentar

pela última vez em 12 de Abril penetrar no Hospital de Sangue n.º 1

foi o carro que o conduzia atingido pelas balas inimigas, mas só retirou

quando teve a certeza de que na frente não existia soldado algum que

precisasse de auxílio [...]45

Conclusão—O que mudou?

Nesta secção conclusiva, procuraremos mostrar como evoluiu a relação entre

o Estado e a Igreja, ao longo da Primeira República. Estamos convictos que existiu uma

relação direta entre o papel dos capelães na guerra e as alterações verificadas nesse

relacionamento entre as autoridades civis e as eclesiásticas. Obviamente que existem

outras variáveis que explicam as mudanças ocorridas. Entre os republicanos existiam

diferentes graus de tolerância em relação à Igreja. Por exemplo, o período em que

Sidónio Pais dirigiu os destinos do país, coincidente com o ano final da guerra, foi de

alguma abertura face à religião. No entanto, o impacto que a guerra teve junto das

famílias portuguesas foi enorme, pois na maior parte delas existiu alguém mobilizado. E

a religião acabou por fazer parte do quotidiano desses milhares de soldados.

A religião era considerada pelos republicanos mais radicais – que tiveram grande

influência nos primeiros governos – como uma das mais importantes causas do atraso

que o país conhecia. Afonso Costa declarou que o regime republicano conseguiria acabar

com a religião, em Portugal, em duas gerações. Em 1911 foi publicada a Lei da Separação,

que equiparava a prática religiosa às restantes atividades de cariz associativo. O texto

do diploma não denotava muita animosidade contra a Igreja católica, procurando

apenas colocar no mesmo nível as diferentes confissões religiosas e separando o civil do

religioso. Contudo, a prática republicana nos primeiros tempos caraterizou-se por uma

verdadeira perseguição ao clero, com nacionalização de muitos bens da Igreja, expulsão

dos Jesuítas e prisão de muitos sacerdotes.

Era mais ou menos este o espírito que se vivia quando a guerra começou. A noção

de que mais cedo ou mais tarde Portugal viria a estar formalmente envolvido levou a

Igreja católica a mostrar a sua preocupação com a assistência religiosa aos militares que

fossem destacados para a frente de combate. O assunto foi bastante debatido tanto

45 http://www.momentosdehistoria.com/MH_05_03_04_Exercito.htm.

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a nível das instâncias políticas como na imprensa. Quando se começou a preparar o

CEP, com destino à frente europeia, foi autorizada a assistência religiosa às tropas. Esta

decisão terá sido influenciada, entre outros fatores, por pressão externa, uma vez que os

exércitos aliados, com os quais Portugal iria cooperar, tinham formas de garantir o apoio

espiritual aos seus militares. No entanto, a legislação que regulamentava a assistência

limitava bastante a ação dos capelães. Os mesmos deveriam ser graduados em alferes,

mas não teriam direito a soldo. Para ultrapassar este obstáculo foram feitas subscrições,

nos meios católicos, conseguindo-se angariar fundos que cobriram todas as despesas

identificadas, tendo apresentado um saldo bastante positivo.

Os primeiros tempos na frente também não foram nada fáceis para os sacerdotes

portugueses. Os seus gestos eram constantemente controlados e apenas poderiam

prestar apoio em situações extremas, ferimentos ou morte, e só aos soldados que o

solicitassem. Mas com o decorrer do tempo a situação alterou-se. Os republicanos

mais radicais perceberam que a religião estava presente no seio das tropas dos países

evoluídos, logo não deveria ser encarada como um sinal de atraso e de obscurantismo.

O número de militares portugueses que assumiram a sua fé foi enorme, pelo que os

comandos perceberam que era importante proporcionar o consolo espiritual às tropas.

A atitude em relação aos capelães foi-se alterando, e eles passaram a poder circular

livremente entre as tropas. A sua presença na frente, nas zonas de combate, implicou

um respeito por parte da generalidade dos militares. No dia mais fatídico para as

tropas portuguesas, 9 de abril de 1918, praticamente todos os capelães que estavam

junto do CEP estavam na frente de combate. Isso valeu-lhes a atribuição de diversas

condecorações assim como um louvor coletivo ao Corpo de Capelães.

A presença da religião no quotidiano pode ser constatada, por exemplo na

obra de Augusto Casimiro: Nas Trincheiras da Flandres. Republicano convicto, Casimiro

escolheu para capa do seu livro uma representação de um soldado a olhar para uma

imagem de Cristo crucificado. E a última frase do livro é de louvor a Deus: “VICTORIAE

DEI LAUDES”.

A atuação dos capelães junto do CEP marcou essa diferença de atitude. Nas

solenes exéquias pelos que tombaram em La Lys, realizadas na Sé Patriarcal de Lisboa, em

15 de maio de 1918, esteve presente o Presidente da República, Sidónio Pais, membros

do governo e do corpo diplomático. Na oração fúnebre, a cargo do Bispo de Portalegre.

D. Manuel Mendes da Conceição Santos, a presença dos governantes mereceu especial

destaque:

E este rejuvenescimento de fé, a que estamos assistindo [...], este

regresso às fontes puras da tradição nacional é ainda [...] obra e mérito

do soldado português. [...] Pela primeira vez, após alguns anos de

amargo isolamento, de torturante equívoco, se veem associados os

altos poderes do estado a uma função religiosa. 46

46 Maria Lúcia Moura, Nas trincheiras da Flandres..., p. 97.

Assistência Religiosa em Portugal na Grande Guerra

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210 Actas do Colóquio Internacional “A Grande Guerra: Um Século Depois”

É verdade que o período em que Sidónio Pais esteve à frente dos destinos da

nação existiu uma tolerância maior em relação ao catolicismo. No entanto, mesmo

depois do assassinato dele não se regressou a uma situação semelhante àquela que se

viveu nos primeiros anos do regime republicano. Em abril de 1921 ocorreu a trasladação

dos Soldados Desconhecidos (um da Flandres e um de África). A mesma foi presidida

por António José de Almeida, Presidente da República. O evento contou com a presença

do chefe do Corpo de Capelães Militares do CEP, Padre José do Patrocínio Dias, o

Bispo-soldado. Este ostentava, com orgulho, as suas condecorações sobre as vestes

eclesiásticas. Na cerimónia assistiu-se a algo impensável alguns anos antes, Afonso

Costa conversando amigavelmente com o Cardeal Patriarca. Esse ambiente de bom

relacionamento foi destacado numa missiva enviada por Domingos Pereira ao Ministro

de Portugal junto da Santa Sé, em 21 de abril de 1921:

Dispensaram o Senhor Presidente da República e o Governo as atenções

devidas ao clero. Tanto na Basílica da Estrela como no mosteiro de Santa

Maria da Vitória, assistimos às cerimónias religiosas. Prestaram-se

todas as homenagens ao Sr. Cardeal Patriarca, que foi, de resto, duma

impecável correção. No banquete oferecido às missões estrangeiras

pelo Senhor Presidente da República, estiveram presentes o Arcebispo

de Mitilene em representação do Cardeal Patriarca, doente, e o Bispo

de Beja. Tornou-se público o entendimento entre o Estado e a Igreja.47

Referências

Manuel Braga da Cruz, “Igreja e Estado – II. Época Moderna”, Carlos Moreira de Azevedo

[Dir.], Dicionário de História Religiosa de Portugal. Volume C-I, Lisboa, Círculo de

Leitores, 2000, pp. 401-411.

Ana Teixeira Gaspar, “A Lei da Separação do Estado das Igrejas e as suas implicações no

concelho de Oeiras”. Comunicação apresentada nos IX Encontros de História Local

de Oeiras que decorreu no dia 15 de Outubro de 2010.

Maria Lúcia de Brito Moura, Nas trincheiras da Flandres. Com Deus ou sem Deus, eis a

questão, Lisboa, Edições Colibri, 2010.

José Pedro Paiva, “Igreja e Estado – II. Época Moderna”, Carlos Moreira de Azevedo [Dir.],

Dicionário de História Religiosa de Portugal. Volume C-I, Lisboa, Círculo de Leitores,

2000, pp. 393-401.

José Relvas, Memórias Políticas, vol. I, Terra Livre, Lisboa, 1977.

http://www.momentosdehistoria.com/MH_05_03_04_Exercito.htm consultado em 26 de

dezembro de 2014.

47 http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/a-guerra-e-o-sagrado-1666428.

Page 19: Assistência Religiosa em Portugal na Grande Guerra · 194 Actas do Colóquio Internacional “A Grande Guerra: Um Século Depois” como se iniciou o processo de assistência religiosa

211

http://www.portugal1914.org/portal/pt/historia/a-guerra-1914-1918/item/6904-corpo-

de-capelaes-voluntarios consultado em 26 de dezembro de 2014.

http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/a-guerra-e-o-sagrado-1666428 consultado

em 26 de dezembro de 2014.

Assistência Religiosa em Portugal na Grande Guerra