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  • Consultoria Legislativa do Senado FederalCOORDENAO DE ESTUDOS

    Cnlgoe

    JUDICIALIZAO DAS POLTICAS DE ASSISTNCIA FARMACUTICA: O CASO DO DISTRITO FEDERAL

    Luiz Carlos Romero

    TEXTOS PARA DISCUSSO 41 ISSN 1983-0645

    Braslia, maio / 2008

    Contato: [email protected]

    Projeto grfico: Llia Alcntara

    O contedo deste trabalho de responsabilidade do autor e no reflete necessariamente a opinio da Consultoria Legislativa do Senado Federal.

    Os trabalhos da srie Textos para Discusso esto disponveis no seguinte endereo eletrnico:http://www.senado.gov.br/conleg/textos_discussao.htm

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    Luiz Carlos Romero

    Resumo Objetivo: Descrever as caractersticas e os efeitos da judicializao da poltica de assistncia farmacutica implementada no Distrito Federal no perodo de 2001 a 2005. Mtodo: Pesquisa documental na base de dados mantida pelo Tribunal de Justia do Distrito Federal (TJDF) dos acrdos julgados por essa corte no perodo citado, referente a aes que pleiteavam o fornecimento de medicamentos, objetivando caracterizar os autores, os rus, a prestao pleiteada e a evoluo e consolidao da jurisprudncia sobre a matria. Resultados: Foram analisados 221 acrdos, na quase totalidade decorrentes de aes impetradas contra o SUS-DF (apenas seis aes o foram contra operadoras de planos de sade). 79% dos autores estavam sendo atendidos em servios pblicos de sade, enquanto 21% tinham tido o medicamento que pleiteavam prescrito por um mdico ou servio de sade particular. At 2001, observa-se a ocorrncia de um nmero pequeno de aes, 88% das quais impetrada por doentes de aids requerendo o fornecimento de antiretrovirais. A partir de 2002, o nmero de aes sofreu um incremento significativo e diversificou-se o tipo de paciente que requer proteo jurisdicional. 50% dos medicamentos pleiteados eram selecionados e deveriam constar dos estoques da Secretaria de Sade. Em relao natureza, predominaram as aes cominatrias e os mandados de segurana (60% do total). Todos os pleitos foram concedidos. Concluses: A judicializao da poltica de assistncia farmacutica no DF se inicia com aes por medicamentos antiretrovirais, impetradas por pacientes de aids contra o SUS-DF, nos anos finais da dcada passada, cujo julgamento conformou a jurisprudncia sobre a matria, que se consolidou no perodo estudado. A partir de 2001, ela alcanou um numero crescente e diversificado de medicamentos incluindo, principalmente, aqueles para a ateno bsica e de mdia complexidade. A poltica de assistncia farmacutica implementada pelo sistema pblico de sade no Distrito Federal foi profundamente afetada, nos primeiros anos da dcada, pela interveno do Poder Judicirio. As principais alteraes promovidas consistiram na ampliao de cobertura; na redefinio de prioridades em decorrncia do necessrio remanejamento de recursos para atendimento das demandas judiciais; e na limitao da adoo e do emprego

    Mdico sanitarista, Consultor Legislativo do Senado Federal. [email protected].

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    de determinados instrumentos e processos tcnicos como a seleo/padronizao de medicamentos e a adoo de protocolos clnico-teraputicos, entendidos pelos julgadores como meras tratativas burocratizantes. A insuficincia da ateno sade prestada no mbito do SUS-DF no perodo estudado e no apenas da assistncia farmacutica , provavelmente, importante fator explicativo do aumento das demandas judiciais. No foi possvel fazer avaliao do impacto financeiro da judicializao nas contas do GDF devido inexistncia de dados, o que refora o quadro de baixa qualidade gerencial. Palavras-chaves: Judicializao, assistncia farmacutica, medicamentos, Poder Judicirio.

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    Introduo Poltica de assistncia farmacutica no Brasil a partir da segunda metade da dcada de 1990

    As polticas de medicamentos e de assistncia farmacutica do Pas passaram por significativas mudanas na segunda metade da dcada de 1990.

    Em 1996 foram aprovadas a Lei de Propriedade Industrial por meio da qual o Pas passou a reconhecer a proteo de patentes de produtos e processos farmacuticos e a Lei Sarney da Aids que determinou que os portadores do HIV e doentes de aids recebessem, gratuitamente, do Sistema nico de Sade (SUS), toda a medicao necessria a seu tratamento. No ano seguinte, a Central de Medicamentos (CEME) foi extinta e criado o Programa de Farmcia Bsica, substitudo, em 1998, pela instituio de uma Poltica Nacional de Medicamentos e a criao de uma secretaria, na estrutura do Ministrio da Sade, para gerenciar a assistncia farmacutica no mbito do SUS. Por fim, em 1999, foi instituda a poltica de incentivo ao medicamento genrico.

    Para substituir a atuao da Ceme, o Ministrio da Sade criou, inicialmente, o Programa de Farmcia Bsica, que se caracterizava pela aquisio centralizada e distribuio a estados e municpios do denominado Kit de Farmcia Bsica, composto por cerca de quarenta medicamentos. O programa foi reformulado, em 1998, com alterao de enfoque e de cobertura: passou a executar-se em um nmero maior de municpios antes alcanava apenas municpios com at vinte mil habitantes e sob uma diretriz de descentralizao. Mas no durou.

    Em 1998 foi elaborada e entrou em vigor a Poltica Nacional de Medicamentos, instituda como instrumento norteador das aes do Ministrio da Sade no campo da poltica de medicamentos do setor pblico, estruturando a assistncia farmacutica no mbito do Ministrio da Sade e do SUS.

    A nova poltica implementada pela administrao do Ministrio da Sade com o apoio dos secretrios de sade fundamentava-se na descentralizao da atividade, atribuindo ao Ministrio funes de definir polticas e incentivar a pesquisa, enquanto a aquisio e distribuio de medicamentos passaram a ser responsabilidades dos gestores estaduais e municipais do SUS. O financiamento da ao passa a ser compartilhado entre os trs nveis de gesto.

    A assistncia farmacutica no mbito do SUS foi organizada em quatro segmentos: a Assistncia Farmacutica Bsica; os Medicamentos Estratgicos; os Medicamentos de Dispensao em Carter Excepcional; os Medicamentos de Sade Mental.

    A Assistncia Farmacutica Bsica estava voltada para a ateno bsica e foi implementada por meio do Programa de Incentivo Assistncia Farmacutica Bsica, que consistia na transferncia de recursos federais a estados e municpios que aderissem a ele e se habilitassem junto ao Ministrio, aportando contrapartidas financeiras e infra-estrutura material e de recursos humanos, para a compra descentralizada de medicamentos especficos, relacionados na Relao Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME). O elenco mnimo de medicamentos a serem obrigatoriamente disponibilizados pelo programa foi definido e pactuado entre o Ministrio e as secretarias de sade entre maro de 1999 e agosto de 2000, com base em critrios epidemiolgicos. Em dezembro de 1999, 98,5% dos

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    municpios estavam habilitados e executando o Programa de Assistncia Farmacutica Bsica.

    Os medicamentos estratgicos (utilizados para o tratamento de doenas de perfil endmico, como tuberculose, aids, malria, diabetes etc. estratgicos no contexto da Poltica Nacional de Sade) mantiveram sua aquisio centralizada no Ministrio da Sade, sendo repassados aos estados e municpios, conforme suas necessidades.

    Os medicamentos de dispensao em carter excepcional (aqueles de alto custo, utilizados para o tratamento de doenas neurolgicas, auto-imunes, hepatites e outras, alm dos usados pelos pacientes transplantados) e os medicamentos de sade mental tinham uma linha especfica de financiamento, por meio do repasse de recursos financeiros do Ministrio da Sade para os estados e municpios, que utilizavam esses recursos para adquirirem e distriburem esses medicamentos de acordo com as necessidades da populao. Tambm no caso desses dois tipos de medicamentos, era exigida contrapartida financeira dos estados e municpios. No ano de 2002, duas portarias atualizaram a relao de medicamentos de dispensao em carter excepcional.

    Uma repercusso imediata da nova poltica foi a ampliao de recursos financeiros destinados atividade. No nvel federal, os gastos da Unio com assistncia farmacutica passaram de 230,7 milhes de reais, em 1996, para 925 milhes de reais, em 1999 um crescimento de quatro vezes. O Ministrio da Sade investiu 2,3 bilhes de reais em assistncia farmacutica, entre 1996 e 1999.

    Na composio dos gastos, evidencia-se que os medicamentos estratgicos corresponderam a 66% do total em 1999, enquanto o gasto com assistncia farmacutica bsica correspondeu a 13,4%. S em medicamentos para a aids, o Ministrio gastou, em 1999, 486,6 milhes de dlares, ou seja, o correspondente a 52,6% do total de gastos com assistncia farmacutica e a quatro vezes o que despendeu com assistncia farmacutica bsica.

    De 2000 em diante, manteve-se a ampliao dos gastos do Ministrio da Sade com assistncia farmacutica, em que pese o forte constrangimento econmico por que passou o SUS, a um crescimento mdio real de 21% ao ano, chegando-se a 2006 com um gasto federal da ordem de R$ 3,2 bilhes (Tabela 1).

    Tabela 1 Despesa da Unio (em bilhes de Reais de 2006) com medicamentos. 2001 a 2006.

    Ano Valor empenhado ndice Real Variao (%) anual 2001 1.255 100 ... 2002 1438 115 14,6 2003 1.688 135 17,4 2004 2.429 194 43,9 2005 2.657 212 9,4 2006 3.243 258 22,0

    Fonte: SIAFI. Sistema Siga Brasil. Senado Federal. Elaborado pelo autor

    Nesse contexto, os gastos com medicamentos de dispensao em carter excepcional dispararam, tanto percentual quanto nominalmente. Mantidos, no perodo de 1999 a 2004, entre 15 e 25% do total de gastos federais totais com medicamentos, alcanaram 35,3% em 2005. Uma ampliao de dimenso similar (38,8% de aumento) ocorreu com os gastos das secretarias estaduais de sade com essa categoria de medicamentos. (CONASS, 2006)

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    A Tabela 2 ilustra a forte descentralizao da assistncia farmacutica no mbito do SUS a partir de 2003. Em 2001, 72% da despesa federal nessa rea era feita diretamente pela Unio; em 2006, esse percentual havia cado para 38%, com os estados e municpios passando a receber substanciais transferncias federais, s quais tiveram de somar recursos prprios. Infelizmente, as contas dos estados, do Distrito Federal e dos municpios no so suficientemente transparentes para indicar seus gastos com medicamentos.

    Tabela 2 Despesas da Unio com medicamentos (em milhes de reais) segundo a modalidade de aplicao dos recursos. 2001 a 2006.

    Aplicaes diretas e reserva de contingncia

    Transferncias a estados e

    municpios Outras Total Ano

    R$ % R$ % R$ % R$ % 2001 600 71,9 234 28,1 - - 834 100,0 2002 764 73,3 278 26,7 - - 1.042 100,0 2003 644 44,0 819 56,0 1 0,0 1.463 100,0 2004 1.070 48,1 1.138 51,2 15 0,7 2.224 100,0 2005 1.193 46,1 1.377 53,3 15 0,6 2.585 100,0 2006 1.242 38,3 1.991 61,4 10 0,3 3.243 100,0

    Fonte: SIAFI. Sistema Siga Brasil. Senado Federal. Elaborado pelo autor

    Outra transformao importante a diversificao da atividade refletida nos gastos segundo a categoria teraputica dos medicamentos adquiridos pela Unio. Em 2001, 62% dos gastos federais correspondiam aquisio de antiretrovirais (medicamentos para DST/aids). Essa proporo reduziu-se significativamente, em especial a partir de 2003, de tal forma que, em 2006, mais de 70% dos gastos eram destinados a outros medicamentos. (Tabela 3)

    Tabela 3 Despesa da Unio com medicamentos (em milhes de reais correntes) segundo a categoria teraputica dos medicamentos. 2001-2006.

    DST/aids Outros Total Ano R$ % R$ % R$ %

    2001 515 61,8 318 38,2 834 100,0 2002 612 58,7 430 41,3 1.042 100,0 2003 551 37,7 912 62,3 1.463 100,0 2004 564 25,4 1.660 74,6 2.224 100,0 2005 550 21,3 2.035 78,7 2.585 100,0 2006 950 29,3 2.292 70,7 3.243 100,0

    Fonte: SIAFI. Sistema Siga Brasil. Senado Federal. Elaborado pelo autor

    Os ltimos anos da dcada passada constituram, assim, um divisor de guas na Poltica de Medicamentos e na rea de assistncia farmacutica pblica que, apesar da restrio oramentria pela qual passou o setor sade, tiveram ampliados substancialmente os recursos a disposio de seu financiamento, o que permitiu sua diversificao, aumento de cobertura inclusive a universalizao dos antiretrovirais e avano no processo de descentralizao. Essas tendncias se consolidaram nos seis anos seguintes.

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    A judicializao da poltica de assistncia farmacutica A nova poltica e a ampliao de seu financiamento no foram, no entanto, suficientes

    para a ampliao necessria do acesso ao medicamento, pelo menos no mbito do SUS. Em decorrncia, no incio da dcada atual, observou-se o crescimento de um fenmeno que, se no era novo, ao menos no tinha a intensidade que tomou: a judicializao da poltica de assistncia farmacutica. Uma onda de decises judiciais determinando a dispensao de medicamentos passou a desorganizar o setor e as finanas pblicas (CARVALHO, 2007), com uma intensidade jamais vista.

    Um estudo da sua ocorrncia no Estado do Rio de Janeiro no perodo de 1991 a 2002 evidenciou a existncia de mandados judiciais impetrados contra o estado e os municpios com vistas obteno de assistncia farmacutica em todos os anos estudados. No entanto, a partir de 1999 o crescimento do nmero desses mandados tornou-se exponencial. A maior parte dessas aes tinha como autores usurios do SUS e referia-se a medicamentos de uso contnuo e de ateno bsica. O estudo concluiu, entre outras coisas, que municpios e o estado no cumpriam integralmente suas responsabilidades quanto assistncia farmacutica, e que a excessiva judicializao decorrente gerava desgastes nas relaes entre os Poderes Executivo e Judicirio e desvio de recursos da execuo de aes programadas, no mbito da ateno coletiva. (MESSEDER, 2005)

    Em 2003, o Conselho Nacional de Secretrios de Sade (CONASS) informava, em publicao prpria, que o significativo nmero de mandados judiciais que demandam o fornecimento de medicamentos de dispensao em carter excepcional tem sido motivo de preocupao constante dos secretrios estaduais de sade. So dessa poca, tambm, as primeiras tentativas para equacionar o problema, por meio da aproximao entre gestores do SUS e juzes. Na poca, o Conass oficiou a todos os presidentes de tribunais de justia e procuradores-gerais de justia dos estados sobre a utilizao de protocolos clnicos e diretrizes teraputicas para orientar a deciso judicial quando das demandas judiciais por medicamentos de dispensao em carter excepcional. (CONASS, 2004, a)

    Entre 2002 e 2003, os recursos gastos pelos estados e o Distrito Federal com medicamentos de dispensao em carter excepcional triplicaram, alcanando a soma de um bilho de reais, em 2003. Um seminrio convocado para tratar da questo reconheceu a desorganizao que as aes judiciais causam no sistema. (CONASS, 2005) Em abril de 2004, novamente, o Conass manifestava que demandas judiciais por medicamentos excepcionais (...) representam, atualmente, uma das questes mais preocupantes para os gestores estaduais. (CONASS, 2004, a)

    Em outubro de 2004, o Tribunal de Contas da Unio, em auditoria realizada em vrias unidades federadas, entre junho e setembro de 2004, com o objetivo de avaliar o desempenho da Ao Assistncia Farmacutica para Aquisio e Distribuio de Medicamentos de Dispensao em Carter Excepcional, reconheceu que estados e o Ministrio da Sade tm enfrentado um crescente nmero de demandas judiciais para o fornecimento de medicamentos excepcionais, especialmente no binio 2003-2004, e que esse tem sido um dos principais problemas da rea, podendo mesmo vir a inviabiliz-la, caso se mantenha o formato atual e no se reverta a situao. (TCU, 2005)

    Um estudo do fenmeno no Municpio de So Paulo, no ano de 2005, mostrou que, naquele ano, foram impetradas 107 aes contra o poder pblico municipal, que resultaram

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    em um gasto extra de 876 mil reais. interessante verificar que a grande maioria dos medicamentos demandados era de ateno bsica (para diabetes, cncer, hipertenso, osteroporose) e se encontravam nas listagens adotadas pela secretaria municipal de sade. Em mais de 70% dos casos os pacientes demandantes tinha sido atendidos em um servio do SUS prprio, na maior parte dos casos , onde no receberam os medicamentos de que necessitavam. (VIEIRA, 2007)

    Atualmente, os governos federal, estaduais e municipais gestores do SUS sofrem uma avalanche de ordens judiciais determinando a dispensao de medicamentos, o que gera efeitos negativos, especialmente sobre o gerenciamento da assistncia farmacutica nos estados e sobre os seus benefcios diretos, como a interrupo do tratamento de pacientes regulares em razo da transferncia de medicamentos em estoque que lhes seriam destinados para pacientes beneficiados por determinao judicial (TCU, 2005). Essas decises da Justia comprometem, assim, a dispensao regular, o atendimento de prioridades definidas e a implementao das polticas de assistncia farmacutica aprovadas, j que os gestores precisam remanejar recursos vultosos para atender situaes isoladas.

    H evidncias, ademais, de que a oficializao de prticas prescritivas que no incluem medicamentos selecionados (das listagens oficiais), sem registro no Pas, sem comprovao de eficcia e que poderiam ser substitudos por outros de menor preo, compromete o uso racional de medicamentos. (MESSEDER, 2005; VIEIRA, 2007)

    As explicaes para a judicializao da poltica pblica de assistncia farmacutica dos ltimos anos no esto suficientemente esclarecidas, mas certamente dois fatores esto associados na sua produo: a insuficincia da assistncia farmacutica prestada tanto no mbito do SUS como no dos planos de sade e o crescimento do reconhecimento do direito sade e, no seu mbito, ao acesso ao medicamento, por parte de segmentos cada vez maiores da nossa populao.

    A insuficincia de cobertura a medicamentos nos dois sistemas o pblico e o privado demonstrada por estudos recentes de gastos familiares com sade que mostram que as despesas com medicamentos so, em volume, os mais importantes dispndios com sade das famlias brasileiras, superando, inclusive, os gastos com mensalidades de planos de sade e pagamento por consultas, exames, internaes, rteses e prteses (OMS, 2006 [referente a informaes de 2003]; IBGE, 2003; FIOCRUZ, 2004). Entre os segmentos populacionais de menor renda, o comprometimento da renda familiar com a compra direta de medicamentos ainda maior (IBGE, 2003). Corroborando essa afirmao, a rea de assistncia farmacutica do Ministrio da Sade informava, s vsperas da 1 Conferncia Nacional de Medicamentos e Assistncia Farmacutica de 2005, que 80% dos medicamentos dispensados no Pas o eram por uma farmcia comercial sob a forma de compra direta pelo paciente-consumidor. (MINISTRIO DA SADE, 2005)

    Como os planos de sade esto isentados, por lei, de dar cobertura a medicamentos utilizados por seus beneficirios em tratamentos domiciliares e ambulatoriais, a necessidade de rever essa regulamentao tem sido objeto de recomendaes reiteradas e no implementadas pelo legislativo federal, entre as quais se destaca o relatrio da comisso parlamentar de inqurito realizada pela Cmara dos Deputados em 2003. (CMARA DOS DEPUTATOS, 2003)

    O principal componente do problema parece estar no fato de que uma significativa proporo das secretarias estaduais e municipais de sade no dispe de desenvolvimento institucional e organizacional suficiente para dar conta das novas atribuies que a atual

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    poltica de assistncia farmacutica lhes atribui. Dificuldades gerenciais ficaram claras logo aps descentralizao de 1998 e as alteraes promovidas no Programa de Medicamentos Excepcionais em 2002: a grande maioria delas no possuam e no possuem, at o momento, estruturas operacional, logstica e de atendimento para suportarem o crescimento da demanda. (TCU, 2005) Para piorar a situao, uma significativa proporo das secretarias estaduais e municipais de sade no cumpre o mnimo de investimentos obrigatrios em sade determinados pela Constituio, no investe em assistncia farmacutica e no cumpre as responsabilidades assumidas nas instncias de pactuao (comisses intergestores). (RELATRIO, 2007)

    No so raras as secretarias que no contam com farmacuticos nos seus quadros inclusive porque seus planos de cargos no os prevem , entregando a gesto de seus programas de assistncia farmacutica a pessoas despreparadas e a guarda dos medicamentos que adquirem ou recebem por repasse a almoxarifes. Da mesma forma no incomum a insuficincia ou inadequao de farmcias, depsitos, meios de transporte e controle de estoques de medicamentos, nas redes estaduais e municipais, disso resultando ineficincia nos controles de estoques, condies inadequadas de armazenamento e, em decorrncia, perdas e carncias recorrentes. (CONTROLADORIA GERAL DA UNIO, 2005)

    A falta de cumprimento dos acordos pactuados entre Unio, estados e municpios e o desvio ou no aplicao, por estes, de recursos federais destinados assistncia farmacutica evidenciada pelos nmeros da Controladoria Geral da Unio: entre janeiro e junho de 2004, por exemplo, em apenas cinco estados auditados (AM, MG, MS, SC e RN), foi encontrada uma diferena de 13,3 milhes de reais entre o que eles receberam do governo federal para adquirir medicamentos e o que foi efetivamente dispensado aos pacientes. (CONTROLADORIA GERAL DA UNIO, 2005)

    O resultado disso o quadro severo de desabastecimento de medicamentos nas redes de servios do SUS, conforme mostram os resultados de pesquisa realizada em 2002, pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, com o apoio do Ncleo de Estudos de Sade Pblica da Universidade de Braslia, em uma amostra de onze cidades. Segundo o levantamento, a mdia nacional de disponibilidade de medicamentos indispensveis para a ateno primria segundo a Rename era de apenas 55,4% e, em 42,5% dos servios visitados, no foi encontrado nenhum farmacutico. (RELATRIO, 2007) O desabastecimento tambm uma constatao dos estudos sob a judicializao da poltica realizados em So Paulo e no Rio de Janeiro (MESSEDER, 2005; MARQUES, 2007; VIEIRA, 2007).

    Sem acesso aos medicamentos de que necessitam, resta aos pacientes os do SUS e os dos planos a via judicial.

    A judicializao de polticas no Brasil A situao de ascenso institucional do Poder Judicirio na proteo dos direitos

    individuais e coletivos e no controle de polticas pblicas e da atuao dos poderes constitudos um fenmeno descrito em diversas sociedades contemporneas, como decorrente do aprofundamento do processo democrtico e de redefinio da relao entre os trs poderes. (TATE & VALLINDER, 1995; NUNES JNIOR, 2006; YEPES, 2007)

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    Ele entendido como decorrncia natural do surgimento do chamado Estado Social que incorporou promessas e compromissos de vulto nas cartas constitucionais o que aumentou a presso, e, no seu bojo, a demanda judicial pela concretizao dos novos direitos de cidadania constitucionalizados. (SOUZA JNIOR, 2004)

    Na opinio de Souza Jnior, o controle judicial oferece a possibilidade de que as minorias, sem acesso formal ou real ao centro do poder deliberativo, possam, vislumbrando alguma afronta ao ordenamento constitucional, influir, por via oblqua, no processo poltico, retirando-as da posio marginal a que rotineiramente so relegadas. Nesse sentido, a atuao do Judicirio na soluo de questes como a concretizao de direitos no s democraticamente legtima como tambm democraticamente imprescindvel. (SOUZA JNIOR, 2004)

    A opinio, no entanto, no unnime: para outros autores, a judicializao das polticas e a sobreposio das decises judiciais e do arcabouo normativo a opes polticas representam ao contrrio uma ameaa democracia. (CAMPILONGO, 2002) Para outros, ao lado de suas possibilidades democrticas, a judicializao apresenta riscos, entre os quais a sobrecarga do aparato judicial, o risco elevado de erro judicial em especial em matrias de densidade tcnica e tecnolgica, como o caso da sade e o adiamento de solues polticas. (YEPES, 2007)

    Em nosso Pas, os estudiosos da matria (CASAGRANDE, 2002; SOUZA JNIOR, 2004; NUNES JNIOR, 2006) registram, da mesma forma que em outros pases, a elevao considervel da demanda da sociedade por justia, a partir da promulgao da Constituio de 1988. Eles identificam, no entanto que, no Brasil, alm da reconquista das liberdades democrticas e da cidadania, da ampliao do catlogo de direitos e garantias fundamentais e da correspondente conscientizao das pessoas e dos grupos sociais sobre seus direitos, outro elemento contribuiu decisivamente para a judicializao de polticas pblicas: a introduo de novos e efetivos instrumentos processuais para garantir sua efetividade e a tutela daqueles direitos.

    Dessa forma, no Brasil ps-1988, alm da evoluo do direito de acesso justia ocorreu a instituio de mecanismos assecuratrios do acesso a direitos constitucionais de alguma forma preteridos. (SOUZA JNIOR, 2004) Na opinio de Casagrande, a Constituio de 1988 promoveu no apenas a criao de um amplo sistema de garantias de direitos como uma srie de inovaes processuais a seu servio, somadas indita posio de independncia do Judicirio em relao aos demais poderes. (CASAGRANDE, 2002) Entre esses mecanismos ressalta o alargamento de funes e do mbito de atuao do Ministrio Pblico.

    No campo do direito sade, o texto constitucional de 1988 trouxe considervel inovao ao definir as aes e servios de sade como de relevncia pblica e determinando, assim, a essencialidade de sua prestao para o interesse social. (DELDUQUE, 2006)

    A construo do Sistema nico de Sade como mecanismo para assegurar o acesso universal quelas aes e servios e a ateno integral, no entanto, no alcanou, como se viu, todos os aspectos da ateno sade: a assistncia farmacutica permaneceu como um dos aspectos menos institucionalizados e menos universalizados. A insuficincia da assistncia farmacutica prestada tanto pelo SUS como pelos planos de sade foi, assim, um dos motivos pelos quais as pessoas, as associaes de doentes e o prprio Ministrio Pblico optassem

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    pela via judicial para obter acesso ao medicamento como parte do direito constitucional sade.

    Mas esta no a nica causa do fenmeno. So relatadas, entre outras, a atuao inescrupulosa de pessoas, representantes de laboratrios farmacuticos e advogados, que se consorciam para criar mercados para seus produtos ou simplesmente apropriar-se de recursos pblicos. O patrocnio de grupos de defesa de pacientes por grandes corporaes farmacuticas sob o disfarce da constituio de redes de apoio e de programas de informao e educao tem sido objeto de denncia no exterior. (OHARROW, 2000; ANGELL, 2007)

    Em nosso meio, os resultados de um estudo, realizado pelo Conselho Nacional de Secretrios de Sade em dezembro de 2003, dos fatores causadores de demandas judiciais para fornecimento de medicamentos excepcionais nas secretarias estaduais de sade que evidenciou que, respectivamente em 55,6% e 14,8% dos casos, o medicamento envolvido ou no estava em consonncia com os protocolos clnico-teraputicos vigentes ou no estavam disponveis no mercado nacional (CONASS, 2004, b) podem ser um indicativo da ocorrncia desse fato tambm no Brasil.

    Impacto econmico-financeiro da judicializao A efetivao de direitos sociais exige a implementao de polticas pblicas que, por sua vez, demandam gastos pblicos. A experincia de ampliao desses direitos e polticas pela via da judicializao tem mostrado que isso no se faz sem impacto nas finanas pblicas. (WANG, 2007)

    No caso da Colmbia, a judicializao de determinadas polticas pblicas implicou no apenas em um gasto pblico considervel como forou a reorientao de prioridades e estratgias governamentais nos setores atingidos por ela. Em relao especificamente tutela jurisdicional do direito sade, os custos multiplicaram-se por trs, naquele pas, entre 1988 e 1995. (YEPES, 2007)

    Em nosso Pas, existem evidncias de que a judicializao da poltica de assistncia farmacutica tem sido um fator desorganizar das finanas pblicas (CARVALHO, 2007; TCU, 2005) e de desvio de recursos da execuo de aes programadas, no mbito da ateno coletiva. (MESSEDER, 2005; CONASS, 2005)

    Material e Mtodo

    O estudo teve por objetivo caracterizar o processo de judicializao da poltica de assistncia farmacutica ocorrido no Distrito Federal nos ltimos anos, quanto sua evoluo, caractersticas e impacto sobre a materializao dessa poltica.

    Interessava, especialmente, esclarecer se este mecanismo contribuiu para a ampliao da assistncia farmacutica no mbito do Sistema nico de Sade, bem como seu impacto sobre as caractersticas com que ela se executou.

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    uma pesquisa documental na qual foram estudados os acrdos julgados pelo Tribunal de Justia do Distrito Federal (TJDF) nos anos de 2001 a 2005, tratando de acesso a medicamentos, correspondentes a aes iniciadas nos anos de 1997 a 2005.

    Objetivava, ainda, caracterizar o impacto econmico-financeiro das aes judiciais sobre o financiamento da atividade. Este objetivo, no entanto, no foi alcanado na medida em que no foi possvel discriminar, na contabilidade da Secretaria de Sade do DF, informao sobre os gastos realizados pelo Governo do Distrito Federal com medicamentos. Foi impossvel conhecer o volume e a composio do gasto com assistncia farmacutica feita pela Secretaria da Sade no perodo estudado e, menos ainda, a parcela que decorre do atendimento de aes judiciais.1 Resultados

    1. Aes, autores, rus e medicamentos pleiteados Foram identificados 221 acrdos julgados no perodo considerado a partir da base de dados mantida pelo TJDF com acesso por meio da internet.

    A anlise dos teores desses acrdos permite verificar a existncia de um padro mutvel, durante o perodo analisado, das caractersticas do demandante de proteo jurdica, do medicamento demandado e das aes impetradas, bem como a evoluo dos argumentos apresentados por autores e rus, que foram conformando a jurisprudncia daquela corte sobre a matria. Um padro, no entanto, permaneceu imutvel: o provimento de todas as aes a favor do autor-paciente inclusive com antecipao de tutela e concesso de segurana e o no-provimento dos apelos, recursos e agravos do ru pela reforma das sentenas.

    a) Aes Segundo os registros da Assessoria Jurdica e Legislativa da Secretaria de Sade do

    Distrito Federal, o nmero de aes de medicamentos impetradas contra a Secretaria tem sido crescente: 281, em 2003; 378, em 2004; 604, em 2005; e 682, em 2007. Um nmero significativo delas chegou deliberao do Pleno do TJDF, originando os acrdos que foram objeto de anlise.

    Em relao natureza da ao, predominaram as aes cominatrias e os mandados de segurana, que perfazem cerca de 60% do total. Esse padro, no entanto, no constante no tempo: nos anos iniciais do perodo estudado, a maior parte das aes so cautelares e ordinrias, passando a prevalecer as aes cominatrias e os mandados de segurana nos anos finais do perodo. (Tabela 4)

    1 Consultamos a Secretaria da Fazenda do Distrito Federal, o Departamento de Assistncia Farmacutica da Secretaria da Sade e o Ministrio Pblico de Contas do Distrito Federal que informaram no dispor dessas informaes. Em verdade, as contas do Governo do Distrito Federal tm se caracterizado, nos ltimos anos, por ausncia de ao planejada e transparente, nas palavras de recente auditoria do Tribunal de Contas do Distrito Federal. (VAZ, 2007) Ver, tambm, QUANTO CUSTA, AMBr Revista, 2008.

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    Tabela 4 Aes de medicamentos julgadas pelo TJDF, segundo o ano da inicial e a natureza da ao. Distrito Federal, 1997 a 2005.

    Ao \ ano da inicial 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 Cautelar 2 4 3 - 2 - - - - 11 Ordinria - 3 7 7 2 7 3 - - 29 Cominatria - - 3 1 - 15 6 25 15 65 De conhecimento - - - 2 2 4 1 3 - 12 Civil pblica - - - 2 - 2 2 2 - 8 Mandado de segurana - - - - 2 17 3 20 19 61 Outras - - 1 - - - 1 - - 2 Sem informao - - 5 1 2 8 4 9 4 33 Total 2 7 19 13 10 53 20 59 38 221 Fonte: Acrdos TJDF. Elaborado pelo autor.

    b) Autores

    Os autores so, majoritariamente, particulares. Infelizmente, em 80% dos casos no foi possvel identificar o condutor da ao. (Tabelas 5 e 6)

    Tabela 5 Aes de medicamentos julgadas pelo TJDF, segundo a natureza do autor. Distrito Federal, 1997-2005.

    Autor Nmero % Particular 210 95,0 Associao de pacientes 5 2,3 Ministrio Pblico 5 2,3 Sem informao 1 0,4 Total 221 100,0 Fonte: Acrdos TJDF. Elaborado pelo autor.

    Tabela 6 Aes de medicamentos julgadas pelo TJDF, segundo a natureza do condutor da ao. Distrito Federal, 1997-2005.

    Condutor Nmero % Advogado particular 10 4,5 Defensoria Pblica 26 11,8 Ministrio Pblico 9 4,1 Sem informao 176 79,6 Total 221 100,0 Fonte: Acrdos TJDF. Elaborado pelo autor.

    A grande preponderncia de autores individuais representados por advogados particulares foi tambm encontrada por Marques e Dallari (MARQUES, 2007) e por Vieira e Zucchi, em So Paulo (VIEIRA, 2007). Messeder, Castro e Luiza, no entanto, encontraram, no Estado do Rio de Janeiro, entre 1991 e 2002, uma proporo elevada e crescente de aes conduzidas pela defensoria pblica (MESSEDER, 2005), uma tendncia que tambm observamos no Distrito Federal, nos anos finais do perodo estudado.

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    Esse um dado importante para analisar a abrangncia e eqidade do acesso a medicamentos por meio de aes judiciais. Se a grande maioria das aes proposta por particulares, por meio de advogados, isso pressupe que os autores tm condies scio-econmicas suficientemente elevadas para custear uma causa (alm de conexes sociais, grau de escolaridade e discernimento suficientes para conhecer a possibilidade de recurso judicial e decidir-se pelo seu uso). Existe um custo fixo inicial para causas jurdicas com advogados particulares que no acessvel aos mais pobres. Da se poderia pensar em um cenrio de indivduos de renda mais elevada, demandando medicamentos de alto custo (que justifiquem o pagamento de honorrios advocatcios).

    Por outro lado, se houvesse prevalncia de aes conduzidas pela defensoria pblica, isso indicaria a busca de atendimento de direito difuso, em um quadro de no atendimento da populao de baixa renda em seu direito de receber medicao constante nas relaes de medicamentos do SUS, e que deveriam constar dos estoques da Secretaria de Sade.

    Infelizmente, a impreciso dos dados, impedindo identificar o condutor da ao em quase 80% dos casos, no permite avanar nesse aspecto da anlise.

    Em mais de 40% das aes, no possvel identificar o servio em que o autor estava sendo atendido e que lhe prescreveu o medicamento pleiteado. Dentre as situaes em que essa informao conhecida (e excludas as aes contra operadoras de planos de sade), evidencia-se que 79% dos pleiteantes eram pacientes de um servio mantido pelo Estado, a grande maioria dos quais (67%), estava sendo atendida em unidades da rede mantida pelo Governo do Distrito Federal o SUS-DF. Chama a ateno, a proporo significativa de pacientes cuja assistncia mdica estava sendo feita por clnicas privadas ou por mdicos particulares, mas que, ainda assim, pleiteiam que a assistncia farmacutica seja prestada pelo SUS: 21% dos autores em relao aos quais se conhece o servio que os atendia. (Tabela 7)

    Tabela 7 Aes de medicamentos julgadas pelo TJDF, segundo o servio de sade em

    que o autor estava sendo atendido. Distrito Federal, 1997-2005.

    Servio Nmero % Rede da Secretaria de Sade e Fundao Hospitalar do DF 83 37,6 Hospital Universitrio de Braslia 8 3,6 Hospital das Foras Armadas 3 1,3 Hospital Sarah 3 1,3 Policlnica da Polcia Militar 1 0,5 Particular 26 11,8 Plano de sade 6* 2,7 Sem informao 91 41,2 Total 221 100,0 Fonte: Acrdos TJDF. Elaborado pelo autor.

    * Os rus, nesses casos, no so o SUS-DF, mas as operadoras respectivas

    Esses resultados so similares aos encontrados por Vieira e Zucchi, no Municpio de So Paulo, em 2005, (VIEIRA, 2007) e por Messeder, Castro e Luiza, no Estado do Rio de Janeiro, na dcada de 90 (MESSEDER, 2005).

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    c) Rus No plo passivo das aes, est o Sistema nico de Sade do Distrito Federal, representado, principalmente, pelo Governo do Distrito Federal ou pelo Secretrio de Sade do Distrito Federal. Um nmero muito pequeno de aes foi impetrado contra operadoras de planos privados de sade. (Tabela 8)

    Tabela 8- Rus em aes de medicamentos, segundo a natureza, em acrdos julgados

    pelo TJDF nos anos de 2000 a 2005.

    Ru N % Distrito Federal 156 70,7 Secretrio de Sade 52 23,6 Fundao Hospitalar do Distrito Federal 2 0,9 Diretor de Procedimentos de Alta Complexidade da SES 1 0,4 Chefe da Farmcia Central da SES 1 0,4 Diretor de Medicamentos da SES 1 0,4 Diretor do Hospital de Base 1 0,4 Diretor do Hospital Universitrio 1 0,4 Operadoras de plano de sade 6 2,8 Total 221 100,0 Fonte: Acrdos TJDF. Elaborado pelo autor.

    A identificao do ru como o Distrito Federal mais freqente nos anos iniciais da srie estudada e como o Secretrio de Sade, nos anos posteriores. Outras autoridades ligadas ao SUS-DF (diretores das reas de assistncia farmacutica e de procedimentos de alta complexidade, em especial) aparecem raramente no plo passivo das aes. Marques e Dallari encontraram padro similar nas aes de fornecimento de medicamentos do Estado de So Paulo, entre 1997 e 2004 (MARQUES, 2007).

    O argumento de que o Distrito Federal, por meio de seu governo ou da Secretaria de Sade, no constitua plo passivo legtimo da ao foi precoce e insistentemente apresentado pelos rus e sistematicamente recusado pelos julgadores. Apesar disso, em todo o perodo estudado, o GDF e a Secretaria de Sade persistiram em trazer reiteradamente, em suas defesas, recursos e agravos, o argumento de que a competncia da prestao do Ministrio da Sade e no sua, e na necessidade de denunciao da Unio lide.

    O argumento foi rebatido tambm de forma reiterada com base, sempre, nos mesmos elementos: o de que o art. 198 da Constituio Federal instituiu um sistema de sade descentralizado, com direo nica em cada esfera de governo, e a determinao expressa da Lei Orgnica do DF de que da competncia do GDF prestar assistncia social aos necessitados. Voto, proferido em 2004, sintetiza a posio do TJDF que consolidou jurisprudncia a respeito:

    Pelo mesmo fundamento, [] indiscutvel a legitimidade passiva do Distrito Federal, pois, conforme j ressaltado, na manuteno dos servios pblicos de sade, preserva tal ente razovel parcela de sua autonomia administrativa, a qual dever ser utilizada com o fim de atender as necessidades surgidas no mbito do respectivo territrio. (Processo n 2002.01.1.052 740-5, acrdo 191.073, julgado em 22/03/04).

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    d) Medicamentos

    O tipo de patologia que origina a demanda por proteo jurdica para suas necessidades de assistncia farmacutica variou com o tempo e, por essa razo, tambm o grupo teraputico dos medicamentos pleiteados. (Tabela 9)

    Tabela 9 Aes de medicamentos julgadas pelo TJDF, segundo o ano da inicial e o tipo de doena de que o impetrante era portador. Distrito Federal, 1997 a 2005.

    Doena \ ano 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 T Aids 2 7 18 11 7 2 1 4 1 53Dist. crescimento - - 1 - - - 1 2 - 4S. de Gaucher - - - 2 - - - 1 - 3Esclerose mltipla - - - - 1 12 - - - 13Transt. mentais - - - - 1 1 2 4 5 13Cnceres - - - 1 17 5 6 7 36Fibrose cstica - - - - - 1 - - - 1ELA* - - - - - 2 - 1 - 3Das neurolgicas - - - - - 2 2 5 2 11Hepatite C - - - - - 11 4 3 2 20Diabete mellitus - - - - - 1 - 2 - 3S. de Byler - - - - - - 1 - - 1Artropatias - - - - - - - 5 13 18Osteoporose - - - - - - - 10 - 10D de Alzheimer - - - - - - - 2 1 3D de Fabry - - - - - - - 2 - 2S. de Sjgren - - - - - - - 1 - 1Outras - - - - - 2 2 7 4 15Sem informao - - - - - 2 2 4 3 11Total 2 7 19 13 10 53 20 59 38 221Fonte: Acrdos TJDF. Elaborado pelo autor.

    *ELA = esclerose lateral amiotrfica

    Em 94,5% dos acrdos estudados foi possvel identificar o medicamento pleiteado. Do total de 277 medicamentos identificados, cerca de 60% o eram pelo nome genrico ou denominao comum brasileira (DCB); 40%, pelo nome de marca e o restante pelo grupo teraputico. (Tabela 10)

    Tabela 10 Medicamentos objeto de aes judiciais julgadas pelo TJDF, segundo a forma de identificao. Distrito Federal, 1997 a 2005.

    Identificao Nmero % Nome genrico (DCB/DCI) 162 58,5 Nome de marca 111 40,1 Grupo teraputico 4 1,4 Total 277 100,0 Fonte: Acrdos TJDF. Elaborado pelo autor.

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    A anlise dos medicamentos pleiteados segundo o grupo teraputico (Tabela 11) permite verificar que, ainda que mais de 60% das aes se concentrem em apenas quatro grupos, elas abrangem uma grande variedade deles.

    Tabela 11 Medicamentos objeto de aes judiciais julgadas pelo TJDF, segundo o grupo teraputico. Distrito Federal, 1997 a 2005.

    Medicamentos Aes Grupo teraputico N % N %

    Antiretrovirais (ARV) 15 13,0 74 25,6 Antineoplsicos e coadjuvantes 20 17,2 41 14,0 Atuao sobre o sistema nervoso central 19 16,4 34 11,6 Antivirais [exclusive ARV] 4 3,4 32 10,9 Atuao sobre o aparelho osteoarticular 6 5,2 28 9,6 Esclerose mltipla e esclerose lat. amiotrfica 3 2,6 16 5,5 Doenas raras (Gaucher, Byler, Fabry, Sjgren) 4 3,4 11 3,7 Atuao sobre os sist. endcrino e reprodutor 6 5,2 10 3,4 Atuao sobre o sistema cardiovascular 5 4,3 6 2,0 Atuao sobre o sistema digestivo 4 3,4 5 1,7 Antibacterianos 4 3,4 4 1,4 Outros grupos teraputicos 10 8,6 16 5,5 Medicamento / gr. teraputico no identificado 16 13,8 16 5,5 Total 116 100,0 293 100,0 Fonte: Acrdos TJDF. Elaborado pelo autor.

    Outro aspecto relevante o de que, em cerca da metade das aes, os medicamentos pleiteados faziam parte da Relao Nacional de Medicamentos Essenciais, verso de 2002 (MINISTRIO DA SADE, 2002). (Tabela 12).

    Tabela 12 Medicamentos objeto de aes judiciais julgadas pelo TJDF, segundo a sua participao ou no na Rename, segundo o grupo teraputico. Distrito Federal, 1997 a

    2005.

    Medicamentos Aes Grupo teraputico N Rename % N Rename %

    Antibacterianos 4 4 100,0 4 4 100,0Atuao s/ sist. endcrino e reprod. 6 6 100,0 10 10 100,0Antiretroviais (ARV) 15 14 93,3 74 71 95,9Atuao sobre o sist. digestivo 4 2 50,0 5 3 60,0Antineoplsicos e adjuvantes 20 9 45,0 41 18 43,9Atuao s/ o sist. nervoso central 19 7 36,8 34 13 38,2Esclerose mltipla e ELA 3 1 33,3 16 8 50,0Antivirais [exclusive ARV] 4 1 25,0 32 2 6,2Atuao sobre o sist. cardiovascular 5 1 20,0 6 1 16,7Outros grupos teraputicos 10 2 20,0 16 2 12,5Atuao sobre o sist. osteoarticular 6 - - 28 - - Doenas raras 4 - - 11 - - Total (medicamentos identificados) 100 47 47,0 277 132 47,6Fonte: Acrdos TJDF. Elaborado pelo autor.

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    Anlise dos dados apresentados permite observar, at 2001, um nmero pequeno de aes e, na sua quase totalidade, impetrada por doentes de aids requerendo o fornecimento de anti-retrovirais e, mais raramente, de outros medicamentos para tratamento de infeces oportunistas, lipodistrofia e intercorrncias clnicas. A partir de ento, aumentou o nmero de aes solicitando o fornecimento daqueles e de outros antiretrovirais inovadores ou, como a eles se referem os acrdos, medicamentos de vanguarda, antes mesmo de eles terem entrado no mercado nacional, terem sido registrados no Ministrio da Sade ou selecionados para os protocolos clnico-teraputicos vigentes. Muitas aes dessa poca por sinal, sempre concedidas pediam todos os medicamentos necessrios ao tratamento ou e outros que vierem a ser prescritos, alm da realizao de exames de resistncia fenotpica.

    Foram essas aes que estabeleceram as bases da jurisprudncia do TJDF sobre a matria.

    A partir de 2002, o nmero de aes sofreu um incremento significativo, ao mesmo tempo em que os pacientes com aids deixaram de ser os principais autores das aes que passaram a incluir pacientes com cnceres (16,3% das aes), hepatite C (9,0%), artropatias (8,1%), esclerose mltipla (5,9%), transtornos mentais (5,9%), doenas neurolgicas (5,0%) e osteoporose (4,5%), entre outros, verificando-se, assim, que o espectro de doenas e pacientes que requerem proteo jurisdicional cresceu muito, a partir de ento.

    Portadores de doenas raras (sndrome de Gaucher, fibrose cstica, esclerose lateral amiotrfica, doena de Fabri, sndrome de Byler e sndrome de Sjrgren), em aes pessoais ou impetradas por associaes de doentes, pleitearam o fornecimento de medicamentos em geral experimentais ou fora do mercado brasileiro e de elevado custo a partir de 2000, mas, principalmente, durante os anos de 2003 e 2004. Eles representam, no entanto, menos de 5% do total de aes do perodo.

    Esse dado contraria o senso comum de que as aes judiciais demandando fornecimento de medicamentos so impetradas, majoritariamente, por portadores de doenas raras. Na verdade, em metade das aes estudadas, os medicamentos pleiteados faziam parte da Rename.

    Esse padro aids como condio patolgica dominante nas aes at os primeiros anos da dcada; grande diversificao dessas condies e dos grupos teraputicos dos medicamentos pleiteados, a partir de ento; e maioria de aes voltadas para medicamentos para o tratamento de condies de ateno bsica e de mdia complexidade tambm registrado no Rio de Janeiro (MESSEDER, 2005) e em So Paulo (VIEIRA, 2007).

    2 Conformao da jurisprudncia a) Os argumentos dos autores

    Dois argumentos esto presentes nos arrazoados de todos os autores que ingressaram com aes no TJDF contra o SUS-DF pela garantia de assistncia farmacutica no perodo estudado: o entendimento de que a prestao dessa assistncia, por parte do Estado, constitui um direito constitucional e legal que lhes est sendo tolhido, e o fato de no disporem de recursos financeiros para adquirir, por contra prpria, os medicamentos pleiteados. Nesse ltimo caso, o alto custo dos medicamentos ou sua necessidade por tempo prolongado , com freqncia, um argumento acrescido.

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    O pequeno nmero de autores de aes similares contra planos de sade apresenta, em sua defesa, o entendimento de que o contrato firmado com a operadora no est sendo honrado por ela.

    A partir de 2002, passam a constar dos autos de forma cada vez mais freqente os registros, feitos tanto pelos autores/pacientes como pelos prprios julgadores, de denncias de descontinuidade e omisso da prestao do servio pelo SUS-DF e da via crucis pela qual est passando a populao que no tem recursos para adquirir medicamentos (Processo n 2002.00.2.002 247-6, acrdo 164.261, julgado em 20/08/02).

    Constataes do fato aparecem nos votos e decises e so eloqentes: Impende destacar, ainda, que o Ministrio Pblico do Distrito Federal vem identificando falhas na distribuio de medicamentos por parte da Secretaria de Sade do Distrito Federal desde novembro de 2001, o que deu origem Recomendao n 001/2002, da Promotoria de Justia de Defesa da Sade, bem assim propositura das Aes Civis Pblicas n 2002011075801-5 e 2003011028275-2. (Processo n 2004.00.2.006 677-8, acrdo 215.115, julgado em 19/04/05).

    uma situao insustentvel, uma violncia. E essa alegao de que no tem verba inaceitvel, porque sobra dinheiro para obras que podem interessar a uma minoria da populao, quela minoria que dirige automveis, que tm automveis. Ento se constroem viadutos e mais viadutos, pontes e mais pontes, mas faltar dinheiro? (...) O problema de gesto patente, porque como se deixam os depsitos, as farmcias dos hospitais vazios de remdios que so procurados naturalmente pela populao, pelos doentes graves? Tem de haver uma reserva. No falta s remdio para leucemia, no: faltam antibiticos, faltam remdios para problemas cardacos, para presso alta. Ento, se o Tribunal de Justia do Distrito Federal tomar, a partir de agora, uma posio firme no sentido de acolher esses pedidos, acho que estaremos fazendo justia, estaremos dizendo: estamos aqui, e estaremos fazendo um benefcio a essas populaes mais carentes. Cumprindo nosso dever de distribuir justia. (Processo n 2002.00.2.002 247-6, acrdo 164.261, julgado em 20/08/02).

    inadmissvel a demonstrao de indiferena do Estado soluo dos problemas submetidos sua apreciao. (Processo n 2003.00.2.005 655-3, acrdo 180.905, julgado em 14/10/03).

    (...) a lamentvel omisso da Administrao em cumprir e fazer cumprir os mais elementares direitos garantidos na Constituio Federal, diante da qual impe-se seja esta compelida, via ao judicial, a faz-lo. (Processo n 2002.01.1.095 444-5, acrdo 182.917, julgado em 01/09/03).

    Diante das reiteradas negativas do Poder Pblico de prestar assistncia s pessoas que no dispem de recursos para custear tratamento mdico-hospitalar, o Judicirio tem se mostrado sensvel demanda de pleitos como o que ora se apresenta, e a jurisprudncia tem se firmado no sentido de impor ao Estado o cumprimento de tal mister. (Processo n 2002.01.1.052 025-9, acrdo 188.299, julgado em 05/02/04).

    Em decorrncia, a insuficincia da assistncia farmacutica prestada na rede pblica, a descontinuidade da prestao do servio e, mesmo, sua omisso, passaram a figurar com elevada freqncia entre as razes pelas quais os impetrantes recorrem Justia.

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    A partir da edio, pela Secretaria da Sade do DF, da Portaria n 14, de 2001, que regulamentou a dispensao de medicamentos em carter excepcional, obrigando ao cadastramento do paciente e ao seu acompanhamento e a prescrio por profissional da rede da SESDF, a carncia de servios especializados e a insuficincia da assistncia mdica oferecida criaram problemas adicionais para os pacientes usurios daquela classe de medicamentos, aumentando a demanda por aes judiciais e acrescentando, entre as razes dos autores, o que denominavam de burocracia ou burocratizao excessiva que os estava impedindo de usufruir o que entendiam ser um direito lquido e certo.

    Independentemente das notcias de falncia do sistema de sade do Distrito Federal, diariamente divulgadas pela mdia, o que se nota, no presente caso, que, de fato, o impetrante no encontrou alternativa para obter os meios necessrios preservao de sua sade, seno pela ordem expedida em cumprimento liminar deferida em seu favor. Acresa-se que a douta autoridade coatora sequer prestou informaes a respeito da sua omisso, limitando-se a noticiar a aquisio dos remdios prescritos ao impetrante. (Processo n 2002.00.2.009 209-8, acrdo 185.791, julgado em 30/09/03).

    Lamentavelmente, a realidade que se nos espelha a de que o atendimento pelo sistema pblico de sade lentssimo, precrio, tanto em recursos humanos quanto materiais, o que obriga muitos cidados que, alis, pagam a contribuio compulsria respectiva, a buscarem o atendimento mdico particular no por opo, cumpre ressaltar, mas por necessidade lembrando, inclusive, que nem todos os que assim agem detm poder aquisitivo para tanto. Todavia, nos momentos cruciais, comum tirar-se das verbas destinadas s despesas necessrias para no se ter que sujeitar s intempries dos hospitais pblicos. (...) Marcar uma consulta chega a ser tarefa tormentosa, pois, aqueles que o fazem nunca esperam menos de quatro meses para serem atendidos. Registre-se que at mesmo a prpria marcao procedimento revestido de acentuada burocracia e empecilhos, dado a falta de recursos humanos e materiais da rede pblica hospitalar. Se o estado de sade do paciente enseja interveno mdica imediata, ele finda, lamentavelmente, a perecer. (Processo n 2004.00.2.002 388-5, acrdo 202.130, julgado em 28/09/04).

    O que se observa que, de modo geral, a sade pblica no Distrito Federal apresenta-se sucateada, diante da inrcia da administrao em prover os recursos necessrios ao atendimento de sua populao. No se vislumbra uma inteno clara em resolver os problemas existentes. As autoridades competentes limitam-se a afirmar que o assunto est sendo enfrentado e que a soluo demanda recursos financeiros, quando se tem notcia de que recursos da sade so remanejados para propaganda institucional e aplicao em obras de infra-estrutura. (Processo n 2003.01.1.028 275-2, acrdo 203.001, julgado em 07/10/04).

    O nmero de processos individuais se avoluma, a demonstrar que a Administrao do Distrito Federal, mesmo sabendo da suma gravidade das deficincias de sua rede de sade, no tomou e demonstra que no tomar nenhuma providncia eficiente para sanar os problemas. Parece suficiente alegar que estariam ocorrendo deficincias na estrutura burocrtica, ou que no possvel o remanejamento de recursos, ainda que gravssimos os casos apresentados para tratamento perante a rede de sade do DF. Faz-se mister a concesso de medida que torne efetivo o direito sade, constitucionalmente protegido. O juiz s pode agir quando instado a faz-lo. Assim, uma vez pleiteada sua atuao no pode se abster de entreg-la de forma til e tempestiva a fim de proteger o bem da vida de qualquer leso ou

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    perecimento. (Processo n 2002.01.1.117 197-4, acrdo 208.368, julgado em 06/12/04).

    A situao de desatendimento, de insuficincia de recursos materiais e humanos e de burocratizao da ateno sade no DF aparentemente no foi alterada significativamente durante o perodo estudado, tomando por base o teor dos acrdos do TJDF estudados. Em deciso em 2005, o relator denuncia, mais uma vez:

    Cabe ressaltar que de conhecimento coletivo a falncia do sistema pblico de sade em nosso pas. (...) No presente caso, como houve informao da existncia de outro medicamento, sem dizer se pode ser usado pela impetrante, esta acabar por necessitar de nova consulta apenas para verificar a possibilidade de substituio da medicao, o que, como se ressaltou, verdadeira via crucis, impedindo o acesso da impetrante ao medicamento de que necessita, podendo, inclusive, aps a nova consulta, receber notcia negativa do mdico para a possibilidade de substituio do remdio, protelando a recusa no fornecimento, que pode tornar-se infindvel diante da burocracia estatal. (Processo n 2005.00.2.002 838-4, acrdo 227.062, julgado em 30/08/05).

    Nos anos finais do perodo estudado, uma nova alegao passa a compor conjunto de argumento dos autores que pleiteiam medicamentos inovadores ou de segunda linha: a falncia teraputica e a supervenincia de reaes adversas no-controlveis e srias com os medicamentos de primeira linha ou selecionados.

    Tambm de forma recorrente, pedem os autores, seja majorada a verba honorria, porquanto no condizente com o trabalho desenvolvido pelo patrono da causa.

    b) Os argumentos dos rus Nos primeiros anos estudados, o GDF apresentou sempre, em suas defesas e recursos,

    duas alegaes: a de que o fornecimento do medicamento pleiteado no era de sua competncia, mas do Ministrio da Sade, e a de que a prestao no era cabida por se tratar o autor de pessoa no residente no DF.

    Como esses argumentos foram sistematicamente considerados improcedentes, os rus passaram a arregiment-los menos vezes e, no segundo caso, a substitu-lo por outros, entre os quais se destacam: a no incluso do medicamento pleiteado nas relaes de medicamentos e protocolos clnicos adotados pelo SUS, a inexistncia do medicamento no mercado, a ausncia, insuficincia ou indisponibilidade de recursos oramentrios ou financeiros, e o fato de o autor no ser usurio do SUS.

    A insuficincia de recursos e a necessidade de previso oramentria e financeira so alegaes freqentes, em especial nos processos mais antigos. A seguinte formulao do argumento, em defesa do governo, demonstra o entendimento do que pretendia que prevalecesse:

    necessrio lembrar que a atividade do Estado para fazer face ao cumprimento dos preceitos constitucionais dever ser planejada; o GDF no pode ser condenado a fornecer a certos cidados, por tempo indeterminado, um nmero indeterminado de medicamentos, sem que se saiba quanto vo custar e se h recursos no oramento para tal compra. (Processo n 2000.01.1.025572-2, acrdo 140.533, julgado em 19/03/01).

  • 22

    A idia teve dificuldade de prosperar, apesar de encontrar reflexo em alguns votos isolados como, por exemplo:

    A Constituio assegura [o direito sade, assistncia farmacutica], mas a mesma Constituio tambm diz que a Administrao h de disciplinar. O que a Administrao quer no queimar medicamentos, como fizera no passado: comprou medicamento demais de uma determinada espcie, sem controle algum, e de menos de outra, da o transtorno. Administrao sem planejamento no administrao. (Processo n 2002.288-7; acrdo 164.867, julgado em 11/06/02).

    Em recurso ao civil pblica impetrada pelo Ministrio Pblico, em 2003, a Secretaria da Sade assume que falta de recursos materiais e de pessoal especializado, no rene condio de atender a toda a populao, fazendo-se necessria a seleo dos pacientes a serem atendidos de forma prioritria. (Processo n 2003.01.1.028 275-2, acrdo 203.001, julgado em 07/10/04).

    No mrito, esclarece que o poder pblico, para a consecuo de seus fins, atua dentro de determinados limites oramentrios e de polticas pblicas, no podendo o administrador dar vazo imediata a todas as necessidades da populao, no havendo base de sustentao financeira programada para o atendimento de solicitaes similares ao do presente feito. Esclarece que o contedo programtico institudo pela Constituio Federal ao estabelecer o acesso pblico sade no pode ser entendido como o fornecimento instantneo do tratamento mdico a quem indistintamente dele necessite. (Processo n 2005.01.1.029 123-2, acrdo 239.068, julgado em 12/12/05).

    A falta ou indisponibilidade do medicamento na rede e a complexidade dos procedimentos administrativos necessrios para a aquisio tambm so freqentemente apresentados como razes para o descumprimento, pelo Estado, do seu dever de agir. Como eles tambm foram sistematicamente rebatidos e no prosperaram, tanto nas sentenas monocrticas quanto nos julgamentos de mrito, acabaram sendo pouco utilizados nos processo posteriores.

    Com o aumento do nmero de aes pedindo medicamentos antiretrovirais inovadores que se verificou a partir de 2000, a alegao de que se tratava de medicamento que no estava disponvel no mercado nacional e de que no tinha registro na Anvisa passou a ser feita com mais freqncia, sem, no entanto, e da mesma forma, prosperar.

    A Secretaria de Sade voltou a empregar argumentos similares em suas defesas interlocutrias, apelaes e agravos, principalmente em relao apreciao de solicitaes de dispensao de medicamentos experimentais para doenas raras. Os rus alegam que decises favorveis a esses casos representam grave leso sade pblica porquanto obrigam o Estado, de forma ilegal e indiscriminada, ao fornecimento de um medicamento sem comprovao de eficcia, ou cujo uso vedado, colocando em risco os pacientes que o utilizarem, dados os potenciais riscos de efeitos adversos ainda no totalmente pesquisados, e ordem pblica j que d margem a outras decises no mesmo sentido, com frontal infringncia legislao federal de regncia.

    O aviso de que determinadas sentenas comprometiam o atendimento de dezenas de milhares de cidados pobres, portadores de molstia grave (Processo n 1.684-0, de 1998, acrdo 132 349, julgado em 14/06/00); constituem privilegiamento dos pacientes de aids em detrimento de outros (Processo n 2000.01.1.025 572-2, acrdo 140.533, julgado em 19/03/01); de que as necessidades da comunidade so mltiplas e o atendimento a um

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    determinado grupo de pessoas [referindo-se a quatro doentes com sndrome de Gaucher] colocaria em risco o atendimento dos demais (Processo n 2000.00.2.000 838-8; acrdo 126 790, julgado em 27/03/00), feito desde muito cedo, pelos rus. Ele, no entanto, no escutado ou entendido.

    Reiteradamente os rus fazem a defesa desse ponto de vista. Veja-se, como exemplo: A sentena [em ao cautelar, que objetivava o fornecimento, pelo GDF, de medicamentos experimentais e sem registro na Anvisa para doentes de aids] viola o princpio da igualdade, pois os demais pacientes que no ingressarem em juzo no tero acesso a medicamentos importados e experimentais. (Processo n 2001.01.1.054 820-8, acrdo 166.709, julgado em 30/09/02, recurso no provido).

    A sentena [em agravo concesso de segurana para fornecimento de tratamento de segunda linha para hepatite C] representa o sacrifcio do bem estar geral em funo de um jurisdicionado e uma agresso ao princpio da separao de poderes. (Processo n 2003.00.2.000 543-2, acrdo 173.062, julgado em 31/03/03, agravo no provido).

    A sentena [concessiva, em ao cominatria para o fornecimento de medicamentos para tratamento de cncer de prstata] afronta o princpio da igualdade e da legalidade porque restringe o acesso aos medicamentos apenas aos jurisdicionados, em prejuzo dos demais. (Processo n 2002.01.1.072 100-0, acrdo 179.011, julgado em 08/09/03, recurso no provido).

    O fornecimento ao autor de todo e qualquer medicamento objeto de prescrio mdica constitui diferenciao desarrazoada para com os demais pacientes cadastrados junto ao servio pblico de sade, em patente violao ao princpio da igualdade. (Processo n 2002.01.1.052 740-5, acrdo 191.073, julgado em 22/03/04, recurso no provido).

    Tambm faz parte do conjunto de defesas dos rus a alegao de que tais sentenas constituem extrapolao da competncia inerente ao Poder Judicirio e de que mandado de segurana no o remdio constitucional adequado a amparar o direito pleiteado. A partir de 2002, os rus passam a alegar que elas constituem invaso [do Poder Judicirio] na esfera de atuao meritria do administrador. (Projeto n 2002.01.1.052 025-9, acrdo 188.299, julgado em 05/02/04).

    A partir do julgamento da primeira ao civil pblica para concesso de medicamentos de alto custo para quatro pacientes portadores da sndrome de Gaucher, em 2000, a defesa do SUS-DF passou a trazer considerao do Judicirio, nesses casos, o argumento de que se tratava da defesa de interesse individual e no difuso, da decorrendo a ilegitimidade ativa do Ministrio Pblico para agir:

    (...) o manejo da presente ao civil pblica por parte do Ministrio Pblico tem por desiderato a proteo de direitos individuais de pessoas certas e determinadas, quais sejam os pacientes relacionados na petio inicial, e no a defesa de direitos difusos e individuais homogneos, que o que lhe autoriza o ordenamento jurdico, e para o que serve o instituto da ao civil pblica. (Processo n 2003.01.1.088 930-7; acrdo 231.342, julgado em 17/10/05).

    A tentativa de fazer juzes e desembargadores entenderem e aprovarem os conceitos de seleo de medicamentos e de protocolos clnico-teraputicos s mais tarde passou a fazer parte do conjunto de defesas dos rus para justificar o no-fornecimento de medicamentos no-previstos nos protocolos clnicos e listagens de medicamentos adotadas pelo SUS.

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    Os rus passaram alegar no haver direito lquido e certo do impetrante a adquirir, custa do Poder Pblico, medicamento que no faz parte dos protocolos clnicos e diretrizes teraputicas do Sistema Pblico de Sade (Processo n 2005.00.2.011858-0; acrdo 239.793, julgado em 07/03/06) e a existncia de outras opes teraputicas de menor custo e boa eficcia. Sem justificativas tcnicas consistentes em verdade, sem um arrazoado que explicasse os conceitos e utilidade desses processos

    2 , a idia teve dificuldade de prosperar, como se pode constatar na sentena abaixo citada:

    Na ausncia de prova produzida pelo impetrado de que o medicamento no adequado ou que os medicamentos que possui so mais adequados, h direito lquido e certo do impetrante de adquirir o remdio pretendido. (Processo n 2004.00.2.007563-2; acrdo 231.546, julgado em 29/03/05)

    A defesa de que pacientes de servios privados, isto , no-usurios do SUS, no teriam direito assistncia farmacutica no mbito do sistema pblico se inaugura com o julgamento de processo, iniciado em 2002, que cuidava de um pleiteante portador de sndrome de Gaucher, que, por sinal, vinha sendo atendido num hospital pblico no pertencente rede da Fundao Hospitalar do Distrito Federal (Hospital Sarah, da Fundao das Pioneiras Sociais). Apesar de, tanto quanto os outros, ter sido rejeitado, esse argumento no deixou de ser usado pelos rus com freqncia, em todo o perodo estudado.

    Outros argumentos apresentados em defesa dos rus ou em recursos foram o de que o benefcio do medicamento pleiteado no estava comprovado para aquela indicao e o da inexistncia de periculum in mora. c) A conformao da jurisprudncia

    O principal argumento que decide a favor dos autores o reconhecimento de que a prestao de assistncia farmacutica constitui materializao do direito constitucional vida e sade, com base no que dispem os arts. 5, 196 e 198 da Constituio Federal, alm de imposio legal.

    A imposio legal decorre de trs normas, recorrentemente citadas: a Lei Orgnica da Sade (arts. 17 a 19), a Lei Orgnica do Distrito Federal (LODF) (arts. 204 e 207, II, XIV e XXIV) e a Lei n 9.313, de 1996 (que torna obrigatria a assistncia farmacutica a portadores do HIV e doentes de aids).

    Para os julgadores, esse : (...) direito positivo que exige prestaes do Estado e que impe aos entes pblicos a realizao de determinadas tarefas, de cujo cumprimento depende a prpria realizao do direito. (Processo n 2002.00.2.005 331-3, acrdo 171.745, julgado em 25/03/03).

    A Administrao Pblica tem o dever inquestionvel e no a faculdade de prestar assistncia mdica e de fornecer os medicamentos indispensveis ao tratamento de paciente, sob pena de vir a lesar direito lquido e certo, principalmente aos carentes e portadores de molstias graves, como a acometida pelo ora Apelado. (Processo n 2002.01.1.101 094-2, acrdo 210.449, julgado em 13/12/04).

    2 interessante notar que a defesa do GDF e da Secretaria da Sade feita pela Procuradoria da Fazenda Pblica, razo provvel para a pobreza em geral, ausncia de contedos tcnicos de seus argumentos e pela dificuldade ou desinteresse em empregar ou explicar os conceitos tcnicos envolvidos.

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    Com efeito, o direito vida e sade so direitos fundamentais garantidos a todas as pessoas, indistintamente, consoante se infere dos dispositivos supra transcritos [CF, arts. 6 e 196; LODF, art. 204, I, II, 1 e 2, e art. 207, II]. Esses direitos obrigatoriamente devem ser garantidos pelo Estado, cabendo aos entes federados colocar disposio de todos os meios necessrios. No o fazendo, certamente estaro violando aquele dever constitucional e podero, inclusive, responder por omisso. A Lei n 8.080/1990, que regulamenta o Sistema nico de Sade, alm de considerar a sade como direito fundamental do ser humano, igualmente impe ao Estado a obrigao de prover as condies indispensveis ao seu pleno exerccio (art. 2). Dentro destes parmetros legais, o direito reclamado pela Apelada no pode ser negado porque isto significaria desrespeitar os direitos fundamentais previstos na Carta Magna. (Processo n 2004.01.1.052 457-0, acrdo 224.030, julgado em 27/06/05).

    Incide, pois, sobre o Poder Pblico a indeclinvel obrigao de fazer efetivos os servios de sade, incumbindo-lhe promover medidas preventivas e de recuperao que tenham por finalidade viabilizar o que prescreve o art. 196 da CF. que o carter fundamental do direito sade, garantido pela Constituio Federal, bem como pela Lei Orgnica do DF, impe ao Estado o dever de prestao positiva de seus servios. (Processo n 2004.00.2.006395-2, acrdo 241.184, julgado em 22/03/05).

    No entanto, fica tambm patente nos textos dos votos e decises que, no entendimento dos julgadores, esse direito no absoluto, isto , , em verdade, a situao de hipossuficincia financeira do autor-paciente que determina a concesso como se as pessoas que disponham de recursos prprios para a aquisio de medicamentos no fossem alcanadas pelo mesmo direito, fazendo perceber que, quando se trata de assistncia farmacutica, o direito constitucional e os princpios de universalidade e integralidade da ateno, s se aplicam se o demandante no tiver recursos para prover o medicamento por contra prpria.

    Poucas vezes se encontram, nos votos e decises, afirmaes de que o direito sade deve ser assegurado, sem distino, a todos os cidados (Processo n 2004.00.2.006 677-8, acrdo 215.115, julgado em 19/04/05).

    Juzes e desembargadores batem reiteradamente naquela tecla: Cabe ao ente pblico cumprir seu papel e dar atendimento mdico populao, oferecendo, queles que no possam arcar com seu tratamento, os medicamentos necessrios, efetivando, assim, o que a LODF expressamente assegura. (Processo n 2002.00.2.003 269-9, acrdo 166.279, julgado em 24/09/02).

    [A Administrao] ter de distribuir [medicamentos] queles que deles necessitam e que no desfrutam de condies financeiras para adquiri-los. (Processo n 2002.00.2.002 247-6, acrdo 164.261, julgado em 20/08/02).

    No resta a menor dvida que, ante termos candentes do art. 196, da CF/88, as trs esferas de governo esto obrigadas a prestar assistncia mdica aos hipossuficientes, tanto assim que veio a lume a Lei Federal 9.313/96, estabelecendo uma solidariedade passiva entre os mesmos. (Processo n 2002.01.1.031 321-9, acrdo 185.400, julgado em 20/11/03).

    Em diversas oportunidades, este Egrgio Tribunal decidiu a respeito, sempre no sentido de forar a Administrao ao fornecimento dos remdios solicitados por aqueles que no tm condies de adquiri-los por seus prprios meios. (Processo n 2002.00.2.009 209-8, acrdo 185.791, julgado em 30/09/03).

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    Cabe ressaltar que o tema em debate no de todo novidade nos tribunais, sendo certo que a jurisprudncia do Pretrio Excelso tem firmado posicionamento no sentido de que o paciente hipossuficiente deve receber do Estado os medicamentos de que necessita. (Processo n 2003.00.2.002 984-2, acrdo 187.718, julgado em 03/02/04).

    Esta Corte tem reconhecido que os portadores de molstias graves, que no tenham disponibilidade financeira para custear o seu tratamento, tm o direito de receber gratuitamente do Estado os medicamentos de comprovada necessidade. (Processo n 2003.01.1.065 766-3, acrdo 206.921, julgado em 22/11/04).

    Restando comprovado que o autor no pode arcar com as despesas sem privar-se dos recursos indispensveis ao prprio sustento de sua famlia, o Estado est obrigado a fornecer de forma gratuita, os medicamentos destinados ao seu tratamento, sob o risco de afronta ao bem jurdico maximamente resguardado pelo ordenamento jurdico ptrio: a vida. (Processo n 2004.01.1.075 727-5, acrdo 235.791, julgado em 16/01/06).

    Em decorrncia, a Jurisprudncia Interna Reiterada do TJDF no podia deixar de ser outra:

    O Estado obrigado a fornecer gratuitamente medicamentos necessrios queles que no dispem de recursos financeiros para custe-los. (Relatrio) obrigatrio o fornecimento de medicamentos pelo Estado, mesmo que de uso contnuo, pessoa carente. (Entendimento do Tribunal)

    Para a concesso de liminares, de segurana e de antecipao da tutela, a razo foi sempre a mesma: periculum in mora, isto , a demora na obteno do medicamento pleiteado independente de parecer ou percia, quase sempre ausente entendida como risco de dano irreparvel ou de difcil reparao.

    Em relao aos argumentos dos rus, os julgadores tanto os juzes em decises monocrticas, nas iniciais, como os juzes e desembargadores nas decises coletivas, de mrito e recursais, cuidaram de rebat-los, um a um, conforme se analisa a seguir.

    A responsabilidade do DF firmada desde cedo, com base no princpio de descentralizao do Sistema nico de Sade, presente na Constituio Federal e na Lei Orgnica do Sistema, e em dispositivo sobre essa matria na Lei Orgnica do Distrito Federal:

    No cabe denunciao lide da Unio em se tratando de fornecimento de remdios a portadores de doena rara, vez que o sistema de sade descentralizado, com direo nica em cada esfera de governo, prevendo a Lei Orgnica do Distrito Federal a sua competncia para prestar assistncia farmacutica aos necessitados. (Processo n 2000.00.2.000838-8, acrdo 126.790, julgado em 27/03/00).

    Os rus alegaram, com muita freqncia e em todo o perodo estudado, a falta de competncia e a ilegitimidade do GDF como parte passiva. Tambm esse argumento, no entanto, foi rebatido sistematicamente e sempre nas mesmas bases: a descentralizao do SUS, insculpida nos artigos 17 a 18 da Lei Orgnica da Sade (Lei n 8.080/90); a obrigao legal de prestar assistncia sade, inclusive farmacutica, determinada pelo art. 207, incisos XIV e XXIV, da Lei Orgnica do Distrito Federal; e, posteriormente, as disposies da Lei n 9113/96, em relao assistncia farmacutica a doentes de aids.

    Embora a Unio seja a gestora do SUS, no a apelante [Secretaria da Sade do DF] parte ilegtima para a causa, pois a Lei Orgnica do Distrito Federal estabelece o modo pelo qual so instrumentalizadas as atribuies do SUS no Distrito Federal,

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    ou seja, por intermdio da Secretaria de Sade, o que leva concluso de que o Distrito Federal parte passiva legtima para a causa. (Processo n 2005.01.1.005663-8, acrdo 224.045, julgado em 08/08/05).

    Contra a alegao de que o direito no era devido porque o pleiteante no era cidado do Distrito Federal ou aqui no tinha residncia, foi dito sempre e desde cedo no ser esta uma condio legal, no cabendo prosperar. Com freqncia, arregimentou-se, nesse sentido, o art. 204 da LODF que determina expressamente essa cobertura.

    As alegaes de extrapolao da competncia inerente ao Poder Judicirio e de que as sentenas concessivas violam o princpio da separao dos poderes so enfrentadas e rebatidas recorrentemente pelos julgadores contrapondo-lhes o disposto no art. 5, inciso XXXV da Constituio Federal, segundo o qual a lei no excluir da apreciao do Poder Judicirio leso ou ameaa a direito.

    Tambm no prospera a alegao do apelante no sentido de que a sentena recorrida viole o princpio da separao dos poderes, uma vez que o Administrador pblico no goza de liberdade para dar ou no cumprimento aos direitos fundamentais, pois acima do princpio da legalidade previsto no artigo 37 da Constituio Federal est o princpio da constitucionalidade, que, no caso, impe a imperiosa observncia e a efetividade dos direitos vida e sade; ademais, no se pode aceitar, como sugere o apelante, que haja um monoplio do Administrador quanto ao cumprimento dos preceptivos constitucionais, mxime os que estatuem direitos fundamentais. A propsito, se h uma esfera de poder que mais teve ampliadas as suas competncias rumo concretizao das normas constitucionais, esta a do Poder Judicirio. Havendo necessidade de concretizao das normas constitucionais que vai alm da mera previso legal e alcana o caso concreto, o intrprete mais autorizado para a sua efetivao o Poder Judicirio. (Processo n 2002.01.1.052 025-9, acrdo 188.299, julgado em 05/02/04).

    V-se, desse modo, que, mais do que a simples positivao dos direitos sociais, recai sobre o Estado inafastvel vnculo institucional consistente em conferir real efetividade a tais prerrogativas bsicas, em ordem a permitir, s pessoas, nos casos de injustificvel inadimplemento da obrigao estatal, que tenham elas acesso a um sistema organizado de garantias instrumentalmente vinculado realizao, por parte das entidades governamentais, da tarefa que lhes imps a prpria Constituio. (Processo n 2002.01.1.091 335-9, acrdo 199.131, julgado em 05/08/04)

    A r. deciso impugnada [concesso de liminar em ao cominativa obrigando a Secretaria de Sade do DF a fornecer medicamento no contemplado nos protocolos clnicos adotados] no est a invadir a seara discricionria da Administrao, mas apenas impe ao Estado o dever de assegurar a todos os cidados, indistintamente, o direito sade (art. 6 e 196 da CF/88). Ademais, conforme preconiza o art. 207 da Lei Orgnica do Distrito Federal compete ao Sistema nico de Sade do DF prestar assistncia farmacutica e garantir o acesso da populao aos medicamentos necessrios recuperao de sua sade. (Processo n 2005.00.2.000 355-5, acrdo 221.448, julgado em 06/06/05).

    Ao Judicirio cumpre velar pelo cumprimento dos preceitos constitucionais quando houver omisso por parte da Administrao, acarretando leso aos direitos fundamentais dos cidados, dentre eles, o direito sade, no havendo que se falar em invaso de competncia. (Processo n 2002.01.1.083 473-3, acrdo 237.596, julgado em 23/09/05).

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    alegao contra sentenas concessrias de segurana e a de que o mandado de segurana no o remdio constitucional adequado a amparar o direito pleiteado, a corte de Braslia sempre se manifestou em contrrio. Ver, a respeito os seguintes votos:

    O mandado de segurana via adequada para embasar o pleito da autora, eis que sustentado na negativa do DF em prov-la de medicamentos para o restabelecimento de sua sade. (Processo n 2002.01.1.052 025-9, acrdo 188.299, julgado em 05/02/04).

    (...) em que pese o esforo do apelante em demonstrar o desacerto da sentena guerreada, a meu sentir, esta mostra-se escorreita, eis que a ao civil pblica intentada, ao viso de disponibilizao, com urgncia, de recursos financeiros para custear os medicamentos de alto custo para os pacientes do SUS/DF, aps verificada a necessidade por indicao mdica ou percia, no contraria a previso constitucional acerca da funo institucional do Ministrio Pblico, qual seja, de promover o inqurito civil e a ao civil pblica, para a proteo do patrimnio pblico e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (art. 129, inciso III, da CF/88). Ademais, nos termos do art. 3 da Lei 7.347/85, que disciplina a ao civil pblica, a ao civil poder ter por objeto a condenao em dinheiro ou o cumprimento de obrigao de fazer ou no fazer. Destarte, a despeito das ilaes trazidas no recurso pelo Distrito Federal, em verdade, a questo principal tratada na presente hiptese de direito indisponvel (direito sade art. 196, da CF/88), a importar, deste modo, aplicao da orientao jurisprudencial predominante de que detm o Ministrio Pblico legitimidade ativa ad causam para propor Ao Civil Pblica (...). O direito individual, nestes casos, tem extensa reverberao para que se alcance o interesse difuso, voltado ao direito sade e vida atingindo uma gama de pessoas que se incluem numa categoria de desassistidas pelo Poder Pblico, um direito indisponvel que o Estado no pode declinar ou desconsiderar por tratar-se de um dever inescusvel. (Processo n 2003.01.1.088 930-7, acrdo 231.342, julgado em 17/10/05).

    Uma defesa insistente do GDF e da Secretaria de Sade em especial quando o pleito envolvia tratamentos com medicamentos inovadores, de segunda linha e de elevado custo era a de que eles no estavam sendo disponibilizados porque no faziam parte das relaes de medicamentos e protocolos clnico-teraputicos adotados pelo Ministrio da Sade e pela Secretaria de Sade no fazia parte da padronizao, expresso adotada na linguagem nos autos.

    Esse argumento encontrou aceitao limitada e transitria entre julgadores de aes movidas por pacientes de aids, nos anos iniciais do perodo estudado:

    (...) no se pode, sem cometer uma autntica atrocidade tcnica e jurdica, obrigar o Poder Pblico a entregar algo que, no estado das artes (tecnologia atual) sequer existe. (...) Mais parece que, se provido fosse semelhante pedido, a FHDF e o Distrito Federal sequer poderiam reunir comisses de avaliao de medicamentos, porque, a um simples lanamento de uma droga experimental, estaria o Estado, pela reprovvel e temerria sentena condicional, pretendida pelo autor, obrigado a fornecer-lhe a droga. (Processo n 1999.01.1.056322-5; acrdo 145.849, julgado em 27/08/01)

    No tem o rgo Pblico como incluir entre os medicamentos a serem fornecidos a seus pacientes com aids outros que no estejam entre os listados pelo Ministrio da Sade. (Processo n 2000.01.1.067510-0; acrdo 144.091, julgado em 25/06/01)

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    A opinio, no entanto, cedo foi reformada, passando o Poder Judicirio local a entender tratar-se a seleo de medicamentos e a adoo de protocolos clnicos de exigncia de ndole meramente administrativa (Processo n 2002.01.1.100 178-8, acrdo n 194.078, julgado em 24/05/04); que a limitao alegada traduz-se em negativa de dever constitucional (Processo n 1999.01.1.056 324-0, acrdo 153.317, julgado em 07/02/02); e que a prescrio mdica deve prevalecer em qualquer caso.

    Vrias decises a respeito desse tpico so reveladoras do pensamento e do entendimento dos juzes e desembargadores do TJDF.

    Em relao ao primeiro aspecto (seleo de medicamentos como limitao do dever constitucional), ver:

    A meu sentir, deve o Distrito Federal prover todo e qualquer medicamento que venha a ser receitado pelo mdico do apelado (...), mesmo aqueles que hoje no [so] disponveis pelo SUS. (Processo n 1999.01.1.050 281-5; acrdo 130 705, julgado em 04/09/00).

    Ainda que a medicao pretendida no esteja padronizada pelo Ministrio da Sade para fornecimento gratuito aos doentes de aids, a comprovada necessidade do medicamento, prescrito por mdico, impe a condenao do Distrito Federal ao seu fornecimento, posto que no pode o dever do Estado limitar o direito sade, principalmente quando em risco a vida do paciente. (Processo n 1999.01.1.056 324-0; acrdo 145 849, julgado em 27/08/01).

    No merecem acolhida os argumentos lanados pelo DF de que os medicamentos solicitados pelo autor no integram a Portaria n 874/97 do Ministrio da Sade, vez que, no possuindo o requerente condies econmicas que permitam adquirir os medicamentos necessrios ao seu tratamento, no poder o Estado abandon-lo a prpria sorte, omitindo-se em seu dever de assegurar a todos os cidados assistncia social, bem como o direito sade. (Processo n 2001.01.1.054 820-2, acrdo 166.709, julgado em 30/09/02).

    (...) mostrando-se irrelevante no se encontrar o medicamento na lista dos medicamentos padronizados pelo Ministrio da Sade. (Processo n 2000.01.1.074 934-2, acrdo 170.015, julgado em 30/09/02).

    Deve ser assegurado o fornecimento de todo e qualquer medicamento, inclusive aqueles no disponveis na rede pblica, mas que, no entanto, so indispensveis ao tratamento do paciente. (Processo n 2000.01.1.021 456-4, acrdo 172.250, julgado em 24/03/03) [ao ordinria com tutela pedindo medicamento inovador, ainda no padronizado e indisponvel no mercado nacional para a aids].

    A Carta Magna garante aos cidados acesso universal e igualitrio s aes e servios a fim de promover, proteger e recuperar a sade, por ser ela direito de todos e dever do Estado. No podem a Unio, os Estados, o Distrito Federal e os Municpios eximirem-se de fornecer medicamento a paciente que trata pela rede pblica, ao argumento de que no consta da lista feita pelo Ministrio da Sade. (Processo n 2001.01.1.054 820-2, acrdo 166.709, julgado em 30/06/02).

    No pode o Estado querer se eximir de sua responsabilidade constitucional, com argumentos de ordem burocrtica. No conceder o medicamento solicitado, apenas pelo fato de no estar o referido medicamento relacionado no rol dos medicamentos excepcionais, no conduz concluso de estar ele indisponvel; demonstra, isto sim, como bem destacado em deciso que concedeu a liminar nestes autos, resistncia do impetrado em fornecer a substncia que a menor

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    necessita para o seu tratamento. (Processo n 2004.00.2.009 320-7, acrdo 214.038, julgado em 15/03/05).

    (...) resta claro que o Distrito Federal tem a obrigao de fornecer os medicamentos pleiteados na inicial, bem como quaisquer outros que venham a ser necessrios para o tratamento de sade do impetrante, sem qualquer restrio, pois, sendo a sade um direito fundamental, apenas prpria Carta Constitucional caberia impor limitaes ao exerccio de tal direito, o que no se verifica. [contra-argumento ao fato de o medicamento pleiteado no constar da Rename nem da Relao de Medicamentos Excepcionais] (Processo n 2003.01.1.026 579-0, acrdo 215.419, julgado em 06/12/04).

    No se desconhece que o Estado se submete a normas na aquisio e fornecimento de medicamentos, mas sabido que a burocracia dificulta, muitas vezes, a efetiva circulao de medicamentos necessrios sade e vida de pessoas afetadas por enfermidades gravssimas, cabendo, pois, ao Judicirio a ponderao dos bens colocados em conflito. (Processo n 2002.01.1.112 811-0, acrdo 228.305, julgado em 26/09/05).

    Por certo que a legislao infraconstitucional e demais atos normativos podem estabelecer diretrizes com vistas a racionalizar a prestao dos servios de sade pelos entes pblicos. No entanto, carecem de legitimidade para limitar o direito vida e sade, amplamente tutelados pela Constituio Federal. (Processo n 2005.00.2.008 520-6, acrdo 235.405, julgado em 22/11/05).

    (...) Diante do princpio constitucional da dignidade da pessoa humana, tem o Distrito Federal a obrigao de fornecer os medicamentos necessrios ao tratamento de sade do cidado, sem qualquer restrio relativa lista elaborada pelo Ministrio da Sade ou prescrio por mdicos da rede pblica, pois, sendo a sade um direito fundamental, apenas prpria Carta Constitucional caberia impor limitaes ao exerccio de tal direito, o que no se verifica. (Processo n 2003.01.1.060 038-3, acrdo 258.867, julgado em 14/11/05).

    Quando passaram a crescer as alegaes de falncia teraputica com o uso dos medicamentos selecionados, esse passou a ser um argumento de reforo s decises dos julgadores em relao a esse aspecto:

    As normas burocrticas no podem ser erguidas como bice obteno de tratamento adequado e digno por parte do cidado carente, em especial, quando comprovado que a medicao anteriormente aplicada no surte o efeito desejado, apresentando o paciente agravamento em seu quadro clnico. (Processo n 2005.00.2.006 214-8, acrdo 238.054, julgado em 17/01/06).

    A ordem constitucional vigente [referindo-se Constituio Federal], em seu art. 196, consagra o direito sade como dever do Estado, que dever, por meio de polticas sociais e econmicas, propiciar aos necessitados no qualquer tratamento, mas o tratamento mais adequado e eficaz, capaz de ofertar ao enfermo maior dignidade e menor sofrimento. (Processo n 2004.00.2.006 395-2, acrdo 241.184, julgado em 22/03/05).

    A ausncia de explicitao dos alegados critrios tcnicos e fundamentos dos protocolos clnicos e relaes de medicamentos nas peas de defesa e recursais mal recebida pelos julgadores, desfavorecendo a aceitao das teses dos rus:

    Por fim, cumpre salientar que o agravante diz que a situao da recorrida no se enquadra nos critrios de incluso no Protocolo Clnico do Ministrio da Sade, e que a recusa est pautada em critrios tcnicos, mas sequer esclareceu na inicial

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    quais seriam nem declinou os fundamentos adotados pela rea tcnica da Secretaria de Sade para indeferir o pleito de fornecimento da medicao. (Processo n 2005.00.2.000 355-5, acrdo 221.448, julgado em 06/06/05).

    Nesse contexto, foi inovador o entendimento do desembargador relator no julgamento de agravo de instrumento, com pedido de efeito suspensivo, interposto pelo Distrito Federal contra deciso monocrtica que deferiu pedido de antecipao de tutela em ao cominatria (Processo n 2004.01.1.127249-9), para que o ru/agravante fosse compelido a fornecer medicao no-selecionada, por perodo indeterminado, para tratamento da infeco pelo HIV.

    No que tange prescrio de medicamentos no constantes da lista padronizada pelo Ministrio da Sade, tambm entendo que no possvel que seja o Distrito Federal compelido a fornec-los. O atendimento de toda e qualquer prescrio mdica ir propiciar que todo e qualquer mdico possa intentar tratamentos alternativos, de efetividade ainda no reconhecida, semelhana da atividade de pesquisa. (Processo n 2005.00.2.000 242-4; acrdo 225.798, julgado em 27/06/05).

    Em relao prevalncia da prescrio mdica sobre a seleo ou o protocolo, ela se justifica, para os julgadores, por um de dois motivos: o de que o mdico sabe tratar-se de medicamento existente no mercado e selecionado para utilizao pelo SUS, ou o de que o mdico que entende das necessidades de seu paciente.

    Se o mdico as receitou, em princpio, ho de existir no mercado nacional. Se no existirem, por certo havero de ser substitudas por produtos que estejam ao alcance dos nacionais, ainda que importados. Esse o lado tcnico da responsabilidade mdica. A deciso h que ser compreendida como sendo no sentido de que o Distrito Federal viabilize o atendimento do apelado, observando o receiturio mdico. (Processo n 2000.01.1.025 572-2; acrdo 140 533, julgado em 19/03/01).

    No prospera, tambm, o argumento de que os medicamentos ministrados ao autor limitem-se queles previstos na lista do Ministrio da Sade, comprovada pelo mdico a necessidade do doente de medicao especfica que venha a indicar, at porque as pesquisas nessa rea so intensas, no se justificando privar o autor de utilizar uma medicao que possa melhorar sua sade e sua qualidade de vida. (Processo n 2001.01.1.05