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Assim Falou Zaratustra Friedrich Nietzsche Tradução: Pietro Nassetti SABOTAGEM www.sabotagem.cjb.net

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Assim Falou ZaratustraFriedrich Nietzsche

Tradução: Pietro Nassetti

SABOTAGEMwww.sabotagem.cjb.net

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Índice:

Primeira Parte4 − Preâmbulo de Zaratustra

Os Discursos de Zaratustra20 − Das três Transformações22 − Das cátedras da virtude25 − Dos crentes em Além−mundos29 − Dos que desprezam o corpo31 − Das alegrias e paixões32 − Do pálido Delinqüente35 − Ler e escrever37 − Da árvore da montanha40 − Dos pregadores da morte42 − Da guerra e dos guerreiros44 − Do novo ídolo47 − Das moscas da praça pública50 − Da castidade52 − Do amigo54 − Os mil objetos e o único objeto56 − Do amor ao próximo58 − Do caminho do criador61 − A velha e a nova64 − A picada da víbora66 − Do filho do matrimônio68 − Da morte livre71 − Da virtude dadivosa

Segunda Parte76 − Criança do espelho79 − Nas ilhas bem−aventuradas82 − Dos compassivos85 − Dos sacerdotes88 − Dos virtuosos91 − Da canalha94 − Das tarântulas98 − Dos sábios célebres101 − O canto da noite103 − O canto do baile105 − O canto do sepulcro109 − Da vitória sobre si mesmo113 − Dos homens sublimes116 − Do país da civilização118 − Do imaculado conhecimento121 − Dos doutos124 − Dos poetas127 − Dos grandes acontecimentos131 − O adivinho135 − Da redenção140 − Da circunspecção humana144 − A hora silenciosa

Terceira Parte147 − O viajante151 − Da visão e do enigma

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154 − Da beatitude involuntária160 − Antes do nascer do sol163 − Da virtude amesquinhadora169 − No monte das oliveiras172 − De passagem175 − Dos trânsfugas180 − O regresso184 − Dos três males189 − Do espírito do pesadume193 − Das antigas e das novas tábuas215 − O convalescente222 − Do grande anelo225 − O outro canto do baile229 − Os sete selos

Quarta Parte229 − A oferta do mel236 − O grito de angústia240 − Conversação com os reis244 − A sanguessuga248 − O encantador254 − Fora de serviço258 − O homem mais feio264 − O mendigo voluntário269 − A sombra272 − Ao meio−dia275 − A saudação281 − A ceia283 − O homem superior294 − O canto da melancolia298 − Da ciência301 − Entre as filhas do deserto302 − O deserto cresce. Ai daquele que oculta desertos!304 − O despertar308 − A festa do burro312 − O canto de embriaguez320 − O sinal

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Primeira Parte

Preâmbulo de Zaratustra

Aos trinta anos Zaratustra afastou−seda sua pátria e do lago da sua pátria, edirigiu−se à montanha. Durante dezanos gozou por lá do seu espírito e dasua solidão sem se cansar. Variaram,no entanto, os seus sentimentos, e umamanhã, erguendo−se com a aurora,pôs−se em frente do sol e falou−lhe daseguinte maneira:

"Grande astro! Que seria da tuafelicidade se te faltassem aqueles aquem iluminas? Faz dez anos que teapresentas à minha caverna, e, semmim, sem a minha águia e a minhaserpente, haver−te−ias cansado da tualuz e deste caminho.

Nós, porém, te aguardávamos todas asmanhãs, tomávamos−te o supérfluo ebendizíamos−te.

Pois bem: já estou tão enfastiado daminha sabedoria, como a abelhaquando acumula demasiado mel.Necessito mãos que se estendam paramim. Quisera dar e repartir até que ossábios tornassem a gozar da sualoucura e os pobres, da sua riqueza.

Por essa razão devo descer àsprofundidades, como tu pela noite, astroexuberante de riqueza quandotranspôes o mar para levar a tua luz aomundo inferior.

Eu devo descer, como tu, segundodizem os homens a quem me querodirigir.

Abençoa−me, pois, olho afável, quepodes ver sem inveja até uma felicidadedemasiado grande!

Abençoa a taça que quer transbordar,para que dela jorrem as douradaságuas, levando a todos os lábios oreflexo da tua alegria!

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Olha! Esta taça quer novamenteesvaziar−se, e Zaratustra quer tornar aser homem".

Assim principiou o ocaso de Zaratustra.

II

Zaratustra desceu sozinho dasmontanhas sem encontrar ninguém. Aochegar aos bosques deparou−se−lhe derepente um velho de cabelos brancosque saíra da

sua sagrada cabana para procurarraízes na selva. E o velho falou aZaratustra desta maneira:

"Este viandante não me é estranho:passou por aqui há anos. Chamava−seZaratustra, mas mudou.

Nesse tempo levava as suas cinzaspara a montanha. Quererá levar hoje oseu fogo para os vales? Não temerá ocastigo que se reserva aosincendiários?

Sim; reconheço Zaratustra. O seu olhar,no entanto, e a sua boca não revelamnenhum enfado. Parece que se dirigepara aqui como um bailarino!

Zaratustra mudou, Zaratustra tomou−semenino, Zaratustra está acordado. Quevais fazer agora entre os que dormem?

Como no mar vivias, no isolamento, e omar te levava. Desgraçado! Queressaltar em terra? Desgraçado! Querestomar a arrastar tu mesmo o teu corpo?"

Zaratustra respondeu: "Amo oshomens".

"Pois por que − disse o santo − vim eupara a solidão? Não foi por amardemasiadamente os homens?

Agora amo a Deus; não amo oshomens.

O homem é, para mim, coisasobremaneira incompleta. O amor pelohomem matar−me−ia".

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Zaratustra retrucou: "Falei de amor!Trago uma dádiva aos homens".

"Nada lhes dês − disse o santo. − Pelocontrário, tira−lhes algo e eles logo teajudarão a levá−lo. Nada lhes convirámelhor de que quanto a ti de convenha.

E se pretendes ajudar não lhes dêsmais do que uma esmola, e ainda assimespera que te peçam".

"Não − respondeu Zaratustra; − eu nãodou esmolas. Não sou bastante pobrepara isso".

O santo pôs−se a rir de Zaratustra efalou assim: "Então vê lá como tearranjas para te aceitarem os tesouros.Eles desconfiam dos solitários e nãoacreditam que tenhamos força para dar.

As nossas passadas ecoamsolitariamente demais nas ruas. E, aoouvi−las, perguntam assim como denoite, quando, deitados nas suascamas, ouvem passar um homem muitoantes de nascer o sol: Aonde irá oladrão?

Não vás ao encontro dos homens! Ficano bosque!

Prefere à deles a companhia dosanimais! Por que não queres ser comoeu, urso entre os ursos, ave entre asaves?"

"E que faz o santo no bosque?",perguntou Zaratustra.

O santo respondeu: "Faço cânticos ecanto−os, e quando faço cânticos rio,choro e murmuro.

Assim louvo a Deus.

Com cânticos, lágrimas, risos emurmúrios louvo ao Deus que é meDeus. Mas, deixa ver: que presente nostrazes?".

Ao ouvir estas palavras, Zaratustracumprimentou o santo e disse−lhe: "Queteria eu para vos dar? O que tens afazer é deixar−me caminhar, correndo,para vos não tirar coisa nenhuma".

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Separam−se um do outro, o velho e ohomem, rindo como riem duas criaturas.

Zaratustra, porém, ao ficar sozinho falouassim ao seu coração: "Será possívelque este santo ancião ainda não ouviuno seu bosque que Deus já morreu?"

III

Chegando à cidade mais próxima,situada nos bosques, Zaratustraencontrou uma grande multidão napraça pública, porque estava anunciadoo espetáculo de um bailarino de corda.

E Zaratustra falou assim ao povo: "Euvos anuncio o Super−homem".

"O homem é superável. Que fizestespara o superar?

Até agora todos os seres têmapresentado alguma coisa superior a simesmos; e vós, quereis o refluxo dessegrande fluxo, preferis tornar ao animal,em vez de superar o homem?

Que é o macaco para o homem? Umazombaria ou dolorosa vergonha.

Pois é o mesmo que deve ser o homempara Super−homem: uma irrisão ou umadolorosa vergonha.

Percorrestes o caminho que medeia doverme ao homem, e ainda em vós restamuito do verme. Noutro tempo fostesmacaco, e hoje o homem é ainda maismacaco do que todos os macacos.

Mesmo o mais sábio de todos vós nãopassa de uma mistura híbrida de plantae de fantasma. Acaso vos disse eu quevos torneis planta ou fantasma?

Eu vos apresento o Super−homem! OSuper−homem é o sentido da terra.Diga a vossa vontade: seja oSuper−homem, o sentido da terra.

Exorto−vos, meus irmãos, a permanecerfiéis à terra e a não acreditar em quevos fala de esperanças supraterrestres.

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São envenenadores, quer o saibam ounão.

Não dão o menor valor à vida,moribundos que estão, por sua vezenvenenados, seres de que a terra seencontra fatigada; vão−se por uma vez!

Noutros tempos, blasfemar contra Deusera a maior das blasfêmias; mas Deusmorreu, e com ele morreram taisblasfêmias. Agora, o mais espantoso éblasfemar da terra, e ter em maior contaas entranhas do impenetrável do que daterra.

Noutros tempos a alma olhava o corpocom desprezo, e então nada haviasuperior a esse desdém;

queria a alma um corpo fraco, horrível,consumido de fome! Julgava destemodo libertar−se dele e da terra.

Ó! Essa mesma alma era uma almafraca, horrível e consumida, e para elaera um deleite a crueldade!

Irmãos meus, dizei−me: que diz o vossocorpo da vossa alma? Não é a vossaalma, pobreza, imundície econformidade lastimosa?

O homem é um rio turvo. E preciso serum mar para, sem se toldar, receber umrio turvo.

Pois bem; eu vos anuncio oSuper−homem; é ele esse mar; nele sepode abismar o vosso grandemenosprezo.

Qual é a maior coisa que vos podeacontecer? Que chegue a hora dogrande menosprezo, a hora em que vosenfastie a vossa própria felicidade, deigual forma que a vossa razão e a vossavirtude.

A hora em que digais: "Que importa aminha felicidade! É pobreza, imundície econformidade lastimosa. A minhafelicidade, porém, deveria justificar aprópria existência!" A hora em quedigais: "Que importa minha razão! Andaatrás do saber como o leão atrás doalimento. A minha razão é pobreza,imundície e conformidade lastimosa!"

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A hora em que digais: "Que importa aminha virtude? Ainda me não enervou.Como estou farto do meu bem e do meumal. Tudo isso é pobreza, imundície econformidade lastimosa!"

A hora em que digais: "Que importa aminha justiça?! Não vejo que eu sejafogo e carvão! O justo, porém, é fogo ecarvão!"

A hora em que digais: "Que importa aminha piedade? Não é a piedade a cruzonde se crava aquele que ama oshomens? Pois a minha piedade é umacrucificação". Já falaste assim? Jágritaste assim? Ah! Não vos ter euouvido a falar assim!

Não são os vossos pecados, é a vossaparcimônia que clama ao céu! A vossamesquinhez até no pecado, isso é queclama ao céu!

Onde está, pois, o raio que vos lambacom a sua língua? Onde está o delírioque é mister inocular−vos? Vede; euanuncio−vos o Super−homem: "É eleesse raio! É ele esse delírio!"

Assim que Zaratustra disse isto, um damultidão exclamou: "Já ouvimos falarmuito do que dança na corda; queremosconhecê−lo agora". E toda a gente seriu de Zaratustra. Mas o dançarino dacorda, julgando que tais palavras eramcom ele, pôs−se a trabalhar.

IV

Zaratustra, no entanto, olhava amultidão, e assombrava−se. Depoisfalava assim:

"O homem é corda estendida entre oanimal e o Super−homem: uma cordasobre um abismo; perigosa travessia,perigoso caminhar; perigoso olhar paratrás, perigoso tremer e parar.

O que é de grande valor no homem éele ser uma ponte e não um fim; o quese pode amar no homem é ele ser umapassagem e um acabamento.

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Eu só amo aqueles que sabem vivercomo que se extinguindo, porque sãoesses os que atravessam de um paraoutro lado.

Amo aqueles de grande desprezo,porque são os grandes adoradores, assetas do desejo ansiosas pela outramargem.

Amo os que não procuram por detrásdas estrelas uma razão para sucumbir eoferecer−se em sacrifício, mas sesacrificam pela terra, para que a terrapertença um dia ao Super−homem.

Amo o que vive para conhecer, e quequer conhecer, para que um dia viva oSuper−homem, porque assim quer elesucumbir.

Amo o que trabalha e inventa, a fim deexigir uma morada ao Super−homem epreparar para ele a terra, os animais eas plantas, porque assim quer o seu fim.

Amo o que ama a sua virtude, porque avirtude é vontade de extinção e umaseta do desejo.

Amo o que não reserva para si umagota do seu espírito, mas que quer serinteiramente o espírito da sua virtude,porque assim atravessa a ponte comoespírito.

Amo o que faz da sua virtude a suatendência e o seu destino, pois assim,por sua virtude, quererá viver ainda enão viver mais.

Amo o que não quer ter demasiadasvirtudes. Uma virtude é mais virtude doque duas, porque é mais um nó a quese ata o destino.

Amo o que prodigaliza a sua alma, oque não quer receber agradecimentosnem restitui, porque dá sempre e nãoquer se poupar.

Amo o que se envergonha de ver cair odado a seu favor e, por essa razão, sepergunta: "Serei um jogadorfraudulento?", porque quer ir ao fundo.

Amo o que solta palavras de ouroperante as suas obras e cumpre sempre

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com usura o que promete, porque querperecer.

Amo o que justifica os vindouros eredime os passados, porque quer que ocombatam os presentes. Amo aquelecuja alma é profunda, mesmo na dor, epois a cólera do seu Deus o confundirá.

Amo aquele cuja alma é profunda,mesmo na ferida, e ao que podeaniquilar um leve acidente, porqueassim de bom grado passará a ponte.

Amo aquele cuja alma transborda, aponto de se esquecer de si mesmo equanto esteja nele, porque assim todasas coisas se farão para sua ruína.

Amo o que tem o espírito e o coraçãolivres, porque assim a sua cabeçaapenas serve de entranhas ao seucoração, mas o seu coração o leva asucumbir.

Amo todos os que são como gotaspesadas que caem uma a uma danuvem escura suspensa sobre oshomens, anunciam o relâmpagopróximo e desaparecem comoanunciadores.

Vede: eu sou um anúncio do raio e umapesada gota procedente da nuvem; maseste raio chama−se o Super−homem".

V

Pronunciadas estas palavras, Zaratustratornou a olhar o povo, e calou−se."Riem−se − disse o seu coração. − Nãome compreendem; a minha boca não éa boca que estes ouvidos necessitam.

Precisarei começar a lhes destruir osouvidos para que aprendam a ouvir comos olhos? Terei de atroar à maneira detimbales ou de pregadores deQuaresma? Ou só acreditarão nosgagos?

De qualquer coisa se sentemorgulhosos. Como se chama, então,isso de que estão orgulhosos?Chama−se civilização: é o que sedistingue dos cabreiros.

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Isto, porém, não gosta ele de ouvir,porque os ofende a palavra "desdém".

Falar−lhes−ei, portanto, ao orgulho.

Falar−lhes−ei do mais desprezível queexiste, do último homem.

E Zaratustra falava assim ao povo:

"É tempo que o homem tenha umobjetivo.

É tempo que o homem cultive o germeda sua mais elevada esperança.

O seu solo é ainda bastante rico, masserá pobre, e nele já não poderá medrarnenhuma árvore alta.

Ai, aproxima−se o tempo em que ohomem já não lançará por sobre ohomem a seta do seu ardente desejo eem que as cordas do seu arco já nãopoderão vibrar

Eu vô−lo digo: é preciso ter um caosdentro de si para dar à luz uma estrelacintilante.

Eu vô−lo digo: tendes ainda um caosdentro de vós.

Ai! Aproxima−se o tempo em que ohomem já não dará a luz às estrelas;aproxima−se o tempo do maisdesprezível dos homens, do que já senão pode desprezar a si mesmo.

Olhai! Eu vos mostro o último homem.

Que vem a ser isso de amor, de criação,de ardente desejo, de estrela? −pergunta o último homem, revirando osolhos.

A terra tornar−se−á então menor, obreela andará aos pulos o último homem,que tudo apouca. A sua raça éindestrutível como a da pulga; o últimohomem é o que vive mais tempo.

"Descobrimos o que é a felicidade" −dizem os últimos homens, e piscam osolhos.

Abandonaram as comarcas onde a vidaera rigorosa, porque uma pessoa

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necessita calor. Ainda se quer aovizinho e se roçam pelo outro, porqueuma pessoa necessita calor.Enfraquecer e desconfiar parece−lhespecaminoso; anda−se com cuidado.Insensato aquele que ainda tropeça comas pedras e com os homens!

Algum veneno uma vez por outra écoisa que proporciona agradáveissonhos. E muitos venenos no fim paramorrer agradavelmente.

Trabalha−se ainda porque o trabalho éuma distração; mas faz−se de modoque a distração não debilite.

Já uma pessoa se não toma nem pobrenem rica; são duas coisas demasiadodifíceis. Quem quererá ainda governar?Quem quererá ainda obedecer? Sãoduas coisas muito custosas.

Nenhum pastor, e só um rebanho!Todos querem o mesmo, todos sãoiguais: o que pensa de outro modotende a ir para o manicômio.

''Noutro tempo toda a gente era doida" −dizem os perspicazes, e reviram osolhos.

É−se prudente, e está−se a par do queacontece: desta maneira pode−sezombar sem cessar. Questiona−seainda, mas logo se fazem as pazes; ocontrário altera a digestão.

Não falta um pouco de prazer para o diae um pouco de prazer para a noite; masrespeita−se a saúde.

"Descobrimos a felicidade" − dizem osúltimos homens − e reviram os olhos".

Aqui acabou o discurso de Zaratustra −que também se chama preâmbulo −porque neste ponto foi interrompidopelos gritos e pelo alvoroço da multidão."Dá−nos esse último homem, Zaratustra− exclamaram − toma−nos semelhantesa esses últimos homens!perdoar−te−emos o Super−homem".

E todo o povo era alegria. Zaratustraentristeceu e disse consigo:

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"Não me compreendem; não. Não é daminha boca que estes ouvidosnecessitam.

Vivi demais nas montanhas, escuteidemais os arriôos e as arvores, e agorafalo−lhes como um pastor.

A minha alma é sossegada e luminosacomo o monte pela manhã; mas elesjulgam que sou um frio astutochacareiro.

Ei−los olhando−me e rindo−se,

E, enquanto se riem, continuam aodiar−me. Há gelo nos seus risos".

VI

Algo ocorreu, no entanto, que fezemudecer todas as bocas e atraiu todosos olhares.

Entrementes pusera−se a trabalhar ovolteador; saíra de uma pequena porta eandava pela corda presa a duas torressobre a praça pública e a multidão.

Quando se encontrava bem na metadedo caminho abriu−se outra vez aportinhola, donde saltou o segundoacrobata que parecia um palhaço comas suas mil cores, o qual seguiurapidamente o primeiro. "Depressa,bailarino! − gritou a sua horrível voz. −"Depressa, mandrião, manhoso, caradeslavada! Olha que te piso oscalcanhares!

Que fazes aqui entre estas torres? Natorre devias tu estar metido; impedis ocaminho a outro mais ágil do que tu!" Ea cada palavra se aproximava mais,mas, quando se encontrou a um passo,ocorreu essa coisa terrível que fez calartodas as bocas e atraiu todos osolhares; lançou um grito diabólico esaltou por sobre o que lhe interceptavao caminho.

Este, ao ver o rival vitorioso, perdeu acabeça e a corda, largou o balancim eprecipitou−se no abismo como umremoinho de braços e pernas. A praçapública e a multidão pareciam o mar

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quando se desencadeia a tormenta.Todos fugiram atropeladamente, emespecial do lugar onde deveria cair ocorpo. Zaratustra permaneceu imóvel, ejunto dele caiu justamente o corpo,destroçado, mas vivo ainda. Passadoum instante o ferido recuperou ossentidos e viu Zaratustra ajoelhado juntode si. "Que fazes aqui? − disse−lhe. Jáhá tempo que eu sabia que o diabo mehavia de derrubar. Agora arrasta−mepara o inferno. Queres impedi−lo?"

"Amigo − respondeu Zaratustra −palavra de honra que tudo isso de quefalas não existe, não há demônio neminferno. A tua alma ainda há de morrermais depressa do que o teu corpo; nadatemas". O homem olhou receoso. "Sedizes a verdade – respondeu − nadaperco ao perder a vida. Não passo deuma besta que foi ensinada a dançar apoder de pancadas e de fome".

"Não − falou Zaratustra − fizeste doperigo o teu ofício, coisa que não é paradesprezar.

Agora por causa do teu ofício sucumbese atendendo a isso vou enterrar−te porminha própria mão". O moribundo já nãorespondeu, mas moveu a mão como seprocurasse a de Zaratustra para lheagradecer.

VII

Abeirava−se a noite, e a praçasumia−se nas trevas. Então a multidãodispersou−se porque até a curiosidadee o pavor se cansam. Sentado ao pé docadáver, Zaratustra encontrava−se tãoabismado nas suas reflexões que seesqueceu do tempo. Fez−se noite esobre o solitário soprou um vento frio.Zaratustra ergueu−se, então, emurmurou:

"Zaratustra fez hoje uma boa pesca!Não alcançou um homem, mas umcadáver!

Coisa para nos preocupar é a vidahumana, e sempre vazia de sentido: umtrovão lhe pode ser fatal!

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Quero ensinar aos homens o sentido dasua existência, que é o Super−homem,o relâmpago que brota da sombrianuvem homem.

Estou, porém, longe deles, e o meusentido nada diz aos seus sentidos.Para os homens sou uma coisaintermediária entre o doido e o cadáver.

Escura é a noite, escuros são oscaminhos de Zaratustra. Vem,companheiro frio e rígido! Levar−te−eiao lugar onde por minha mão teenterrarei".

VIII

Dito isto ao seu coração, Zaratustradeitou o cadáver às costas e pôs−se acaminho. Ainda não andara cem passosquando se lhe acercou furtivamente umhomem e lhe murmurou ao ouvido. Oque falava era o palhaço da torre. Eis oque lhe dizia: − "Sai desta cidade,Zaratustra − há aqui muita gente que teodeia. Os bons e os justos odeiam−te echamam−te seu inimigo e desprezador;os fiéis da verdadeira crença odeiam−tee dizem que és o perigo da multidão.Ainda tiveste sorte em zombarem de ti,e na verdade falavas como um truão.Tiveste sorte em te associar a esse vilãodesse morto; rebaixando−te, por essaforma salvaste−te por hoje; mas saidesta cidade, ou amanhã salto eu porcima de ti, um vivo por cima de ummorto". E o homem desapareceu, eZaratustra seguiu o seu caminho pelasescuras ruas.

À porta da cidade encontrou oscoveiros. Estes aproximaram−lhe dacara as enxadas, e conheceramZaratustra e troçaram muito dele."Zaratustra leva o indigno morto! Bravo!Zaratustra tomou−se coveiro! As nossasmãos são puras demais para tocarnessa peça! Com que então Zaratustraquer roubar o pitéu ao demônio! Apre!Bom proveito! Isto se o diabo não formelhor ladrão que Zaratustra e os nãoroubar aos dois!" E riam entre si,cochichando. Zaratustra não respondeupalavra e seguiu seu caminho.Passadas duas horas a andar à beira de

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bosques e de lagoas; já ouvira latir oslobos esfomeados, e também a ele oatormentava a fome. Por esse motivoparou diante de uma casa isolada ondebrilhava uma luz.

"Apodera−se de mim a fome como umsalteador − disse Zaratustra: − no meiodos bosques e das lagoas e na escuranoite me surpreende.

A minha fome tem estranhos caprichos.Em geral só me aparece depois decomer, e hoje em todo o dia não meapareceu. Onde se entreteria então?"

Assim dizendo, Zaratustra bateu à portada casa. Logo apareceu um velho comuma luz e perguntou: "Quem se abeirade mim e do meu fraco sono?"

"Um vivo e um morto − respondeuZaratustra. − Dá−me de comer e debeber; esqueci−me de o fazer durante odia. Quem dá comida ao famintoreconforta a sua própria alma: assimfalava a sabedoria". O velho retirou−se;mas voltou imediatamente e ofereceu aZaratustra pão e vinho. "Ruim terra éesta para os que têm fome − disse ele −por isso eu habito nela. Homens eanimais de mim se aproximam, de mim,o solitário. Mas chama também o teucompanheiro para comer e beber; estámais cansado do que tu". Zaratustrarespondeu: "O meu companheiro estámorto; não é fácil decidi−lo a comer"."Nada tenho com isto − resmungouvelho. − O que bate à minha porta devereceber o que lhe ofereço. Come, epassa bem".

Zaratustra tornou a andar outras duashoras, orientando−se pelo caminho epela luz das estrelas. porque estavaacostumado às caminhadas noturnas egostava de contemplar tudo quantodorme. Quando principiou a raiar aaurora encontrava−se num espessobosque e já não via nenhum caminho.Então colocou o cadáver no côncavo deuma árvore à altura da sua cabeça −pois queria livrá−lo dos lobos − edeitou−se no solo sobre a relva. Nomesmo instante adormeceu cansado decorpo, mas com a alma tranqüila.

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IX

Zaratustra dormiu muito tempo e por elepassou não só a aurora mas toda amanhã. Finalmente abriu os olhos eolhou admirado no meio do bosque e dosilêncio; admirado olhou para dentro desi mesmo. Ergueu−se precipitado, comonavegante que de repente avista terra, egritou de alegria porque vira umaverdade nova. E falou deste modo aoseu coração:

"Um raio de luz me atravessa a alma:preciso de companheiros. mas vivos, enão de companheiros mortos ecadáveres, que levo para onde quero.

preciso de companheiros, mas vivosque me sigam − porque desejemseguir−se a si mesmos – para ondequer que eu vá.

Um raio de luz me atravessa a alma:não é à multidão que Zaratustra devefalar, mas a companheiros! Zaratustranão deve ser pastor e cão de umrebanho!

Para desgarrar muitos do rebanho, foipara isso que vim. O povo e o rebanhoirritam−se comigo. Zaratustra quer serchamado de ladrão pelos pastores.

Eu os denomino pastores, mas eles a simesmos se consideram os fiéis daverdadeira crença! Vede os bons e osjustos! A quem odeiam mais? A quemlhes despedaça as tábuas de valores,ao infrator, ao destruidor. É este, porém,o criador.

O criador procura companheiros, nãoprocura cadáveres, rebanhos, nemcrentes; procura colaboradores queinscrevam valores novos ou tábuasnovas.

O criador procura companheiros paraacompanhá−lo; porque tudo estámaduro para a ceifa. Faltam−lhe,porém, as cem foices, e por isso arrancaespigas, contra sua vontade.

Companheiros que saibam afiar as suasfoices, eis o que procura o criador.

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Chamar−lhes−ão destruidores edesprezadores do bem e do mal, maseles hão de ceifar e descansar.Colaboradores que ceifem e descansemcom ele, eis o que busca Zaratustra.Que se importa ele com rebanhos,pastores e cadáveres?

E tu, primeiro companheiro meu,descansa em paz! Enterrei−te bem, natua árvore oca, deixo−te bem defendidodos lobos.

Separo−me, porém, de ti; já passou otempo. Entre duas auroras me iluminouuma nova verdade.

Não devo ser pastor nem coveiro.Nunca mais tornarei a falar ao povo;pela última vez falei com um morto.

Quero unir−me aos criadores, aos quecolhem e se divertem; mostrar−lhes−ei oarco−íris e todas as escadas que levamao Super−homem.

Entoarei o meu cântico aos solitários eaos que se encontram juntos na solidão;e a quem quer que tenha ouvidos paraas coisas inauditas confranger−lhe−ei ocoração com a minha ventura.

Caminho para o meu fim; sigo o meucaminho; saltarei por cima dosnegligentes e dos retardados. Destamaneira será a minha marcha o seufim!"

X

Assim falou Zaratustra ao seu coraçãoquando o sol ia em meio do seu curso;depois dirigiu para as alturas um olharinterrogador porque ouvia no alto o gritopenetrante de uma ave. E viu uma águiaque pairava nos ares traçando largosrodeios e sustentando uma serpenteque não parecia uma presa, mas umaliado, porque se lhe enroscava aopescoço.

"São os meus animais! − disseZaratustra, e regozijou−se intimamente.O animal mais arrogante que o sol cobree o animal mais astuto que o sol cobresaíram em exploração. Queriam

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descobrir se Zaratustra ainda vivia.Ainda viverei, deveras?

Encontrei mais perigos entre os homensdo que entre os animais; perigosassendas segue Zaratustra. Guiem−me osmeus animais".

Depois de dizer isto, Zaratustrarecordou−se das palavras do santo dobosque, suspirou e falou assim ao seucoração:

"Devo ser mais judicioso! Devo ser tãoprofundamente astuto como a minhaserpente.

Peço, porém, o impossível; rogo,portanto, a minha altivez que meacompanhe sempre a prudência! E seum dia a prudência me abandonar − ai!agrada−lhe tanto fugir! − possa sequer aminha altivez voar com a minhaloucura!" Assim começou o ocaso deZaratustra.

Das Três Transformações

"Três transformações do espírito vosmenciono: como o espírito se muda emcamelo, e o camelo em leão, e o leão,finalmente, em criança.

Há muitas coisas pesadas para oespírito, para o espírito forte e sólido,respeitável. A força deste espírito estáclamando por coisas pesadas, e dasmais pesadas.

Há o quer que seja pesado? − perguntao espírito sólido. E ajoelha−se igualcamelo e quer que o carreguem bem.Que há mais pesado, heróis − perguntao espírito sólido − para eu o ditar sobremim, para que a minha força se recreie?

Não será rebaixarmo−nos para o nossoorgulho padecer?

Deixar brilhar a nossa loucura parazombarmos da nossa sabedoria?

Ou será separarmo−nos da nossacausa quando ela festeja a sua vitória?

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Escalar altos montes para tentar o quenos tenta?

Ou será sustentarmo−nos com bolotas eerva do conhecimento e sofrer fome naalma por causa da verdade? Ou seráestar enfermo e despedir aconsoladores e travar amizade comsurdos que nunca ouvem o quequeremos?

Ou será nos afundar em água sujaquando é a água da verdade, e nãoafastarmos de nós as frias rãs e osquentes sapos?

Ou será amar os que nos desprezam eestender a mão ao fantasma quandonos quer assustar?

O espírito sólido sobrecarrega−se detodas estas coisas pesadíssimas; e àsemelhança do camelo que correcarregado pelo deserto, assim ele correpelo seu deserto. No deserto maissolitário, porém, se efetua a segundatransformação: o espírito toma−se leão;quer conquistar a liberdade e ser senhorno seu próprio deserto.

Procura então o seu último senhor, querser seu inimigo e de seus dias; querlutar pela vitória com o grande dragão.

Qual é o grande dragão a que o espiritojá não quer chamar Deus, nem senhor?

"Tu deves", assim se chama o grandedragão; mas o espírito do leão diz: "Euquero".

O "tu deves" está postado no seucaminho, como animal escamoso deáureo fulgor; e em cada uma das suasescamas brilha em douradas letras: "Tudeves!"

Valores milenários cintilam nessasescamas, e o mais poderoso de todosos dragões fala assim:

"Em mim brilha o valor de todas ascoisas".

"Todos os valores foram já criados, e eusou todos os valores criados. Para ofuturo não deve existir o "eu quero!"Assim falou o dragão.

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Meus irmãos, que falta faz o leão noespírito? Não será suficiente a besta decarga que abdica e venera?

Criar valores novos é coisa que o leãoainda não pode; mas criar umaliberdade para a nova criação, issopode−o o poder do leão. Para criar aliberdade e um santo NÃO, mesmoperante o dever; para isso, meusirmãos, é preciso o leão.

Conquistar o direito de criar novosvalores é a mais terrível apropriação aosolhos de um espírito sólido e respeitoso.Para ele isto é uma verdadeira rapina epróprio de um animal rapace.

Como o mais santo, amou em seutempo o "tu deves" e agora tem de ver ailusão e arbitrariedade até no maissanto, a fim de conquistar a liberdade àcusta do seu amor. É preciso um leãopara esse feito...

Dizei−me, porém, irmãos: que poderá acriança fazer que não haja podido fazero leão? Para que será preciso que oaltivo leão se mude em criança?

A criança é a inocência, e oesquecimento, um novo começar, umbrinquedo, uma roda que gira sobre si,um movimento, uma santa afirmação.

Sim; para o jogo da criação, meusirmãos, é necessário uma santaafirmação: o espírito quer agora a suavontade, o que perdeu o mundo queralcançar o seu mundo. Trêstransformações do espírito vosmencionei: como o espírito setransformava em camelo, e o cameloem leão, e o leão, finalmente, emcriança".

Assim falou Zaratustra. E nesse temporesidia na cidade que se chama "VacaMalhada".

Das Cátedras da Virtude

Elogiara a Zaratustra um sábio quefalava doutamente do sono e da virtude;por isso se via cumulado de honrarias erecompensas, e todos os mancebos

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acorriam à sua cátedra. Zaratustra foiter com ele, e, como todos osmancebos, sentou−se diante da suacátedra. E o sábio falou assim:

"Honrai o sono e respeitai−o! É isso ofundamental.

E fugi de todos os que dormem mal eestão acordados de noite.

O próprio ladrão se envergonha empresença do sono. Sempre vagueiasilencioso durante a noite: mas o relentoé insolente.

Não é pouco saber dormir; para isso épreciso aprontar−se durante o dia.

Dez vezes ao dia deves sabervencer−te a ti mesmo; isto cria umafadiga considerável, e esta é adormideira da alma.

Dez vezes deves reconciliar−te contigomesmo, porque é amargovencermo−nos, e o que não estáreconciliado dorme mal.

Dez verdades hás de encontrar duranteo dia; se assim não for, aindaprocurarás verdades durante a noite e atua alma estará faminta.

Dez vezes ao dia precisas rir e estaralegre, senão incomodar−te−á de noiteo estômago, esse pai da aflição.

Embora poucas pessoas o saibam,deve−se ter todas as virtudes paradormir bem.

Levanto falsos testemunhos? Cometiadultério?

Cobiço a serva do próximo? Tudo istose combina mal com um bom sono.

E se se tivessem as virtudes, seriapreciso saber fazer coisa: adormecer atempo todas as virtudes.

É mister que estas lindas mulheres senão desavenham! E por tua causa,infeliz!

Paz com Deus e com o próximo; assimo quer o bom sono. E também paz com

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o diabo do próximo, senão,atormentar−te−á de noite.

Honra e obediência à autoridade,mesmo à autoridade que claudique!Assim o exige o bom sono! Acaso temuma pessoa culpa do poder gostar deandar com pernas coxas?

Aquele que conduz as suas ovelhas aoprado mais vicioso, para mim serámelhor pastor: isto é conveniente aobom sono.

Não quero muitas honras nem grandestesouros; isto exacerba a bílis.Dorme−se mal, porém, sem uma boareputação e um pequeno tesouro.

Prefiro pouca ou má companhia; mas énecessário que venha e se vá emborano momento certo. É isto o que convémao bom sono.

Também me agradam muito os pobresde espírito: apressam o sono. Sãobem−aventurados, mormente quando selhes dá sempre razão. Assim passam odia os virtuosos. Quando chega a noite,livro−me bem de chamar o sono. Osono, que é o rei das virtudes, não querser chamado.

Somente penso no que fiz e durante odia. Ruminando, interrogo−mepacientemente como uma vaca. Então,quais foram as tuas dez vitórias sobre timesmo?

E quais foram as dez reconciliações, eas dez verdades, e os dez risos, comque se alegrou o meu coração?

Maquinando nestas coisas e acalentadopor quarenta pensamentos, o sono, queeu não chamei, logo me surpreende.

O sono dá−me nos olhos, e sinto−ospesados. O sono aflora à minha boca, ea boca fica aberta.

Sutilmente se introduzem mim o ladrãopredileto e rouba−me os pensamentos.Estou de pé, feito um tronco; mas aindahá pouco de pé, logo me estendo.

Ouvindo falar o sábio, Zaratustra riu−seconsigo mesmo.

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"Parece−me doido este sábio com osseus quarenta pensamentos, mas creioque compreende bem o sono.

Bem−aventurado o que habite ao pédeste sábio! Um sono assim écontagioso, mesmo através de umaparede espessa.

Na sua cátedra mesmo há um feitiço. Enão era debalde que os mancebosestavam sentados ao pé do pregador davirtude.

Diz a sua sabedoria: "Velar para dormirbem". E, na verdade, se a vida faltassesenso e eu tivesse que eleger umcontra−senso, esse contra−sensoparecer−me−ia o mais digno de eleição.

Agora compreendo o que se procuravaprimeiro que tudo em nossos dias,quando se procuravam mestres devirtude. O que se procurava era um bomsono, e para isso virtudes coroadas dedormideiras.

Para todos estes sábios catedráticos,tão ponderados, a sabedoria era dormirsem sonhar: não conheciam melhorsentido da vida. Hoje ainda há algunscomo este pregador da virtude, e nemsempre tão honestos como ele; mas oseu tempo já passou.

E ainda bem não estão em pé, já seestendem.

Bem−aventurados tais dormentesporque não tardarão a dormir de todo".

Assim falou Zaratustra.

Dos Crentes em Além−Mundos

Um dia, Zaratustra elevou a sua ilusãomais além da vida dos homens, àmaneira de todos os que crêem emalém−mundos.

Obra de um deus dolente e atormentadolhe pareceu então o mundo.

"Sonho me parecia, e ficção de umdeus: vapor colorido ante os olhos deum divino descontente.

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Bem e mal, alegria e desgosto, eu e tuvapor colorido me parecia tudo ante osolhos criadores. O criador queria desviarde si mesmo o olhar... e criou o mundo.

Para quem sofre é uma alegriaesquecer o seu sofrimento. Alegriainebriante e esquecimento de si mesmome pareceu um dia o mundo.

Este mundo, o eternamente imperfeito,me pareceu um dia imagem de umaeterna contradição e uma alegriainebriante para o seu imperfeito criador.

Da mesma maneira projetei eu tambéma minha ilusão mais para além da vidados homens à semelhança de todos oscrentes em além−mundos. Além doshomens, realmente? Ai! meus irmãos!Este deus que eu criei era obra humanae humano delírio, igual a todos osdeuses. Era homem, tão−somente umfragmento de homem e de mim. Essefantasma saía das minhas própriascinzas e da minha própria chama, e naverdade nunca veio do outro mundo.

Que ocorreu, meus irmãos? Eu, quesofria, dominei−me; levei a minhaprópria cinza para a montanha; inventeipara mim uma chama mais clara. Evede! O fantasma ausentou−se!

Agora que estou curado, seria para mimum sofrimento e um tormento crer emsemelhantes fantasmas. Assim falo euaos que crêem em além−mundos.

Sofrimentos e incompetências; eis o quecriou todos os além−mundos, e estebreve delírio da felicidade que sóconhece quem mais sofre.

A fadiga, que de um salto quer atingir oextremo, uma fadiga pobre e ignorante,que não quer ao menos um maiorquerer; foi ela que criou todos os deusese todos os além−mundos. Acreditai−me,meus irmãos!

Foi o corpo que desesperou do corpo:tateou com os dedos do espíritoextraviado as últimas paredes.

Creiam−me, meus irmãos! Foi o corpoque desesperou da terra: ouviu falar asentranhas do ser.

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Quis então que a sua cabeçatranspassasse as últimas paredes, enão só a cabeça: até ele quis passarpara o "outro mundo". O "outro mundo",porém, esse mundo desumanizado einumano, que é um nada celeste, estáoculto aos homens, e as entranhas doser não falam ao homem, a não sercomo homem.

É realmente difícil demonstrar o Ser, edifícil é fazê−lo falar. Dizei−me, porém,irmãos: a mais estranha de todas ascoisas não será a melhor demonstrada?

E este Eu que cria, que quer, e que dá amedida e o valor das coisas, este Eu, ea contradição e confusão do Eu falamcom a maior lealdade do seu ser.

E este ser lealíssimo, o Eu, fala docorpo, e quer o corpo, embora sonhe edivague e esvoace com asas partidas.

O eu aprende a falar mais realmente decada vez, e, quanto mais aprende, maispalavras acha para honrar o corpo eterra.

O meu Eu ensinou−me um novo orgulhoque eu ensino aos homens: não ocultara cabeça nas nuvens celestes, maslevá−la descoberta; sustentar erguidauma cabeça terrestre que creia nosentido da terra. Eu ensino aos homensuma nova vontade: querer o caminhoque os homens têm seguido cegamente,e considerá−lo bom, e fugir dele comoos enfermos e os decrépitos.

Enfermos e decrépitos foram os quemenosprezaram o corpo e a terra, osque inventaram as coisas celestes e asgotas de sangue redentor; mas atéesses doces e lúgubres venenos forambuscar no corpo e na terra!

Queriam fugir da sua miséria, e asestrelas estavam demasiado longe paraeles. Então suspiraram: "Oh! sehouvesse caminhos celestes paraalcançar outra vida e outra felicidade!" Einventaram os seus artifícios e as suasbeberagens sangrentas.

E julgaram−se arrebatados para longedo seu corpo e desta terra, os ingratos!A quem deviam, porém, o seu espasmo

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e o deleite do seu arroubamento? Aoseu corpo e a esta terra.

Zaratustra é tolerante com os enfermos.Não o enfadam as suas formas de seconsolarem, nem a sua ingratidão.Curem−se, dominem−se, criem umcorpo superior.

Zaratustra também se não enfada com oque sara quando este olha com carinhoas suas ilusões, e vai à meia−noiterodear a tumba do seu Deus; mas assuas lágrimas continuam sendo paramim enfermidade e corpo enfermo.

Houve sempre muitos enfermos entre osque sonham e suspiram por Deus;odeiam furiosamente o que procura oconhecimento e a mais nova dasvirtudes, que se chama lealdade.

Olham sempre para trás, para temposobscuros; nesse tempo, certamente, ailusão e a fé eram outra coisa. O delírioda razão era algo divino, e a dúvida,pecado.

Conheço demasiado esses semelhantesa Deus; querem que se acredite neles eque a dúvida seja pecado. Também seide sobra no que é que eles crêem mais.

Não é, certamente, em além−mundos eem gotas de sangue redentor; elestambém crêem principalmente no corpo,e ao seu próprio que olham como acoisa em si.

O seu corpo, porém, é coisa enfermiça ede boa vontade se livrarão dele. Porisso escutam os pregadores da morte eeles mesmos pregam os além−mundos.

Preferi, meus irmãos, a voz do corpocurado; é uma voz mais leal e maispura. O corpo são, o corpo cheio deângulos, retos, fala com mais lealdade,e mais pureza; fala do sentido da terra".

Assim falou Zaratustra.

Dos Que Desprezam o Corpo

Aos que desprezam o corpo quero dar omeu parecer. O que devem fazer não é

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mudar de preceito, mas simplesmentedespedirem−se do seu próprio corpo e,por conseguinte, ficarem mudos.

"Eu sou corpo e alma" − assim fala acriança. − E por que se não há de falarcomo as crianças?

Entretanto o que está desperto e atentodiz: − "Tudo é corpo e nada mais; aalma é apenas nome de qualquer coisado corpo".

O corpo é uma razão em ponto grande,uma multiplicidade com um só sentido,uma guerra e uma paz, um rebanho eum pastor.

Instrumento do teu corpo é também atua razão pequena, a que chamasespírito: um instrumentozinho e umpequeno brinquedo da tua razãogrande.

Tu dizes "Eu" e orgulhas−te dessapalavra. No entanto, maior − coisa quetu não queres crer − é o teu corpo e atua razão grande. Ele não diz Eu, mas:procede como Eu.

O que os sentidos apreciam, o que oespírito conhece, nunca em si tem seufim; mas os sentidos e o espíritoquereriam convencer−te de que são fimde tudo; tão soberbos são.

Os sentidos e o espírito sãoinstrumentos e joguetes; por detrásdeles se encontra o nosso próprio ser.Ele examina com os olhos dos sentidose escuta com os olhos do espírito.

Sempre escuta e esquadrinha o próprioser: combina, submete, conquista edestrói. Reina, e é também soberano doEu.

Por detrás dos teus pensamentos esentimentos, meu irmão, há um senhormais poderoso, um guia desconhecido.Chama−se "eu sou". Havia no teu corpo;é o teu corpo. Há mais razão no teucorpo do que na tua melhor sabedoria.E quem sabe para que necessitará o teucorpo precisamente da tua melhorsabedoria?

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O próprio ser se ri do teu Eu e dos seussaltos arrogantes. Que significam paramim esses saltos e vôos dopensamento? − diz. − Um rodeio para omeu fim. Eu sou o guia do Eu e oinspirador de suas idéias.

O nosso próprio ser diz ao Eu:"Experimenta dores! E padece e meditaem não padecer mais; e para isso devepensar. O nosso próprio ser diz ao Eu:"Experimenta alegrias!" Regozija−seentão e pensa em continuar aregozijar−se freqüentemente; e issodeve pensar.

Quero dizer uma coisa aos quedesprezam o corpo: desprezam aquilo aque devem a sua estima.

Quem criou a estima e o menosprezo eo valor e a vontade?

O próprio ser criador criou a sua estimae o seu menosprezo, criou a sua alegriae a sua dor. O corpo criador criou a simesmo o espírito como emanação dasua vontade.

Desprezadores do corpo: até na vossaloucura e no vosso desdém sereis ovosso próprio ser. Eu vos digo: o vossopróprio ser quer morrer e se afasta davida.

Não pode fazer o que mais desejaria:criar superando−se a si mesmo.

É isto o que ele mais deseja: é esta asua paixão toda.

É, porém, tarde demais para isso: porisso até o vosso próprio ser querdesaparecer, desprezadores do corpo.

O vosso próprio ser quer desaparecer:por isso desprezais o corpo! Porque nãopodeis criar já, superando−vos a vósmesmos. Por isso vos revoltais contra avida e a terra. No vosso olhardesdenhoso transparece uma invejainconsciente.

Eu não sigo o vosso caminho,desprezadores do corpo! Vós, para mim,não sois pontes que se encaminhempara o Super−Homem!"

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Assim falou Zaratustra

Das Alegrias e Paixões

"Irmão, quando possuis uma virtude eessa virtude é tua, não a tens emcomum com pessoa nenhuma.

A falar verdade, tu queres chamá−lapelo seu nome e acariciá−la; querespuxar−lhe a orelha e divertir−te com ela.

E já vês! Tens agora o teu nome emcomum com o povo, e tornaste−te povoe rebanho com a tua virtude! Fariasmelhor dizendo: "Coisa inexprimível esem nome é o que constitui o tormentoe a doçura da minha alma, e o que étambém a fome das minhas entranhas

Seja a tua virtude demasiado alta para afamiliaridade de denominações: e senecessitas falar dela não teenvergonhes de balbuciar. Fala ebalbucia assim: "Este é o meu bem, oque amo; só assim me agradainteiramente; só assim é que querobem. Não o quero como mandamentode um Deus, nem como uma lei e umanecessidade humana: não há de serpara mim um guia de terras superiores eparaísos.

O que eu amo é uma virtude terrena,que se não relaciona com a sabedoria eo sentir comum.

Este pássaro, porém, construiu o ninhoem mim: por isso lhe quero e o estreitoao coração. Agora incuba em mim osseus dourados ovos".

É assim que deves revelar e elogiar atua virtude.

Dantes tinhas paixões e chamava−lhesmales. Agora, todavia, só tens as tuasvirtudes: nasceram das tuas paixões.

Puseste nessas paixões o teu objetivomais elevado: então passaram a sertuas virtudes e alegrias. Fostes da raçados coléricos, ou dos voluptuosos oudos fantásticos, ou dos vingativos, todasas tuas paixões acabaram por se mudarem virtude, todos os teus demônios em

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anjos.

Dantes tinhas no teu antro cãesselvagens, mas acabaram por seconverter em pássaros e aves canoras.

Com os teus venenos preparaste o teubálsamo: ordenhaste a tua vaca detribulação e agora bebes o saborosoleite dos seus úberes. E nenhum malnasce em ti, a não ser aquele que brotada luta das tuas virtudes.

Irmão, quando gozas de boa sorte tensuma virtude, e nada mais: assim passasmais ligeiro a ponte. É uma distinção termuitas virtudes, mas é sorte bem dura:e não são poucos os que se têm idomatar ao deserto por estarem fartos deser combatente e campo de batalha devirtudes.

Irmão, a guerra e as batalhas sãomales? Pois são males necessários: ainveja, a desconfiança e a calúnia sãonecessárias entre as tuas virtudes.

Repara como cada uma das virtudesdeseja o mais alto que há: quer todo oteu espírito para seu arauto, quer a tuaforça toda na cólera, no ódio e no amor.

Cada virtude é ciosa das outrasvirtudes, e os ciúmes são uma coisaterrível. Também há virtudes que podemmorrer por ciúmes. O que anda emredor da chama dos ciúmes, acaba qualescorpião, por voltar contra si mesmo oaguilhão envenenado.

Ai, meu irmão! Nunca viste uma virtudecaluniar−se e aniquilar−se a si mesma?O homem precisa ser superado. Porisso necessitas amar as tuas virtudes,porque por elas morrerás".

Assim falou Zaratustra.

Do Pálido Delinqüente

"Vós, juizes e sacrificadores, nãoquereis matar enquanto a besta nãohaja inclinado a cabeça? Vede: o pálidodelinqüente inclinou a cabeça: em seusolhos fala o supremo desprezo.

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"O meu Eu deve ser superado: o meuEu é para mim o grande desprezo dohomem". Assim faIam os olhos dele. Oseu momento maior foi aquele em que asi mesmo se julgou. Não deixeis osublime tornar a cair na sua baixeza!

Para aquele que tanto sofre por si, só hásalvação na morte rápida.

O vosso homicídio, ó juizes, deve sercompaixão e não vingança. E, ao matar,tratai de justificar a própria vida.

Não vos basta reconciliar−vos comaquele que matais. Seja a vossa tristezaamor ao Super−homem; assim justificaisa vossa supervivência!

Dizei "inimigo", "malvado" não; dizei"enfermo" e não "infame"; dizei"insensato" e não "pecador".

E tu, vermelho juiz, se dissesses em vozalta o que fizeste já em pensamento,toda gente gritaria: Abaixo essaimundície e esse verme venenoso!...

Uma coisa é o pensamento, outra aação, outra a imagem da ação.

A roda da causalidade não gira entreelas.

Uma imagem fez empalidecer essehomem pálido. Ele estava à altura doseu ato quando o realizou, mas nãosuportou a sua imagem depois de o terconsumado.

Sempre se viu só, como o autor de umato. Eu considero isso loucura; aexceção converteu−se para ele emregra.

O golpe que deu fascina−lhe a pobrerazão: a isso chamo eu a loucura depoisdo ato.

Ouvi, juizes! Ainda há outra loucura: aloucura antes do ato. Ah! nãopenetrastes profundamente nessa alma.O juiz vermelho fala assim: "Por queeste criminoso matou? Queria roubar".

Mas eu vos digo: a sua alma queriasangue e não o roubo; tinha sede dogozo da faca!

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A sua pobre razão, contudo, nãocompreendia essa loucura e decidiu−o."Que importa o sangue? − disse ela. −Nem ao menos desejas roubar aomesmo tempo? Não te desejas vingar?"

E atendeu a sua pobre razão, cujalinguagem pesava sobre ele comochumbo; então roubou ao assassinar.Não se queria envergonhar da sualoucura. E agora pesa sobre ele ochumbo do seu crime; mas a sua pobrerazão está tão paralisada, tão torpe!...

Se ao menos pudesse sacudir a cabeça,a sua carga cairia, mas quem sacudiráesta cabeça?

Quem é este homem? Um conjunto deenfermidades que, pelo espírito, abremcaminho para fora do mundo, ondequerem apanhar a sua presa.

Que é este homem? Um magote deserpentes ferozes que se não podementender; por isso cada um vai por seulado procurar a presa pelo mundo.

Vede este pobre corpo! O que ele sofreue o que desejou, a alma o interpretou aseu favor; interpretou−o como gozo edesejo sanguinário do prazer da faca.

O que enferma agora vê−se dominadopelo mal, que é mal agora; quer fazersofrer com o que o faz sofrer; mashouve outros tempos e outros males ebens.

Dantes era um mal a dúvida e a vontadeprópria. Então o enfermo torna−seherege e bruxa; como herege e bruxapadecia e fazia padecer.

Mas isto não quer entrar nos vossosouvidos; prejudica, dizeis, os vossosbons; mas que me importam a mim osvossos bons?

Nos vossos bons há muitas coisas queme repugnam, e de certo não é o seumal.

Quereria que tivessem uma loucura queos levasse a sucumbir, como essepálido criminoso.

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Quereria que a sua loucura sechamasse verdade, ou fidelidade, oujustiça; mas têm virtude para viver emmísera conformidade.

Eu sou um anteparo na margem do rio;aquele que puder prender−me, que ofaça. Saiba−se, porém, que não souvossa muleta". Assim falou Zaratustra.

Ler e Escrever

"De todo o escrito só me agrada aquiloque uma pessoa escreveu com o seusangue. Escreve com sangue eaprenderás que o sangue é espírito.

É difícil compreender sangue alheio: eudetesto todos os ociosos que lêem. Oque conhece o leitor já nada faz peloleitor. Um século de leitores, e o próprioespírito terá mau cheiro.

Ter toda a gente o direito de aprender aler é coisa que estropia, não só a letramas o pensamento.

Noutro tempo o espírito era Deus;depois fez−se homem; agora fez−sepopulaça.

O que escreve em máximas e comsangue não quer ser lido, masdecorado. Nas montanhas, o caminhomais curto é o que medeia de cimo acimo; mas para isso é preciso ter pernasaltas. Os aforismos devem sercumeeiras, e aqueles a quem se faladevem ser homens altos e robustos.

O ar leve e puro, o próximo perigo e oespírito cheio de uma alegre malícia,tudo isto se harmoniza bem. Eu querover duendes em torno de mim porquesou valoroso. O valor que afugenta osfantasmas cria os seus própriosduendes: o valor quer rir.

Eu já não sinto em uníssono convosco;essa nuvem que eu vejo abaixo de mim,esse negrume e carregamento de queme rio, é exatamente a vossa nuvemtempestuosa.

Vós olhais para o alto quando aspirais avos elevar. Eu, como estou alto, olho

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para baixo.

Qual de vós pode estar alto e rir aomesmo tempo?

O que escala elevados montes ri−se detodas as tragédias da cena e da vida.Valorosos, despreocupados,zombeteiros, violentos, eis como nosquer a sabedoria. É mulher e sólutadores podem amar.

Vós dizeis−me: "A vida é uma cargapesada". Mas para que é esse vossoorgulho pela manhã e essa vossasubmissão à tarde?

A vida é uma carga pesada: mas nãovos mostreis tão aflitos. Todos somosjumentos carregados.

Que parecença temos com o cálice derosa que treme porque o oprime umagota de orvalho?

É verdade: amamos a vida não porqueestejamos costumados à vida, mas aoamor.

Há sempre o seu quê de loucura noamor; mas também há sempre o seuquê de razão na loucura. E eu, queestou bem com a vida, creio que parasaber de felicidade não há como asborboletas e as bolhas de sabão, e oque se lhes assemelhe entre oshomens.

Ver revolutear essas almas aladas eloucas, encantadoras e buliçosas, é oque arranca a Zaratustra lágrimas ecanções.

Eu só poderia crer num Deus quesoubesse dançar.

E quando vi o meu demônio,pareceu−me sério, grave, profundo esolene: era o espírito do pesadelo. Porele caem todas as coisas.

Não é com raiva, mas com riso que semata. Adiante! Matemos o espírito dopesadelo!

Eu aprendi a andar; por conseguintecorro. Eu aprendi a voar portanto nãoquero que me empurrem para mudar de

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lugar.

Agora sou leve, agora vôo: agora vejopor baixo de mim mesmo, agora saltaem mim um Deus".

Assim falou Zaratustra.

Da Árvore da Montanha

Os olhos de Zaratustra tinham visto ummancebo que evitava a sua presença.E, uma tarde, ao atravessar sozinho asmontanhas que rodeiam a cidadedenominada Vaca Malhada, encontrouesse mancebo sentado ao pé de umaárvore, dirigindo ao vale um olharfatigado. Zaratustra agarrou a arvore aque o mancebo se encostava e disse:

"Se eu quisesse sacudir esta árvorecom as minhas mãos não poderia; maso vento que não vemos açoita−a edobra−a como lhe apraz. Também a nósmãos invisíveis nos açoitam e dobramrudemente".

A tais palavras, o mancebo ergueu−seassustado, dizendo: "Ouço Zaratustra, epositivamente estava a pensar nele".

"Por que te assustas? O que sucede àarvore sucede ao homem.

Quanto mais se quer erguer para o altoe para a luz, mais vigorosamenteenterra as suas raízes ara baixo, para otenebroso e profundo para o mal".

"Sim; para o mal! − exclamou omancebo − Como é possível teresdescoberto a minha alma?" Zaratustrasorriu e disse: "Há almas que nunca sedescobrirão, a não ser que se principiepor inventá−las".

"Sim; para o mal! − exclamou outra vezo mancebo.

Dizias a verdade, Zaratustra. Já nãotenho confiança em mim desde quequero subir às alturas, e já nada temconfiança em mim. A que se deve isto?

Eu me transformo muito depressa: omeu hoje contradiz o meu ontem. Com

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freqüência salto degraus quando subo,coisa que os degraus me não perdoam.

Quando chego em cima, sempre meencontro só. Ninguém me fala; o frio dasolidão faz−me tiritar. Que é que quero,então, nas alturas? O meu desprezo e omeu desejo crescem a par; quanto maisme elevo mais desprezo o que seeleva? Como me envergonho da minhaascensão e das minhas quedas! Comome rio de tanto anelar! Como odeio oque voa! Como me sinto cansado nasalturas!"

O mancebo calou−se Zaratustra olhouatento a arvore a cujo pé seencontravam e falou assim

"Esta árvore está solitária na montanha.Cresce muito sobranceira aos homens eaos animaisÃ

E se quisesse falar ninguém haveria quea pudesse compreender: tanto cresceu.

Agora espera, e continua esperando.Que esperará, então? Habita pertodemais das nuvens: acaso esperará oprimeiro raio?"

Quando Zaratustra acabava de dizeristo, o mancebo exclamou com gestosveementes:

"E verdade, Zaratustra: dizes bem. Euansiei por minha queda ao quererchegar às alturas, e tu eras o raio queesperava. Olha: que sou eu, desde quetu nos apareceste? A invejaaniquilou−me!" Assim falou o mancebo,e chorou amargamente. Zaratustracingiulhe a cintura com o braço e levouoconsigo. Depois de andarem juntosdurante algum tempo, Zaratustracomeçou a falar assim:

"Tenho o coração dilacerado. Melhor doque as tuas palavras, dizem−me os teusolhos todo o perigo que corres.

Ainda não és livre, ainda procuras aliberdade.

As tuas buscas desvelaram−te eenvaideceram−te de maneira excessiva.

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Queres escalar a altura livre; a tua almaestá sedenta de estrelas; mas tambémos teus maus instintos têm sede deliberdade.

Os teus cães selvagens querem serlivres; ladram de prazer no seu covilquando o teu espírito tende a abrir todasas prisões.

Para mim, és ainda um preso que sonhacom a liberdade. Ai, a alma de presosassim torna−se prudente, mas tambémastuta e má.

O que libertou o teu espírito necessitaainda purificar−se. Ainda lhe restammuitos vestígios de prisão e de lodo: épreciso, todavia, que a tua vista sepurifique.

Sim; conheço o teu perigo; mas poramor de mim te aconselho a nãoafastares para longe de ti o teu amor e atua esperança!

Ainda te reconheces nobre, assim comonobre te reconhecem os outros, os queestão mal contigo e te olham com mausolhos. Fica sabendo que todos tropeçamcom algum nobre no seu caminho.

Também os bons tropeçam com algumnobre no seu caminho, e se lhe chamambom é tão−somente para o pôr de lado.

O nobre quer criar alguma coisa nobre euma nova virtude. O bom deseja o velhoe que o velho se conserve.

O perigo do nobre, contudo, não étornar−se bom, mas insolente,zombeteiro e destruidor.

Ah, eu conheci nobres que perderam asua mais elevada esperança. E depoiscaluniaram todas as elevadasesperanças.

Agora têm vivido abertamente comminguadas aspirações, e apenasplanearam um fim de um dia para outro

"O espirito é voluptuosidade" – diziam. Eentão o se espirito quebrou as asas;arrastar−se−à agora de trás para diante,maculando tudo quanto consome.

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Noutro tempo pensavam fazer−seheróis; agora são folgazões. O herói épara ele aflição e espanto.

Mas, por amor de mim e da minhaesperança te digo: não expulses paralonge de ti o herói que há na tua alma!Santifica a tua mais elevada esperança!"

Assim falou Zaratustra.

Dos Pregadores da Morte

"Há pregadores da morte, e a terra estácheia de indivíduos a quem é precisopregar que desapareçam da vida.

A terra está cheia de supérfluos, e osque estão demais prejudicam a vida.Tirem−nos desta com o engodo da"eterna"!

"Amarelos" se costuma chamar aospregadores da morte, ou então "pretos".Eu, porém, quero apresentá−lo tambémsob outras cores.

Terríveis são os que têm dentro de si aterra, e que só podem escolher entre asconcupiscências e as mortificações.

Nem sequer chegaram a ser homensesses seres terríveis.

Preguem, pois, o abandono da vida, evão−se eles também!

Eis os fracos de alma. Mal nasceram ejá começaram a morrer, e sonham comdoutrinas do cansaço e da renúncia.Queriam estar mortos, e nós devemossantificar−lhes a vontade. Livremo−nosde ressuscitar esses mortos e de lhesviolar as sepulturas.

Encontram um doente, um velho ou umcadáver, e depois dizem: "Reprove−se avida!"

Os reprovados, contudo, são apenaseles, assim como os seus olhos que sóvêem um aspecto da sua vida.

Sumidos na densa tristeza e ávidos dosleves acidentes que matam, esperamcerrando os dentes.

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Ou então estendem a mão para doces ezombam das suas próprias criancices:estão encostados à vida como umapalha, e escarnecem de se apoiarem auma palha.

A sua sabedoria diz: "Louco quempertence à vida, mas assim somos nósloucos! E esta é a maior loucura davida!"

"A vida não é mais do que sofrimento",dizem outros, e não mentem.

Cuidai, portanto, de abreviar a vossa.Fazei cessar a vida que é só sofrimento!Eis o ensinamento da vossa virtude:"Deves matar−te a ti mesmo! Devesdesaparecer diante de ti mesmo!"

"A luxúria é pecado − dizem alguns dosque pregam a morte. Separemo−nos enão geremos filhos!"

"É doloroso dar a luz − dizem os outros.− Para que se há de continuar a dar àluz?" E também eles são pregadoresmorte

"É preciso ser compassivo − dizem osterceiros − Recebei o que tenho.

Recebei o que sou! Assim me prendomenos à vida". Se fossem mesmocompassivos procurariam desgostar davida o próximo. Serem maus, seria averdadeira bondade.

Eles, porém, querem libertar−se da vida.Que lhes importa prender outros a elamais estreitamente com as suas cadeiase as suas dádivas?

E vós também, vós que levais uma vidade inquietação e de trabalho furioso,não estais cansadíssimos da vida? Nãoestais bastante sazonados para apregação da morte?

Vós todos que amais o trabalho furiosoe tudo o que é rápido, novo, singular,suportai−vos mal a vós mesmos: avossa atividade é fuga e desejo de vosesquecerdes de vós mesmos.

Se confiásseis mais na vida, não vosentregaríeis tanto ao momento corrente.

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Mas não tendes fundo suficiente paraesperar nem tão pouco para a preguiça.

Por toda parte ressoa a voz dos quepregam a morte, e a terra está cheia deseres a que é mister pregar a morte.

Ou "a vida eterna" – que para mim é omesmo − contanto que se vãodepressa.

Asim Falou Zaratustra.

Da Guerra e dos Guerreiros

"Não queremos que os nossos inimigosnos tratem com clemência, nem tãopouco aqueles a quem estimamos decoração. Deixai−me, portanto, dizer−vosa verdade! Irmãos na guerra! Amo−vosde todo o coração; eu sou e era vossosemelhante. Também sou vossoinimigo. Deixai−me, portanto, dizer−vosa verdade!

Conheço o ódio e a inveja do vossocoração. Não sois bastante grandespara não conhecer o ódio e a inveja.Sede, pois, grandes o suficiente paranão vos envergonhardes disso!

E se não podeis ser os santos doconhecimento, sede ao menos os seusguerreiros. Eles são os companheiros eos precursores dessa entidade.

Vejo muitos soldados; oxalá possa vermuitos guerreiros. Chama−se "uniforme"o seu traje; não seja, porém, uniforme oque esse traje oculta! Vós deveis serdaqueles cujos olhos procuram sempreum inimigo, o vosso inimigo. Em algunsde vós se descobre o ódio à primeiravista.

Vós deveis procurar o vosso inimigo efazer a vossa guerra, uma guerra porvossos pensamentos. E se o vossopensamento sucumbe, a vossalealdade, contudo, deve cantar vitória.Deveis amar a paz como um meio denovas guerras, e mais a curta paz doque a prolongada.

Não vos aconselho o trabalho, mas aluta. Não vos aconselho a paz, mas a

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vitória. Seja o vosso trabalho uma luta!Seja vossa paz uma vitória!

Não é possível estar calado epermanecer tranqüilo senão quando setêm flechas no arco; a não ser assim,questiona−se. Seja a vossa paz umavitória!

Dizeis que a boa causa é a que santificatambém a guerra? Eu vos digo: a boaguerra é a que santifica todas as coisas.

A guerra e o valor têm feito mais coisasgrandes do que o amor do próximo. Nãofoi a vossa piedade mas a vossabravura que até hoje salvou osnáufragos.

Que é bom? − perguntais. –Ser valente.Deixai as raparigas dizerem: "Bom é obonito e o meigo".

Chamam−vos gente sem coração; maso vosso coração é sincero, e a mimagrada−me o pudor da vossacordialidade. Envergonhai−vos do vossofluxo; e os outros se envergonham doseu refluxo. Sois feios? Pois bem, meusirmãos; envolvei−vos no sublime. omanto da fealdade.

Quando a vossa alma cresce. torna−searrogante, e há maldade na vossaelevação. Conheço−vos.

Na maldade, o arrogante encontra−secom o fraco, mas não se compreendem.Conheço−vos.

Só deveis ter inimigos para os odiar, enão para os desprezar. Deveissentir−vos orgulhosos do vosso inimigo;então os triunfos dele serão tambémtriunfos vossos. A revolta é a nobrezado escravo. Seja a obediência a vossanobreza. Seja a obediência o vossopróprio mandato! Para o verdadeirohomem de guerra soa maisagradavelmente "tu deves" do que "euquero". E vós deveis procurar ordenartudo o que quiserdes. Seja o vossoamor à vida amor às mais elevadasesperanças, e que a vossa maiselevada esperança seja o mais altopensamento da vida.

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E o vosso mais alto pensamento deveisouvi−lo de mim, e é este: o homem deveser superado.

Vivei assim a vossa vida de obediênciae de guerra. Que importa o andamentoda vida! Que guerreiro quererápoupar−se?

Eu não uso de branduras convosco,amo−vos de todo o coração, irmãos naguerra!"

Assim falou Zaratustra.

Do Novo Ídolo

"Ainda em algumas partes há povos erebanhos; mas entre nós, irmãos, entrenós há Estados.

Estados? Que é isso? Vamos! Abri osouvidos, porque vos vou falar da mortedos povos.

Estado chama−se o mais fraco de todosos monstros. Mente também friamente,e eis que mentira rasteira sai da suaboca: "Eu, o Estado, sou o Povo".

É uma mentira!

Os que criaram os povos esuspenderam sobre eles uma fé e umamor, esses eram criadores: serviam avida.

Os que armam ciladas ao maior númeroe chamam a isso um Estado sãodestruidores; suspendem sobre si umaespada e mil apetites.

Onde há ainda povo não secompreende o Estado que é odiadocomo uma transgressão aos costumes eàs leis.

Eu vos dou este sinal: cada povo falauma língua do bem e do mal, que ovizinho não entende. Inventou suaprópria língua para os seus costumes eas suas leis.

Mas o Estado mente em todas aslínguas do bem e do mal, e em tudoquanto diz mente, tudo quanto tem

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roubou−o.

Tudo nele é falso; morde com dentesroubados. Até as suas entranhas sãofalsas.

Uma confusão das línguas do bem e domal: é este o sinal do Estado. Naverdade, o que este sinal indica é avontade da morte; está chamando ospregadores da morte.

Nascem homens demais; para ossupérfluos inventou−se o Estado! Vedecomo ele atrai os supérfluos! Como osengole, como os mastiga e remastiga!

"Na terra nada há maior do que eu; eusou o dedo ordenador de Deus"− assimgrita o monstro. E não são só os quetêm orelhas compridas e vista curta quecaem de joelhos! Ai, também em vossasalmas grandes murmuram as suassombrias mentiras! Eles conhecem oscorações ricos que gostam de seprodigalizar!

Sim; adivinha−vos a vós também,vencedores do antigo Deus. Saístesderrotados do combate, e agora a vossafadiga ainda serve ao novo ídolo!

Ele queria rodear−se de heróis ehomens respeitáveis. A este friomonstro agrada acalentar−se ao sol dapura consciência.

A vós quer ele dar tudo, se adorardes.Assim compra o brilho da vossa virtudee o altivo olhar dos vossos olhos.

Convosco quer atrair os supérfluos! Sim;inventou com isso uma artimanhainfernal, um corcel de morte, ajaezadocom adorno brilhante das honrasdivinas.

Inventou para o grande número umamorte que se preza de ser vida, umaservidão à medida do desejo de todosos pregadores da morte.

O Estado é onde todos bebem veneno,os bons e os maus; onde todos seperdem a si mesmos, os bons e osmaus; onde o lento suicídio de todos sechama "a vida".

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Vede, pois, esses supérfluos! Roubamas obras dos inventores e os tesourosdos sábios; chamam a civilização aoseu latrocínio, e tudo para eles sãodoenças e contratempo.

Vede, pois, esses supérfluos. Estãosempre doentes; expelindo bílis, e a issochamam periódicos. Devoram−se e nemsequer se podem dirigir.

Vede, pois, eles adquirem riquezas, efazem−se mais pobres. Querem opoder, esses incompetentes, e primeirode tudo o palanquim do poder: muitodinheiro!

Vede trepar esses ágeis macacos!Pulam uns sobre os outros earrastam−se para o lodo e para oabismo.

Todos querem abeirar−se do trono; é asua loucura − como se a felicidadeestivesse no trono! − Freqüentementetambém o trono está no lodo.

Para mim todos eles são doidos emacacos trepadores e buliçosos. O seuídolo, esse frio monstro, cheira mal;todos eles, esses idólatras, cheiram mal.

Meus irmãos, quereis por agoraafogar−vos na exalação de suas bocase de seus apetites? Antes disso arrancaias janelas e salta para o ar livre!

Evitai o mau cheiro! Afastai−vos daidolatria dos supérfluos.

Evitai o mau cheiro! Afastai−vos dofumo desses sacrifícios humanos!

Ainda agora o mundo é livre a almasgrandes. Para os que yivem solitários ouaos pares ainda há muitos lugaresvagos onde se aspira a fragrância dosmares silenciosos.

Ainda têm franca uma vida livre asalmas grandes. Na verdade, quempouco possui tanto menos é possuído.Bendita seja a nobreza!

Além onde acaba o Estado começa ohomem que não é supérfluo; começa ocanto dos que são necessários, amelodia única e insubstituível.

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Além, onde acaba o Estado... olhai,meus irmãos! Não vedes o arco−íris e aponte do Super−homem?"

Assim falou Zaratustra.

Das Moscas da Praça Pública

"Foge, meu amigo, para o teuisolamento! Vejo−te aturdido pelo ruídodos grandes homens e crivado pelosferrões dos pequenos. Dignamentesabem calar−se contigo os bosques eos penedos. Assemelha−te de novo àtua arvore querida, a árvore de forteramagem que escuta silenciosa,pendida para o mar.

Onde cessa a solidão principia a praçapública, onde principia a praça públicacomeça também o ruído dos grandescômicos e o Zumbido das moscasvenenosas. No mundo as melhorescoisas nada valem sem alguém que asrepresente; o povo chama a essesrepresentantes grandes homens.

O mundo compreende mal o que égrande, isto é, o que cria; mas tem umsentido para todos os representantes ecômicos das grandes coisas.

O mundo gira em torno dos inventoresde valores novos; gira invisivelmente;mas em torno do mundo giram o povo ea glória: assim "anda o mundo".

O cômico tem espírito, mas poucaconsciência do espírito. Confia semprenaquilo pelo qual faz crer maisenergicamente − crer em si mesmo.

Amanhã tem uma fé nova, e depois deamanhã outra mais nova. Possuisentidos rápidos como o povo, etemperaturas variáveis.

Derribar: chama a isto demonstrar.Enlouquecer: chama a isto convencer. Eo sangue é para ele o melhor de todosos argumentos.

Chama mentira e nada a uma verdadeque só penetra em ouvidos apurados.Verdadeiramente só crê em deuses quefaçam muito ruído no mundo.

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A praça pública está cheia de truõesensurdecedores, e o povo vangloria−sedos seus grandes homens. São paraeles os senhores do momento.

O momento oprime−o e elesoprimem−te a ti, exigem−te um sim ounão. Desgraçado! Queres colocar−teentre um pró e um contra? Não invejesesses espíritos opressores e absolutos,ó amante da verdade! Nunca a verdadependeu do braço de um espíritoabsoluto.

Torna ao teu asilo, longe dessa gentetumultuosa; só na praça públicaassediam uma pessoa com o 'sim ounão'?

As fontes profundas precisam esperarmuito para saber o que caiu na suaprofundidade.

Tudo quanto é grande passa longe dapraça pública e da glória. Longe dapraça pública e da glória viveramsempre os inventores de valores novos.Foge, meu amigo, para a soledade;vejo−te aqui aguilhoado por moscasvenenosas.

Foge para onde sopre um vento rijo.

Foge para o teu retiro. Viverás próximodemais dos pequenos mesquinhos.Foge da sua vingança invisível! Para tinão mais que vingança.

Não levantes mais o braço contra eles!

São inumeráveis, e o teu destino não éser enxota−moscas!

São inumeráveis esses pequeninos emesquinhos; e altivos edifícios se têmvisto destruídos por gotas de chuva eervas ruins.

Não és uma pedra, mas já te fenderaminfinitas gotas. Infinitas gotascontinuarão a fender−te a quebrar−te.Vejo−te cansado das moscasvenenosas, vejo−te arranhado eensangüentado, e o teu orgulho nemuma só vez se quer encolerizar.

Elas desejariam o teu sangue com amaior inocência; as suas almas

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anêmicas reclamam sangue e picamcom a maior inocência.

Mas tu, que és profundo, sentiasprofundamente até as pequenas feridas,e antes da cura já passeava outra vezpela tua mão o mesmo inseto venenoso.

Pareces−me altivo demais para mataresses glutões; mas repara, não venha aser destino teu suportar toda a suavenenosa injustiça!

Também zumbem à tua roda com osseus louvores. Importunidades: eis osseus louvores. Querem estar perto datua pele e do teu sangue.

Adulam−te como um deus ou um diabo!Choramingam diante de ti como de umdeus ou de um diabo. Que importa?

São aduladores e choramingas, nadamais.

Também sucede fazerem−se amáveiscontigo; mas foi sempre essa a astúciados covardes.

É verdade; os covardes são astutos!

Pensam muito em ti com a almamesquinha. Desconfiam sempre de ti.Tudo o que dá muito que pensar setorna suspeito.

Castigam−te pelas tuas virtudes todas.

Só perdoam de verdade os teus erros.

Como és benévolo e justo, dizes: "Nãotêm culpa da pequenez da suaexistência". Mas a sua alma tímidapensa: "Toda a grande existência éculpada".

Mesmo que sejas atencioso com eles,ainda se consideram desprezados por tie pagam o teu benefício com açõesdissimuladas.

O teu mudo orgulho contraria−ossempre, e alvorotam quando acertas emser bastante modesto para ser vaidoso.

O que reconhecemos num homeminfamamos−lhe também nele. Livra−te,portanto, dos pequenos. Na tua

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presença sentem−se pequenos, e suabaixeza arde em invisível vingançacontra ti.

Não percebeste como costumávamosemudecer quando te aproximava deles,e como as forças os abandonavam talcomo a fumaça que se extingue?

Sim, meu amigo; és a consciênciaroedora dos teus próximos, porque nãosão dignos de ti. Por isso te odeiam equereriam Sugar−te o sangue.

Os teus próximos hão de ser Sempremoscas venenosas. E o que é grandeem ti deve precisamente torná−los maisvenenosos e mais semelhantes àsmoscas.

Foge, meu amigo, para a tua solidão,para alem onde sopre vento rijo e forte.Não é destino teu ser enxota−moscas"

Assim falou Zaratustra.

Da Castidade

"Amo o bosque. É difícil viver nascidades; nelas abundam fogososdemais.

Não vale mais cair nas mãos de umassassino do que nos sonhos de umamulher ardente?

Se não, olhai para esses homens; osseus olhos o dizem; nada melhorconhecem na terra do que deitar−secom uma mulher.

Têm lodo no fundo da alma; e coitadosdeles se o seu lodo possui inteligência!

Se ao menos fôsseis animaiscompletos!

Mas para ser animal é precisoinocência.

Será isto aconselhar−vos a que mateisos vossos sentidos? Aconselho−vos ainocência dos sentidos.

Será isto aconselhar−vos a castidade?

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Em alguns a castidade é uma virtude;mas em muitos é quase um vício.

Estes serão continentes; mas a vilsensualidade alardeia zelosa tudo o quefazem.

Até às alturas da sua virtude e até aoseu espírito os segue esse animal coma sua discórdia.

E com gentileza a vil sensualidade sabemendigar um pedaço de espirito quandose lhe nega um pedaço de carne.

A vós agradam as tragédias e tudo oque lacera o coração?

Pois eu olho desconfiado a vossasensualidade.

Tendes olhos demasiado cruéis, eolhais, cheios de desejos, para os quesofrem.

Não será simplesmente porque a vossasensualidade se disfarçou e tomou onome de compaixão?

Também vos apresento esta parábola:Não poucos, que queriam expulsar osdemônios, se meteram com os porcos.

Se a castidade pesa a algum, é precisoafastá−lo dela, para que a castidadenão chegue a ser o caminho do inferno,isto é, da lama e da fogueira da alma.

Falei de coisas imundas? Para mim nãoé isso o pior.

Não quando a verdade é imunda, masquando o superficial, é que oinvestigador mergulha de má vontadenas suas águas.

Verdadeiramente há os castos poressência; são de coração mais meigo,agrada−lhes mais rir, e riem mais quevós.

Riem−se também da castidade eperguntam:

'Que é a castidade?'

Não é uma loucura?

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Mas essa loucura não veio Ter conosco,não fomos nós que a buscamos.

Oferecemos a esse hóspede Pousada es i m p a t i a : a g o r a h a b i t a e m n ó s .Demore−se quanto queira!"

Assim falou Zaratustra

Do Amigo

"Um só me assedia sempreexcessivamente (assim pensa osolitário). Um sempre acaba por fazerdois."

"Eu e Mi

m estão sempre em conversaçõesincessantes. Como se poderia suportaristo se não houvesse um amigo?

Para o solitário o amigo é sempre oterceiro; o terceiro é a válvula queimpede a conversação dos outros doisde se abismarem nas profundidades.

Ai! Existem demasiadas profundidadespara todos os solitários. Por issoaspiram a uma amiga e à sua altura.

A nossa fé nos outros revela aquilo quedesejaríamos crer em nós mesmos. Onosso desejo de um amigo é o nossodelator.

E freqüentemente, como a amizade,apenas se quer saltar por cima dainveja. E freqüentemente atacamos ecriamos inimigos para ocultar que nósmesmos somos atacáveis. − "Sê aomenos meu inimigo!" − Assim fala overdadeiro respeito, o que se não atrevea solicitar a amizade.

Se se quiser ter um amigo, éprecisotambém guerrear por ele;e paraguerrear é mister poder ser inimigo.

É preciso honrar no amigo o inimigo.Podes aproximar−te do teu amigo sempassar para o seubando? No amigodeve ver−se o melhor inimigo. Devesser a glória do teu amigo, e mostrares aele tal qual és? Pois é por isso que temanda para o demônio!

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O que se não recata, escandaliza."Deveis temer a nudez! Sim; Se fôsseisdeuses, então poderíeisenvergonhar−vos dos vossos vestidos".

Nunca te adornarás demais para o teuamigo, porque deves ser para ele umaseta e também um anelo para oSuper−homem.

Já viste dormir o teu amigo parasaberes como és? Qual é, então, a carado teu amigo? É a tua própria cara numespelho tosco e imperfeito.

Já viste dormir o teu amigo? Não teassombrou o seu aspecto? Ó! meuamigo; o homem deve ser superado!

O amigo deve ser mestre naadivinhação e no silêncio: não devesquerer ver tudo. O teu sono deverevelar−te o que faz o teu amigo durantea vigília. Seja a tua compaixão umaadivinhação: é mister que, primeiro quetudo, saibas se o teu amigo quercompaixão.

Talvez em ti lhe agradem os Olhosaltivos e a contemplação da eternidade.

Oculte−se a compaixão com o amigosob uma rude certeza.

Serás tu para o teu amigo puro esoledade, pão e medicina? Há quemnão possa desatar suas própriascadeias, e todavia. seja salvador doamigo.

És escravo? Então não podes seramigo.

És tirano? Então não podes ter amigos.

Há demasiado tempo que se ocultavamna mulher um escravo e um tirano. Porisso a mulher ainda não é capaz deamizade; apenas conhece o amor.

No amor da mulher há injustiça ecegueira para tudo quanto não ama. Emesmo o amor, reflexo da mulher,oculta sempre, a par da luz, a surpresa,o raio da noite.

A mulher ainda não é capaz deamizade: as mulheres continuam sendo

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gatas e pássaros. Ou, melhor, vacas.

A mulher ainda não é capaz deamizade. Mas dizei−me, homens: qualde vós é, porventura, capaz deamizade?

Ai, homens! Que pobreza e avareza ada vossa alma! Quando dais a vossosamigos eu quero dar também aos meusinimigos sem me tornar mais pobre porisso.

Haja camaradagem. Haja amizade".

Assim falou Zaratustra.

Os Mil Objetos Único Objeto

"Muitos países e muitos povos viuZaratustra; assim descobriu o bem e omal de muitos povos. Zaratustra nãoencontrou maior poder na terra do que obem e o mal.

Nenhum poderia viver sem avaliar; mas,para se conservar, não deve avaliarcomo o seu vizinho.

Muitas coisas que um povo chama boaseram para outros vergonhosas edesprezíveis; foi o que vi. Muitas coisas,aqui qualificadas de más, em outro lugaras enfeitavam com o manto de púrpuradas honrarias.

Nunca um vizinho compreendeu o outro;sempre a sua alma se assombrou daloucura e da maldade do vizinho. Sobrecada povo está suspensa uma tábua debens. E vede: é a tábua dos triunfos dosseus esforços; é a voz da sua vontadede poder.

É honroso o que lhe parece difícil; o queé indispensável e difícil chama−se bem,e o que livra de maiores misérias, omais raro e difícil, santifica−se.

O que lhe permite reinar, vencer ebrilhar com temor e inveja do seuvizinho é para ele o mais elevado, oprincipal, a medida e o sentido de todasas coisas.

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Verdadeiramente, se tu conheces anecessidade, o país, o céu e o vizinhode um povo, advinhas também a lei dosseus triunfos por que razão sobe àssuas esperanças por esses graus."Deves ser sempre o primeiro aavantajar−se aos outros; a tua almazelosa não deve amar ninguém senão oamigo". − Isto fez tremer a alma de umgrego, e levou−o a seguir o caminho dagrandeza.

"Dizer a verdade e saber manejar bem oarco e as flechas". − Isto parecia caroao mesmo tempo que difícil ao povodonde vem o meu nome, o nome, que épara mim caro ao mesmo tempo quedifícil.

"Honrar pai e mãe, e ter para elessubmissão". Essa tábua das vitóriassobre si elegeu outro povo, e com ela foieterno e poderoso.

"Render culto à fidelidade, e pelafidelidade dar sangue e honra aindatratando−se de coisas más e perigosas".Por esse ensinamento venceu−se a simesmo outro povo, e a vencer−se assimchegou a encher−se de grandesesperanças.

A verdade é que os homens se deramtodo o seu bem e iodo o seu mal. Averdade é que o não tomaram, que onão encontraram. que lhes não caiucom uma voz do céu.

O homem é que pôs valores nas coisascom a intenção de se conservar; foi eleque deu um sentido às coisas, umsentido humano. Por isso se chama"homem". isto é, o que aprecia.

Avaliar é criar. Ouvi, criadores! Avaliar éo tesouro e a jóia de todas as coisas;avaliadas. Pela avaliação se dá o valor;sem a avaliação, a noz da existênciaseria oca. Ouvi−o, criadores!

A mudança dos valores e mudança dequem cria.

Sempre aquele que cria destrói.

Os criadores num princípio foram povos,e só mais tarde indivíduos. Na verdade,os indivíduos constituem a mais recente

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das criações.

Povos suspenderam noutro tempo sobresi uma tábua do bem. O amor que querdominar e o amor que quer obedecercriaram juntos essas tábuas. O prazerdo rebanho é mais antigo que o prazerdo Eu. E enquanto a boa consciência sechama rebanho, só a má diz: Eu.

Na verdade, o Eu astuto, o Eu egoísta,que procura seu bem no bem de muitos,este não é a origem do rebanho, mas asua destruição.

Sempre foram ardentes os que criaramo bem e o mal. O fogo do amor e o fogoda ira ardem sob o nome de todas asvirtudes.

Muitos países e muitos povos viuZaratustra. Não encontrou poder maiorna terra que a obra dos ardentes; "beme mal" é o seu nome.

Na verdade, o poder desses elogios edestas censuras é semelhante a ummonstro. Dizei−me irmãos: Quem oderrubará? Dizei: Quem lançará umacadeia sobre as mil cervizes dessabesta

Até o momento tem havido mil objetos,porque tem havido mil povos. Só falta acadeia das mil cervizes: falta o únicoobjeto. A humanidade não tem objeto.

Mas dizei−me, irmãos: se falta objeto àhumanidade, não é porque ela mesmaainda não existe?

Assim falou Zaratustra.

Do Amor ao Próximo

"Vós outros andais muito solícitos emredor do próximo, e manifestai−o combelas palavras. Mas eu vos digo: ovosso amor ao próximo é vosso meuamor a vós mesmos.

Fugis de vós em busca do próximo, equereis converter isso numa virtude;mas eu compreendo o vosso"desinteresse".

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O Tu é mais velho do que Eu; o Tuacha−se santificado, mas o Eu aindanão. Por isso o homem anda diligenteatrás do próximo.

Acaso vos aconselho o amor aopróximo? Antes vos aconselho a fuga do"próximo" e o amor ao remoto!

Mais elevado que o amor ao próximo eo amor ao longínquo, ao que está porvir, mais alto ainda que o amor aohomem coloco o amor às coisas e aosfantasmas.

Esse fantasma que corre diante de vósmeus irmãos, é mais belo que vós. Porque lhe não dás a carne e os vossosossos? Mas tende−lhes medo e fugis àprocura do vosso próximo.

Não vos suportais a vós mesmos e nãovos quereis bastante; desejareis seduziro próximo por vosso amor e dourar−vos,com a sua ilusão. Quisera que todosesses próximos e seus vizinhos se vostornassem insuportáveis; assim teríeisque criar para vós mesmos o vossoamigo e o seu coração fervoroso.

Chamais uma testemunha quandoquereis falar bem de vós e, logo que ahaveis induzido a pensar bem da vossapessoa, vós mesmos pensais bem davossa pessoa.

Não só mente o que fala contra a suaconsciência, mas sobretudo o que falacom a sua inconsciência. E assim falaisde vós no trato social, enganando ovizinho.

Fala o louco: "O trato com os homensexaspera o caráter, principalmentequando o não temos".

Um vai após o próximo, porque seprocura; o outro porque se quiseraesquecer.

A vossa malquerença com respeito avós mesmos converte a vossa soledadenum cativeiro.

Os mais afastados são os que pagam onosso amor ao próximo, e, quando vósjuntais cinco, deve morrer um sexto

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Também me não agradam as vossasfestas; encontrei nelas demasiadoscômicos e os mesmos espectadores seconduzem freqüentemente comocômicos.

Não falo do próximo; falo só do amigo.Seja o amigo para vós a festa da terra eum pressentimento do Super−homem.

Falo−vos do amigo e do seu coraçãoexuberante. Mas é preciso saber seruma esponja quando se quer ser amadopor corações exuberantes.

Falo−vos do amigo que leva em si ummundo disponível, um invólucro do bem− do amigo criador que tem sempre ummundo disponível para dar.

E como se desenvolveu o mundo paraele, assim se envolve de novo: tal é oadvento do bem pelo mal, do desígniopelo acaso.

Sejam o porvir e o mais remoto a causado vosso hoje; no vosso amigo deveisamar o Super−homem, como razão deser.

Meus irmãos, eu não vos aconselho oamor ao próximo; aconselho−vos oamor ao mais afastado".

Assim falou Zaratustra.

Do Caminho do Criador

"Queres, meu irmão, isolar−te? Queresprocurar o caminho que te guia a timesmo? Espera ainda um momento eouve−me.

"O que procura é um erro". Assim fala orebanho.

E tu pertenceste ao rebanho durantemuito tempo.

Em ti também ainda há de ressoar a vozdo rebanho . E tu pe r tences te aorebanho durante muito tempo.

Em ti também ainda há de ressoar a vozdo rebanho. E quando disseres: "Já nãotenho uma consciência comum

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convosco", isso será uma queixa e umador.

Essa mesma dor é filha da consciênciacomum, e a úl t ima centelha dessaconsciência ainda brilha na tua aflição.

Queres, no entanto, seguir o caminhoda tua aflição, que é o caminho para timesmo? Demonstra−me o teu direito ea tua força para isso!

Acaso és uma força nova e um novodireito?

Um primeiro movimento? Uma roda quegira sobre si mesma? Podes obrigar asestrelas a girarem em tomo de ti?

Ai! Existe tanta ansiedade pelas alturas!

Há tantas convulsões de ambição!Demonstra−me que não pertences aon ú m e r o d o s c o b i ç o s o s n e m d o sambiciosos!

A i ! Ex i s tem tan tos pensamen tosgrandes que apenas fazem o mesmoque um fole. Incham e esvaziam.

Chamas−te livre? Quero que me digas oteu pensamento principal, e não que telivraste de jugo.

Serás tu alguém que tenha o direito dese livrar de um jugo? Há quem perca oseu último valor ao libertar−se da suasujeição.

Livre de quê? Que importa isso aZaratustra? O teu olhar, porém, deveanunciar−se claramente:

livre, para quê? Podes proporcionar a timesmo teu bem e o teu mal, esuspender a tua vontade por cima de ticomo uma lei? Podes ser o teu própriojuiz e vingador da tua lei?

Terrível é estar a sós com o juiz e ovingador da própria lei, como estrelalançada ao espaço vazio no meio dosopro gelado da soledade. Ainda hoje teatormenta a multidão; ainda conservas oteu valor e as tuas esperanças todas...Um dia, contudo, te fatigará a soledade,se abaterá o teu orgulho e cerrarás osdentes. Um dia clamarás: "Estou só!"

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Chegará um dia em que já não vejas atua altura, e em que a tua baixeza estejademasiado perto de ti. A tua própriasublimidade te amedrontará como umfantasma. Um dia gritarás: "Tudo éfalso!"

Há sentimentos que querem matar osolitário. Não o conseguem? Pois elesque morram! Mas serás tu capaz de serassassino?

Meu irmão, já conheces a palavra"desprezo"? E o tormento da justiça deser justo para com os que temenosprezam?

Obrigas muitos a mudarem de opinião ateu respeito; por isso te consideram.Abeiraste−te deles, e contudo, passasteadiante; é coisa que te não perdoam.Elevaste−te acima deles; mas quantomais alto sobes tanto mais baixo te vêmos olhos da inveja. E ninguém é tãoodiado como o que voa.

"Como quereríeis ser justo para comigo!− assim é que deves falar. − Eu destinopara mim a vossa injustiça, como loteque me está destinado".

Injustiça e baixeza é o que eles arrojamao solitário; mas, meu irmão, se queresser uma estrela, nem por isso os hás deiluminar menos.

E livra−te dos bons e dos justos!Agrada−lhes crucificar os que invejam asua própria virtude: odeiam o solitário. Elivra−te ainda assim da santasimplicidade!

A seus olhos não é santo o que ésimples, e apraz−lhe brincar com fogo...das fogueiras.

E livra−te também dos impulsos do teuamor! O solitário estende depressademais a mão a quem encontra.

Há homens a quem não deves dar amão, mas tão−somente a pata, e alémdisso quero que a tua pata tenha garras.O pior inimigo, todavia, que podesencontrar, és tu mesmo; lança−te a tipróprio nas cavernas e nos bosques.

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Solitário, tu segues o caminho que teconduz a ti mesmo! E o teu caminhopassa por diante de ti dos e dos teussete demônios.

Serás herege para ti mesmo serásfeiticeiro, adivinho doido incrédulo, ímpioe malvado.

É mister que queiras consumir−te na tuaprópria chama. Como quereriasrenovar−te sem primeiro te reduzires acinzas?

Solitário, tu segues o caminho docriador: queres tirar um deus dos teussete demônios!

Solitário, tu segues o caminho doamante: amas−te a ti mesmo, e por issote desprezas, como só desprezam osamantes.

O amante quer criar porque despreza!Que saberia do amor aquele que nãodevesse menosprezar justamente o queamava?

Vai−te para o isolamento, meu irmão,com o teu amor e com a tua criação, etarde será que a justiça te sigaclaudicando.

Vai−te para o isolamento com asminhas lágrimas, meu irmão. Eu amo oque quer criar qualquer coisa superiorasi mesmo e dessa arte sucumbe".

Assim falou Zaratustra.

A Velha e a Nova

"Por que deslizas tão furtivamentedurante o crepúsculo, Zaratustra? E queocultas com tanta precaução debaixo datua capa'?

É algum um tesouro que te deram?

É algum menino que te nasceu?Seguirás tu também agora o caminhodos ladrões, amigo do mal?"

"− Claro, meu i rmão! − respondeuZaratustra. − Levo aqui um tesouro:uma pequena verdade.

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É, porém, rebelde como uma criança, ese lhe não tapasse a boca gri tar iadesaforadamente.

Seguia eu hoje solitário o meu caminho,à hora em que o so l se escondia,quando encontrei uma velha que falouassim à minha alma.

"Zaratustra tem falado muito até mesmoconosco, mulheres, mas nunca nosfalou da mulher".

Eu respondi: "Não é preciso falar damulher senão aos homens".

"Fala−me a mim também da mulher −disse ela. − Sou bastante velha paraesquecer logo tudo quanto me digas".

Cedi ao desejo da velha, e disse−lheassim:

"Na mulher tudo é um enigma e tudotem uma só solução: a prenhez. Ohomem é para a mulher um meio; o fimé sempre o f i lho. Que é, porém, amulher para o homem?

O verdadeiro homem quer duas coisas:o perigo e o divertimento. Por isso quera mulher, que é o br inquedo maisperigoso.

O homem deve ser educado para aguerra, e a mulher para prazer doguerreiro. Tudo o mais é loucura. Oguerreiro não gosta de frutos docesdemais. Por isso a mulher lhe agrada: amulher mais doce tem sempre o seuquê de amargo.

A mulher compreende melhor do que ohomem as crianças: mas o homem émais infantil que a mulher.

Em todo o verdadeiro homem se ocultauma criança: uma criança que querbrincar. Eia; mulheres! descobri nohomem a criança!

Seja a mulher um brinquedo puro e finocomo o diamante, abrilhantado pelasvirtudes de um mundo que ainda nãoexiste.

Cintile no vosso amor o fulgor de umaestrela! A vossa esperança que diga:

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"Nasça de mim, do Super−homem!"

Haja valentia no vosso amor! Com ovosso amor deveis afrontar o que vosinspire medo.

Cifre−se a vossa honra no vosso amor!Geralmente a mulher pouco entende dehonra. Seja, porém, honra vossa amarsempre mais do que fordes amadas enunca serdes a segunda.

Tema o homem a mulher, quando amulher odeia: porque, no fundo, ohomem é simplesmente mau: mas amulher é perversa.

A que odeia mais a mulher? O ferrofalava assim ao ímã: Odeio−te mais doque tudo porque atrais sem ser fortebastante para sujeitar".

A felicidade do homem é: eu quero; afelicidade da mulher é: ele quer.

"Vamos! Já nada falta no mundo!" −assim pensa a mulher quando obedecea todo o coração.

E é preciso que a mulher obedeça e queencontre uma profundidade para a suasuperfície. A alma da mulher ésuperfície: móvel e tumultuosa películade águas superficiais.

A alma do homem, porém, é profunda, asua corrente brame em grutassubterrâneas; a mulher pressente a suaforça mas não a entende". Então a velharespondeu−lhe: "Zaratustra disse muitascoisas bonitas, mormente para as quesão novas. Coisa singular! Zaratustraconhece pouco as mulheres e, contudo,tem razão no que diz delas! Será porquenada é impossível na mulher?

E agora, como recompensa, aceita umapequena verdade. Sou suficientementevelha para te dizer.

Sufoca−a, tapa−lhe a boca, porque docontrário grita alto demais.

"Venha a tua verdade, mulher!" − disseeu, e a velha falou assim: "Acompanhascom as mulheres? Olha, não te esqueçao látego".

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Assim falou Zaratustra.

A picada da víbora

Um dia, estava Zaratustra a dormitarsob uma figueira, porque fazia calor, etinha tapado o rosto com o braço. Nistochegou uma víbora, mordeu−lhe opescoço, e ele soltou um grito de dor.Afastando o braço do rosto, olhou aserpente; ela reconheceu os olhos deZaratustra, contorceu−sevagarosamente e quis se retirar. "Não −disse Zaratustra − espera, ainda não teagradeci! Despertaste−me a tempo, poiso meu caminho ainda é longo".

"O teu caminho é curto disse tristementea víbora: − o meu veneno mata.Zaratustra pôs−se a rir. 'Quando foi queo veneno de uma serpente matou umdragão'? − disse − reabsorve o teuveneno! Não és rica demais para mefazeres presente dele". Então a víboratornou a enlaçar−lhe o pescoço elambeu−lhe a ferida.

Quando um dia Zaratustra contou istoaos seus discípulos, elesperguntaram−lhe: "E qual é a moral doteu conto!" Zaratustra respondeu: "Osbons e os justos chamam−me odestruidor da moral: o meu conto éimoral. Se tendes, porém, um inimigo,não lhe devolvais bem por mal porquese sentiria humilhado; demonstrai−lhe,pelo contrário, que vos fez um bem.

E a ter de humilhar preferiencolerizar−vos. E quando se vosamaldiçoe não me agrada que vósabençoais. Amaldiçoai também.

E se vos fizeram uma grande injustiça,fazei vós imediatamente cinco injustiçaspequenas.

Horroriza ver o que por si só sofre opeso da injustiça.

Já sabeis isto? Injustiça repartida ésemidireito. E aquele que pode trazer ainjustiça deve levá−la.

Uma pequena vingança é mais humanado que nenhuma. E se o castigo não é

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somente um direito e uma honra para otransgressor, eu não quero o vossocastigo.

É mais nobre condenarmos do queteimar, mormente quando temos razão.Somente é preciso ser rico bastantepara isso.

Não me agrada a vossa fria injustiça:nos olhos dos vossos juizes transparecesempre o olhar do verdugo e seu geladocutelo.

Dizei−me: onde se encontra a justiçaque é amor com olhos perspicazes?

Inventai−me, pois, o amor que suporta,não só todos os castigos, mas tambémtodas as faltas.

Inventai−me a justiça que absolvetodos, exceto aquele que julga! Quereisouvir mais? No que quer serverdadeiramente justo, a mentiramuda−se em filantropia.

M a s c o m o p o d e r i a e u s e rverdadeiramente justo? Como poderiadar a cada um o seu?

Basta−me isto: eu dou a cada um omeu.

Enfim, irmãos, livrai−vos de ser injustoscom os solitários. Como poderia umsol i tár io esquecer? Como poder iadevolver?

Um solitário é como um poço profundo.É fácil lançar nele uma pedra; mas se apedra vai ao fundo quem se atreverá atirá−la?

Livrai−vos de ofender o solitário; mas,se o ofendestes então, matai−otambém!"

Assim falou Zaratustra.

Do Filho do Matrimônio

Tenho uma pergunta para ti só, meuirmão. Arrojo−a como uma sonda à tuaalma, a fim de lhe conhecer aprofundidade.

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És moço e desejas filho e matrimônio.Eu, porém, pergunto. Serás tu homemque tenha o direito de desejar um filho?

Serás tu vitorioso, o vencedor de timesmo, o soberano dos sentidos, odono das tuas virtudes?

É isso o que eu te pergunto.

Ou será que falam ao teu desejo a bestae a necessidade física, ou oafastamento, ou a discórdia contigomesmo?

Eu quero que a tua vitória e a tualiberdade suspirem por um filho. Deveserigir monumento vivente à tua vitória eà tua libertação. Deves construirqualquer coisa que te seja superior.

Primeiro que tudo, porém, é preciso quete hajas construído a ti mesmo,retangular de corpo e alma. Não devessó reproduzir−te, mas exceder−te!Sirva−te para isso o jardim domatrimônio!

Deves criar um corpo superior, umprimeiro movimento, uma roda que giresobre si; deves criar um criador.

Matrimônio: chamo assim à vontade dedois criarem um que seja mais do queaqueles que o criaram. O matrimônio éo respeito recíproco: respeito recíprocodos que coincidem em tal vontade. Sejaeste o sentido e a verdade do teumatrimônio; mas isso a que os queestão de mais, os supérfluos, chamammatrimônio, isso como se há dechamar?

Ai! Que pobreza de alma entre dois!Que imundície de alma entre dois! Quemísera conformidade entre dois!

A tudo isso chamam matrimônio, edizem que contraem estas uniões nocéu!

Pois bem! Eu não quero esse céu dossupérfluos. Não; eu não quero essasbestas presas com redes divinas!

Fique−se também por lá bem longe demim esse Deus que vem coxeandoabençoar aquilo que não uniu!

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Não vos riais de semelhantesmatrimônios!

Que filho não teria razão para chorar porcausa de seus pais?

Certo homem pareceu−me digno esensato para o sentido da terra, mas,quando vi a mulher dele, a terrapareceu−me moradia de insensatos.

Sim; queria que a terra seconvulsionasse quando se acasalam umsanto e uma pata.

Tal outro partiu como herói em busca deverdades e não trouxe por colheitasenão uma mentira engalanada.Chamam a isso O seu matrimônio.

Este era frio nas suas relações eescolhia ponderadamente; mas de umasó vez transtornou para sempre a suasociedade. A isso chamam o seumatrimônio.

Aquele procurava uma servente com asvirtudes de um anjo; mas daí a poucotornou−se servente de uma mulher, eagora precisava ele tornar−se anjo.

Vejo agora todos os compradores muitosenhores de si e com os olhos astutos;mas até o mais astuto compra a suamulher às cegas.

A muitas loucuras pequenas chamaisamor. E o vosso matrimônio terminamuitas loucuras pequenas para astornar uma loucura grande.

O vosso amor à mulher e o amor damulher pelo homem, ó! seja compaixãopara deuses dolentes e ocultos! Duasbestas. porém, quase sempre seadivinham. O vosso melhor amor,contudo, ainda não é mais do que umaimagem extasiada e um ardor doloroso.E um facho que vos deve iluminar paracaminhos superiores. Um dia deverá ovosso amor levar−se acima de vósmesmos! Aprendei, pois, primeiro aamar! Por isso vos foi preciso beber oamargo cálice do vosso amor.

Há amargura no cálice do melhor amor;assim vos faz desejar o Super−homem;assim tendes sede do criador.

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Sede do criador, seta e desejo doSuper−homem; diz−me, meu irmão, éessa a tua vontade do matrimônio?Santa é para mim tal vontade, santo talmatrimônio".

Assim falou Zaratustra.

Da Morte Livre

"Muitos morreram tarde demais, ealguns demasiado cedo. A doutrina quediz: "Morre a tempo!" ainda parecesingular.

Morre a tempo: eis o que ensinaZaratustra.

Claro que aquele que nunca viveu atempo, como há de morrer a tempo? Omelhor é não nascer.

Eis o que aconselho aos supérfluos.

Até os supérfluos, contudo, se fazemimportantes com a sua morte, e até anoz mais oca quer ser partida.

Todos concedem importância à morte;mas a morte ainda não é uma festa. Oshomens ainda não sabem como seconsagram às mais belas festas.

Eu vos predico a morte necessária , amorte que, para os vivos, vem a ser umaguilhão e uma promessa. O quecumpre morre da sua morte, vitorioso,rodeado dos que esperam e prometem.

Assim seria preciso aprender a morrer,e não deveria haver festa sem talmoribundo santificar os juramentos dosvivos.

Morrer assim é o melhor, e morrer naluta é prodigalizar uma grande almaainda maior. O combatente e o vitorioso,porém, odeiam igualmente a vossamorte espaventosa, que se vemarrastando como um ladrão, e que,todavia, se aproxima como soberana.

Faço−vos o elogio da minha morte, damorte livre, que vem porque eu quero.

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E quando hei de querer? O que tem umfim e um herdeiro quer a morte a tempopara o fim e para o herdeiro.

E por respeito ao fim e ao herdeiro, jánão suspenderá coroas murchas nosantuário.

Na verdade, não me quero parecer comos cordeiros: estiram os seus fios e elesandam sempre atrás.

Há também quem se faça velho demaispara as suas verdades e as suasvitórias; uma boca desdentada já nãotem direito a todas as verdades.

E o que queira desfrutar glória devedespedir−se a tempo das honras eexercer a difícil arte de se retiraroportunamente.

É preciso fugir a deixar−se comer nopróprio momento em que vos começama tomar gosto. Os que querem seramados muito tempo sabem isso.

Há também maçãs ácidas, cujo destinoé esperar até o último dia do outono. Epõem−se amarelas e enrugadas nopróprio momento em que amadurecem.

Nuns envelhece primeiro o coração,noutros a inteligência. E alguns sãovelhos na sua virtude; mas quando umapessoa se faz moça muito tarde,conserva−se moça muito tempo.

Há quem fala na sua vida: um vermevenenoso lhes rói o coração. Tratem aomenos de acertar na sua morte.

Há os que nunca estão doces:apodrecem já no verão. E a covardiaque os sustenta no ramo.

Há demasiados que ficam epermanecem fixos num ramo excessivotempo. Venha uma tempestade, quesacuda da árvore toda essa podridãobichosa!

Venham pregadores da morte rápida!Seriam as tempestades e assacudidelas oportunas da árvore davida. Eu, porém, só ouço pregar a mortelenta e a paciência com tudo o que éterrestre. Ai! Pregais a paciência com o

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que é terrestre? O terrestre é o que temdemasiada paciência convosco,blasfemos!

Em verdade, morreu demasiado cedoaquele hebreu a quem honram ospregadores da morte lenta, e paramuitos foi uma fatalidade ele morrercedo demais.

Esse Jesus hebreu só conhecia aindaas lágrimas e a tristeza do hebreu,juntamente com o ódio dos bons e dosjustos; por isso o acometeu o desejo damorte.

Por que não ficou ele no deserto, longedos bons e dos justos? Talvez houvesseaprendido a viver e a amar a terra etambém o riso! Crede−me, meusirmãos.' Morreu cedo demais!Retratar−se−ia da sua doutrina setivesse vivido até minha idade! Erabastante nobre para se retratar

Não estava, porém, ainda maduro. Oamor do jovem carece da maturação, eassim também odeia os homens e aterra. Tem ainda presas e trôpegas aalma e as asas do pensamento. Nohomem, contudo, há mais de criança doque no jovem, e menos tristeza:compreende melhor a morte e a vida.

Livre para a morte e livre na morte;divino negador, quando já não é tempode afirmar: assim compreende a vida ea morte.

Não seja a vossa morte uma blasfêmiacontra os homens e contra a terra, meusamigos; eis o que exijo da doçura davossa alma.

Vosso espírito e vossa virtude deveminflamar até a vossa agonia, como oarrebol do poente inflama a terra; senãoa vossa morte será malograda.

Assim quero morrer eu para que, pormim, ameis mais a terra, meus amigos:e eu quero tornar− me terra, paraencontrar o meu repouso naquela queme gerou. Na verdade, Zaratustra tinhaum objetivo; lançou a péla. Agora, meusamigos, sois vós os herdeiros do meuobjetivo; a vós envio a dourada péla.

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Prefiro a tudo, meus amigos, ver−noslançar a péla dourada. E por essa razãome demoro ainda um pouquinho naterra. Perdoai−me!"

Assim falou Zaratustra.

Da Virtude Dadivosa

I

Quando Zaratustra se despediu dacidade que o seu coração amava, a qualtem por nome a Vaca Malhada, muitosdos que Se diziam seus discípulos oacompanharam. Assim chegaram a umaencruzilhada. Então lhes disseZaratustra que queria ficar só porqueera amigo das caminhadas solitárias. Aodespedirem−se dele, os discípulosofereceram−lhe como prenda umbastão, cujo castão representava umaserpente enroscada em torno do sol.Zaratustra aceitou−o alegremente eapoiou−se nele. Depois falou assim aosdiscípulos: "Dizei−me: como alcançou oouro o mais alto valor? E porque é raroe inútil, de brilho cintilante e brando:dá−se sempre.

Somente como símbolo da mais altavirtude o ouro alcançou o mais altovalor. É como o ouro, reluzente, o olhardaquele que dá.

O brilho do ouro firma a paz entre a luae o sol.

A mais alta virtude é rara e inútil: éresplandecente e de um brilho brando;uma virtude dadivosa é a mais altavirtude.

Em verdade vos adivinho, meusdiscípulos: vós aspirais como eu àvirtude dadivosa. Que podereis ter decomum com os gatos e com os lobos?

A vossa ambição é quererconverter−vos, vós mesmos, emoferendas e presentes. Por isso desejaisacumular todas as riquezas em vossasalmas.

A vossa alma anela insaciavelmentetesouros e jóias, porque é insaciável a

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vontade de dar da vossa virtude.

Obrigais todas as crises aaproximarem−se de vós e a penetrar emvós outros, para tornarem a emanar davossa fonte como os dons ao vossoamor.

Em verdade, é preciso que tal amordadivoso se faça saqueador de todos osvalores; mas eu chamo são e sagradoesse egoísmo.

Há outro egoísmo, um egoísmodemasiado, pobre e famélico, que querroubar sempre: o egoísmo dos doentes,o egoísmo enfermo. Com olhos deladrão, olha tudo o que reluz; com aavidez da fome mede o que temabundantemente o que comer, e semprese arrasta à roda da mesa do que dá.

A doença é uma invisível degeneração,eis o que tal apetite demonstra; a avidezde roubo desse egoísmo apregoa umcorpo valetudinário.

Dizei−me, meus irmãos: qual é a coisaque nos parece má, a pior de todas?Não é a degeneração? E pensamossempre na degeneração quando falta aalma que dá.

O nosso caminho é para cima: daespécie à espécie superior; mas osentido que degenera, o sentido que diz:"Tudo para mim", assombra−nos.

O nosso sentido voa para cima, assim osímbolo do nosso corpo é símbolo deuma elevação. Os símbolos dessaselevações são os nomes das virtudes.

Assim atravessa o corpo a história,lutando e elevando−se. E o espírito, queé para o corpo? É o arauto das suaslutas e vitórias, o seu companheiro e oseu eco.

Todos os nomes do bem e do mal sãosímbolos; não falam, limitam−se a fazersinais. Louco é o que lhes quer pedir oconhecimento.

Meus irmãos, estai atentos às ocasiõesem que o vosso espírito quer falar emsímbolos: assistis então à origem davossa virtude.

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Então é quando o vosso corpo seelevou e ressuscitou; então arrebata oespírito com os seus transportes paraque se faça criador e apreciador eamante, benfeitor de todas as coisas.Quando nosso coração se agita, amploe cheio, como o grande rio, bênção eperigo dos ribeirinhos, então assistis àorigem da vossa virtude. Quando voselevais acima do louvor e da censura, equando a vossa vontade, como vontadede um homem que ama e quer mandarem todas as coisas, então assistis àorigem da vossa virtude.

Quando desprezais o que é agradável, acama fofa, e quando nunca vos credesbastante longe da moleza pararepousar, então assistis à origem davossa virtude.

Verdadeiramente é um novo bem e mal!

Verdadeiramente é um novo murmúrioprofundo e a voz de um manancial novo!

Essa nova virtude é poder; umpensamento reinante e em torno dessepensamento uma alma sagaz: um soldourado, e em torno dele a serpente doconhecimento".

II

Aqui Zaratustra calou−se um bocado eolhou os discípulos com amor. Emseguida prosseguiu assim. A vozhavia−se−lhe transformado:

"Meus irmãos, permanece fiéis à terracom todo o poder da vossa virtude.Sirvam ao sentido da terra o vosso amordadivoso e vosso conhecimento.

E vô−lo rogo, e a isso vos conjuro.

Não deixeis a vossa virtude agir dascoisas terrestres e adejar contraparedes eternas. Ai! Tem havido sempretanta virtude extraviada!

Restitui, como eu, à terra a virtudeextraviada. Sim; restitui−a ao corpo e àvida, para que dê à terra o seu sentido,um sentido humano.

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A in te l igênc ia e a v i r tude têm−seextraviado e enganado de mil maneirasdiferentes. Ainda agora residem nonosso corpo essa loucura e esseengano: tornaram−se corpo e vontade.

A inteligência e a virtude ensaiaram−see extraviaram−se de mi l maneirasdi ferentes. S im; o homem era umensaio. Ai! quantas ignorâncias e errosse incorporam em nós.

Não só a razão dos milenários, mastambém a sua loucura aparece em nós.É perigoso ser herdeiro. Lutamos aindapasso a passo com o gigante azar e nahumanidade inteira reinava até aqui afalta de sentido.

Sirvam a vossa inteligência e a vossavi r tude no sent ido da ter ra, meusirmãos, e o valor de todas as coisasserá renovado por vós. Para isso deveisser criadores!

O co rpo pu r i f i ca−se pe lo sabe r ,eleva−se com o esforço inteligente:todos os inst intos do que pensa econhece se santificam; a alma do quese eleva alvoroça−se. Médico, ajuda−tea ti mesmo; assim, ajudas também o teudoente. Seja essa a melhor assistênciado doente ver com os seus própriosolhos o que se cura a si mesmo.

Há mil sendas que nunca foramcalçadas, mil fontes de saúde e milterras ocultas na vida. Ainda se nãodescobriram nem esgotaram o homemnem a terra dos homens.

Vigiai e escutai, solitários! Sopros deventos secretos chegam do futuro, e aouvidos apurados chega uma faustamensagem.

Solitários de hoje, vós, os afastados,sereis um povo algum dia. Vós que voshaveis entrescolhido a vós mesmosformareis um dia um povo eleito do qualnascerá o Super−homem.

Em terra, a terra far−se−á um dia umlugar de cura. Já a envolve um odornovo, um eflúvio de saúde e uma novaesperança".

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III

Ditas essas palavras, Zaratustraemudeceu, como quem ainda não dissea última palavra. Sopesoudemoradamente o bastão, como queperplexo. Por fim falou assim, e a vozhavia−se−lhe transformado:

"Agora, meus discípulos, vou−meembora sozinho! Ide−vos soznhostambém!. Assim o quero.

Com toda a sinceridade vos dou esteconselho: Afastai−vos de mim eprecavei−vos contra Zaratustra! Melhorainda: envergonhai−vos dele! Talvezvos haja enganado!

O homem que pondera não só deveamar os seus inimigos, mas tambémodiar os seus amigos. Mal correspondeao mestre aquele que nunca passa dediscípulo. E por que não quereisarrancar a minha coroa?

Venerais−me! Mas que sucederia seuma vez caísse a vossa veneração?Cuidado, não vos esmague umaestátua!

Dizeis que creis em Zaratustra? Vóssois crentes em mim; mas que importamtodos os crentes?! Vós ainda vos haveisprocurado; encontrastes−me então.Assim fazem todos os crentes: por issoa fé é tão pouca coisa.

Agora vos mando que me percais e vosencontreis a vós mesmos; e só quandotodos me houverdes renegado, tornareipara vós.

Em verdade, meus irmãos, entãobuscarei com outros olhos as minhasovelhas desgarradas; eu vos amareientão com outro amor. E um diadevereis ser meus amigos e filhos deuma só esperança; então quero estar avosso lado, pela terceira vez, parafestejar convosco o grande meio−dia.

E o grande meio−dia será quando ohomem estiver a meio do trajeto, entre abesta e o Super−homem, o célere,como sua esperança suprema, o seucaminho para o ocaso: porque será ocaminho para uma nova manhã.

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Então o que desaparece se abençoará asi mesmo, a fim de passar para o outrolado, e o sol do seu conhecimentoestará no seu meio−dia. "Todos osdeuses morreram; agora viva oSuper−homem!" Seja esta, chegado ogrande meio−dia, a vossa últimavontade!"

Assim falou Zaratustra.

Segunda Parte

Criança do espelho

Depois disto Zaratustra voltou para amontanha e para a solidão da suacaverna, isolan−do−se dos homens. Eesperou, como o semeador que lançoua sua semente; mas a alma se lheencheu de impaciência e desejo do queamava porque ainda tinha muitas coisasque lhes dar. Que isto é o mais difícil:fechar por amor a mão aberta econservar o pudor ao dar. Assimdecorreram para o solitário meses eanos; mas a sua sabedoria aumentava efazia−o padecer com a sua plenitude.

Certa manhã, despertando antes deamanhecer, meditou por muito tempo nacama, e por fim disse consigo:

"Assustei−me tanto a sonhar a sonharque acordei! Não se aproximou de mimuma criança que levava um espelho?

"Zaratustra − disse ela − olha−te a esteespelho!"

Quando, porém, olhei para o espelho,soltei um grito e o coração deu−me umbaque; porque não foi a mim que vi,mas a carranca sarcástica de umdemônio.

Na verdade,. compreendo demais osignificado e a advertência do sonho: aminha doutrina corre perigo; o joio querchamar−se trigo

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Os meus inimigos tornaram−sepoderosos e desfiguraram a imagem daminha doutrina, a ponto de meusprediletos se envergonharem dos donsque lhes fiz.

"Perdi os meus amigos! Chegou omomento de ir procurar os que perdi!"

Dizendo estas palavras, Zaratustrasobressaltou−se, não como que temmedo e perde alento, mas como umvisionário possuído do Espírito. A águiae a serpente olharam−no estupefatos:porque à semelhança da aurora, umapróxima ventura lhe pairava nosemblante.

"Que me sucedeu, animais meus? –disse Zaratustra – Não estoutransformado?! Não se abeirou de mima ventura como uma tempestade? Aminha ventura é louca e apenas diráloucuras; ainda é nova demais.Suportai−a, pois, com paciência!Aniquila−me a ventura! Sejam meusmédicos os que sofrem!

Posso tornar a descer para o pé dosmeus amigos e também dos meusinimigos! Zaratustra pode tornar a falar edar e a fazer bem aos seus prediletos!

O meu impaciente amor transborda emtorrentes, precipitando−se desde ooriente até o ocaso. Até minha alma seagita nos vales, abandonando osmontes silenciosos e as tempestades dador.

Demasiado tempo sofri e estive emperspectiva. Demasiado tempo mepossuiu a solidão. Agora esqueci osilêncio.

Todo eu me tornei qual boca e murmúriode um rio que salta de elevadas penhas:quero precipitar as minhas palavras nosvales.

Corre o rio do meu amor para oinsuperável! Como não encontraria umrio enfim o caminho do mar?

Sem dúvida há um lago em mim, umlago solitário que se basta a si mesmo;mas o meu rio de amor arrasta−oconsigo para o mar.

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Eu sigo novas sendas e encontro umalinguagem nova; a semelhança de todosos criadores, cansei−me das línguasantigas. O meu espírito já não quercorrer com solas gastas.

Toda a linguagem me torna moroso.Salto para o teu carro, tempestade! E ati também quero fustigar com a minhamalícia!

Quero passar por vastos mares comouma exclamação ou um grito de alegria,até que encontre as ilhasbem−aventuradas onde moram os meusamigos... e entre eles os meus inimigos!Como amo agora todos a quem possofalar! Os meus inimigos também formamparte da minha ventura.

E quando quero montar no meu maisfogoso cavalo nada me ajuda tantocomo a minha lança: sempre estápronta a servir−me, a lança que brandocontra os meus inimigos.

É muito grande a tensão da minhanuvem; por entre os risos dosrelâmpagos quero lançar granizo àsprofundidades.

Formidavelmente se alevantará o meupeito, formidavelmente soprará a suatempestade; assim se aliviará.

Verdadeiramente, a minha felicidade eminha liberdade sobre−vêm comotempestades! É mister, porém, que osmeus inimigos imaginem que o maldesencadeia sobre as suas cabeças.Sim: também a vós, meus amigos, vosassombrará a minha selvagemsabedoria, e talvez vos ponhais em fugacom os meus inimigos.

Ah! Saiba eu tornar a atrairvos comflautas pastoris. Aprenda a rugir comternura a minha leonina sabedoria. Játemos apreendido tanta coisa juntos!

A minha selvagem sabedoriaemprenhou nos montes solitários; nasduras pedras pariu o mais novo dosseus filhos. Agora corre louca pelodeserto árido e procura sem cessar obranco céspede. No mais brancocéspede de vossos corações, meusamigos... no vosso amor desejaria eu

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depositar o mais caro que possuo!"

Assim falou Zaratustra.

Nas Ilhas Bem−Aventuradas

"Os figos caem das árvores: são bons edoces; e conforme caem assim se lhesabre a vermelha pele. Eu sou um ventodo Norte para os figos maduros.

Assim como os figos, caem em vósestas práticas; recebei o seu suco e asua doce polpa. Em torno de nós reina atarde como um céu sereno. Vede queplenitude em nosso redor! E que belo,do seio da abundância, olhar para fora,para os mares longínquos!

Noutro tempo, quando se olhava paraos mares longínquos, dizia−se: "Deus";mas agora eu vos ensinei a dizer:"Super−homem". Deus é umaconjectura; mas eu quero que a vossaconjectura não vá mais longe do que avossa vontade criadora. Poderíeis criarum Deus? Pois então não me faleis dedeuses! Poderíeis, contudo, criar umSuper−homem.

Talvez vós o não sejais, meus irmãos!Podeis transformar−vos em pais eascendentes do Super−homem: sejaessa a vossa melhor criação!

Deus é uma conjectura; mas eu queroque a vossa conjectura se circunscrevaao imaginável.

Poderíeis imaginar um Deus? Signifiquepara vós a vontade de verdade; quetudo se transforme no que o homempode pensar; ver e sentir! Deveis cuidaraté o último os vossos próprios sentidos!

E o que chamáveis mundo deve sercriado já por vós; a vossa razão, avossa imagem, a vossa vontade, ovosso amor devem tornar−se o vossopróprio mundo. E, verdadeiramente,será para ventura vossa!

Vós, que pensais e compreendeis comohavíeis de suportar a vida sem essaesperança? Não deveríeis persistir noque é incompreensível nem no que é

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irracional.

Hei de vos abrir, porém, inteiramente omeu coração, meus amigos; seexistissem deuses como poderia eusuportar não ser um deus?! Porconseguinte, não há deuses.

Fui eu, na verdade, quem tirou essaconseqüência; mas agora é ela que metira a mim mesmo.

Deus é uma conjectura; mas, quembeberia sem morrer, todos os tormentosdesta conjectura?

Acaso se quererá tirar ao criador a suafé, e à águia o seu vôo pelas regiõeslongínquas?

Deus é um pensamento que torce tudoquanto está fixo.

Quê!? Não existiria já o tempo, e todo operecível seria mentira?

Pensar tal produz vertigem nos ossoshumanos e náuseas no estômago;verdadeiramente, pensar assim é comosofrer modorra.

Chamo mau e desumano a isso: a todoesse ensinamento do único, do pleno,do imóvel, do saciado, do imutável.

O imutável é apenas um símbolo! E ospoetas mentem demais.

As melhores parábolas devem falar dotempo e do acontecer; devem ser umelogio e uma justificação de tudo o queé perecível.

Criar é a grande emancipação da dor edo alivio da vida; mas para o criadorexistir são necessárias muitas dores etransformações. Sim, criadores, é misterque haja na vossa vida muitas mortesamargas. Sereis assim os defensores ejustificadores de tudo o que é perecível.Para o criador ser o filho que renasce, épreciso que queira ser a mãe com asdores de mãe.

Em verdade, o meu caminho atravessoucem almas, cem berços e cem dores depar to . Mu i tas vezes me desped i ;c o n h e ç o a s ú l t i m a s h o r a s q u e

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desgarram o coração. Mas assim o quera minha vontade cr iadora , o meud e s t i n o . O u , p a r a o d i z e r m a i sfrancamente: esse destino quer serm i n h a v o n t a d e . T o d o s o s m e u ssentimentos sofrem em mim e estãoaprisionados; mas o meu querer chegasempre como libertador e mensageirode alegria.

"Querer, libertar": é essa a verdadeiradoutrina da vontade e da liberdade; tal éa que ensina Zaratustra.

Não querer mais, não estimar mais enão criar mais! Ó! fique sempre longe demim, esse grande desfalecimento.

Na investigação do conhecimento sósinto a alegria da minha vontade, aalegria do engendrar. e, se há inocênciano meu conhecimento, é porque nele hávontade de engendrar.

Essa vontade apartou−me de Deus edos deuses. Que haveria. pois, que criarse houvesse deuses?

A minha ardente vontade de criarimpele−me sempre de novo para oshomens, assim como é impelido omartelo para a pedra.

Ai, homens! Uma imagem dormita paramim na pedra, a imagem das minhasimagens. Ó! haja de dormir na pedramais feia e mais rija!

Agora o meu martelo desencadeia−secruelmente contra a sua prisão. A pedradespedaça−se: que me importa?

Quero acabar esta imagem porque umasombra me visitou; qualquer coisa muitosilenciosa e leve se dirigiu para mim!

A excelência do Super−homemvisitou−me como uma sombra. Ai, meusirmãos! Que me importam já osdeuses?"

Assim falou Zaratustra.

Dos Compassivos

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"Meus amigos, aos ouvidos do vossoamigo chegaram palavras zombeteiras:"Olhem para Zaratustra! Então nãopassa por entre nós como por entreanimais?"

Mais valeria dizer: "Aquele que pensapassa pelo meio dos homens como porentre animais".

O que pensa chama ao homem animalde faces vermelhas. E por que é isto?Não será por que teve de Seenvergonhar demasiadas vezes?

Ó! meus amigos! Assim fala o pensador:Vergonha, vergonha! é esta a história dohomem!

E por isso o homem nobre impõe a simesmo o dever de não envergonhar;quer ter recato perante todo o que sofre.

Em verdade, não me agradam Osmisericordiosos, os que se comprazemna sua piedade; são demasiado faltosde pudor.

Se hei de ser compassivo, não quero aomenos que se diga que o sou; e quandoo for, que o seja só a distância.

Agrada−me também ocultar o rosto efugir antes de ser reconhecido. Meusamigos, convido−vos a fazer o mesmo.Depare−me sempre o meu destino, nocaminho que percorro, aqueles que,como vós, não sofrem, e aqueles comquem posso repartir esperanças,comidas e o mel.

Em verdade, tenho feito isto e aquilopelos que sofrem; mas sempre mepareceu melhor quando aprendia adivertir−me mais.

Desde que há homens, o homemtem−se divertido muito pouco: é esse,meus irmãos, o único pecado original.

E, quando aprendemos melhor adivertir−nos, esquecemo−nos melhor defazer mal aos outros e de inventardores.

Por isso lavo a mão que auxiliou o quesofre. Por isso ainda agora restrinjo aalma.

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Envergonho−me de ter visto sofrer oque sofre, por causa da vergonha dele;e, quando acudi em seu auxílio, feri−lherudemente o orgulho.

Grandes favores não tomam ninguémagradecido, mas apenas vingativo; emesmo o pequeno benefício, não sendoesquecido, torna−se um verme roedor.

Sede pertinazes em obter!

E distingui ao aceitar! Aconselho aosque não têm que oferecer.

Eu, porém, sou dos que dão:agrada−me dar, como amigo, aosamigos. Colham, todavia, os estranhose os pobres, por si sós, o fruto da minhaárvore: é menos humilhante para eles.

Dever−se−iam, porém, suprimirtotalmente os mendigos. Na verdade,desgosta−se uma pessoa por lhes dar;e desgosta−se por lhes não dar. Assimsucede com os pecadores e com asconsciências manchadas! Crede−me,meus amigos: os remorsos impelem amorder.

O pior de tudo, no entanto, são ospensamentos mesquinhos. Vale maisfazer mal do que pensar ruimente.

Certamente que vós dizeis: "O prazerdas pequenas maldades poupa−nosmais de uma ação má". Mas nisso nãose deveria querer economizar.

A má ação é como uma úlcera:desgasta, irrita e faz erupção: falalealmente.

"Vede: sou uma enfermidade". Assimfala a má ação: isto é nobreza.

O pensamento mesquinho, porém, écomo a lama: arrasta−se, agacha−se, enão quer estar em parte nenhuma, atéque as pequenas excrescênciasapodrecem e abatem o corpo todo.

Pois eu digo estas palavras ao ouvidodo que está em poder do demônio:''Ainda vale mais que deixes crescer oteu demônio! Para ti também existeainda um caminho da grandeza!"

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Ai, meus irmãos! Sabemos muito unsdos outros! E há quem chegue a sertransparente para nós, mas ainda não ésuficiente para o entendermos.

É difícil viver com os homens. uma vezque é tão difícil guardar silêncio.

E aquele com quem somos maisinjustos não é o que nos é antipático,mas aquele com quem nos nãoimportamos.

Se tens, contudo, um amigo que sofre,sê um asilo para o seu sofrimento, masaté certo ponto um leito muito duro, umleito de campanha; assim ser−lhes−ásmais útil. E se um amigo te faz mal,diz−lhe: "Perdôo−te o mal que mefizeste; mas se o houvesses feito a ti,como eu poderia te perdoar?"

Assim fala todo o amor grande:sobrepuja o perdão e a piedade. Epreciso conter o coração: porque, se odeixamos livre, depressa perdemos acabeça!

Ai! Onde se fizeram mais loucuras naterra do que entre os compassivos, eque foi que mais prejuízo causou à terrado que a loucura dos compassivos?

Pobres dos que amam sem estar acimada sua piedade!

Assim me disse um dia o diabo: "Deustambém tem o seu inferno: é o seu amorpelos homens" E ultimamente ouvi−lhedizer estas palavras: "Deus morreu; foi asua piedade pelos homens que omatou".

Livrai−vos, pois, da piedade: por causadela paira sobre ele uma densa nuvem!Eu conheço os sinais do tempo.

Relembrai também estas palavras todoo grande amor está ainda superior àpiedade, porque aquele que ama quertambém criá−lo Ofereço−me ao meuamor, e ao meu próximo como a mimmesmo". Assim se exprimem todos oscriadores. Contudo, "todos os criadoressão cruéis".

Assim falou Zaratustra.

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Dos Sacerdotes

Um dia Zaratustra fez um sinal aosdiscípulos e falou−lhes assim:

"Olhai estes sacerdotes; conquantosejam meus inimigos, passai por diantedeles silenciosamente e com a espadaembainhada.

Também entre eles há muitos heróis,muitos sofreram demais: por issoquerem fazer sofrer os outros. Sãomaus inimigos: nada há mais vingativodo que a sua humildade. E quem osataca facilmente se macula.

O meu sangue é, porém, igual ao deles;e eu quero que o meu sangue sejahonrado até no deles".

Quando passaram, a dor embargouZaratustra; depois de lutar unsmomentos com a dor, começou a falarassim:

"Aqueles sacerdotes causam me pena esão−me antipáticos; mas, desde queestou entre os homens, isto é o quemenos me importa.

Fizeram−me e fazem−me sofrer:vejo−os prisioneiros e marcados. Aquelea quem chamam o Salvador pôs−lhesas algemas.

As algemas dos valores falsos e daspalavras ilusórias! Ai! Haja quem ossalve do seu Salvador!

Quando o mar um dia os arrojou,julgaram arribar a uma ilha; mas afinalderam com um monstro adormecido!

Falsos valores e palavras ilusórias: eisquais são para os mortais os monstrosmais perigosos: neles dormita e aguardalargo tempo o destino. Afinal desperta edevora aquele que nele se albergou.

Ó, aquela luz artificial! aquela atmosferapesada! A alma ali não pode voar até àsua própria alma.

A sua crença ordena isto: "Vós,pecadores, subi de joelhos as escadas".

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Em verdade, prefiro ver o impudico aesses olhos deslocados pela vergonha epela devoção!

Quem, pois, criou semelhantes antros esemelhantes graus de penitência? Nãoeram os que queriam esconder−se e aquem o céu límpido ofendia?

E só quando o céu límpido olhenovamente através das abóbadasrendilhadas e contemple a erva e asvermelhas papoulas dos ruinososmuros, só então inclinarei o meucoração novamente ante as moradiasdesse Deus.

Chamaram Deus ao que os contrariavae prejudicava, e, na verdade havia nasua adoração muito heroísmo!

E não souberam amar ao seu Deussenão crucificando o homem!

Pensaram viver como cadáver;amortalharam de negro os seuscadáveres, e até nas suas palavraspercebo o mau cheiro das câmarasmortuárias.

E o que habita junto deles habita juntodos negros tanques onde se ouvecantar o sapo com doce melancolia.

Seria preciso entoarem melhorescânticos para eu crer no seu Salvador;seria preciso que os seus discípulostivessem mais aparência de redimidos.Quereria vê−los nus: porque só a belezadevia pregar o arrependimento. Quemconvencerá essa compunçãomascarada?

Mesmo os salvadores desses homensnão descendiam da liberdade e dosétimo céu da liberdade! Nuncaandaram sobre as bases doconhecimento!

O espírito desses salvadores era todovácuo, e nesse vácuo tinham posto asua loucura o seu supre−faltas a quechamaram Deus.

O seu espírito estava mergulhado empiedade, e quando se enchiam depiedade sempre sobrenadava umagrande loucura. Ousadamente lançavam

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o seu rebanho ao caminho, dandogritos: como se não houvesse mais doque um caminho que fosse dar aofuturo! Em verdade, esses pastorestambém formavam parte das ovelhas.

Tais pastores tinham espírito pequeno ealmas grandes, sensitivas; mas, meusirmãos, quão pequenas foram até agoraas almas sensitivas, mesmo as maiores!

No caminho que trilharam escreviamsinais de sangue, e a sua loucuraensinava que com o sangue se dátestemunho da verdade.

O sangue, porém, é o pior testemunhoda verdade; o sangue envenena adoutrina mais pura e muda−a emloucura e ódio dos corações.

E quando alguém atravessa o fogo pelasua doutrina, isso que prova? Coisamuito divina é quando do próprioincêndio surge a própria doutrina. Ocoração ardente e a cabeça fria: quandoestas duas coisas se reúnem, nasce otorvelinho, o "Salvador".

Em verdade, houve nascidos melhorese maiores do que aqueles a que o povochama salvadores, esses arrebatadorestorvelinhos. E é mister, meus irmãos,que sejais salvos por outros maioresainda do que todos os salvadores, sequereis encontrar o caminho daliberdade.

Nunca houve um Super−homem Tenhovisto a nu todos os homens o maior e omenor.

Parecem−se ainda demais uns com osoutros: até o maior era demasiadohumano".

Assim falou Zaratustra.

Dos Virtuosos

"A força de tronos e de fogos de artifíciocelestes, é preciso falar aos sentidosfrouxos e adormecidos.

A voz da beleza, porém, fala baixo: sóse insinua nas almas mais despertas.

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Hoje o meu escudo riu−se e estremeceubrandamente: era o estremecimento e oriso sagrado da beleza!

De vós, ó virtuosos, se ria a minhabeleza. E a sua voz chegava assim atémim: "Ainda querem ser pagos".

Virtuosos, ainda quereis ser pagos?Quereis recompensa por Vossa virtude,e o céu em vez da terra e a eternidadeem vez do vosso hoje?

E antipatizais comigo porque ensino quenão há remunerador nem pregador? Ena verdade, nem sequer ensino que avirtude seja recompensa de si própria.

Ah! É essa a minha pena! Introduziu−seastutamente a recompensa e o castigono fundo das coisas e até no fundo dasvossas almas, virtuosos!

A minha palavra, porém, semelhante aocolmilho do javali deve dilacerar o fundode vossas almas eu quero ser para vósrelha de arado.

Saiam à luz todos os segredos do vossoíntimo, e quando os virdes expostos aosol, rasgados e despedaçados, entãoficará a vossa mentira tambémseparada da vossa verdade.

Porque esta é a vossa verdade: soisdemasiado limpos para a mancha dapalavra vingança, castigo, recompensa,represálias.

Amais a vossa virtude como a mãe amao filho, e quando se ouviu dizer que umamãe quisesse ser paga do seu amor?

A vossa virtude é o melhor de vósmesmos. Tendes desejo do anel que seretorce para tornar sobre si.

E toda a obra da vossa virtude é comoestrela que se apaga: a sua luz caminhaainda e continua viajando. Quandodeixará de caminhar? Assim a luz davossa virtude caminha ainda, mesmodepois da obra cumprida. Fique, pois,esquecida e morta: o seu raio de luzprossegue a sua viagem.

Seja a vossa virtude o vosso próprio ser,e não qualquer coisa estranha, uma

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epiderme, uma capa: eis a verdade dofundo da vossa alma, ó virtuosos!

Mas há também alguns para quem avirtude é um espasmo produzido pelasdisciplinas, e vós ouvistes de sobra osgritos desses! E outros que chamamvirtude à preguiça do seu vício; e,quando alguma vez desprezam o seuódio e a sua inveja, a sua 'justiça"desperta e esfrega os olhos sonolentos.

E há outros que se vêm arrastados parabaixo; tiram de si mesmos os seusdemônios; mas, quanto mais se fundem,mais os olhos se lhos incendeiam emais cobiçam o seu Deus.

Ai! Também o grito destes chegou aosvossos virtuosos ouvidos: "O que eu nãosou é isso que é para mim Deus e avirtude".

E há outros que andam pesadamente,chiando como carros, transportandopedra ladeira abaixo: falam muito dedignidade e de virtude: chamam virtudeao seu freio.

E há outros que parecem relógios a quese dá corda; produzem o seutique−taque e querem que essetique−taque se chame virtude.

Na verdade, estes divertem−me: ondequer que encontre tais relógiosdar−lhes−ei corda com a minha ironia, enão terão outro remédio senão pôr−se aandar.

E outros orgulham−se do seu punhadode justiça, e em nome disso atropelamtudo, de modo que o mundo se afoga nasua injustiça.

Que náuseas, quando lhes sai da bocaa palavra virtude! E quando dizem: "Soujusto", é num tom em que se percebe:"Estou vingado!"

Querem despojar os seus inimigos coma sua virtude, e só se elevam pararebaixar os outros.

E há outros ainda que apodrecem noseu pântano e que falando por entre ocaniçado: "Virtude é estar quieto nopântano.

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Não mordemos a ninguém eafastamo−nos daquele que quermorder; e em todas as coisas somos daopinião que se nos dá".

E há ainda outros que gostam damímica, e pensam: "A virtude é umaespécie de mímica".

Os seus joelhos estão sempre emadoração, e as suas mãos juntam−seem louvor à virtude; mais o coração estáalheio a tudo isso.

E há outros que julgam que é virtuosodizer: "A virtude é necessária"; mas nofundo só crêem numa coisa. E algunsque não sabem ver quanto de elevadohá no homem, falam de virtude quandovêm perto de mais a sua baixeza: destemodo chamam "virtude" aos seus mausolhos.

Uns querem ser elevados e nomeados,e chamam a isso virtude. os outrosquerem ser derribados... e tambémchamam a isso virtude.

E assim quase todos julgam ter algumaparte na virtude; e todos querem, pelomenos, ser inteligentes em questão de"bem" e de "mal". Zaratustra, porém,chegou, para dizer a todos essesembusteiros e insensatos: "Que sabeisvós da virtude? Que podereis saber davirtude?"

Vim aqui, meus amigos, para que voscanseis das alheias palavras que tereisaprendido dos embusteiros e dosinsensatos.

Para que vos canseis das palavras"recompensa", "represálias", "castigo","vingança na justiça".

Para que vos canseis de dizer que "umaação é boa porque é desinteressada".

Ai, meus amigos! Esteja o vosso próprioser na ação como a mãe no filho; sejaesta a vossa palavra de virtude!

Verdadeiramente, eu tirei−vos compalavras os mais caros brinquedos davossa virtude; e agora fazeis "beicinho"como as crianças. Brincavam àbeira−mar e veio a onda e levou−lhes os

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brinquedos para as profundezas. Agorachoram.

A mesma onda, porém, lhes trará novosbrinquedos e espalhará aos pés delesnovas conchas coloridas. Assim seconsolarão, e vós também, meusamigos, tereis como eles vossosconsolos e novas conchas coloridas".

Assim falou Zaratustra.

Da Canalha

A vida é uma fonte de alegria, mas,onde quer que a canalha vá beber,todas as fontes estão envenenadas.Agrada−me tudo o que é limpo; masnão posso ver as bocarras grotescas e asede dos impuros.

Lançaram as suas vistas para o fundodo poço; agora reflete−se do fundo oseu odioso sorriso.

Envenenaram a água santa com a suaconcupiscência; e, ao chamar alegriaaos seus torpes sonhos, atéenvenenaram as palavras.

A chama indigna−se quando eles põemao fogo os seus úmidos corações; opróprio espírito ferve e fumega quando acanalha se abeira do fogo.

A fruta meIa−se e toma−se enjoativanas suas mãos; o seu olhar é ventoabrasador que seca a árvore de fruto.

E mais de um dos que se apartaram davida tão−somente se apartaram dacanalha; que queiram repartir com acanalha a água, a chama e o fruto.

E mais de um que se retirou ao desertopara lá sofrer a sede com os animaisselvagens, fê−lo para se não sentarjunto da cisterna em companhia deimundos cameleiros.

E mais de um que avançava comoexterminador e como saraivada peloscampos de semeadura, só queria pôr opé na boca da canalha para lhe tapar ogasnete.

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E o que mais me perturba não era saberque até a vida se encontra necessitadade inimizade, de morte e de cruzes demártires; mas tão−somente meperguntei um dia, e a pergunta quaseme sufocava:

Quê? Teria a vida também necessidadeda canalha?

As fontes envenenadas, os fogospestilentos, os sonhos maculados, osvermes no pão da vida, são coisasnecessárias?

Não era o ódio, mas a aversão o queme devorava a vida! Ai! muitas vezeschegou a enfastiar−me o engenho, o verque também a canalha era engenhosa!

E me afastei dos dominadores assimque vi o que hoje chamam dominar,traficar e regatear em matérias depoder... com a canalha!

E permaneci entre os povos comoestrangeiro, e com os ouvidos cerrados,a fim de que fossem coisas estranhaspara mim e a linguagem do seu tráfico eo seu regatear pelo poder. E apertandoas narinas atravessei com desalentotodo o ontem e o hoje; na verdade, oontem e o hoje empestam a populaçade pena. Como um válido que ficousurdo, cego e mudo, assim vivi muitotempo, para não viver com a canalha dopoder, da pena e dos prazeres.

Dificilmente e com cautela o meuespírito subiu escadas; as esmolas daalegria foram a sua consolação; a vidado cego deslizava apoiada num báculo.

Que me sucedeu, então? Como mecurei da aversão? Quem rejuvenesceumeus olhos? Como remontei às alturasonde já há canalha sentada à beira dasfontes?

A minha própria aversão me deu asas eforças que pressentiam os mananciais?Na verdade tive que voar ao mais altopara tornar a encontrar a fonte daalegria.

Ó, encontrei−a, meus amigos! Aqui, nomais alto brota para mim a fonte dealegria! E há uma vida em que se pode

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beber sem a canalha!

Fonte da alegria, quase brotas comdemasiada violência! E amiúde esvaziasa taça em vez de a encher!

Ainda preciso aprender a aproximar−mede ti mais moderadamente; o meucoração acorre ao teu encontro comdemasiada pressa: este coração ondearde o meu estio, o breve, ardente,melancólico e venturoso estio. Comoanela pela sua frescura o meu coraçãoestival!

Passou a aflição da minha primavera!Passaram os malignos corpos de neveem pleno junho! Já sou interessanteestival e tarde de estio!

Um estio nas maiores alturas, comfrescos mananciais e ditosatranqüilidade. Ó! Vinde, amigos meus!Seja ainda mais ditosa essatranqüilidade!

Porque esta é a nossa altura e nossapátria; e nossa mansão é demasiadoelevada e escarpada para todos osimpuros e para a sede dos impuros.Lançai, pois, os vossos puros olhares àfonte da minha alegria, meus amigos!

Como poderia turvar−se? Sorrir−vos−ácom a sua preguiça.

Nós solitários, construímos o nossoninho na árvore do futuro; as águias nostrarão no bico o sustento.

E de certo não será um sustento de quepossam participar os impuros! Porqueos impuros julgariam que devoravamfogo e que as fauces se lhesabrasavam.

Não preparamos aqui, em verdade,moradias para os impuros! A vossaventura pareceria glaciá−la aos seuscorpos e aos seus espíritos!

E nós queremos viver por cima delescomo ventos fortes, vizinhos das águias,vizinhos do sol; assim vivem os ventosfortes.

E à semelhança do vento, querlo soprarentre eles um dia e cortar a respiração

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ao seu espírito; assim o quer o meufuturo.

Zaratustra, em verdade, é um ventoforte para todas as terras baixas, e dáestes conselhos aos seus inimigos e aquantos cospem e Vomitam. "Livrai−vosde cuspir para o ar!"

Assim falou Zaratustra.

Das Tarântulas

"Olha: é esta a toca da tarântula!Queres vê−la, a ela mesmo? Está aquia sua teia; toca−lhe para a veres tremer.

Olha: ei−la aqui, sem se fazer rogar.Bem−vinda tarântula! No teu escurolombo negreja a característica marcatriangular, e eu também sei o que há natua alma.

Em tua alma aninha−se a vingança;onde quer que fiques, forma−se umacrosta negra. A vingança levanta na tuaalma torvelinhos de vingança.

Assim vos falo em parábola a vós quelevantais torvelinhos na alma,pregadores da igualdade! Vós outrossois para mim tarântulas sedentas desecretas vinganças.

Eu, porém, acabarei de revelar osvossos esconderijos, por isso me rio navossa cara com o meu riso das alturas!

Por isso despedaço a vossa teia, paraque a cólera vos faça sair do vossoantro de mentira e para que a vossavingança apareça por detrás das vossaspalavras de "justiça".

Seja o homem salvo da vingança; é estapara mim a ponte da esperançasuperior, e um arco−íris anunciagrandes tormentas.

As tarântulas, todavia, compreendemdoutra forma. "Justamente quando astempestades da nossa vingançaenchem o mundo, é quando nósdizemos que haja justiça". Assim falamelas entre si. "Queremos exercer nossavingança e lançar nossos ultrajes sobre

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todos os que não são semelhantes anós". Isso juram a si mesmas astarântulas.

E acrescentam: "Vontade de igualdade,isto será daqui por diante o nome davirtude, e queremos erguer o gritocontra tudo o que é poderoso".

Sacerdotes da igualdade: a tirânicaloucura da vossa impotência reclamaem brados a "igualdade", por detrás daspalavras de virtudes esconde−se avossa mais secreta concupiscência detiranos!

Vaidade acre, inveja contida − talvez avaidade e a inveja de nossos pais − devós saem essas chamas e essasloucuras de vingança.

O que o pai calou, fala o filho, e muitasvezes vi revelado no filho o segredo dopai.

Parecem−se com os extáticos; não é,porém, o coração que os extasia, mas avingança.

E se tornam frios e sutis, não é poragudeza, mas por inveja.

Também levam os zelos à senda dospensadores; é este o sinal da suaemulação; sempre vão tão longe, tãolonge, que afinal o seu cansaço temsempre de adormecer até o meio daneve.

Todos os seus lamentos têm acentos devingança; todos os seus elogios ocultammalefícios, e para eles serem juizes é asuprema felicidade. Eis aqui, todavia, oc o n s e l h o q u e v o s d o u , a m i g o s :desconfiai de todos os que sentempoderosamente o instinto de castigar!

São pessoas de má raça e de má casta;por eles assomam o polícia e o verdugo.

Desconfiai de todos os que falam muitoda sua justiça! Não és ó mel o que faltaàs suas alma',:.

E, se se chamam a si mesmos "os bonse os justos", não esqueçais que, agorapara serem fariseus, só lhes falta... opoder.

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Meus amigos, não quero que se memisture e se me confunda.

Há quem pregue a minha doutrinada davida, mas são a um tempo pregadoresda igualdade e tarântulas.

Estas aranhas venenosas faIam a favorda vida, apesar de estarem acaçapadasnas suas cavernas e afastadas da vida:porque assim querem prejudicar.

Querem prejudicar os que têm agora opoder; porque entre este; é ainda acoisa mais familiar a prática da morte.

A ser doutro modo, doutro modopregariam as tarântulas: porque noutrotempo foram elas precisamente as quemais bem souberam caluniar o mundo equeimar hereges.

Com estes pregadores da igualdade éque eu não quero ser misturado nemconfundido. Porque a justiça me falaassim: "Os homens não são iguais".

Não devem tampouco chegar a sê−lo.Que seria. pois, o meu amor aoSuper−homem se eu falasse doutromodo?

Por mil pontes e por mil caminhos sedevem precipitar para o porvir, e semprehaverá que colocar entre eles maisguerras e desigualdades: assim me fazfalar o meu grande amor!

Devem−se tomar inventores de imagense de fantasmas em suas inimizades, ecom as suas imagens e os seusfantasmas devem travar entre si o maiorcombate.

Bom e mau, rico e pobre, alto e baixo,todos os nomes de valores devem serarmas e símbolos bélicos, em sinal deque a vida sempre se há de superarnovamente a si mesma.

Ela, a própria vida, quer elevar−se àsalturas com pilares e grades: querescrutar os longínquos horizontes epenetrar com os seus olhares assupremas belezas: para isso necessitaas alturas.

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Portanto, necessita alturas, necessitadegraus e contradição dos degraus edos que se elevam! A vida querelevar−se e superar−se a si mesma.

E vede, meus amigos! Aqui onde está acaverna da tarântula, elevam−se asruínas de um templo antigo: olhai comolhos iluminados.

O que aqui em outros dias elevou napedra os seus pensamentos para asalturas, esse deve ter conhecido osegredo da vida toda, com o mais sábio.

Haja até na beleza luta e desigualdadee guerra pelo poder e pela supremacia;isto nos ensina ele aqui no símbolo maisluminoso. Assim como aqui abóbadas earcos travam corpo a corpo um divinocombate, e assim como luz e sombrapugnam entre si em divina competência,assim fortes e nobres sejamos nóstambém inimigos, meus amigos!

Pugnemos divinamente uns contra osoutros!

Desventura! Também me picou atarântula, minha antiga inimiga!Divinamente firme e bela picou−me nodedo!

"Há de haver castigo e justiça − pensa atarântula:− não é em vão que canta aquio hino em honra da inimizade!"

Sim; está vingada! Pobre de mim; vaiminha alma girar como um turbilhão devingança!

No entanto, para ela não girar, meusamigos, atai−me fortemente a estacoluna. Antes quero ser um estilista doque um turbilhão de vingança!

Zaratustra não é um turbilhão nem umatromba e, se é bailarino, não é bailarinode tarantela!"

Assim falou Zaratustra.

Dos Sábios Célebres

"Todos vós, ó sábios célebres, tendesservido o povo e a superstição do povo,

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e não a verdade! E é exatamente porisso que vos têm honrado.

E por isso também foi tolerada a vossaincredulidade, porque era um rodeioengenhoso para o povo. Assim procedeo amo com os seus escravos e por seudesaforo o mantém.

O povo, porém, a quem detesta, tantocomo os cães ao lobo, o espírito livre,inimigo dos preconceitos, aquele que aninguém presta culto e que habita nosbosques.

Escorraçá−lo do seu esconderijo é oque o povo chamou sempre o "sentidoda justiça", e até açula contra o espíritolivre os seus mais ferozes mastins.

"Porque a verdade está onde está opovo! Desgraçado, três vezesdesgraçado aquele que investiga!" Eis oque em todos os tempos se temrepetido.

Queríeis justificar a veneração do vossopovo: a isto chamastes "desejo deverdade". Ó! sábios célebres!

E o vosso coração disse sempre: "Eusaí do povo: dele me veio também a vozde Deus".

Pacientes e astutos como o asnosempre intercedestes pelo povo.

E mais de um potentado, que queriaestar bem com o povo, atrelou àdianteira dos seus corcéis um burrico,um sábio célebre.

E agora, ó sábios célebres, quisera quearrojásseis para longe de vós a pele doleão.

A pintada pele da fera e o pêlo doexplorador, do investigador e doconquistador.

Para aprender a crer na vossa"veracidade" necessitava ver−vosromper com a vossa vontadeveneradora.

Por mim, chamo verídico àquele que vaipara os desertos sem Deus, aniquilandoo seu coração reverente.

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No meio da amarela arena e abrasadopelo sol acontece−lhe olhar com avidezpara as ilhas de copiosas fontes onde,sob umbrosas árvores, repousa a vida.A sua sede, porém, não o decide aimitar esses sibaritas porque onde háoásis há também ídolos.

Faminta, violenta, solitária, sem deuses:assim se quer a si própria avontade−leão.

Livre dos deleites dos servos livre dosdeuses e das adorações. sem espanto eespantosa, grande e solitária: tal é avontade do verídico.

No deserto têm vivido sempre osverídicos, os espíritos livres. comosenhores do deserto; mas nas cidadesresidem os sábios célebres e bemalimentados: os animais de tiro.

Que eles puxem sempre, como burros,pelo carro de povo!

E não é porque lho queira lançar emcara, mas não passam de servidores ede seres jungidos, usem douradosarreios. E muitas vezes têm sido bonsservidores, dignos de louvor; porqueassim fala a virtude: "Se é forçoso seresservidor procura aquele a quem maisaproveitem os teus serviços.

O espírito e a virtude do teu amo devemaumentar por estares ao serviço dele: eassim tu mesmo te engrandeces com oseu espírito e a sua virtude".

E na verdade, sábios célebres,servidores do povo, aumentastes com oespírito e a virtude do povo, e o povoaumentou por vossa causa. Digo istoem vossa honra. Continuais, porém aser povo, até 'ias vossas virtudes, povode olhos fracos, povo que não sabe oque é o espírito. O espírito é a vida queclarifica a própria vida; como o seumesmo sofrimento aumenta o seusaber: já o sabíeis?

E a felicidade do espírito consiste nisto:em ser ungido pelas lágrimas, em servítima sagrada do holocausto: já osabíeis?

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E o que pensa e compreende deveaprender a construir com montanhas!Transportar montanhas é para o espíritopouca coisa: já o sabeis? Vós só vedesas centelhas do espírito, mas não aqualidade de bigorna que é, nem aondechega a crueldade do seu martelo.

Na verdade, vós não conheceis a altivezdo espírito! Ainda suportáveis menos asua modéstia do espírito quisesse falar!E nunca pudestes guindar o vossoespírito a cumeeiras de neve; nãotendes bastante valor para isso! Ignoraistambém, por conseguinte, osarroubamentos da sua frescura. Emtodas as coisas, porém, me pareceistomar demasiadas liberdades com oespírito, e muitas vezes fizestes dasabedoria um hospital de maus poetas.

Vós não sois águias: por isso nãoconhecestes o gozo no assombro doespírito. Quem não é ave não deve voarsobre abismos.

Pareceis−me tíbios, e a corrente de todoo conhecimento profundo é fria. Sãoglaciais as fontes interiores do espírito:um consolo para mãos e trabalhadoresardentes. Vós, sábios célebres,permaneceis aí, respeitáveis e eretos,com a espinha direita! Não vos impele ovento forte de uma vontade poderosa.

Nunca vistes cruzar o mar uma velatrêmula enfunada pela impetuosidadedo vento?

Como vela que treme com aimpetuosidade do espírito, assim cruzao mar a minha sabedoria, a minhaselvática sabedoria!

Mas vós, servidores do povo, sábioscélebres, como poderíeisacompanhar−me?"

Assim falou Zaratustra.

O Canto da Noite

"É noite; agora eleva−se mais a voz dasfontes. E a minha alma é também umafonte.

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É noite; agora despertam todos oscantos dos amantes. E a minha alma étambém um canto de amante.

Há qualquer coisa em mim não aplicadanem aplicável, que quer elevar a voz.Há em mim um anelo de amor que falaa linguagem do amor.

Eu sou luz. Ah! se fosse noite! Mas éesta a minha soledade: ver−me rodeadode luz.

Ah! se eu fosse sombrio e noturno!Como sorveria os seios da luz! Etambém vos bendiria a vós, estrelinhasque brilhais lá em cima como pirilampos!E seria venturoso com vossos mimos deluz.

Eu, porém, vivo da minha própria luz,absorvo em mim mesmo as chamas quede mim brotam.

Eu não conheço o prazer de receber, efreqüentemente tenho sonhado queroubar deve ser ainda maior deleite doque receber.

A minha pobreza reside em que a minhamão nunca se cansa de dar, a minhainveja são os olhos que vejo esperando,e as noites vazias do desejo.

Ó, miséria de todos os que dão! Ó,eclipse do meu sol! Ó, desejo dedesejar! Ó, fome devoradora na fartura!

Eles recebem de mim; mas, acaso lhestocarei eu sequer a alma? Entre dar ereceber há um abismo; e é muito difíciltranspor o menor abismo.

Nasceu um homem da minha beleza:quereria prejudicar os que ilumino;quereria saquear os que cumulo depresentes: assim tenho ânsia demaldade.

Retirando a mão, quando a mão já seestende; vacilando como a cascata quevacila até na sua queda; assim eu tenhosede de maldade. Tais vingançasmedita a minha exuberância; taismalícias nascem da minha solidão.

O meu prazer de dar morreu à força dedar; a minha virtude cansou−se de si

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mesma por sua própria exuberância.

O que dá sempre corre perigo de perdero pudor; aquele que reparte sempre, àforça de repartir acaba por se lhecalejarem as mãos e o coração.

Os meus olhos já se não arrasam delágrimas ao ver a vergonha dos queimploram; a minha mão endureceudemais para experimentar o tremor dasmãos cheias.

Para aonde foram as lágrimas dos meusolhos e a plumagem do meu coração?Ó, soledade de todos que dão! Ó,silêncio dos que brilham! Muitos sóisgravitam no espaço vazio; a sua luz falaa tudo que é obscuro; só para mimemudeceu.

Ó! É a inimizade da luz contra oluminoso! Desapiedada, segue o seucaminho. Profundamente injusto contrao luminoso, frio para com os sóis, assimcaminha todo o sol. Como umatempestade voam os sóis por suasórbitas: é esse o seu caminho. Seguema sua vontade inexorável: é essa a suafrialdade.

Ai, só vós obscuros e noturnos, quetirais o vosso calor do luminoso, só vósbebeis o leite balsâmico dos úberes daluz!

Ai, há gelo em torno de mim, gelo quequeima as minhas mãos! Tenho umasede que suspira por vossa sede!

É noite. Ai! Por que hei de eu ser a luz?E sede do noturno! E soledade!

É noite... como uma fonte, brota o meuanelo − meu anelo de fulgor.

É noite: agora eleva−se mais a voz dasfontes; e a minha alma é também umafonte.

É noite: agora despertam todos oscantos dos namorados. E a minha almaé também um canto de namorado".

Assim falou Zaratustra.

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O Canto do Baile

Uma tarde, atravessa Zaratustra obosque com seus discípulos e,procurando uma fonte, chegou a umverde prado rodeado de árvores ematagais: estavam ali bailando umasjovens. Logo que viram Zaratustradeixaram de bailar; mas Zaratustraaproximou−se−lhe amigavelmente epronunciou estas palavras:

"Não pareis de bailar, encantadorasmeninas! Quem se aproxima de vós nãoé um obstáculo ao vosso recreio, não éum inimigo das jovens.

Sou o advogado de Deus ante o diabo,e o diabo é o espírito da gravidade.Como! vaporosas! poderia eu serinimigo das divinas danças ou dos pésjuvenis de lindos tornozelos? É certoque sou uma selva e uma noite deescuras árvores; mas aquele que nãotemer a minha obscuridade encontrarásob os meus ciprestes sendas de rosas.

Saberá também encontrar o pequeninodeus preferido das donzelas: está juntoda fonte, silencioso, com os olhoscerrados.

Adormeceu em pleno dia o folgazão!Andou azafamado demais à procura demariposas?

Não vos agasteis comigo, formosasbailadeiras, se fustigo um tanto opequenino deus. Pode ser que ele seponha a gritar e a chorar; mas atéchorando se presta ao riso.

E com lágrimas nos olhos vós deveispedir uma dança; e eu mesmoacompanharei essa dança com umacanção.

Uma canção de baile e uma sátira sobreo espírito da gravidade, sobre o meudiabo soberano onipotente, que dizemser o "dono do mundo". Eis aqui acanção que Zaratustra cantou. Cupido eas jovens dançavam:

"Ainda há pouco olhei os teus olhos, óvida! e parecia−me cair no insondável!

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"Assim falam todos os peixes − dizias −o que eles não podem penetrar éinsondável".

"Eu, porém, sou volúvel e selvagem,mulher em tudo, e nunca virtuosa".

"Posto que para vós, homens, eu seja "aprofunda", ou "a fiel", "a eternamisteriosa". "Mas vós, homens, óvirtuosos, emprestais−nos sempre asvossas próprias virtudes".

Assim ria ela, a inacreditável; que nuncaa acredito, nem a ela nem ao seu riso,quando fala de si própria.

E quando eu falava a sós com a minhaselvagem sabedoria, disse−me elairritada:

"Tu queres, tu desejas, tu amas, e sópor isso lisonjeias a vida". Pouco mefaltou para responder mal e dizer averdade à irritada; e ninguém poderesponder pior do que quando "diz averdade" à sua sabedoria.

Assim sucede convosco. Eu nada amomais profundamente do que a vida, eainda mais quando a detesto. Se meinclino para a sabedoria, e amiúde comexcesso, e porque me lembra bastantea vida.

Tem os seus olhos, o seu riso e até oseu dourado anzol. Que hei de fazer, sese parecem tanto as duas? E quandoum dia a vida me perguntou:

"Mas, que é sabedoria?" − eu respondipressuroso: "Ah! sim'. a sabedoria!

Estamos sedentos dela, e não nossaciamos; olhamo−la através de umabruma; queremos alcançá−la através deuma rede.

É formosa? Não sei. Até carpas maisvelhas, porém, se deixam colher por ela.

É versátil e obstinada: muitas vezes lhevi morder os lábios e eriçar o cabelocom o pente.

Talvez seja má e falsa mulher em tudo;mas, quando fala mal de si mesma, équando seduz mais".

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Quando disse isto à vida, ela riu−semaldosamente e cerrou os olhos. "Mas,de quem falas tu − disse. É de mim?

E conquanto tivesses razão dizeres−meisso na minha cara. Fala, pois, de tuasabedoria!"

Ai! E então tornaste a abrir os olhos, óamada vida! E parecia−me tornar a cairno insondável'."

Assim cantou Zaratustra. Mas quando,acabado o baile, as donzelas seafastaram, ficou triste.

"O sol já se pôs há muito − disse porfim. − O prado está úmido, sente−se afrescura dos bosques.

Há algo desconhecido em torno de mim,que olha pensativo. Que? Ainda vives,Zaratustra? Por quê? Para quê? Onde?Como? Não é uma loucura viver ainda?

Ai, meus amigos! É a noite que assimme interroga. Perdoai−me a tristeza!

Cerrou−se a noite! Perdoai−me ter−secerrado a noite!"

Assim falou Zaratustra.

O Canto do Sepulcro

"Além está a ilha dos sepulcros, asilenciosa, além estão também ossepulcros da minha juventude. Alémquero levar uma coroa imarcescível davida".

E atravessei o mar.

"Ó, imagens e visões da minhajuventude! O, olhares de amor,momentos divinos! Como vosdesvanecestes depressa! Penso hojeem vós como nos meus mortos. De vós,mortos prediletos, chega até mim umsuave perfume que alivia o coração efaz correr as lágrimas. Verdadeiramenteesse perfume agita e alivia o coração doque navega solitário.

Sou eu sempre o mais rico e invejável −eu, o solitário! − Porque vos possui, e

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vós me possuis ainda; dizei−me: paraquem caíram da árvore maçãs maisvermelhas do que para mim?"

Eu sou sempre o herdeiro e o terrenopróprio do vosso amor, onde florescem,em memória, meus amados, silvestresvirtudes de todas as cores.

Éramos feitos para permanecer uns aopé dos outros; e vós estranhas edeliciosas maravilhas, não vosapaixonastes por mim e pelo meudesejo como tímidas aves, não vistescomo o confiado naquele que confia.Sim; feitos para a fidelidade como eu, epara a doce eternidade, agora terei devos lembrar por vossa infidelidade; ó,olhares e momentos divinos, ainda nãoaprendi outro nome.

Demasiado cedo morrestes para mim,fugitivos. Não fugistes, todavia, de mim,nem eu de vós: não somos culpadosuns para com os outros da nossainfidelidade.

Estrangularam−vos para me matarem amim, aves das minhas esperanças! Sim;para vós, amados meus, atira sempreflechas a maldade, para me alcançar ocoração.

E alcançou! Porque vós fostes sempre omais caro para mim, o meu bem, aminha posse; por isso tivestes quemorrer novos e cedo demais.

Para o mais vulnerável que havia emmim se disparou a flecha: para vós, cujapele é semelhante ao pulmão, aindamais o sorriso que morre de um olhar.

Eu, porém, hei de dizer aos meusinimigos: Que é matar um homem, emcomparação com o que me fizestes?

O que fizestes comigo é pior que umassassínio; tirastes−me o irrestituível.Assim vos falo eu, inimigos meus!

Matastes as visões da minha juventudee as minhas mais caras maravilhas.Tirastes−me os meus companheiros derecreio, os espíritos bem−aventurados!Em memória deles deposito esta coroae esta maldição. Esta maldição contravós, inimigos! Porque encurtaste a

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minha eternidade como se interrompeum som na fria noite! Sozinho, veio paramim a eternidade como olhar de olhosdivinos, como um relance.

Assim me disse um dia minha pureza nahora propícia: "Para mim todos os seresdevem ser divinos".

Então precipitastes sobre mim imundosfantasmas. Ai! Para onde fugiu aquelahora propícia?

"Todos os dias devem ser sagradospara mim".

Assim me falou um dia a sabedoria daminha juventude; palavras, na verdade,de uma prazenteira sabedoria. Vós,porém, inimigos meus, roubastes−me asminhas noites para trocar portormentoso velar. Ai! Para onde fugiuaquela prazenteira sabedoria?

Noutro tempo já suspirava porpresságios felizes, e vos fizeste passarpelo meu caminho uma monstruosa esinistra coruja. Ai! Para onde fugiu entãoo meu doce desejo?

Um dia fiz voto de renunciar a todarepugnância e vós convertestes emúlceras todo quanto me rodeia! Paraonde fugiram então meus mais nobresvotos?

Como cego percorri venturososcaminhos; vós arrojastes imundícies aocaminho do cego, e agora repugna−mea antiga senda.

E quando consumi o mais árduo paramim, e celebrava o triunfo dos meusesforços, fizestes calar aos que meestimavam que eu lhes acarretava maiordano.

Assim procedestes sempre. amargasteso meu melhor mel e a atividade dasminhas melhores abelhas.

Sempre enviastes à minha caridade osmendigos mais insolentes; sempreapinhastes em torno da minhacompaixão os mais incuráveisdesvergonhados. Assim feristes asminhas virtudes na sua fé

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E quando fazia a oferta do mais sagradoque possuía, a vossa "devoção"apressurava−se a ajuntar dádivas maispingues; de modo que as emanações davossa gordura afogavam o maissagrado que eu tinha.

E uma vez quis bailar como nuncabailaria; quis bailar além de todos oscéus.

Então alcançastes o meu mais queridocantor. E entoou o seus canto maislúgubre e sombrio. Ai! Zumbiu−me aosouvido como a mais fúnebre trompa!

"Cantor mortífero, instrumento demaldade, tu que eras o mais inocente!Eu estava disposto para o o melhorbaile, e tu com as tuas notas omataste−me no êxtase.

Só no baile eu sei dizer os símbolos dascoisas mais sublimes; e agora os meusmembros não puderam representar omeu mais alto símbolo".

Inexpressiva ficou a minha mais altaesperança!

E todas as visões e todos os consolosda minha mocidade morreram.

Como pude suportar? Como pude sersuperior a semelhantes feridas? Comoressuscitou a minha alma dessestúmulos?

Sim? Há algo invulnerável em mim,qualquer coisa que se não pode enterrare que faz saltar os rochedos; chama−sea minha vontade.

Esta atravessa os anos silenciosa eimutável.

A minha antiga vontade quer andar noseu passo pelos meus pés; o seusentido é duro e invulnerável.

Eu só sou vulnerável no calcanhar!"Assim vives tu sempre, pacientíssima,igual a ti mesma. Passastes sempretodos os túmulos!

Em ti ainda vive o irredimido da minhamocidade, e viva e moça permanecessentada, cheia de esperança, sobre os

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amarelos escombros das sepulturas.

Sim; tu para mim ainda és a destruidorade todas as sepulturas. Salve, minhavontade! E só onde há sepulturas é quehá ressurreições"

Assim falou Zaratustra!

Da Vitória sobre si

Mesmo

Chamais "desejo de verdade" ao quevos impele e incendeia, a vós, os maissábios.

Desejo de imaginar tudo quanto existe;assim chamo eu ao vosso desejo.

Quereis tornar imaginável tudo quantoexiste; porque duvidais com justadesconfiança que tudo seja imaginável.

É preciso, porém, que tudo se amolde ecurve perante vós! Assim o quer a vossavontade. É mister que fique punido esubmisso ao espírito como seu espelhoe sua imagem. Eis aqui toda a vossavontade, sapientíssimos, como umavontade de poder; e isto ainda que faleisdo bem e do mal e das apreciações devalores.

Quereis ainda criar o mundo perante oqual possais ajoelhar−vos: é esta avossa última esperança e a vossa últimaembriaguez.

Os simples, todavia, o povo, sãosemelhantes ao rio por onde avança umbarquinho, e no barquinho vão, solenese mascaradas, as apreciações dosvalores.

Pusestes a vossa vontade e os vossosvalores no rio do porvir; o que o povoconsidera bom e mau revela−me umaantiga vontade de domínio.

Vós, os mais sábios, pusestes esseshóspedes no barquinho; fostes vós e avossa vontade dominante que osenfeitou com adorno e nomessuntuosos.

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Agora o rio arrasta mais para longe ovosso barquinho: tem de o arrastar.Pouco importa que a quebrada ondaespume e, irada, lhe contrarie a quilha.

Não é o rio o vosso perigo e o fim dovosso bem e do vosso mal,sapientíssimos, mas essa mesmavontade, a vontade do poder, a vontadevital, inesgotável e criadora.

Mas, para compreenderdes a minhapalavra sobre o bem e o mal, dir−vos−eia minha palavra sobre a vida e acondição de todo o vivo.

Eu tenho seguido o que é vivo,persegui−o pelos caminhos grandes epequenos, a fim de lhe conhecer anatureza.

Quando a vida emudecia, apanhava−lheo olhar num espelho de cem facetas,para os seus olhos me falarem.

Mas por onde quer que encontrasse oser vivo, ouvi a palavra obediência.Todo o vivente é obediente.

Eis aqui a segunda coisa: manda−se aoque não sabe obedecer a si mesmo.

Tal é a condição natural do vivo.

Eis o que ouvi em terceiro lugar: Mandaré mais difícil do que obedecer; porqueaquele que manda suporta o peso detodos os que obedecem, e essa cargafacilmente o derruba.

Mandar parece−me um perigo e umrisco. E quando manda, o vivo semprese arrisca.

E quando se manda a si próprio tambémtem de expiar a sua autoridade, tem deser juiz, vingador e vítima das suaspróprias leis. Como é então isso? −perguntei a mim mesmo. − Que é quedecide o vivo a obedecer, a mandar, e aser obediente, mesmo mandando?

Escutai a minha palavra,sapientíssimos! Examinai seriamente sepenetrei no coração da vida!

Onde quer que encontrasse o que évivo, encontrei a vontade de domínio,

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até na vontade do que obedeceencontrei a vontade de ser senhor. Sirvao mais fraco ao mais forte: eis o que lheincita a vontade, que quer ser senhorado mais fraco. E essa a única alegria deque se não quer privar.

E como o menor se entrega ao maior,para gozar do menor e dominá−lo,assim o maior se entrega também earrisca a vida pelo poder.

É este o abandono do maior; hajatemeridade e perigo e jogue−se a vidanum lanço de dados.

E onde há sacrifício, serviço e olhar deamor há também vontade de ser senhor.Por caminhos secretos desliza o maisfraco até a fortaleza, e até mesmo aocoração do mais poderoso, para roubaro poder. E a própria vida me confioueste segredo: "Olha – disse eu sou oque deve ser superior a si mesmo".

Certamente vós chamais a isso vontadede criar ou impulso para o fim, para omais sublime, para o mais longínquo,para o mais múltiplo; mas tudo isso éapenas uma só coisa e um só segredo.

Prefiro desaparecer a renunciar a essacoisa única: é, na verdade, onde hámorte e queda de folhas, é onde sesacrifica a vida pelo, poder.

É mister que eu seja luta e sucesso efim e contradição dos fins. Ai! Aqueleque adivinha a minha vontade adivinhatambém Os caminhos tortuosos queprecisa seguir.

Seja qual for a coisa que eu crie e oamor que lhe tenha, em breve devo seradversário e o adversário do meu amor:assim o que quer a minha vontade.

E tu também, investigador, não és maisdo que a senda e a pista da minhavontade: a minha vontade de domíniosegue também os vestígios da tuavontade de verdade.

Certamente não encontrou verdadeaquele que falava da "Vontade deexistir"; não há tal vontade. Porque oque não existe não pode querer; mascomo poderia o que existe ainda desejar

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a existência!

Só onde há v ida há vontade; nãovontade de vida, mas como eu predico,vontade de domínio.

Há muitas coisas que o vivente apreciamais do que a vida; mas nas próximasa p r e c i a ç õ e s f a l a a " v o n t a d e d edomínio".

Isto ensinou−me um dia a vida, e porisso, sapientíssimos, eu resolvo oenigma do vosso coração.

Em verdade vos digo. Bem e malimorredouros não existem. E precisoque incessantemente se excedam a simesmos.

Com os vossos valores e as vossaspalavras do bem e do mal, vós, osapreciadores de valor, exerceis poderio;e é este o vosso amor oculto e oesplendor, o tremor e o transbordar davossa alma.

Dos vossos valores, porém, surge umpoder mais forte e uma nova vitóriasobre si, que parte os ovos e as cascasdo ovo.

E o que deve ser criador no bem e nomal deve começar por ser destruidor equebrar os valores.

Assim a maior malignidade forma parteda maior benignidade; mas estabenignidade é a criadora.

Digamo−lo, sapientíssimos, embora noscuste muito; calar−mo−nos é ainda maisduro: todas as verdades caladas setornam venenosas.

Aniquile−se tudo quanto pode seraniquilado pelas nossas verdades! Háainda muitas casas a edificar.

Assim falou Zaratustra.

Dos Homens Sublimes

Tranqüilo é o fundo do meu mar. Quemadivinharia que oculta monstrosdivertidos!

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A minha profundidade é inabalável, masradiante de enigmas e gargalhadas!

Hoje vi um homem sublime, solene, umpurificador do espírito. Como a minhaalma se riu da sua fealdade!

Inflando o peito, como quem aspira,estava ali silencioso o homem sublime,engalanando com feias verdades suapolaina de caça, e rico com vestidosrotos também nele havia muitosespinhos, mas não vi nenhuma rosa.Ainda não conhece o riso nem a beleza.Com semblante desabrido voltou essecaçador do conhecimento.

Lutou com animais selvagens; mas asua rígida fisionomia ainda reflete oanimal selvagem: um animal nãosubjugado.

Ei−lo sempre como um tigre preparandoo salto; mas a mim não me agradamessas almas mesquinhas; não são domeu gosto todos esses retraídos.

E vós, amigos, dizeis−me que questõesde gostos não se discutem. Toda a vida,contudo, é luta pelos gostos.

O gosto é a um tempo o peso, abalança, e o pesador; e ai de toda acoisa viva que quisesse viver sem lutapelos pesos, as balanças e ospesadores.

Se este homem sublime se enfastiasseda sua sublimidade, só entãoprincipiaria a sua beleza, e só entãoquereria eu gostar dele. só então lheacharia gosto.

E só quando se apartar de si saltará porcima da sua sombra e penetrará no seusol.

Demasiado tempo esteve sentado àsombra; o purificador do espírito viuempalidecer as faces e quase o matoude fome a espera.

Ainda nos seus olhos há desdém, erepugnância oculta nos seus lábios.

É verdade que descansa agora, masainda não descansou ao sol.

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Deveria fazer como o touro. e a suafelicidade deveria recender a terra, enão ao desprezo da terra.

Quereria vê−lo como um touro brancoque sopra e muge diante do arado e oseu mugido deveria cantar o louvor detudo o que é terrestre.

O seu semblante ainda é sombrio; nelese projeta a sombra da mão. Ainda estána sombra o seu olhar.

A sua própria ação nele não e mais doque uma sombra; a mão escurece o queatua. Ainda não está superior ao seuato.

Agrada−me ver nele o pescoço de umtouro, mas agora também me agradariaver−lhe o olhar de anjo.

Preciso igualmente que esqueça asuavontade de herói; depara mim umhomem elevado, e não só sublime; até oéter deveria elevar esse homem semvontade. Venceu monstros, adivinhouenigmas; mas precisava também salvaros seus monstros e os seus enigmas;precisava transformá−los em filhosdivinos.

O seu conhecimento ainda nãoaprendeu a sorrir e a não ter inveja, aonda da sua paixão ainda se nãoacalmou na beleza.

Não é certamente na sociedade que sedeve calar e submergir o seu desejo,mas na beleza.

A graça forma parte da generosidadedos que pensam com elevação.

Com o braço sobre a cabeça: eis comodeveria repousar o herói; assim atédeveria estar superior ao seu repouso.Contudo, precisamente para o herói, abeleza é a mais difícil de todas ascoisas. A beleza é inexeqüível para todaa vontade violenta.

Um tanto mais, um tanto menos, essepouco aqui é muito.

Permanecer com os músculos inativos ea vontade desembaraçada é o que háde mais difícil para, vós, homens

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sublimes.

Quando o poder se torna clemente edesce ao visível, a essa clemênciachamo eu beleza.

De ninguém exija tanto a beleza; comode ti, que és poderoso; a tua bondade atua última vitória sobre ti mesmo.

Julgo−te capaz de todas as maldades:mas exijo de ti o bem.

Na verdade tenho−me divertido amiúdedos fracos que se julgam bons porterem as patas tolhidas!

Deveis imitar a virtude da coluna, quevai sendo mais bela e mais fina, porémmais dura e resistente interiormente àmedida que se alteia.

Sim, homem sublime: um dia serás beloe apresentarás ao espelho a tua própriabeleza.

Então estremecerá a tua alma comdesejos divinos, e na tua vaidadehaverá adoração!

Porque eis aqui o segredo da tua alma:quando o herói a abandona, é então quese aproxima em sonhos o super−herói".

Assim falou Zaratustra.

Do País da Civilização

"Voei demasiado longe pelo futuro, ehorrorizei−me.

Quando olhei em tomo de mim repareique o tempo era o meu únicocontemporâneo.

Tornei então para trás, cada vez maisapressado: assim cheguei até vós,homens atuais; assim cheguei ao paísda civilização.

Pela primeira vez vos olhei com olhosfavoráveis e com bons desejos.

E que me sucedeu? Apesar do medoque me invadiu... pus−me a rir! Nuncameus olhos viram algo que fosse tão

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bizarro.

Eu ria, ria, ao passo que me tremiam ospés e também o coração. "Mas este −disse comigo − é o país dos vasoscoloridos!" Com a face e os membrospintados de mil maneiras, assim meassombrastes, homens atuais.

E com mil espelhos à vossa roda, queadulavam e repetiam o efeito dasvossas cores.

Certo, não podíeis usar melhoresmáscaras do que a vossa própria cara,homens atuais.

Quem vos poderia reconhecer?

Pintalgados com os sinais do passado,cobertos por seu turno com outrossinais: assim vos ocultastes de todos osintérpretes!

E embora se soubesse examinar asentranhas, quem acreditaria quetivésseis entranhas? Pareceis feitos decores e de papéis pegados.

Todos os tempos e todos os povosolham revoltadamente através dosvossos véus; todos os costumes e todasas crenças falam confundidos por meiode vossa atitude. Aquele que vos tirasseos véus, os retoques, as cores e asatitudes, não deixaria mais do que umespantalho.

Na verdade, eu mesmo sou um pássaroespantado que uma vez vos viu nu esem cores, e, quando tal esqueleto meacenou amoroso, fugi espavorido.

Porque preferia descer aos profundos econfundir−me nas sombras do passado!As sombras dos que existiram têm maisconsistência do que vós.

A minha ínt ima amargura, homensatuais, é que vos não posso suportarnem nus, nem vestidos!

Tudo o que inquieta no futuro e tudo oq u e p o d e a f u g e n t a r u m p á s s a r oespantado inspira verdadeiramente maisqu ie tude e ca í m do que a vossa"realidade". Por−que vós dizeis: "Somosinteiramente reais, não temos crenças

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nem superstições"; assim encheis opapo, sem ter papo sequer.

Sim. Como seria possível vós crerdes,tão pintados! Vós que sois pinturas detudo quanto se tem acreditado!

Sois uma refutação da própria fé, e aruptura de todos os pensamentos.

Seres incríveis! Assim vos chamo eu avós, "homens da realidade".

Todas as épocas declamaram umascontra as outras em vossos espíritos: eos sonhos e as declamações de todasas épocas eram mais reais do que avossa vigília.

Sois estéreis: por isso vos falta a fé.Aquele, porém, que devia criar, tinhatambém sempre os seus sonhos deverdades e os sinais estelares, e tinhafé na fé.

Sois portas entreabertas ondeaguardam os coveiros. Eis a vossarealidade: "Tudo merece desaparecer".Ah! Como estais aí diante de mim,homens estéreis? Que pobreza decostelas! E quantos dentre vós que onão têm visto.

E dizem: "Tirar−me−ia algum deusqualquer coisa enquanto eu dormia?Certamente, o suficiente para formaruma mulher! É prodigiosa a pobreza dasminhas costelas!" Assim têm falado jámuitos homens célebres.

Sim; fazeis−me rir, homens atuais, esobretudo quando vos assombrais devós mesmos. Pobre de mim se me nãopudesse rir do vosso assombro e setivesse de tragar tudo quanto há derepugnante em vossas escudelas!

Eu, porém, tomo−vos ao de leve, poistenho coisas pesadas para levar; e queme importa pousem na minha cargainsetos e moscas?

A verdade é que minha carga não serámais pesada por isso. Não sois vós,contemporâneos, que me haveis deocasionar maior fadiga. Aonde devosubir ainda com o meu desejo? Olho doalto de todos os píncaros à procura de

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pátrias e de terras natais.

Em nenhuma parte, porém, as encontro:ando errante por todas as cidades esaio de todas as portas.

Os homens atuais, para quem há poucose inclinavam o meu coração. Agorasão−me estranhos e provocam−me riso:e vejo−me expulso das pátrias e dasterras natais. Já não amo, pois, senão opaís dos meus filhos, a terra incógnitaentre mares longínquos: é essa que aminha vela deve, incessante, procurar.Em meus filhos quero remediar o serfilho de meus pais; e, no futuro todo,quero remediar este presente".

Assim falou Zaratustra.

Do Imaculado Conhecimento

"Ontem a lua, ao nascer, pareceu−meque ia dar à luz um sol: tão avultada eprenhe jazia no horizonte.

Mentia, porém, com a sua prenhez, emais julgaria a lua homem do quemulher.

Claro que também muito pouco homemeste tímido noctâmbulo. Anda pelostelhados com a consciência torva.

Que a solitária lua está cheia de cobiçae de inveja: cobiça a terra e todas asalegrias dos que amam.

Nada; não me agrada esse gato dostelhados; previnem−me todos os queespreitam as janelas voltadas.

De manso e silencioso anda poralfombras de estrelas; mas eu detestotodos os pés cautelosos em que nemmesmo as esporas tilintam.

Os passos do homem leal falam; mas ogato anda em segredo. Vede: a luacaminha deslealmente como o gato.

A vós, hipócritas afetados, que procuraiso "conhecimento puro", ofereço estaparábola. A vós eu chamo lascivos.

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Vós também amais a terra e tudoquanto é terrestre: compreendi−vosbem! O vosso amor, porém,envergonha−se com uma consciênciatortuosa: pareceis com a lua.

O vosso espírito convenceu−se de quedeve menosprezar tudo quanto éterreno; mas não se convenceram asvossas entranhas. Elas são, todavia, omais forte que há em vos.

E agora o vosso espírito envergonha−sede obedecer às vossas entranhas, esegue caminhos escusos e ilusóriospara se livrar da sua própria vergonha.

"Para mim seria a coisa mais elevada(assim diz a si mesmo o vosso falsoespírito) olhar a vida sem cobiça, e nãocomo cães, com a língua de fora.

Ser feliz na contemplação, com avontade morta, isento de capacidade ede apetite egoísta, frio de corpo, mascom os olhos embriagados de lua. Paramim seria o melhor (assim se engana asi mesmo o enganado) amar a terracomo a luz a ama, e tocar na sua belezaapenas com os olhos.

Eis o que eu chamo o imaculadoconhecimento de todas as coisas: nãoquerer das coisas mais do que poderestar diante delas: . Hipócritas afetadose lascivos! Falta−vos a inocência nodesejo, e por isso caluniais o desejo!

Vós não amais a terra como criadores,como geradores satisfeitos de criar.

Onde há inocência? Onde há vontadede engendrar. E o que criar qualquercoisa superior a si mesmo, esse, paramim, tem a vontade mais pura.

Onde há beleza? Onde é mister que euqueira com toda a minha vontade, ondeeu quero amar e desaparecer, para queuma imagem não fique reduzida a umsimples imagem.

Amar e desaparecer: são coisas queandam a par há eternidades. Quereramar é também estar pronto a morrer.Assim vos falo eu, covardes.

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Mas o vosso olhar ambíguo e afeminadoquer ser contemplativo! E para vós, quemaculais os nomes nobres, o que sepode tocar com olhos pusilânimesdeve−se chamar "belo!"

A vossa maldição, porém − imaculadosque procurais o simples conhecimento!−, há de ser nunca chegardes a dar àluz, por muito avultados e prenhes queapareçais no horizonte.

Na verdade, encheis a boca de palavrasnobres, e havíamos de crer que o vossocoração transborda embusteiros?

As minhas palavras, porém sãogrosseiras, desprezadas e informes: amim agrada−me recolher o que nosvossos festins cai da mesa.

Com as minhas palavras chego semprea dizer a verdade aos hipócritas! Sim, asminhas arestas, as minhas conchas e asminhas folhas espinhosas devemfazer−vos cócegas nos narizes,hipócritas!

Sempre há ar viciado em redor de vós edos vossos festins: porque no ar flutuamos vossos lascivos pensamentos, asvossas mentiras e as vossasdissimulações.

Atreveis−vos, pois, em primeiro lugar ater fé em vós mesmos − em vós e nasvossas entranhas! − o que não tem féem si mesmo mente sempre.

Pusestes diante de vós a máscara deum deus, homens "puros" a vossaignominiosa e rasteira larva ocultou−sedetrás da máscara de um deus.

A verdade é que vos enganais,"contemplativos"! Zaratustra também foijoguete das vossas divinas peles; nãosuspeitou que eram serpentes queenchiam essa pele.

Nos vossos divertimentos julgava eu verdivertir−se a alma de um deus, simplesinvestigadores! Eu não conhecia artemelhor que os vossos artifícios! A vossadistância ocultava−me imundícies deserpente e maus cheiros, e eu não sabiaque por aqui rondava, lasciva, a astúciade um lagarto

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Abeirei−me, porém, de vós: entãochegou a mim a luz – e agora chega avós; os amores da lua estão no seudeclive.

Olhai−a. Aí tendes surpreendida epálida ante a aurora!

Porque já surge ardente a aurora: o seuamor pela terra aproximar−se! Todo oamor é solar é inocência e desejo docriador.

Vede como a aurora passa impacientepelo mar! Não sentis a sede e o cálidoalento do seu amor?

Quer aspirar o mar e beber as suasprofundidades, e o desejo do mareleva−se com mil ondas.

Porque o mar quer se r be i jado easpirado pelo sol; quer tornar−se ar ealtura e senda de luz também.

Eu, à semelhança do sol, como a vida etodos os mares profundos.

E tal é para mim o conhecimento: todo oprofundo deve subir à minha altura".

Assim falou Zaratustra.

Dos Doutos

"Estando eu adormecido, pôs−se umaovelha a depenicar a coroa de hera daminha cabeça, dizendo enquanto comia:"Zaratustra já não é um sábio".

Dito isto, retirou−se altiva edesdenhosa.

Assim me contou um rapazinho. Gostode deitar onde as crianças estãobrincando, junto do muro gretado, sobos cardos e as vermelhas papoulas.

Ainda sou um sábio para as crianças, etambém para os cardos e para aspapoulas vermelhas. Todos eles sãoinocentes até na sua maldade.

Já não sou um sábio para as ovelhas:assim o quer a minha sorte. Benditaseja!

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Porque é esta a verdade: saí da casados sábios atirando com a porta.

Demasiado tempo esteve a minha almafaminta sentada à sua mesa; eu nãoestou assim como eles, adestrado parao conhecimento como para descascarnozes.

Amo a liberdade e o ar na terra fresca; eaté me agrada mais dormir em peles debois do que nas suas honrarias edignidades.

Sou ardente demais e estou demasiadoconsumido pelos meus própriospensamentos; falta−me com freqüênciaa respiração; então necessito procurar oar livre e sair de todos oscompartimentos empoeirados.

Eles, porém, estão sentados muitofrescos à fresca sombra: em partealguma querem passar deespectadores, e livram−se bem de sesentar onde o sol caldeia os degraus.Com os que se postam no meios da ruaa olhar de boca aberta quem passa,assim eles aguardam de boca aberta ospensamentos dos outros.

Se lhes toca com as mãosinvoluntariamente levantam pó em tornode si, como sacos de farinha; mas quemsuspeitaria que o seu pó procede dogrão e das douradas delícias doscampos de estio?

Se dão mostras de sábios,horrorizam−me com as suas sentençase as suas verdades: a sua sabedoriacheira amiúde como se saísse de umpântano, e indubitavelmente já nele ouvicantar as rãs.

São destros e têm dedos hábeis: quetem que ver a minha simplicidade com asua complexidade? Os seus dedosentendem à maravilha tudo quanto sejafiar. ajuntar e tecer; tanto assim quefazem as meias do espírito.

São bons relógios − sempre que haja ocuidado de lhes dar corda. − Indicamentão a hora sem falar e com um ruídomodesto.

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Trabalham como moinhos e morteiros:basta lançar−lhes grão! Eles já sabemmoer bem o grão e convertê−lo embranca farinha.

Olham os dedos uns dos outros comdesconfiança. Inventivos em pequenasmaldades, espreitam aqueles cujaciência coxeia; espreitam−nos comoaranhas.

Sempre os vi preparar veneno comprecaução, tapando as mãos luvas decristal.

Também jogam com dados falsos, evi−os jogar com tal entusiasmo queestavam banhados de suor. Somoestranhos uns aos outros, e as virtudesainda me contrariam mais do que assuas falsidades e trapaças.

E quando eu andava entre eles,mantinha−me sempre por cima deles; eé por isso que me olham de soslaio.

Não querem ouvir andar ninguém porcima das suas cabeças; por isso entremim e as suas cabeças puseramramagem, terra e lixo.

Assim abafaram o ruído dos meuspassos; e até agora os mais doutos sãoos que menos me têm ouvido.

Entre mim e eles interpuseram todas asfraquezas e todas as faltas dos homens:"andar falso" eis como chamam a istonas suas casas.

Eu, porém, apesar de tudo, andosempre por cima da cabeça deles comos meus pensamentos; e se quisesseandar com os meus pr6prios defeitos,ainda assim andaria sobre eles e sobreas suas cabeças.

Que os homens não são iguais: assimfala a justiça.

E o que eu quero não poderiam elesquerer!"

Assim falou Zaratustra.

Dos poetas

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"Desde que conheço melhor o corpo –dizia Zaratustra a um dos seusdiscípulos – para mim o espírito já não éespírito senão até certo ponto; e todo o"imorredouro' não é também mais doque símbolo".

"Já te ouvi falar assim", respondeu odiscípulo − e nesse tempoacrescentavas: 'Os poetas, porém,mentem demais. Por que dizias que ospoetas mentem demais? "Por quê?",disse Zaratustra. Perguntas por quê?

Eu não pertenço ao número daqueles aquem é lícito interrogar sobre o seuporquê.

Será de ontem por acaso o que eutenho experimentado? Há muito tempoque experimento os fundamentos dasminhas opiniões.

Precisaria ser um tonel de memória parapoder arrecadar as minhas razões.

Bastante me custa já arrecadar asminhas opiniões e mais de um pássarome foge.

E também acontece introduzir−se−meno pombal qualquer bicho estranho paramim, o qual treme quando o agarro.

No entanto, que te dizia um diaZaratustra? Que os poetas mentemdemais?

Zaratustra, contudo, também é poeta.

Julgas então que eu falava verdade?Por que julgas isso?"

O discípulo respondeu: "Eu creio emZaratustra". Zaratustra, meneou acabeça sorrindo.

"Não me salve a fé", respondeu, "e a féem mim mesmo, ainda menos do quenenhuma. Supondo, todav ia , quealguém dissesse seriamente que ospoetas mentem demais, esse alguémteria razão: nós mentimos demasiado.

Sabemos também pouco demais ea p r e n d e m o s m a l d e m a i s ; p o rconseguinte, forçoso é mentirmos.

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Logo, quem entre nós, poetas, não teráadulterado o seu vinho? Muitas misturasenvenenadas se têm feito em nossastabernas: tem−se realizado nelas oindiscritível.

E por sabermos pouco que nosseduzem os pobres de espírito,especialmente quando são mulheresnovas.

E até desejamos as coisas que asvelhas contam entre si à noite. É o quenós chamamos o eterno espíritofeminino.

E como se existisse um caminhosecreto que conduzisse ao saber e sesubtraísse aos que aprendem qualquercoisa, assim cremos no povo e na suasabedoria.

Todos os poetas, porém, julgam queaquele que está deitado na erva ounuma encosta solitária, com o ouvido àescuta, aprende algo do que se passaentre o céu e a terra. E seexperimentam ternas comoções, ospoetas supõem sempre que a próprianatureza está apaixonado por eles.

E que se lhes acerca ao ouvido amurmurar coisas secretas e palavrascarinhosas. Disso se gabam e segloriam, perante todos os mortais.Existem tantas coisas entre o céu e aterra que só os poetas sonharam!

E mormente no céu: porque todos osdeuses são símbolos e artifícios depoeta.

A verdade é que sempre nos sentimosatraídos para o alto, isto é, para o reinodas nuvens: lá colocamos os nossosmanequins de mil cores, e lheschamamos deuses e Super−homens.

Que todos esses deuses eSuper−homens são bastante leves parapoder ocupar esses lugares.

Ah! Como estou farto de todo odeficiente que se empenha em ser umacontecimento!

Ah! como estou farto dos poetas!"

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Quando Zaratustra disse isto, odiscípulo ficou irritado contra ele, mascalou−se. Zaratustra emudeceuigualmente e os olhos voltaram−se−lhespara o íntimo como se olhassem aolongo. Por fim começou a suspirar e atomar alento!

"Eu sou hoje e de antes − disse – masem mim há qualquer coisa que é deamanhã e do futuro.

Estou enfastiado dos poetas, dosantigos e dos novos: para mim todossão superficiais, todos são maresesgotados.

Não pensaram profundamente; por issomesmo não sentiram fundo. Um tantode voluptuosidade, por isso mesmo nãosentiram fundo. Um tanto devoluptuosidade e um tanto de tédio, eisao que reduziram as suas meditações.

Os seus arpejos apenas me parecemhálito e fuga de fantasmas. Até hoje quesabem eles da alacridade dos sons?Também os acho pouco asseados:todos turvam as suas águas paraparecer profundas.

Gostam de se fazer passar porconciliadores; mas, para mim, sãosempre pessoas de meios−termos decomposições e miscelâneas, e sórdidos.

Lancei as minhas redes aos maresdeles para apanhar peixes, mas tão sópesquei a cabeça de um deus antigo.

Assim deu o mar uma pedra ao faminto.E os próprios poetas pareceram vir domar.

Certo neles encontram−se pérolas:devem parecer mais duros e testáceos.E ao invés de alma tenho vistofreqüentemente no seu interior espumasalgada.

Também do mar aprenderam a suavaidade: não é o mar o primeiro dospavões reais?

Até diante do mais feio búfalo abre suacauda: nunca se há de cansar do seuleque de rendas, prata e seda.

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O búfalo olha essas coisas com enfado,pois tem pensamentos em areias, matase pântanos.

Que lhe importa a ele a beleza e ooceano, e as galas do pavão? Eis osímbolo que ofereço aos poetas. O seuespírito próprio é o rei dos pavões e umoceano de vaidade.

O espírito do poeta quer espectadores;assim fossem búfalos!

Eu, porém enfastiei−me desse espírito evejo chegar um tempo em que elepróprio se enfastiará de si mesmo.

Já vi poetas transformar−se eprocederam contra si próprios.

Tenho visto redentores do espírito:saíram dos poetas".

Assim falou Zaratustra.

Dos Grandes Acontecimentos

Há uma ilha no mar – perto das ilhasBem−aventuradas de Zaratustra – ondefumega constantemente uma montanhade fogo. O povo, e mormente as velhas,dizem que essa ilha está colocada comoum penhasco diante da porta do inferno;mas o mesmo atalho que leva a essaporta atravessa a ígnea montanha.

Sucedeu, pois, que na época em queZaratustra vivia nas ilhasBem−aventuradas, ancorou um baixelna ilha onde se acha a montanhafumegante, e a sua tripulação saltoupara a terra para atirar aos coelhos. Aomeio dia, porém quando novamenteestavam reunidos o capitão e a suagente, viram de súbito um homematravessas o ar perto deles, e uma vozpronunciou nitidamente estas palavras:"Já é tempo! Não há um instante aperder!"

Quando a visão se aproximou mais –passava rápida, como uma sombra, emdireção da montanha de fogo −,reconheceram sobressaltadosZaratustra: porque já todos conheciam,exceto o capitão, e lhe queriam como

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quer o povo, misturando em partesiguais amor e receio.

"Olhem", disse o piloto, "é Zaratustraque vai para o inferno!"

Pela mesma época em que estesmarinheiros arribaram à ilha do fogo,correu o rumor de que desapareceraZaratustra, e, interrogados os amigos,responderam que durante a noiteembarcara sem dizer para onde.

Houve, por conseguinte, certainquietação; mas ao fim de três diasessa inquietação aumentou com anarrativa dos marinheiros. A verdade éque os discípulos deles se riam dessesrumores, e até um deles chegou a dizer:Prefiro acreditar Zaratustra quem levouo demônio". No íntimo, porém, todosestavam cheios de angústia e desobressalto.

Grande foi, portanto, o seu alvoroçoquando, ao fim de cinco dias, Zaratustralhes apareceu.

Eis a descrição da conversa queZaratustra teve com o cão do fogo: "Aterra", disse, "tem pele e essa pele sofreenfermidades; uma delas, por exemplo,chama−se homem".

E a outra chama−se "cão do fogo".Acerca dele têm os homens dito edeixado dizer muitas mentiras. Paraaprofundar esse segredo cruzei o mar evi a verdade, nua, nua dos pés acabeça.

Sei agora a que me hei de ater sobre ocão do fogo, assim como sobre todos osestragos que atemorizam, e não só asvelhas.

Sai da tua profundidade do mar, cão dofogo – exclamei – e confessa quãoprofunda é essa profundidade! Dondetiras o que vomitas?

Bebes copiosamente do mar: é isso queo revela o sal da tua facúndia.Verdadeiramente, para um cão dasprofundidades, tomas demasiadoalimento da superfície.

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Olho−te em suma, como o ventríloquoda terra, e sempre que ouvi falar ademônios de erupções e estragos,sempre me parecem semelhantes a ti,com o teu sal, as tuas mentiras e tuastrivialidade.

Sabes mugir quer que andes sempre háde haver perto de ti lodo e coisasesponjosas, cavernosas e comprimidas:tudo isso quer liberdade.

"Liberdade!" é o teu grito predileto, maseu perdi a fé nos "grandesacontecimentos" desde que em tornodeles haja muitos uivos e muitafumarada.

Creia em mim ruído do inferno! Osacontecimentos maiores não são osmais ruidosos, mas as nossas horasmais silenciosas.

O mundo gira, não ao redor dosinventores de estrondos novos, mas àroda dos inventores de valores novos:gira sem ruído.

E confessa−o! Quando o teu ruído e oteu fumo se dissipavam, sempresucedia Ter−se passado coisa poucoimportante. Que importa que umacidade se torne múmia e que caia nolodo uma coluna!

E acrescentarei mais estas palavraspara os destruidores de colunas: "Érematada loucura deitar sal no mar ecolunas no lodo.

A coluna jazia no lodo de desprezo; masa sua lei quer que surja do desprezocom nova vida e beleza. Ergue−seagora com mais divina aparência esedutor sofrimento, e ainda dará graças,destruidores, por a terdes derrubado".

É este, porém, o conselho que dou aosreis e às igrejas, e a quanto fraquejapela idade e pela virtude: Deixa−vosderrubar para volverdes à vida e de vósse assenhoreie a virtude!" Assim faleidiante do cão do fogo; mas eleinterrompeu−me rosnando eperguntou−me: "Igreja? Isso que é?

Igreja – Respondi é uma espécie deEstado, e a espécie mais enganosa.

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Cala−te porém cão hipócrita: tuconheces a tua raça melhor queninguém!

O Estado é um cão hipócrita como tu;como a ti, agrada−lhe falar fumegando euivando, para fazer crer, como tu quefala saindo das entranhas das coisas.

Que o estado empenha−se em ser oanimal mais importante da terra. E julgasê−lo.

Quando disse isto, o cão do fogopareceu louco de ciúme. "Quê!",exclamou. "O animal mais importante daterra?"

E julga sê−lo!? E da sua gargantasaíram vozes tão terríveis que eu supuso asfixiaram a cólera e a inveja.

Por fim foi−se calando, diminuindo osseus uivos, mas, quando ele se calou,disse−lhe eu rindo:

"Encolerizas−te, cão do fogo! Porconseguinte tenho razão.

E para eu conservar a razão, deixa−mefalar−te de outro cão do fogo; este falarealmente do coração da terra.

O seu hálito é de ouro e uma chuva deouro: assim o quer o seu coração. Ascinzas, o fumo e a espuma quente, paraele que são?

Do seu seio voa um riso como umanuvem colorida: é inimigo dos teusmurmúrios, das tuas erupções, e daraiva das tuas entranhas. O seu ouro eo seu riso, porém, tira−os do coração daterra, porque, não sei se sabes que ocoração da terra é de ouro!"

Ao ouvir isto o cão de fogo não pôdeescutar−me mais. Envergonhado, meteuo rabo entre as pernas e, arrastando−separa a sua casota, ia dizendo, confuso:"Guão! guão!"

Assim contava Zaratustra; mas osdiscípulos quase o não ouviam, tantaera a sua vontade de lhes falar dosmarinheiros, dos coelhos e do homemvoador.

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"Que hei de eu pensar disso?", disseZaratustra. Acaso serei um fantasma?

Isso deve ter sido a minha sombra.

Já ouvistes falar do viajante e da suasombra?

O certo é que devo prendê−la mais, outomará a prejudicar−me a reputação".

E Zaratustra tornou a menear a cabeçacom admiração: "Que devo pensardisso?", repetiu.

Por que gritaria o fantasma? "Já étempo! Não há um instante a perder!"Mas, para que é que já é tempo?"

Assim falou Zaratustra.

O adivinho

"...e vi os homens sumirem−se numagrande tristeza. Os melhorescansaram−se das suas obras.

Proclamou−se uma doutrina e com elacirculou uma crença: Tudo é oco, tudo éigual, tudo passou!"

"É verdade que temo colhido; mas porque apodreceram e enegreceram osnossos frutos? Que foi que na últimanoite caiu da má lua? O nosso trabalhofoi inútil; o nosso vinho tomou−seveneno; o mau−olhado amareleceu−nosos campos e os corações.

Secamos de todo e, se caísse fogo emcima de nós, as nossas cinzas voariamem pó. Sim; cansamos o próprio fogo.

Todas as fontes secaram para nós, e omar retirou−se. Todos os solos sequerem abrir, mas os abismos não nosquerem tragar'.

"Aonde haverá ainda um mar em queuma pessoa se possa afogar?" Assim anossa queixa ressoa pelos pântanos.

Na verdade, já nos fatigamos demaispara morrer; agora continuamos a viveracordados em abóbadas funerárias!"Assim ouviu Zaratustra falar um

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adivinho; e a sua predição chegou−lhediretamente à alma e transformou−o.Vagueou triste e fatigado, e tomou−sesemelhante àqueles de que falara oadivinho.

"Na verdade", disse ele aos discípulos,"pouco falta para chegar esse grandecrepúsculo. Como farei para oatravessar salvando a minha luz? Comofarei para a minha luz se não afogarnessa tristeza? Deve ser ainda a luz demundos longínquos a iluminar noitesmais longínquas!" Profundamentepreocupado, Zaratustra começou avaguear de uma para outra parte, edurante três dias não comeu nembebeu, nem descansou, e perdeu apalavra. Por fim, caiu num profundosono.

Entretanto, os discípulos passavamgrandes vigílias sentados à roda dele, eaguardavam desassossegados que eledespertasse e Se curasse da suatristeza. Eis, porém, o discurso que lhesdirigiu Zaratustra ao despertar, aindaque sua voz parecesse vir de longe.

"Ouvi o sonho que tive, amigos, eajudai−me a adivinhar a suasignificação!

Para mim este sonho é um enigma; oseu sentido permanece ainda ocultonele e vela; ainda não paira livrementesobre ele.

Sonhei que renunciara à vida.Convertera−me em vigilante noturno eguardião dos túmulos, na montanhasolitária do palácio da Morte.

Lá guardava eu os ataúdes: asabobados sombrias estavam cheias detroféus das suas vitórias.

Por meio de féretros de cristalolhavam−me as vidas vencidas.

Eu respirava a atmosfera de eternidadesreduzidas a pó: a minha lama jaziasufocada e pulverulenta. E quempoderia arejar ali a alma?

Rodeava−me a claridade da noite; e aoseu lado acaçapava−se a solidão; sobreisto um sepulcral silêncio de agonia, o

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pior dos meus amigos. Eu levava asminhas chaves, o mais ferrugentas quepodiam ser; e sabia abrir com elas asportas mais perras.

Com gritos roucos de cólera corriam ossons por largas galerias, quando seabriam os batentes da porta: uma avesoltava gritos sinistros; não queria seracordada.

O mais espantoso, porém, e quandomais se me oprimia o coração eraquando tudo outra vez se calava, e eutomava a ver−me só no meio daquelesilêncio traiçoeiro.

Assim passou o tempo lentamente, se éque ainda se podia falar de tempo; masafinal sucedeu o que me despertou.

Soaram três pancadas à porta, asabóbadas tremeram e ressoaram trêsvezes seguidas: aproximei−me da porta.

− Alpa − exclamei. − Quem leva a suacinza para a montanha? Alpa! Alpa!

Quem leva a sua cinza para amontanha?

E apertava a chave, e empurrava aporta, e forcejava; mas a porta nãocedia. Nisto o furacão separou−lhe,violento, os batentes; e por entre silvose gritos agudos, que cortavam o ar,atirou−me um negro ataúde.

E, silvando e rugindo, o ataúdedespedaçou−se e despediu milgargalhadas.

Mil visagens de crianças, de anjos, decorujas, de loucos e de borboletas dotamanho de crianças se riam ezombavam de mim.

Eu tinha um medo horrível: caí no chãoe gritei de pavor como nunca gritara.

O meu grito despertou−me, porém, etornei a mim".

Assim contou Zaratustra o seu sonho,depois calou−se, porque ainda lhe nãoconhecia a significação; mas o seudiscípulo mais dileto levantou−seimediatamente, pegou−lhe na mão e

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disse:

"A tua própria vida nos explica essesonho, Zaratustra!

Não serás tu o vento de silvos agudosque arranca as portas do palácio daMorte? Não serás tu o ataúde cheio demalignidades e de angélicas visagensda vida?

Na verdade, com mil gargalhadasinfantis chega Zaratustra a todas ascâmaras mortuárias, rindo−se de todosesses vigias noturnos e de todos essesguardiães dos sepulcros que agitam assuas chaves com sinistro som.

Tu os espantarás e derribarás com o teuriso; o desmaio e o despertar provaramo teu poder sobre eles.

E, mesmo quando chegar o longocrepúsculo e a mortal lassidão, tu nãodesaparecerás do nosso céu,patrocinador da vida!

Mostraste−nos novas estrelas e novosesplendores noturnos; estendestessobre nós o próprio riso com um toldoricamente matizado.

Agora, dos túmulos brotarão semprerisos infantis; agora virá, semprevitorioso de todos os desfalecimentosmortais, um vento enérgico, do qual tués o fiador e o adivinho.

Em verdade sonhaste com eles com osteus inimigos; foi esse o teu sonho maisdoloroso.

Mas assim como despertaste deles etornaste a ti, assim eles devemdespertar−se a si próprios... e tornarpara ti".

Deste modo falou o discípulo; e todos osoutros se apinhavam à roda deZaratustra, pegavam−lhe as mãos equeriam induzi−lo á largar o leito e atristeza para tornar para eles.Zaratustra, porém continuava no leito,com um olhar estranho.

Como se regressasse de longaausência, contemplou os discípulos eobservou−lhes os semblantes; e ainda

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assim os não reconheceu; mas quandoo ergueram, puseram−no de pé, osolhos transformaram−se−lhe de repente;compreendeu tudo quanto sucedera e,cofiando a barba, disse com voz firme:

"Ora! tudo isso virá a seu tempo; mas,agora, discípulos meus, ide arranjarbom alimento, e já. Queropenitenciar−me assim dos meus maussonhos!

O adivinho, porém, deve comer e bebera meu lado; e eu lhe indicarei um maronde se possa afogar".

Assim falou Zaratustra; mas depoisolhou largo tempo o discípulo que lheexplicara o sonho, e meneou a cabeça.

Da Redenção

Um dia, passando Zaratustra pela pontegrande, viu−se rodeado de aleijados ede mendigos, e um corcunda disse−lheassim:

"Olha, Zaratustra! Também o povoaprende de ti, e começa a crer na tuadoutrina; mas para te acreditarem detodo ainda falta uma coisa: tens de nosconvencer também a nós, aleijados.Tens por onde escolher! Podes curarcegos, fazer andar coxos e aliviar umtanto o que leva às costas uma cargapesada. Será este, a meu ver, o melhormodo de fazer com que os aleijadosacreditem em Zaratustra".

Zaratustra respondeu assim ao quefalava: "Se ao corcunda se lhe tira acorcova, tira−se−lhe ao mesmo tempo oespírito − assim diz o povo. Se ao cegose restitui a vista, vê na terrademasiadas coisas más; de forma quemaldiz daquele que o curou. O que fazcorrer o coxo faz−lhe o maior dos males:porque apenas se apanha a correrdesenvolvem−se−lhe os vícios. Eis oque diz o povo quanto aos aleijados. Epor que razão não aprenderia Zaratustrado povo o que o povo aprendeu deZaratustra? Desde que vivo entre oshomens, porém, o que menos importa éver que a este falta um olho, àquele umouvido, a um terceiro a perna, ou que

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haja outros que perderam a língua, onariz ou a cabeça.

Vejo e já vi coisas piores: e as há tãoespantosas, que não quereria falar detodas elas nem também calar−me sobrealguma, a saber: há homens quecarecem de tudo, conquanto tenhamqualquer coisa em excesso − homensque são unicamente um grande olho, ouuma grande boca, ou um grande ventre,ou qualquer outra coisa grande. – Aesses chamo eu aleijados às avessas.

Quando, ao sair da minha solidão,atravessava pela primeira vez estaponte, não dei crédito aos meus olhos,não cessei de olhar e acabei por dizer:"Isto é uma orelha! Uma orelha dotamanho de um homem!" Acercava−memais, e por trás da orelha movia−sealgo tão pequeno, mesquinho e débilque fazia compaixão. E efetivamente: amonstruosa orelha descansava numtênue cabelo esse cabelo era umhomem! Olhando através de uma lenteainda se podia reconhecer uma carainvejosa, e também uma alma vã que seagitava no remate do cabelo. O povo,contudo, dizia−me que a orelha grandeera não só um homem mas um grandehomem, um gênio. Eu, porém, nuncaacreditei no povo quando ele me falavade grandes homens, e sustento a minhaidéia de que era um aleijado às avessasque tinha pouquíssimo de tudo e umacoisa em demasia".

Assim que Zaratustra disse isto aocorcovado e àqueles de quem eraintérprete e representante, voltou−separa os discípulos com profundodescontentamento e disse:

"Meus amigos, ando entre os homenscomo entre fragmentos e membros dehomens.

Para os meus olhos o mais horrível évê−los destroçados e divididos como emcampo de batalha e de morticínio.

E se os meus olhos fogem do presentepara o passado, sempre encontram omesmo: fragmentos, membros, e casosespantosos... mas homens, não!

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O presente e o passado sobre a terra...ai, meus amigos, eis para mim o maisinsuportável; e eu não viveria se nãofosse um visionário daquilo que há devir.

Um vidente, um voluntário, um criador,um futuro e uma ponte para o futuro − etambém, ai, até certo ponto, um aleijadono meio dessa ponte: tudo isto éZaratustra.

E vós também sempre vosinterrogastes: "Para nós, quem éZaratustra? Como lhe poderemoschamar?" E à minha imitação destes, asvossas perguntas como respostas. É oque promete ou o que cumpre? Umconquistador ou um herdeiro? O outonoou a relha do arado? Um médico, ou umConvalescente? É poeta ou diz averdade? É libertador ou dominador?Bom ou mau?

Eu ando entre os homens como entre osfragmentos do futuro: desse futuro queos meus olhares aprofundam.

E todos os meus pensamentos eesforços tendem a condenar e unirnuma só coisa o que é fragmento eenigma e espantoso azar.

E como havia eu de suportar serhomem, se o homem não fosse tambémpoeta adivinho de enigmas e redentordo azar?!

Redimir os passados e transformar tudo,"foi" num "assim o quis": só isto éredenção para mim.

Vontade! − assim se chama o libertadore o mensageiro da alegria: eis o que vosensino. meus amigos; mas aprendeitambém isto: a própria vontade é aindaescrava. O querer liberta; mas como sechama o que aprisiona o libertador?

"Assim foi": eis como se chama o rangerde dentes e a mais solitária aflição davontade. Impotente contra o fato, avontade é para todo o passado ummalévolo espectador.

A vontade não pode querer para trás:não pode aniquilar o tempo e o desejodo tempo é a sua mais solitária aflição.

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O querer liberta: que há de imaginar opróprio querer para se livrar da suaaflição e zombar do seu cárcere?

Ai! Todo o preso enlouquece! Tambémloucamente se liberta a vontade cativa.

A sua raiva concentrada é o tempo nãoretroceder; "o que foi", assim se chamaa pedra que a vontade não poderemover.

E por isso, por despeito à raiva, removepedras e vinga−se daquele que nãosente como ela raiva e despeito.

Assim a vontade, a libertadora,tornou−se maléfica; e vinga−se em tudoque é capaz de sofrer, de não podervoltar para trás.

Isto, e só isto, é a própria vingança, arepulsão da vontade contra o tempo e oseu "foi".

Realmente vive uma grande loucura nanossa vontade; e a maldição de todo ohumano é essa loucura haver aprendidoa ter espírito.

O espírito de vingança:

meus amigos, tal foi até hoje a melhorreflexão dos homens; e onde quer quehouvesse dor, deve sempre ter havidocastigo.

"Castigo": assim se chama a própriavingança: com uma palavra enganadorafinge uma consciência limpa.

E como naquele que quer há sofrimento,posto que não é permitido querer paratrás, a própria vontade e toda a vidadeviam ser castigo. E assim seacumulou no espírito uma nuvem apósoutra, até que a loucura proclamou:"Tudo passa; por conseguinte, tudomerece passar!"

"E aquela lei que diz que o tempo devedevorar os seus próprios filhos, é amesma justiça." Assim se proclamou aloucura.

"A ordem moral das coisas repousa nodireito e no castigo. Ai! Comolivramo−nos da corrente das coisas e do

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castigo da "existência"? Assim seproclamou a loucura.

"Como pode haver redenção, se há umdireito terno? Ai! Não se pode remover apedra do passado: é mister que todosos castigos sejam também eternos!"Assim se proclamou a loucura.

"Nenhum fato pode ser destruído; comopoderia ser desfeito pelo castigo?" Eis oque há de eterno no castigo daexistência: a existência deve ser umavez e outra, eternamente, ação e dívida."A não ser que a vontade acabe por selibertar a si mesma, e que o querer semude em não querer. Mas, irmãos, vósconheceis estas canções da loucura!

Eu vos afastei delas quando vos disse:"A vontade é um criador". Todo o "foi" éfragmento e enigma e espantoso azar,até que a vontade criadora acrescente:"Mas eu assim o quero! Assim o hei dequerer". Já falou, porém, assim? Equando sucederá isso? Acaso a vontadese livrou da sua própria loucura?

Porventura se tornou a vontade para simesma redentora e mensageira dealegria?

Acaso esqueceu o espírito de vingançae todo o ranger de dentes?

Então quem lhe ensinou a reconciliaçãocom o tempo e qualquer coisa mais altaque a reconciliação'?

É preciso que a vontade, que é vontadede Jerônimo, queira qualquer coisa maisalta que a reconciliação; mas como?Quem a ensinará também aretroceder?"

Neste ponto do seu discurso, Zaratustradeteve−se, como de súbito assaltadopelo terror. Contemplou os discípuloscom olhos espantados: o seu olharpenetrava como setas nos seuspensamentos. Passado um momento,porém, tornou−se a rir e disse comserenidade:

"É difícil viver entre os homens porque étão difícil uma pessoa calar−se.Sobretudo para um falador!" Assimdisse Zaratustra. O corcunda,

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entretanto, escutara a conversaocultando o rosto: quando ouviu rirZaratustra, ergueu os olhos comcuriosidade e disse lentamente:

"Por que é que Zaratustra nos fala deuma maneira e doutra diferente aosseus discípulos?"

Zaratustra respondeu "Que há deestranhar? Com seres disformespode−se muito bem falar de maneiradisforme"'

"Sim", disse o corcunda. "E comestudantes bem se pode fazer deprofessor.

Mas, por que é que Zaratustra fala deum modo aos seus discípulos, e doutroa si próprio?"

Da Circunspecção Humana

"Não é a altura que aterroriza. o queaterroriza é o declive!. O declive dondeo olhar se precipita para o fundo e amão se estende para o cume.

É aqui que se apodera do coração avertigem da sua dupla vontade.

Ai, meus amigos! Adivinhais a duplavontade do meu coração?

Vede, vede, qual é o meu declive e omeu perigo; o meu olhar precipita−separa o cume, enquanto a minha mãoquereria fincar−se e amparar−se... noabismo!

Ao homem se me aferra a vontade, aohomem me prendo com cadeias,enquanto do alto me atrai oSuper−homem: porque para lá quer ir aminha outra vontade.

E por isso vivo cego entre os homens,como se os não conhecesse: para aminha mão não perder inteiramente asua fé nas coisas sólidas.

Não conheço a vós, homens; é essa aobscuridade e o consolo que amiúde meenvolve. Sinto−me perto de todos ospérfidos, e pergunto: Quem me quer

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enganar?

A minha primeira circunspecçãohumana é deixar−me enganar para menão ver obrigado a estar em guardacontra os enganadores.

Ai! Se eu me pusesse em guarda contrao homem, como poderia ser o homemuma âncora para o meu barco?Facilmente me veria arrastado para olargo.

Não me precaver: tal é a providênciaque preside ao meu destino. E aqueleque não quiser morrer de sede entre oshomens deve aprender a beber emtodos os vasos, e o que quiserpermanecer puro entre os homens deveaprender a lavar−se em água suja.

Eis o que a mim mesmo tinha ditomuitas vezes à guisa de consolação:"Não te importes, velho coração!Feriu−te um infortúnio: gloria−te dissocomo de uma ventura!" Eis aqui, porém,a minha outra circunspecção humana:trato com mais considerações osvaidosos que os orgulhosos.

Não é a vaidade ferida, mãe de todas astragédias? Mas, onde é o orgulho quese fere, cresce qualquer coisa melhor doque ele.

Para o espetáculo da vida, recrear émister que seja bem representado; maspara isso necessitam−se bons atores.Todos os vaidosos me têm parecidobons atores; representam e querem quea gente se divirta em os ver: todo oespírito está desse desejo.

Põem−se em cena, e fingem; ao seulado gozo eu na contemplação da vida:assim se cura a melancolia.

Por isso sou diferente para os vaidosos:porque são os médicos da minhamelancolia e me apegam ao homemcomo a um espetáculo.

Quem medirá, em toda a suaprofundidade, a modéstia do vaidoso?Eu gosto dele e lastimo−o pela suamodéstia.

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De vós quer aprender até em si mesmo;de vossos olhares se alimenta, devossas mãos come o elogio.

Até acredita nas vossas mentiras, sementis bem acerca dele, porque nofundo do coração suspira: "Quem soueu?"

E se a verdadeira virtude é a que nadasabe de si mesma, o vaidoso nada sabeda sua modéstia! Eis aqui, porém, aminha terceira sisudez humana; nãoquero privar−me da vista dos maus poruma timidez igual à vossa.

Desfruto vendo os portentos que fazbrotar o sol ardente: tigres e palmeiras ecobra cascavel. Também se vêm entreos homens lindas crias do ardente sol emuitas coisas maravilhosas entre osmaus.

Verdade é que, assim como os maissensatos de vós me não parecem taiscompletamente, assim também amaldade dos homens me pareceuinferior à sua reputação.

E muitas vezes perguntei a mim mesmo,meneando a cabeça: Por que sonhasainda, cobra cascavel?

Até para o mal há um futuro. E aindapara o homem se não descobriu omeio−dia mais ardente.

Quantas coisas se chamam já hoje aspiores das maldades e que, todavia, nãotêm mais de doze pés de largura.

Um dia, porém, virão ao mundo dragõesmaiores.

Que para o Super−homem ter o seudragão, o superdragão digno dele, serãoprecisos muitos sóis ardentes quecaldeiem as úmidas selvas virgens!

É preciso que os vossos gatosmonteses se transformem em tigres, eos vossos sapos venenosos emcrocodilos: porque ao bom caçadorconvém boa caça!

E a verdade, justos e bons! Há em vósmuitas coisas que se prestam ao riso,especialmente o vosso temor pelo que

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hoje se tem chamado demônio!

E a vossa alma está tão longe do que égrande, que o Super−homem vosespantaria com a sua bondade! E vós,sábios e ilustrados, fugireis ante aardência solar da sabedora em que,prazenteiro, banha o Super−homem asua nudez!

Homens superiores em que temtropeçado o meu olhar! É esta a minhadúvida sobre vós e o meu secreto riso!Adivinho que chamaríeis... demônio aomeu Super−homem!

Ai! Enfastiei−me desses superiores emelhores: desejo subir e afastar−mecada vez mais da sua altura, com rumoao Super−homem.

Deu−me um calafrio quando vi nus osmelhores deles, e então me nasceramasas para me transportarem alongínquos futuros.

A futuros mais remotos, a meios−diasmais meridionais que os que jamaispode sonhar a fantasia, além onde osdeuses se envergonham de todo ovestuário.

Mas a vós, irmãos e próximos meus,quero−vos ver disfarçados e bemadornados, e vaidosos, e dignos, comos "bons e os justos".

E disfarçado quero eu estar tambémentre vós para vos desconhecer edesconhecer−me a mim mesmo: porqueé esta a minha última circunspecçãohumana".

Assim falou Zaratustra.

A Hora Silenciosa

"Que me sucedeu, meus amigos?Vede−me confuso, fustigadoobedecendo contrafeito, disposto aretirar−me... a retirar−me para longe devós! Sim: é preciso que Zaratustra torneoutra vez a solidão: mas agora o ursoregressa sem alegria ao seu antro. Queme sucedeu? Que é que me obriga aisto?

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Ah! A minha dama irritada assim o quer:falou−me. Já vos disse alguma vez oseu nome?

Ontem, perto da noite, falou−me aminha hora mais silenciosa: eis o nomeda minha dama.

E vede o que se passou, pois precisovos dizer tudo, para que o vossocoração se não endureça contra quemse ausenta precipitadamente.

Conheceis o terror do que adormece?

Treme dos pés à cabeça, porque acabade lhe faltar o sono e principia a sonhar.

Digo−vos isto em parábola. Ontem, àhora mais silenciosa, faltou−me o sono,principia o sonho.

Avançaram os ponteiros; o relógio daminha vida respirava... Nunca ouvi talsilêncio à minha roda; o meu coraçãoestremecia assombrado. Nistodisseram−me sem voz: "Tu sabe−o,Zaratustra!"

E eu gritava de terror ao ouvir aquelesmurmúrios, e o sangue fugia−me daface; mas calei−me.

Então, tornaram a dizer−me sem voz:

"Tu sabe−o, Zaratustra, mas não odizes!"

E eu respondi por fim: "Sei−o, Sim, masnão o quero dizer!"

Então tornaram a dizer−me, sem voz:"Não queres, Zaratustra. Deveras? Nãote escondas por detrás da tua teimosia!"

Eu chorava, tremia como uma criança edisse: "Ai! Bem que quisera, mas isso écoisa superior às minhas forças!"

E tornaram a dizer−me em segredo:"Que te importa, Zaratustra? Diz a tuapalavra e morre!"

Eu respondi: "Ai! a minha palavra?Quem sou eu? Espero um mais digno;eu nem sequer sou digno de sucumbir".

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Tornaram então a dizer−me sem voz:"Que te importa? Ainda não és bastantehumilde; a humildade tem a pele maisrija".

E eu respondi: "Que é que não levou jáa pele da minha humildade? Habito aospés da minha altura: até aonde seelevam os meus píncaros? Ainda monão disse ninguém. Eu, porém, conheçobem os meus vales". Tornaram então adizer−me sem voz: "O! Zaratustra!Quem precisa transpor montanhastranspõe também vales eprofundidades".

E eu respondi: "A minha palavra aindanão transpôs montanhas, e o que eutenho dito não tem chegado até oshomens. É verdade que tenho andadopor entre os homens, mas ainda os nãoalcancei".

E tornaram a dizer−me sem voz: Que éque sabes a esse respeito? O rocio caisobre a erva no momento maissilencioso da noite".

E eu respondi: "Zombaram de mimquando descobri e segui a minhaprópria vida, e na verdadetremeram−me então os pés".

E falaram−me assim: "Que te importamos seus motejos! Tu és um que seesqueceu de obedecer; deves agoramandar.

Não sabes do que todos necessitam?Do que ordenam as grandes coisas.

Realizar grandes coisas é difícil; mas,mais difícil ainda é ordenar grandescoisas.

O mais indesculpável em ti é teres opoder e não quereres reinar".

E eu respondi: "Falta−me a voz do leãopara mandar".

Então me responderam como ummurmúrio: "São as palavras maissilenciosas que trazem a tempestade.

Os pensamentos que vêm com pés delã são os que dirigem o mundo.

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Zaratustra, precisas caminhar comouma sombra do que há de vir: assimmandarás e, mandando, irás para afrente".

E eu respondi: "Envergonho−me".

E tornaram a dizer−me sem voz: "Epreciso tornares−te criança edesprezares a vergonha.

Ainda tens o orgulho da mocidade;fizeste−te moço muito tarde; mas o quese quer tomar criança deve tambémvencer a sua mocidade".

E eu reflexionei muito, tremendo. Porfim repeti o que dissera primeiro: "Nãoquero!"

Ouviu−se então uma gargalhada emtorno de mim. Desgraçado! Comoaquele riso me cortava o coração!

E pela última vez me disseram:"Zaratustra, os teus frutos estãomaduros, mas tu é que não estásmaduro para os teus frutos

Precisas voltar para a solidão".

E ouviu−se outra risada que seafastava: depois tudo ficou em sossego,como um duplo silêncio. Eu, porém,estava caído no solo. banhado em suor.

"Já ouvistes tudo, e sabeis por que devotornar para a minha solidão. Nada vosocultei, meus amigos. Mas tambémaprendestes comigo quem é sempre omais discreto dos homens.

Ai, meus amigos! Mais teria que vozdizer, mais teria que vos dar! Por quevo−lo não dou? Será por ser avarento?"Ditas estas palavras, a Zaratustraembargou−se−lhe a voz pela força dador e ao pensamento de que ia deixarimediatamente os seus amigos, demodo que começou a chorar e ninguémo podia consolar. Entretanto, foi−sesozinho pela noite, deixando os amigos.

Terceira parte

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O Viajante

Era aproximadamente meia−noitequando Zaratustra segui pelo cume dailha para chegar de madrugada à ribeira,onde queria embarcar. Nesse lugarhavia uma boa enseada ondecostumavam ancorar também barcosestrangeiros, os quais recebiam a bordoalguns das Ilhas Bem−aventuradas quequeriam atravessar o mar. Enquantosubia a montanha, pensava Zaratustranas muitas viagens solitárias que fizeradesde a lua mocidade e nas muitasmontanhas, cumeeiras e cristas queescalara.

"Eu sou um viajante e um trepador demontanhas – disse de si para si − nãome agradam as planícies, parece quenão posso estar muito temposossegado.

Ou seja porque o queira o meu destinoou a eventualidade que me espera,sempre uma viagem há de ser para mimuma ascensão: em suma, cada qualvive−se unicamente a si mesmo.Passou o tempo em que me poderiamsobrevir acasos, e que poderiasuceder−me que já me não pertença?

O meu próprio ser está enfim deregresso, e quanto dele próprio andoudurante muito tempo por estranhasterras e disperso entre todas as coisas etodas as contingências!

E sei mais alguma coisa; estou agoradiante do meu último píncaro e do queme foi evitado durante mais tempo.Preciso seguir o meu caminho maisrigoroso! Começou a minha viagemmais solitária.

Quem é, porém, da minha condição,não se livra de semelhante hora, dahora que diz: "Só agora segues o teucaminho de grandeza! Até hoje têm−meconfundido num só o cume e o abismo!

Segue o teu caminho de grandeza; veioagora a ser o teu último refúgio, o queaté aqui se chamou o teu último perigo!

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Segue teu caminho de grandeza: a tuamelhor animação agora é não existiremcaminhos atrás de ti!

Segue o teu caminho de grandeza: aquininguém há de ir em teu seguimento. Osteus próprios pés apagaram o caminhoque deixas atrás de ti, e nele estáescrito: "Impossibilidade".

E se, mais adiante, te faltarem todas asescadas, será preciso saberes treparsobre a tua própria cabeça; senão,como quererias subir mais alto?

Sobre a tua própria cabeça e por cimado teu próprio coração. Agora o maissuave vai−se tornar para ti o mais duro.

Aquele que sempre cuidou muito de siacaba por se tornar enfermiço com oexcesso de cuidado. Bendito seja o queendurece! Não gabo o país onde fluemmanteiga e mel!

Para ver muitas coisas precisamosaprender a olhar para longe de nós: estadureza é necessária para todos os queescalam os montes.

O que porém investiga, com olhosindiscretos, como poderia ver mais queo primeiro terno das coisas?

Mas tu, Zaratustra, que querias vertodas as razões e o fundo das coisas,precisas passar por cima de ti mesmo, eascender, ascender até as tuas própriasestrelas ficarem abaixo de ti!"

"Sim! Ver−me a mim próprio, e até asminhas estrelas, olhando para baixo! Sóisso chamo o meti cume; é esse o últimocume que me falta escalar!"

Assim falava consigo Zaratustraenquanto subia, consolando seucoração com duras máximas, porque,como nunca, tinha ferido o coração. Equando chegou ao alto da crista viuestender−se na sua frente o outro mar;ficou imóvel e calado por muito tempo.Naquela altura estava a noite fria e clarae estrelada.

"Reconheço a minha sorte", disse afinalcom tristeza. "Eia! Estou pronto!Começou agora minha última soledade.

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Que mar tão negro e triste meus pés!Que sombrio e noturno pesadelo! Ó,destino e oceano! É mister que eu agoradesça para vós.

Estou em frente da minha mais altamontanha e da minha mais longaviagem! Por isso preciso descer comonunca desci!

Devo ir ao fundo da dor mais do quenunca, até as suas mais negrasprofundidades! Assim o quer o meudestino.

Eia! Estou pronto!

De onde vem as mais elevadasmontanhas? Isso perguntava eu noutrotempo.

Soube então que vêm do mar.

Este testemunho está escrito nas suaspedras e nas paredes das suas cristas.Desde o mais baixo há de o mais altoerguer o seu cume".

Assim falou Zaratustra no píncaro damontanha onde reinava o frio, mas,quando chegou perto do mar e seencontrou sozinho entre as rochas damargem, sentiu−se cansado do caminhoe ainda mais cheio que dantes deardentes desejos.

"Ainda dorme tudo", disse. "também omar está adormecido. Dirige−me umolhar estranho e sonolento.

A sua respiração, porém, é quente,sinto−o. E ao mesmo tempo vejo quesonha.

Agita−se sonhando sobre durosalmofadões.

Escuta! Escuta! Quantos gemidos asmás recordações lhe arrancam! Ouserão maus presságios?

Ai! Estou triste contigo, monstrosombrio, e aborrecido comigo mesmopor tua causa.

Por que não terá a minha mão bastanteforça? Quereria livrar−te dos sonhosmaus!"

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Falando desta forma, Zaratustra ria de simesmo com melancolia e amargura.

"Que, Zaratustra!", disse, "ainda querescantar consolações ao mar?

Ai, Zaratustra! Louco rico de amor, ébriode confiança! Mas assim foste sempre,sempre te abeiraste familiarmente detodas as coisas terríveis.

Querias acariciar todos os monstros.Um sopro de hálito quente, um tanto debranda velocidade nas garras eimediatamente estavas disposto a amare a atrair.

O amor, o amor a qualquer coisa,basta−lhe viver − é o perigo do maissolitário. Na verdade, prestam−se aoriso a minha loucura e a minha modéstiano amor".

Assim falou Zaratustra, e pôs−se a riroutra vez; mas então pensou nosamigos que deixara, e, como sehouvesse pecado contra eles empensamento, se enfadou consigomesmo pelos seus pensamentos. Eassim o riso mudou−se em pranto:Zaratustra chorou amargamente decólera e de ansiedade.

Da Visão e do Enigma

I

Quando os marinheiros souberam queZaratustra se encontrava no barco −porque, ao mesmo tempo que ele, fora abordo um homem das IlhasBem−aventuradas: houve grandecuriosidade e grande expectação.

Zaratustra, porém, conservou−se emsilêncio durante dois dias e permaneceufrio e surdo, simplesmente triste; deforma que não respondia aos olharesnem às perguntas.

Na noite do segundo dia abriram−lhe donovo os ouvidos, conquantopermanecesse calado: porque, naquelebarco que vinha de longe e que aindaqueria ir mais longe, se podia ouvir umaporção de coisas estranhas e perigosas.

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Zaratustra, porém, era amigo de todosos que fazem grandes viagens e dequem não sabe viver sem perigo. Porfim escutando, desatou−se−lhe a línguae quebrou−se−lhe o gelo do coração.Então começou a falar assim:

"A vós, não importa quem quer quesejais, intrépidos exploradores eaventureiros que embarcastes comvelas astutas em mares temíveis.

A vós, ébrios de enigmas, gozosos daspenumbras, almas atraídas por flautas atodas as voragens ilusórias.

Porque não quereis seguir às cegas ecom mão medrosa um fio condutor; eonde quer que podeis adivinharaborreceis concluir.

Somente a vós conto o enigma que vi, avisão do mais solitário.

Sombrio atravessei ultimamente o pálidocrepúsculo − sombrio e duro, com oslábios contraídos. Mais de um sol sepusera para mim.

Um sendeiro que subia com ar dedesafio por entre despenhadeiros, umsendeiro perverso e solitário que já nãoqueria erva nem brenhas, um sendeirode montanha rechinava ante o repto dosmaus passos. Mudos no meio do irônicoranger dos calhaus, pisando a pedraque os fazia resvalar, os meus péspugnavam para cima.

Para cima, embora gravitasse sobremim esse espírito, a puxar para oabismo: a despeito do espírito dopesadelo, meu demônio e mortalinimigo.

Para cima, embora gravitasse sobremim esse espírito, entre anão e míope,paralisado e paralisador, vertendochumbo nos meus ouvidos e distilandopensamentos de chumbo no meucérebro.

"Ó Zaratustra!", me segredava em tomchocarreiro, batendo as sílabas. "Pedrada sabedoria atiraste−te ao alto, mastoda a pedra atirada tem... de tornar acair.

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Condenado a ti mesmo e à tua próprialapidação, ó Zaratustra. atiraste muitolonge a pedra... mas tornará a cair emcima de ti!"

Aqui se calou o anão, e muito tempodecorreu; mas o seu silênciooprimia−me: quando uma pessoa sedesdobra em duas encontra−se maisinsulada do que quando é uma só! Eusubi, subi mais. sonhando e pensando:mas tudo me oprimia. Assemelhava−mea um enfermo prostrado pela agudezado seu sofrimento, e a quem umpesadelo desperta do seu torpor.

Eu, porém, tenho qualquer coisa a quechamo valor, qualquer coisa que atéagora matou em mim todo o humorsombrio. Esse valor me fez deter por fime dizer: "Anão! Ou tu ou eu!"

O valor é o melhor dos matadores: ovalor que ataca, porque sempre seataca ao rufar do tambor.

É o homem o animal mais valoroso: porisso venceu todos os outros animais. Aorufar do tambor, triunfou de todas asdores: e a dor humana é a dor maisprofunda.

O valor mata também a vertigem à beirados abismos! E onde não estará ohomem à beira dos abismos? Mesmoolhar... não será olhar abismos?

O valor é o melhor dos matadores:também mata a compaixão. E acompaixão é o abismo mais profundo:tão fundo quanto o homem vê na vida,assim fundo vê no sofrimento. Mas ovalor, o valor que ataca é o melhor dosmatadores; mata a própria morte,porque diz: "Quê? Era isto a vida? Entãotornemos a começar!"

Nesta sentença ressoa muito o tamborde guerra. Quem tiver ouvidos queouça".

II

"Alto, anão!", disse. "Ou eu ou tu! Eu,porém, sou o mais forte de nós dois. Tunão conheces o meu mais profundo

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pensamento. Esse... não mo poderiastirar!"

Tornei−me, então, mais leve porque oindiscreto anão me saltou os ombros.

Acaçapou−se numa pedra diante demim. No sítio em que paramos,encontrava−se como por casualidadeum pórtico.

"Anão!", prossegui. "Olha para estepórtico! Tem duas caras. Aqui sereúnem dois caminhos: ainda ninguémos seguiu até o fim.

Esta rua larga que desce dura umaeternidade... e essa outra longa rua quesobe... é outra eternidade...

Estes caminhos são contrários,opõem−se um ao outro, e encontram−seaqui neste pórtico. O nome do pórticoestá escrito em cima; chama−se"instante". Se alguém, todavia, seguissesempre, cada vez mais longe, por umdestes caminhos, acaso julgas, anão,que eles eternamente se oporiam?"

"Tudo quanto é reto mente", murmuroucom desdém o anão. "Toda a verdade ésinuosa; o próprio tempo é um círculo."

"Espírito do pesadelo!", disse eu irado!"Não aprecies tão ao de leve as coisas!− ou te deixo onde estás acaçapado, eolha que fui eu quem te trouxe cá acima!

Olha para este instante! − continuei. −Deste pórtico de momento segue paratrás uma larga e eterna rua; detrás denós há uma eternidade.

Tudo quanto é capaz de correr não devejá Ter percorrido alguma vez esta rua?Tudo o que pode suceder não deve Tersucedido, ocorrido já alguma vez?

E se tudo existiu já por aqui, que pensastu, anão, deste instante? Esse pórticonão deve também... ter existido poraqui?

E não estão as coisas tecidas de talforma que este instante atrai após si oseguinte? Por conseqüência... até a simesmo?

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Porque tudo quanto é capaz de correrdeve percorrer também mais uma vezesta larga rua que sobe!

E aquela aranha preguiçosa que seassusta à luz da lua é a mesma luz dalua, e eu e tu, que nos encontramosagora aqui juntos no pórtico segredandosobre coisas eternas, não devemos terpassado já por aqui, e tornar a correrpela outra rua que sobe?

Não devemos tornar eternamente poressa larga e lúgubre rua?

Assim falava eu, em voz cada vez maisbaixa, porque me assustavam os meuspróprios pensamentos e a sua ocultaintenção, quando de súbito ouvi uivarum cão ali perto. Não ouvira, já umavez, uivar assim um cão? E vi−otambém, com o pêlo eriçado, a cabeçaerguida, trêmulo no meio da noitesilenciosa, quando até os cãesacreditam em fantasmas.

E tive pena dele. Acabava de aparecersilenciosamente a lua cheia por cima dacasa: detivera−se com o discoincendiado, sobre a alta abobado, como,em propriedade alheia.

Foi isso que despertou o cão. Que oscães acreditam em ladrões e fantasmas.

E quando o tornei a ouvir uivar, tomei asentir dó dele. Que fora feito, entretanto,do anão, do pórtico, da aranha e dossegredos'? Teria sonhado? Teriaacordado'? Encontrei−me de repenteentre agrestes brenhas, sozinho,abandonado à luz da solitária luz.

Mas ali jazia um homem! E o, cão, asaltar e a gemer, com o pêlo eriçado −via−me caminhar − começou a uivaroutra vez e pôs−se a gritar. Nuncaouvira um cão pedir socorro assim.

Nunca vi nada semelhante ao que alipresenciei.

Vi um moço pastor a contorcer−seanelante e convulso, com o semblantedesfigurado, e uma forte serpente negrapendendo−lhe da boca. Quando vira eutal repugnância e pálido terror numsemblante? Adormecera, de certo, e a

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serpente introduziu−se−lhe na garganta,aferrando−se ali?

A minha mão começou a tirar aserpente, a tirar... mas em vão! Nãoconseguia arrancá−la da garganta.Então saiu de mim um grito: "Morde!Morde! Arranca−lhe a cabeça! Morde!"Assim gritava qualquer coisa em mim; omeu espanto, o meu ódio, a minharepugnância, a minha compaixão, todo omeu bem e o meu mal se puseram agritar em mim num só grito.

Valentes que me rodeias! Exploradores,aventureiros! Vós que apreciais osenigmas, adivinhais o enigma que eu vientão e explicai−me a visão do maissolitário. Que foi uma visão e umaprevisão: que símbolo foi o que vinaquele momento? E quem é aqueleque ainda deve chegar?

Quem é o pastor em cuja garganta seintroduziu a serpente? Quem é ohomem em cuja garganta seatravessara assim o mais negro e maispesado que existe?

O pastor, porém, começou a mordercomo o meu grito lhe aconselhava: deuuma dentada firme! Cuspiu para longede si a cabeça da serpente e saltou parao ar.

Já não era homem nem pastor; estavatransformado, radiante; ria! Nuncahouve homem na terra que risse comoele!

Ó, meus irmãos! Ouvi uma risada quenão era risada de homem... e agoradevora−me uma sede, uma ânsia quenunca se aplacará. Devora−me a ânsiadaquele riso. Ó! Como pude eu viverainda? E como poderia agora morrer?"

Assim falou Zaratustra.

Da beatitude Involuntária

Com tais enigmas e tais amarguras nocoração, passou Zaratustra o mar.Quando estava, porém, a quatro diasdas Ilhas Bem−aventuradas e dos seusamigos, dominara completamente a dor:

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vitorioso e com passo firme, assentarade novo no seu destino. EntãoZaratustra falou assim à suaconsciência radiante de alegria: "Estounovamente só, e assim quero estar: sócom o céu sereno e o mar livre;novamente reina a tarde em meu redor.

À tarde encontrei pela primeira vez osmeus amigos; das outras vezes tambémà tarde à hora em que toda a luz setorna mais tranqüila.

Que os raios de ventura que ainda estãoa caminho entre o céu e a terraprocurem um asilo numa alma luminosa.Agora, a ventura tornou mais tranqüila aluz toda.

Ó, tarde da minha vida! Também aminha ventura desceu um dia ao valepara procurar um asilo: encontrou entãoaquelas almas francas e hospitaleiras.

Ô, tarde da minha vida! Quanto eu nãodei para ter uma só coisa: esse viveirodos meus pensamentos e essa luzmatinal das minhas mais altasesperanças!

Um dia, o criador procurou co−partícipee filhos da sua esperança, e sucedeunão os encontrar, vendo−se nanecessidade de os criar.

E estou, portanto, em meio da minhaobra, indo para meus filhos e tornandoao pé deles: por amor aos filhos deveuma pessoa completar−se a si própria.

Que ninguém ama de todo coraçãosenão o seu filho e a sua obra; e ondehá um grande amor de si mesmo, ésinal de fecundidade: eis o que tenhonotado.

Os meus filhos, árvores do meu jardim eda minha terra melhor, ainda seencontram na sua primavera, apinhadosuns contra os outros, e agitados emmassa pelo vento.

E na verdade, onde existem juntas taisárvores, existem IlhasBem−aventuradas

Quero, porém, transplantá−las um diaseparadamente, a fim de aprenderem a

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soledade, a altivez e a precaução!

Nodoso e retorcido, com flexível dureza,deve cada qual erguer−se ao pé do mar,com próprio farol da vida invencível.

No mesmo sítio onde se precipitam nomar as tempestades, onde a fralda damontanha se banha nas ondas, nessesítio deverá cada qual estar de sentineladia e noite, para sua prova ereconhecimento.

É mister que seja reconhecido eprovado, para se saber se é de minharaça e da minha origem, se é dono deuma ampla vontade, silencioso mesmoquando fale, e condescendente deforma que aceite quando dê.

A fim de chegar a ser um dia meucompanheiro e colaborador, um dos queescrevem a minha vontade nas minhastábuas para o pleno cumprimento detodas as coisas.

E por causa dele e dos seussemelhantes devo eu compenetrar−mede mim mesmo: por isso agora fujo àminha ventura, oferecendo−me a todosos sofrimentos para a minha últimaprova e reconhecimento.

E, na verdade, já era tempo de partir; ea sombra do viajante, e o tédio maisprolongado e a hora mais silenciosatodos estes me disseram: "Não há uminstante a perder!"

O vento soprou pelo orifício dafechadura e disse−me: "Anda!"

Eu, contudo, estava acorrentado peloamor aos meus filhos: a ânsia de amorestendia−me esse laço para eu serpresa de meus filhos e me perder poreles.

Para mim, ansiar é já ter−me perdido.

Possuo−vos , meus f i l hos ! Nes tapossessão tudo deve ser certeza, enada desejo.

O s o l d o m e u a m o r , p o r é m ,abrasava−me. Zaratustra abrasava−seno seu próprio jugo. Nisto passaram pormim sombras e dúvidas.

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Já desejava o fr io e o inverno: "Ó!Tornem o frio e o inverno a fazer−met i r i t a r e en t rechoca r os den tes ! "suspirava eu. "Então se ergueramdentro de mim nuvens glaciais.

O meu passado destruiu as suassepulturas; mais de uma dor enterradaviva despeitou; não fizera mais do queadormecer envolta em sudários.

Assim tudo me gritava em sinais: "É játempo!" Mas eu não ouvia: até que,afinal, começou o meu abismo aagitar−se, morder−me o pensamento.

Ai! Pensamento que vens do meuabismo! Quando encontrarei forças parate ouvir refletir sem tremer!

Chegam−me à garganta os baques docoração quando te ouço refletir. O teupróprio silêncio de abismo me querafogar.

Nunca me atrevi a chamar−te àsuperfície: já era bastante trazer−tecomigo! Ainda não tive força suficientepara a última audácia e temeridade doleão.

Bem terrível tem sido sempre o teu pesopara mim; mas hei de encontrar um diaa força e a voz do leão para te chamar àsuperfície! Quando eu tenha conseguidoesse triunfo, conseguirei ainda outromaior, e uma vitória será a marca daminha plenitude.

Entretanto, vagueio por mares incertos,acariciado pelo acaso sedutor; olhoatrás e adiante, e ainda não descubrofim.

Ainda não chegou a hora da minhaúltima luta – ou talvez chegue nesteinstante. É certo olharem−me compérfida beleza o mar e a vida que nosrodeiam!

Ó tarde da minha vida! Ó ventura davéspera! Ô porto em pleno mar!

Ó paz na incerteza! Como desconfio detodos vós!

Desconfio deveras da vossa pérfidabeleza. Pareço−me com o amante que

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desconfia do sorriso meigo demais.

Como o ciumento repele a sua amada,terno até na sua dureza, assim eu repiloesta hora venturosa.

Para longe de mim, hora venturosa!Contigo fui bem−aventurado, a meupesar! Aqui me encontro, pronto para aminha mais profunda dor: chegaste forade tempo.

Para longe de mim, hora venturosa!Busca antes asilo além, junto de meusfilhos!

Vai, corre! Abençoa−os antes docrepúsculo e dá−lhes a minhafelicidade!

Já se aproxima a noite; esconde−se osol! Foi−se a minha ventura!"

Assim falou Zaratustra. E esperou a suadesventura toda a noite; mas esperouem vão. A noite permaneceu serena esilenciosa, e a felicidadeaproximava−se−lhe cada vez mais.Perto do alvorecer, todavia, pôs−se a ririntimamente e disse em tom irônico:

" A felicidade persegue−me. Deve−seisto a eu não correr atrás das mulheres.Que a felicidade é mulher".

Antes do Nascer do Sol

"Ó, céu desenrolado sobre mim! Céuclaro e profundo! Abismo de luz! Aocontemplar−te estremeço de divinosdesejos!

Elevar−me à minha altura: eis a tuaprofundidade! Cobrir−me com a tuapureza: eis a minha inocência! O deusoculto na sua beleza: assim ocultas astuas estrelas. Não falas: assim meanuncias a tua sabedoria

Mudo surgiste para mim sobre ofervente mar: o teu amor e o teu pudorrevelam−se à minha alma fervente.

Belo, vieste a mim, velado na tuabeleza: mudo, falaste−me, revelando−tena tua sabedoria. Ó como pude eu não

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adivinhar todos os pudores da tua alma!Antes de o sol vir até mim, o maissolitário.

Somos amigos de sempre: as nossaspenas são o fundo dos nossos seres,são−nos comuns; até o sol é comum.

Não falamos porque sabemosdemasiadas coisas: calamo−nos eentendemo−nos por sorrisos.

Não és tu a luz do meu fogo? Não és tua alma irmã da minha inteligência? Tudoaprendemos juntos; juntos aprendemosa elevar−nos sobre nós, e a sorrir, semnuvens, para baixo, com límpidos olhos,desde remotas paragens, quando osnossos pés se desvanecem como névoavaporosa a imposição, o fim e o erro.

E quando eu caminhava só, de quetinha a minha alma fome durante asnoites e nos caminhos do erro? Equando eu escalava montes, a quemprocurava nos píncaros senão a ti?

E todas as minhas viagens e todas asminhas ascensões não passavam deum expediente e recurso de inércia. Oque a minha vontade toda quer é voar,voar para ti!

E que odiava eu mais do que as nuvense tudo o que te empana? E odiava até omeu próprio ódio porque te empanava!

Tenho aversão às nuvens, a essesgatos monteses que se arrastam;tiram−nos a ti e a mim o que nos écomum: a imensa e infinita afirmaçãodas coisas.

Nós temos aversão às rasteiras nuvens,a esses seres de meio−termo e decomposições, a esses seres mistos quenão sabem nem bendizer nem maldizercom todo o seu coração.

Preferia estar metido num túnel ou numabismo sem ver o céu, a ver−te a ti, céude luz, empanado pelas nuvens quepassam

E muitas vezes tenho sentido desejosde as trespassar com fulgurantes fios deouro e rufar como trovão na sua pançade caldeira: rufar de cólera, visto que

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me roubam a mim a tua afirmação – céupuro! Céu sereno! Abismo de luz! – eroubam−te a ti em mim. Que eu prefiro oruído e o troar e as execrações do mautempo a essa calma medida e duvidosade gatos. E "quem não sabe bendizerdeve aprender a maldizer!" De umluminoso céu me caiu esta máximaluminosa: Até nas escuras noites brilhaesta estrela no meu céu.

Eu, porém, bendigo e afirmo sempre,contanto que me rodeies, céu sereno,abismo de luz! A todos os abismos,pois, levo a minha benfeitora afirmação.

Eu cheguei a ser o que bendiz e afirma;tenho sido um lutador a fim de um diater as mãos livres para abençoar.

E a minha bênção consiste em estar porcima de cada coisa com o seu própriocéu, a sua redonda abóbada, a suaabóbada cerúlea e sua eternaserenidade: e bem−aventurado aqueleque assim abençoa!

Que todas as coisas são batizadas nafonte da eternidade e além do bem e domal; mas o bem e o mal mesmo não sãomais do que sombras interpostas,úmidas aflições e nuvens passageiras.

Há bênção certamente e não maldiçãoquando eu ensino: "Sobre todas ascoisas se encontra o céu Azar, o céuInocência, o céu Acaso e o céu Ufania".

"Por azar , e esta a mais antiga nobrezado mundo: eu a restitui a todas ascoisas; eu as livrei, da servidão do fim.

Essa liberdade e essa eternidadeceleste coloquei−as como abóbadascerúleas sobre todas as coisas, aoensinar que acima delas, e por elas,nenhuma "vontade eterna" queria.

Eu pus, em vez desta vontade, essapetulância, essa loucura quandoensinei: Há uma coisa impossível emqualquer parte, e essa coisa é aracionalidade.

Um pouco de razão, um grão desensatez, disperso de estrela emestrela, é a levedura indubitavelmentemisturada a todas as coisas: por causa

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da loucura se acha a sensatezmisturada a todas as coisas!

Um pouco de sensatez é possível, maseu encontrei em todas as coisas estabenfeitora certeza: preferem bailar sobreos pés do acaso.

O, céu puro e excelso! A tua purezapara mim consiste agora em que nãohaja nenhuma aranha, nem teia dearanha eterna da razão: em seres umsalão de baile para os azares divinos,uma mesa divina para os divinos dadose jogadores de dados.

No entanto, sorriste? Disse coisasindizíveis? Maldisse−te querendoabençoar−te?

O que te faz sorrir é a vergonha de serdois. Mandas−me retirar e calar, porquechega agora o dia? O mundo éprofundo, e mais profundo que jamaispensou o dia. Nem tudo pode falardiante do dia. Mas as chega o dia.Separemo−nos então!

Ó, céu desenrolado sobre mim, céupudico e incendido! Ó, fe l ic idadeantecedente à saída do sol! Chega odia. Separemo−nos!"

Assim falou Zaratustra.

Da Virtude Amesquinhadora

I

Quando Zaratustra chegou à terra firme,não foi logo direto à sua montanha e àsua caverna, mas deu muitas voltas efez muitas perguntas para se informarde uma porção de coisas; e diziaconsigo mesmo, gracejando: "Eis aquium rio que, por mil voltas retrocede anascente!" Que ele queria sabre o quefora feiro do homem durante suaausência: se se tornara maior oumenos. E um dia divisou uma fileira decasas novas, admirado disse:

"Que significam aquelas casa? Emverdade, nenhuma alma grande asedificou como símbolo de si mesma.

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Tirá−las−ia da sua caixa de brinquedosalgum rapazinho idiota?

Pois torne−as a meter na outra caixarapazinho! E aqueles aposentos edesvãos! Poderão ali entrar e sairhomens? Parecem−me feitos parabichos de seda, ou para gatos gulosos,que talvez se deixam também comer". EZaratustra ficou−se a refletir. Por fimdisse com tristeza: "Tudo se tornoupequeno!"

Por toda a parte vejo portas maisbaixas; aquele que é da minha espécieainda poderá talvez passar por elas masprecisa se agachar!

Ó, quando tornarei para minha pátriaonde já não terei de me curvar...ante ospequenos?

E Zaratustra suspirou e olhou o longe.

Nesse mesmo dia pronunciou o seudiscurso sobre a virtudeamesquinhadora.

"Passo pelo meio deste povo e abro osolhos; esta gente não me perdoa que eulhe não invejo as virtudes. Queremmorder−me por eu lhes dizer que aspessoas pequenas necessitampequenas virtudes, e porque me é difícilconceber que sejam necessárias aspessoas pequenas.

Estou aqui como galo em terreiroestranho, que até as galinhas lhequerem bicar; mas eu nem por issoconservo rancor a tais galinhas. Souindulgente com elas como com apequena moléstia; ser espinhosos paracom os pequenos parece−me umproceder digno de ouriços. Todos falamde mim quando estão sentados à noite àroda do lar; falam de mim, mas ninguémpensa em mim. Eis o novo silêncio queaprendi a conhecer; o rumor que fazemà minha roda estende−se um mantosobre os pensamentos.

Eles vociferam: "Que nos quer estasombria nuvem? Andemos com cautela,não nos traga alguma epidemia!"

E ultimamente uma mulher puxou pelofilho que se queria aproximar de mim, e

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gritou: "Afastai as crianças! Olhosdaqueles queimam as almas dascrianças!"

Quando eu falo, fogem, julgam que atosse é uma objeção contra os ventosrijos: nada conjecturam do sussurro daminha felicidade. "Ainda não temostempo para Zaratustra" − tal é a suaobjeção. Mas que importa um tempoque "não tem tempo" para Zaratustra.

Ainda que me glori f icassem, comopoderia adormecer aos seus louvores?O seu elogio é para mim um cinturão deespinhos: mortifica−me mesmo depoisde o tirar.

E também aprendi isto entre eles: o queelogia como que entrega, mas em rigorquer que se lhe dê mais.

Perguntai ao meu pé se lhe agrada essam a n e i r a d e e l o g i a r e d e a t r a i r !Verdadeiramente não quer bailar nemestar quieto a esse som e compasso.Procuram elogiar−me a sua modestavirtude e atrair−me para ela; quiseramarrastar o meu pé ao som da modestafelicidade. Eu passo pelo meio do povoe abro os olhos: amesquinharam−se econtinuam a amesquinhar. Deve−se istoà sua doutrina da felicidade e da virtude.

É que também são modestos na suavirtude, porque querem Ter as suasconven iênc ias , e só uma v i r tudem o d e s t a s e c o n f o r m a c o m a sconveniências.

Aprendem também a andar a seu modoe andar para adiante: a isto chamo eu ircoxeando. São assim um obstáculo atodos que andam depressa.

E há quem caminhe para a frente, ao lhar para t rás e , com o pescoçoestendido, de boa vontade disputariacom semelhantes corpos.

Os pés e os olhos não devem mentirnem desmentir; mas entre as pessoaspequenas há muitas mentiras.

Alguns deles querem, mas na maioriaapenas são quer idos. A lguns sãosinceros, mas o mais deles são mauscômicos.

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Há entre eles cômicos sem o saber ecômicos sem querer; os sinceros sãosempre raros principalmente os cômicossinceros.

Escasse ia o va ron i l : po r i sso asmulheres se masculinizam. Que só oque for homem bastante emancipará namulher...a mulher.

Eis a pior das hipocrisias que tenhoencontrado entre os homens: até os quemandam fingem as virtudes dos queobedecem.

"Eu sirvo, tu serves, nós servimos",ass im sa lmode ia aqu i t ambém ahipocrisia dos governantes.

− E ai quando o primeiro amo não émais do que o primeiro servidor! O meuolhar curioso deteve−se também na suahipocrisia, e adivinhou a sua felicidadede moscas e seu zumbido à roda dasvidraças assoalhadas.

Toda a bondade que vejo é purafraqueza, toda a justiça e piedade,fraqueza pura.

São corretos, leais e benévolos unspara com os outros, como são corretos,leais e benévolos entre si os grãos deareia.

Abraçar modestamente uma pequenafelicidade é o que chamam"resignação", e ao mesmo tempo olhamde soslaio modestamente para outrapequena felicidade.

No fundo da sua simplicidade só têm umdesejo: que ninguém os prejudique. Porisso são amáveis com todos e praticamo bem.

Isto, porem, é covardia, conquanto sechame "virtude".

E quando a esses mesquinhos lhessucede falar com rudeza, eu na sua vozsó ouço a farfalheira, porque toda arajada de vento os enrouquece!

São hábeis; as suas virtudes têm dedoshábeis; mas faltam−lhes os pulsos; osseus dedos não sabem desaparecer pordetrás dos pulsos. Para eles, o que

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modera e domestica é a virtude; assimfizeram do lobo um cão e do própriohomem o melhor animal doméstico dohomem.

"Nós colocamos a nossa cadeira mesmono meio", assim me confessa o seusorriso, "a igual distância dosgladiadores moribundos e dos imundossuínos". Isto, porém, é mediocridade,embora lhe chamem moderação.

II

Passo por entre este povo e deixo cairmuitas palavras; mas não sabemreceber nem aprender.

Assombram−se de eu não viranatematizar os apetites e os vícios, e,na verdade, também não vim paraalertar contra os ladrões.

Admiram−se de eu não estar pronto aafinar e aguçar−lhe a soutileza: como senão tivessem ainda bastante sábiossutis, cujas vozes chiam aos meusouvidos Como rodas a que falta óleo.

E quando grito: "Maldizei todos osdemônios covardes que há em vós equereriam gemer, cruzar as mãos eadorar", então eles chamam: Zaratustraé ímpio".

E os seus pregadores de resignaçãosão os que mais vociferam. mas éjustamente a esses que me apraz gritarao ouvido: "Sim! Eu sou Zaratustra oímpio!"

Os pregadores de resignação. Ondequer que haja ruindade, enfermidade etinha, arrastam−se como piolhose sópor nojo os não esmago!

Pois bem! Eis o sermão que lhes pregoao ouvido: Eu sou Zaratustra, o ímpioque diz: "Quem há mais ímpio do queeu, para me regozijar com a suaensinança?"

Eu sou Zaratustra, o ímpio; ondeencontrarei semelhantes meus?Semelhantes meus são todos os que sedão a si próprios, à sua vontade se

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desprendem de toda a resignação.

Eu sou Zaratustra, o ímpio; no meucaldeirão cozo todos os sucessos; e sóquando estão em ponto é que lhes douas boas−vindas como sustento meu.

E mais de um acidente se meaproximou com ares de senhor; mas aminha vontade falou−se de umamaneira ainda mais dominante, e logose me ajoelhou aos pés, suplicando−melhe desse asilo e acolhesse cordialmente, dizendo em tom adulador: "Olha,Zaratustra: só um amigo podeaproximar−se assim de um amigo!"

A quem falar, porém, quando ninguémtem os meus ouvidos? Por isso querogritar a todos os Ventos:

Gente mesquinha, cada vez vosamesquinhais mais! Genteacomodatícia, estai−vos esmigalhando!E acabareis por irdes a pique com avossa infinidade de minguadas virtudes,minguadas comissões e de minguadaresignação.

O vosso solo é demasiado fofo

e mole! E para uma árvore se tornargrande precisa se abraçar a durasrochas com duras raízes. Até o queomitis a tecer a teia do futuro doshomens, até o vosso nada é uma teia dearanha e uma aranha que vive o sanguedo futuro.

E quando recebeis é como se furtásseis,mesquinhos e virtuosos; até entreladrões, contudo, diz a honra: "Só sedeve furtar onde não se pode saquear".

Isto dá−se: tal é também uma doutrinade resignação; mas eu vos digo, a vósque amais as vossas comodidades: istotoma−se e tomar−se−á sempre aindamais de vós.

Ai, se não acabardes de uma vez comessa vontade a meias! Não saberdesser decididos tanto para a preguiçacomo para a ação!

Ai, se não compreenderdes estaspalavras minhas: "Fazei sempre o quequiserdes; mas sede desde logo

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daqueles que podem querer!"

"Amais sempre o vosso próximo como avós mesmos: mas sede desde logo dosque se amam a si mesmos − dos que seamam com grande desdém."

Assim falou Zaratustra, o ímpio.

"Mas, para que falar, quando ninguémtem os meus ouvidos! Ainda é horademasiada matutina para mim.

Eu sou entre esta gente o meu próprioprecursor, o meu próprio canto de galonas ruas escuras.

Chega, porém, a sua hora! Chegatambém a minha! A cada hora setornam menores, mais pobres, maisestéreis: pobre erva! pobre terra!

Breve estarão na minha frente comoerva seca, como uma estepe, everdadeiramente fatigados de simesmos, e mais sedentos de fogo quede água! Ó, bendita a hora do raio! O,mistério dantes do meio−dia! Há dechegar a vez de eu os converter emcorrente de fogo e em profetas delínguas de chamas. Até profetizarãocom línguas de chamas: já vem, já seaproxima o Grande Meio−dia!"

Assim falou Zaratustra.

No Monte das Oliveiras

"O inverno, mau hóspede, penetra naminha morada; tenho as mãosarroxeadas do apertão da sua amizade.

Honro este hóspede maligno, masagrada−me deixá−lo só, safar−me dele,e, correndo bem, consegue uma pessoasafar−se.

Quentes os pés e o pensamento, corroaonde o vento emudece, até o rincãoassoalhado do meu monte dasOliveiras.

Lá me rio do meu rigoroso hóspede, elhe fico agradecido por me livrar dasmoscas e fazer calar uma porção deruídos.

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Que ele não gosta de ouvir zumbir umamosca, e até a rua põe tão solitário quea luz da lua chega a ter medo da noite.

É um hóspede rígido; mas eu o honro enão rezo ao pançudo deus do fogo,como fazem os efeminados.

Vale mais bater um pouco os dentes doque adorar ídolos! − tal a minhacondição. E eu estou mal, mormentecom os deuses do fogo, como o espíritoardente, fervido e taciturno!

Quando amo, amo melhor no inverno doque no estio; zombo agora melhor emais animosamente dos meus amigosdesde que o inverno entra em minhacasa.

Animosamente, até chegar aaconchegar−me na cama − ainda entãori e se diverte a minha felicidaderetirada; será que ri o meti sonoenganador?

Arrastar−me... eu? Nunca na minha vidame arrastei ante os poderosos, e sealguma vez menti foi por amor. Por issoestou satisfeito até numa cama deinverno.

Um leito humilde aquece−me mais doque um leito magnífico porque eu souzeloso da minha pobreza. E no invernoé quando a minha pobreza me é maisfiel.

Inauguro todos os dias com umamaldade: zombo do inverno com umbanho frio; isto faz resmungar o meurigoroso hóspede.

Gosto também de me cocegar com umavelazinha, para enfim permitir ao céusair da pardacenta aurora. Que euquando sou mais madrugada, quandochiam baldes no poço e os cavalosrelincham pelas ruas sombrias.

Então espero impaciente que se levanteo céu luminoso, o céu invernal de níveabarba, o velho de cabeça branca: osilencioso céu invernal que até sobre oseu sol guarda silêncio às vezes.

Aprenderia eu com ele o amplo silêncioluminoso? Ou ele o aprenderia comigo?

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Ou cada um de nós o inventou para simesmo?

A origem de todas as coisas boas émúltipla; todas as boas coisas folgazãssaltam de prazer à existência: como sóo farão uma vez!

Também o longo silêncio é uma coisaboa, cheia de travessura. E olhar, àsemelhança de um céu de inverno, comsereno semblante de olhos redondos,calar, como ele faz, o seu sol e a suainflexível vontade de sol: essa arte eessa malícia do inverno aprendi−a eubem.

A minha arte e a minha mais caramalícia em que o meu silêncio tenhaaprendido a se não delatar pelo silêncio.

Com palavras e ruídos de dados,entretenho−me a iludir a gente soleneque anda à espreita; quero que a minhavontade e o meu fim se subtraiam aesses severos observadores.

Para ninguém poder ver meu fundoIntimo e a minha última vontade,inventei o longo e claro silêncio.

Encontrei mais de um inteligente quevelava o semblante e turvava a suaágua, para ninguém poder olhar atravése para o fundo. Era, porém, a elepositivamente que acudiam os astutosdesconfiados; pescavam−se−lhe ospeixes mais escondidos!

Mas os claros, os bravos, ostransparentes, esses são para mim osmais silenciosos astutos: o eu fundo étão profundo que a mais límpida água odenuncia. Silencioso céu invernal debarba nívea, branca cabeça deredondos olhos que te ergues sobremim! Ó, símbolo divino da minha alma eda travessura da minha alma!

E não será mister que eu me escondacomo quem tragou ouro, para me nãoabrirem a alma?

Não será mister que eu use andas, paranão repararem no comprimento dasminhas pernas todos esses tristesinvejosos que me rodeiam?

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Todas essas almas defumadas,corrompidas, consumidas, aborrecidas,azedadas, como poderiam suportar coma sua inveja a minha ventura?

Por isso lhes revelo somente o inverno egelo dos meus píncaros; mas não lhesrevelo que ainda cingem a minhamontanha todas as zonas solares. Sóouvem sibilar as minhas tempestadesde inverno; mas não sabem que passotambém por quentes mares, comolânguido, pesado e ardente vento Sul.

Os meus azares e revezesinspiram−lhes dó; mas as minhaspalavras dizem: "Deixai vir a mim o azar:é inocente como uma criança".

Como poderiam suportar a minhaventura, se eu a não rodeasse deacidentes e misérias invernais, de tocasde urso branco e mantos de céu deneve! Se eu não tivesse dó da suacompaixão, da compaixão desses tristesinvejosos? Se não suspirasse e tiritassediante deles, deixando−me envolverpacientemente na sua compaixão.

Eis a sábia e caritativa malícia da minhaalma: não oculta o seu inverno e osseus ventos gelados; nem sequer ocultaas suas frieiras.

A soledade de uns é fuga daenfermidade; a de outros é a fugaperante a enfermidade.

Ouça−me tiritar e suspirar ante o frio doinverno toda essa miséria velhaca einvejosa que me rodeia! Com taisarrepios e suspiros fujo dos seusquartos abrasados.

Lastimem−me e tenham dó de mimpelas minhas frieiras: "Acabará por segelar com o gelo do seu conhecimento!"− é assim que gemem.

Eu, entretanto, corro de cá para lá, comos pés quentes, pelo meu monte dasOliveiras; no retiro assoalhado do meumonte das Oliveiras canto e escarneçode toda a compaixão".

Assim falou Zaratustra

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De Passagem

Atravessando assim lentamente muitospovos e cidades, tomava Zaratustrapara a sua montanha e a sua caverna. Ecaminhando de passagem chegoutambém de improviso à porta da grandecidade; mas aí caiu sobre ele,impedindo−lhe a entrada com os braçosestendidos, um doido furioso. Era omesmo louco a que o povo chamava "omacaco de Zaratustra" porque imitavaum tanto a forma e a cadência da suafrase, e lhe agradava também explorar otesouro da sua sabedoria.

O doido, portanto, falou assim aZaratustra:

"Ó, Zaratustra! é esta a grande cidade:aqui nada tens a procurar, mas tudo aperder.

Para que queres introduzir−te nestelodaçal? Tem dó dos teus pés! Cospe àporta da cidade e torna sobre os teuspassos!

Isto é um inferno para os pensamentossolitários. Aqui se cozem vivos osgrandes pensamentos, aqui se reduzemà papa.

Aqui apodrecem todos os grandessentimentos; aqui só se pode ouvir ocrepitar das paixonetas ressequidas.

Não sentes já o cheiro dos matadourose das baiúcas do espirito? Não fumegaesta cidade com os vapores dosespíritos sacrificados? Não vês,penduradas, as almas nos galhossujos? E desses frangalhos, todavia,fazem periódicos!

Não ouves como aqui se troca oengenho em jogo de palavras? Cospemrepugnantes intrigas verbais! E dessasintrigas fazem os de cá, periódicos!

Provocam−se sem saber por que.Entusiasmam−se e não sabem por que.Chocalham com a sua lâmina de folha etilintam com o seu ouro.

Sentem frio e procuram calor nasbebidas quentes; acaloram−se eprocuram frescura nos espíritos álgidos;

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a opinião pública consome−os etorna−os febris.

Todos os apetites e todos os víciosassentaram aqui, mas há tambémvirtuosos, há muitas virtudes hábeis elaboriosas, virtudes com dedosexpedidos, com carnes duras parasuportar boas assentadas, com o peitoadornado de cruzinhas bentas porraparigas enchumaçadas e semnádegas.

Também há aqui muita devoção, muitalisonja cortesã e muitas baixezas ante odeus dos exércitos.

"De cima" chovem as estrelinhas e asmagnânimas cuspideiras; para cima vãoos desejos de todos os peitosdesprovidos de estrelinhas.

A lua tem a sua corte, e a corte seussatélites; mas o povo mendicante e ashábeis virtudes mendicantes rezam atudo o que vem da corte.

"Eu sirvo, tu serves, nós ser vimos."Assim rezam ao soberano todas asvirtudes hábeis, para que a merecidaestrela se prenda afinal ao peitoesquálido.

A lua, porém, gira em torno de tudoquanto é terrestre; assim também osoberano gira em torne do que há demais terrestre: e ouro dos merceeiros. Odeus dos exércitos não é o deus dasbarras de ouro; o soberano propõe, maso merceeiro... dispõe.

Em nome de tudo quanto é claro, forte ebom que em ti existe, Zaratustra, cospea esta cidade dos merceeiros e tornapara trás!

Aqui corre sangue viciado, pobre eespumoso, por todas as veias; cospe àgrande cidade, que é o grandevazadouro onde se acumulam todos osexcrementos.

Cospe à cidade das almas deprimidas edos peitos estreitos, dos olhospenetrantes e dos dedos viscosos; àcidade dos importunos e dosimpertinentes, dos escritorezitos e dospalradores, dos ambiciosos

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exasperados; à cidade onde se reúnetodo o carcomido, desconsiderado,sensual, sombrio putrefato, ulcerado econjurado; cospe à grande cidade etorna sobre os teus passos!" Nesteponto, porém, Zaratustra interrompeu olouco furioso e tapou−lhe a boca.

"Cala−te", exclamou Zaratustra. "Já étempo de me deixares com a tualinguagem e as tuas maneiras.

Por que tens vivido tanto tempo à beirado pântano, a ponto de tu mesmo teconverteres em rã e sapo?

Não correrá agora em tuas própriasveias um sangue de pântano, viciado eespumoso, para teres aprendido aguinchar e a blasfemar assim?

Por que te não retiraste para o bosque?Por que não lavraste a terra? Não está omar cheio de ilhas verdejantes?

Desprezo o teu desdém; e já que meprevines, por que te não prevenistes a timesmo?

Só do amor há de surgir o meu desdéme a minha ave anunciadora; não dopântano!

Chamam−te o meu macaco, doidoraivoso; mas eu chamo−te suínogrunhidor; com o teu grunhido acabaspor me estropiar o meu elogio daloucura.

Em princípio, quem foi que te fezgrunhir? Não te adularam bastante. Porisso te sentaste ao lado dessasimundícies, a fim de teres numerosasrazões de vingança. Que a vingança,louco vaidoso, é a tua espuma toda:calei−te perfeitamente!

A tua língua de louco, porém,prejudica−me até naquilo em que tensrazão. E ainda que tivesse mil vezesrazão a palavra de Zaratustra, tusempre ma tirarias com a minha própriapalavra!"

Assim falou Zaratustra, e, olhando agrande cidade, suspirou e ficou longotempo calado. Por fim disse:

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"Também eu estou desgostoso nestagrande cidade, e não é só deste louco.Aqui e ali nada há que melhorar, nadahá que piorar.

Ai desta grande cidade! Quereria ver jáa coluna de fogo em que se há deconsumir.

Que tais colunas de fogo hão deproceder o grande meio−dia. Isto,contudo, tem o seu tempo e o seupróprio destino.

A ti, louco, te dou este ensinamento amodo de despedida: onde já se nãopode amar, deve−se... passar!"

Assim falou Zaratustra, e passou pordiante do louco e da grande cidade.

Dos Trânsfugas

I

"Ai! Como já está triste e cinzento nesteprado tudo o que há pouco estava aindaverde e cheio de cor! E quanto mel deesperança eu daqui levei à minhacolmeia!

Todos estes corações juvenis setornaram já velhos: e nem velhossequer! Simplesmente fatigados,comuns e cômodos. Explicam−nodizendo:

"Tornamos a ser piedosos".

Ainda não há muito os vi à primeira horaa andar briosamente, mas as pernas doconhecimento fatigaram−se−lhes eagora caluniam até os seus brios damanhã.

Na verdade, mais de um alçava dantesas pernas como um bailarino; o risoacenava−lhe com a minha sabedoria;mas depois refletiu e acabo de o vercurvado...arrastando−se até à cruz.

Dantes giravam em redor da luz e daliberdade como mosquitos e jovenspoetas.

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Um pouco mais velhos, um pouco maisfrios, e já estão acocorados ao amor dolume como santarrões.

Desfaleceram por me haver tragado asoledade como uma baleia? Teriamdebalde prestado ouvidos durante longotempo às minhas trombetas e aos meusgritos de arauto?

Ai! Sempre são muito poucos os quetêm um coração de largo fôlego e largaimpetuosidade; e são também os únicosde espírito perseverante. Tudo o mais écovardia.

E o mais é sempre a grande massa, oordinário, o supérfluo, os que estão demais. Todos estes são covardes!

Aquele que for da minha têmperatropeçará no seu caminho comaventuras iguais às minhas; de formaque os seus primeiros companheirosdevem ser cadáveres e acrobatas.

Os seus segundos companheiros,porém, chamar−se−ão seus crentes: umexame animado, muito mar, muitaloucura, muita veneração infantil.

A estes crentes não deve ligar o seucoração aquele que dentre os homensfor da minha índole; nessas primaverase nesses prados de variadas cores, oque conhece não deve presumir a fracae fugitiva condição humana.

Se pudessem doutra maneira quereriamtambém doutra maneira. As coisas pormetade prejudicam o todo. Se há folhasque murcham, por que se há de queixaruma pessoa?

Deixa−a cair, Zaratustra, e não tequeixes! Pelo contrário: varre−as com osopro do teu vento; varre essas folhas,Zaratustra! Aparte−se de ti tudo quantoé murcho!

II

"Tornamos a ser piedosos", assimconfessam os trânsfugas e muitos delesainda são demasiado covardes para oconfessar assim.

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A estes encaro eu, a estes digo eu nassuas caras envergonhadas:

Sois vós os que rezam outra vez! Rezar,todavia, é uma vergonha! Não para todaa gente; mas para ti e para mim e paraquantos têm a sua consciência nacabeça. Para ti é uma vergonha rezar!

Bem sabes: o covarde demônio quedentro de ti se compraz em juntar asmãos e em cruzar os braços, e quedesejaria ter uma mais fácil, essecovarde demônio disse−te: "Há umDeus!"

Assim, pois, fazes parte dos que temema luz, daqueles a quem a luz nuncadeixa repouso; tens agora que ocultartodos os dias a cabeça maisprofundamente na noite e nas trevas.

E na verdade, escolheste bem a tuahora; porque as aves noturnas tornarama erguer o vôo. Chegou a hora dosseres que temem a luz, a hora dodescanso em que... se não descansa.

Ouço−o bem: chegou a hora da suacaçada − não de uma caçada infernal,mas mansa, suave, farejando peloscantos sem fazer mais ruído que omurmúrio de uma reza; caçadas desantarrões cheios de alma; todas asratoeiras dos corações estão novamentepreparadas!

E onde quer que erga uma cortina logosai para fora uma borboleta noturna.

Estaria ali acaçapada com outraborboleta noturna? Que eu em toda aparte pressinto pequenas comunidadesocultas e em toda a parte em quehouver esconderijos haverá novosbeatos e cheiro de boatos.

Estarão reunidos durante noites inteirase dizem entre si: "Tornemos a sercrianças e invoquemos o Senhor!" Ospiedosos confeiteiros deram−lhe caboda boca e do estômago. Ou contemplamdurante longas noites alguma astutaaranha espreitando, que predica aastúcia às próprias aranhas, ensinando:"É bom tecer sob as cruzes!"

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Ou passam dias inteiros sentados,munidos de canas de pesca. na margemdos pântanos, e julgam que aquilo é queé ser profundo; mas o que pesca ondenão há peixes parece−me que nemsequer é superficial. Ou aprendemalegremente a tocar harpa com umversejador que se desejaria insinuar nocoração das donzelas, porque estácansado das velhas e dos seus elogios.Ou aprendem a espavorir−se comalgum sábio tresloucado que espera emquartos escuros que apareçam osespíritos... enquanto o seu espíritodesaparece completamente!

Ou escutam um velho charlatão, músicoambulante a quem ventos tristesensinaram toadas lamentosas: agorasibila à semelhança do vento e predicaa compreensão em tom compungido.

E alguns até se tornamguardas−noturnos; sabem agora tocarcornetas, rondar de noite e despertarantigas coisas há muito tempoadormecidas.

Ontem à noite, ao lado do muro de umjardim, ouvi algumas palavras apropósito dessas coisas alheias queprocediam desses velhos, tristes emirrados.

"Sendo pai, não vela bastante pelosfilho: pais humanos fazem−no melhor doque ele."

"É velho demais. Já nada se ocupa dosseus filhos." Assim respondeu o outroguarda.

"Mas terá ele filhos? Ninguém o podeprovar, se ele mesmo o não prova. Hámuito que eu quereria que eleapresentasse provas com fundamento."

"Provar? Acaso provou ele alguma vezalguma coisa? Custam−lhe as provas;tem muito empenho em que acreditemnele."

"Sim, sim! Salva−o a fé, a fé em simesmo! É a condição dos velhos! A nóssucede−nos o mesmo!"

Assim conversaram os dois morcegos,inimigos da luz: depois tocaram

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tristemente as cornetas; eis o que sepassou ontem à noite, ao lado do velhomuro do jardim.

Entretanto o meu coração contorcia−sede riso; queria estalar, mas não sabiacomo, e ria, ria.

Na verdade, a minha morte seráafogar−me em riso, vendo asnosembriagados e ouvindo assim morcegosduvidarem de Deus.

Não passou há muito o tempo de taisdúvidas? Quem teria ainda o direito dedespertar do seu sono Coisas tãoinimigas da luz?

Há muito que se acabaram os antigosdeuses, e na verdade tiveram um bom ealegre fim divino! Não passaram pelo"crepúsculo" para caminhar para morte− é uma mentira dizê−lo. Pelo Contrário:mataram−se a si mesmos a poder de...riso!

Sucedeu isso quando chegaram apronunciar−se por um deus as palavrasmais ímpias − as palavras: Só há umDeus! Não terás outros deuses além demim!

Um deus velho, colérico e zeloso, quese excedeu a este ponto.

Então todos os deuses se puseram a rire, agitando−se nos seus assentos,exclamaram: "Não se baseiaprecisamente a divindade em haverdeuses, e não Deus?

Quem tiver ouvidos que ouça."

Assim falou Zaratustra na cidade queamava, e que se chama a VacaMalhada, distante dali a dois dias decaminho para chegar à sua caverna aopé dos animais que amava, e sempre selhe alegrava a alma ao aproximar−se oseu regresso.

O Regresso

O, soledade! Pátria minha! Vivi muitotempo selvagem em selvagens paísesestranhos para não regressar a ti sem

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lágrimas!

Ameaça−me agora com o dedo, comouma mãe, sorri−me como sorri umamãe, e diz somente:

"Quem foi que em tempos fugiu do meulado como um torvelinho? Aquele queao retirar−se exclamou: demasiadotempo fiz companhia à solidão; esquecientão o silêncio? Foi isso sem dúvida oque agora aprendeste?

Ó, Zaratustra, sei tudo! e sei que tu,irmão, te sentas mais abandonado entrea multidão do que jamais estivestecomigo.

Uma coisa é o abandono, e outra asolidão; eis o que aprendeste agora!Que entre os homens serás sempreselvagem e estranho mesmo que teamem; porque, primeiro que tudoquerem que se lhes guardeconsideração.

Aqui, porém, estás na tua pátria e na tuacasa; podes aqui dizer tudo eespraiar−te completamente; aquininguém se envergonha de sentimentosocultos e tenazes.

Aqui todas as coisas se aproximam datua palavra com carícias e te animam:porque te querem subir ao ombro.Montado em todos os símbolos,cavalgas aqui para todas as verdades.

Aqui podes falar a todas as coisas comretidão e franqueza, e, na verdade, tudoo que se lhes fale com retidão lhes soacomo um elogio.

O abandono é muito diferente.Recordas−te, Zaratustra? Quando a tuaave se pôs a gritar por cima de ti,estando tu no bosque, indeciso, semsaber para onde ir, ao lado de umcadáver, quando dizias: "Guiem−me osmeus animais! Encontrei mais perigoentre os homens do que entre osanimais". Aquilo era abandono.

E lembras−te, Zaratustra? Quandoestavas sentado na tua ilha, fonte devinho entre baldes vazios, dando debeber constantemente aos sequiosos,até que afinal foste o único sequioso

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entre bêbados, e dizias de noitelastimando−te: "Não será maior gozoaceitar do que dar? E não será gozoainda maior roubar que aceitar?" Aquiloera abandono!

E recordas−te, Zaratustra'? Quandochegou a tua hora mais silenciosa e tepôs fora de ti: quando te segredoumaliciosamente: "Fala e sucumbe!"Quando te desgostou da tua espera edo teu silêncio, e abateu o teu decaídoânimo? Aquilo era abandono!"

Ó, solidão! Pátria minha! Como a tuavoz me fala celestial e afetuosamente!

Nós não nos interrogamos, não nosqueixamos um ao outro; francamentepassamos junto pelas portas francas.

Que em ti está franco e iluminado, e aspróprias horas deslizam aqui maisligeiras, pois na obscuridade o temponos parece mais pesado do que à luz.

Aqui se me revela a essência e aexpressão de todas as coisas: tudo oque existe se quer exprimir aqui, e tudoo que está em via de existir queraprender a falar de mim.

Além todo o discurso é vão! A melhorsabedoria é esquecer e passar: foi isto oque aprendeste agora.

O que quisesse compreender tudo entreos homens teria de aprender tudo. maspara isso tenho eu as mãos limpasdemais.

A mim já me não agrada respirar o seuhálito. Ai! ter eu vivido tanto tempo entreo seu ruído e o mau hálito.

Ó, bendita soledade! Ô, puros aromas!Como este silêncio aspira o ar puro aplenos pulmões! Como este benditosilêncio escuta!

Em troca, além tudo fala e nada seouve. Embora uma pessoa anuncie oseu saber a toques de campainha, osmerceeiros abafarão o som na praçapública com o ruído das suas moedas.

Entre eles tudo fala: já ninguém sabecompreender. Tudo cai à água; nada cai

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em fontes profundas.

Entre eles tudo fala; já nada seconsegue nem conclui.

Tudo cacareja; mas quem quer ficarainda no ninho a chocar ovos?

Entre eles tudo fala, tudo se dilui. E oque ontem era ainda demasiado duropara o próprio tempo e para os seusdentes, hoje pende, despegado e roído,da boca dos homens atuais.

Entre eles tudo fala, tudo se divulga. E oque antigamente se chamava mistério esegredo das almas profundas, pertencehoje às tormentas do arroio.

Ó, singular natureza humana! Bulícioem ruas escuras. Agora ficas atrás demim: o meu maior perigo fica atrás!

As contemplações e a compaixão foramsempre o meu maior risco, e todos osseres humanos querem sercontemplados e socorridos. Comverdades dissimuladas, com as mãosloucas e enlouquecido coração, rico empiedosas mentiras; assim vivi sempreentre os homens.

Eu estava entre eles disfarçado,disposto a desconhecer−me para ossuportar, comprazendome em dizer parame convencer: "Louco, não conheces oshomens!" Esquece−se o que os homenssão quando se vive com eles. Hádemasiadas afinidades em todos oshomens.

E se eles me desconheciam, eu, louco,olhava−os ainda com mais indulgênciado que a mim − pois estava acostumadoa ser rigoroso para mim mesmo − efreqüentes vezes me vingava em mimdessa indulgência.

Picado de moscas venenosas e roídocomo pedras pelas numerosas gotas demaldade, assim estava eu entre eles, eainda dizia comigo: "Tudo quanto há depequeno é inocente da sua pequenez!"

Especialmente os chamados "bons"foram os que me pareceram as moscasmais venenosas: picam com toda ainocência; mentem com toda inocência.

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Como poderiam ser justos comigo?!

A piedade ensina a mentir aos quevivem entre os homens. A piedade tornaa atmosfera carregada para todas asalmas livres. Que a estupidez dos bonsé insondável.

Ocultar−me a mim mesmo é minhariqueza: eis o que lá aprendi − porquetodos se me mostram pobres deespírito.

A mentira da minha compaixão foi olhare sentir em cada um o que para ele erabastante espírito e o que era espírito demais.

Aos seus rígidos sábios chamei sábios,mas não rígidos − aprendi assim acomer palavras. − Aos seus coveiroschamei investigadores e escrutadores −aprendi assim a trocar palavras.

Os coveiros colhem enfermidades àforça de cavar sepulturas. Sob velhosescombros dormem exalaçõesinsalubres.

Não é necessário remover os atoleiros;basta viver nos montes.

Com o nariz satisfeito respiro outra veza liberdade dos montes! Afinallibertou−se o meu nariz do cheiro detodos os seres humanos! Cocegadapelo ar vivo como por vinhosespumantes a minha alma buliçosaexclama contente: "À tua saúde!"

Assim falou Zaratustra.

Dos Três Males

I

"No meu último sonho de madrugada,encontrava−me eu num promontório...para além do mundo; tinha uma balançana mão e pesava o mundo.

Ó! Por que veio a aurora demasiadocedo para mim? Despertou−me o ardorda muita zelosa! Que ela é semprezelosa do ardor dos meus sonhosmatinais.

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Medível para o que tem tempo, pesávelpara um bom pesador, exeqüível paraasas vigorosas. adivinhável para divinosbrita−nozes: assim viu o meu sonho omundo.

O meu sonho, atrevido navegante,meio−baixeI, meio rajada de vento,silencioso como a mariposa, impacientecomo o falcão. que paciência teve hojepara pesar o mundo! Falar−lhe−ia emsegredo a minha sabedoria, a minhasabedoria diurna, risonha e despertaque zomba de todos "os mundosinfinitos?" Que ela diz: "Onde há forçaconquista−se também o número, que éo que tem mais força".

Com que segurança o meu sonho olhoueste mundo infinito! Não eracuriosidade, nem indiscrição, nemtemor, nem súplica.

Como se apresentasse à mão umagrande maçã − uma maça de ouro,madura, fresca e macia pele − assim seme apresentou o mundo.

Como uma árvore me acenasse − umaárvore de grandes ramos, de vontadefirme, curvada como para presentearcom o seu apoio o fatigado viajante:assim se encontrava o mundo no meupromontório.

Como se graciosas mãos meestendessem um cofre − um cofreaberto para deleite dos ursos pudicos ereverentes: assim saiu o mundo ao meuencontro.

Enigma insuficiente para afugentar oamor dos homens, solução incapaz deadormecer a sabedoria dos homens;uma coisa humanamente boa: tal mepareceu hoje o mundo de que tanto malse diz.

Quanto agradecido estou ao meu sonhode manhã por ter assim pesado omundo à primeira hora! Como umacoisa humanamente boa, me chegouesse consolador do coração!

E para proceder como ele, para meservir de exemplo o melhor seu, queropôr agora na balança os três malesmaiores e pesar humanamente bem.

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O que ensinou a abençoar ensinoutambém a amaldiçoar; quais são as trêscoisas mais amaldiçoadas no mundo?São essas que quero pôr na balança.

A voluptuosidade, o desejo dedominação, o egoísmo: estas trêscoisas tem sido as mais difamadas ecaluniadas até hoje; são estas trêscoisas que quero pesar humanamentebem.

Belo! Eis aqui o meu promontório, e eisali o mais: com mil carícias se me dirige.Correndo, o mar ondeado, esse cãovelho e fiel, monstro de cem cabeças aquem eu estimo. Pois hei de aqui sustera balança, sobre o mar ondeante; eelejo também uma testemunha; és tu,árvore solitária de forte perfume e deampla abóbada, árvore querida!

Por que ponte vai o presente para ofuturo? Qual é a força que compele oalto a descer para baixo? E que foi queobrigou a coisa mais alta a crescerainda mais?

Agora a balança está imóvel e emequilíbrio; lancei nela três pesadasperguntas: o outro prato sustém trêspesadas respostas.

II

Voluptuosidade, és para todos osdesprezadores do corpo cingidos decilício, o seu aguilhão e mortificação, e o"mundo maldito" para todos os quecrêem em além−mundos; porque avoluptuosidade se ri e moteja de todosos heréticos.

Voluptuosidade, és para a canalha ofogo lento em que a queimam; para todaa madeira carcomida e de todos ostrabalhos hediondos o grande fornoardente.

Voluptuosidade, és para os coraçõeslivres qualquer coisa inocente e livre, asdelícias do jardim terrestretransbordante gratidão do futuropresente.

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Voluptuosidade, só és um venenodeleitoso para os melancólicos; para osque têm a vontade do leão, és o maiorcordial, o vinho dos vinhos, que seeconomiza religiosamente.

Voluptuosidade, és a maior felicidadesimbólica para a ventura e a esperançasuperior. Que há muitas coisas a que épermitido o consórcio, e mais que oconsórcio, muitas coisas que são maisestranhas para si do que o homem paraa mulher; e quem compreendeu, até queponto são estranhos um para o outro, ohomem e a mulher?

Voluptuosidade... Mas quero limitar osmeus pensamentos e também asminhas palavras, para os sórdidos e osexaltados me não invadirem os jardins.

Desejo de dominar: o açoite pungentedos mais duros de todos os coraçõesendurecidos, o martírio espantosoreservado ao mais cruel, a chamasombria das fogueiras vivas.

Desejo de dominar: o afã que sentem ospovos mais vãos, o que zomba de todasas virtudes incertas, o que cavalgasobre todos os orgulhos.

Desejo de dominar: o terremoto quequebra e desagrega tudo quanto é velhoe oco, o furioso destruidor de todos ossepulcros caídos, o sinal deinterrogação que surge ao lado dasrespostas prematuras.

Desejo de dominar: ante cujo olhar searrasta e humilha o homem, descendoabaixo da cobra e do suíno, até queenfim clama nele o grande desprezo.

Desejo de dominar: o terrível mestreque ensina o grande desprezo, quepredica na cara de cidades e deimpérios: atira−te daí'. até que afinalexclamam eles próprios: "Fora eu!".

Desejo de dominar: que ascendetambém até os puros e os solitários paraos atrair, que ascende até às alturas dasatisfação de si mesmo, ardente comoum amor que pinta no céu terrestresedutoras beatitudes purpúreas.

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Desejo de dominar... Mas. quemquereria chamar a isto um desejoquando para baixo é que altura aspiraao poder!

Nada há de febril nem doentio em taisdesejos e decadência!

Não se condene a altura solitária àeterna soledade, nem se contente de si!Desçam as montanhas para os vales eos ventos das alturas para as planícies!

Ó, quem encontrasse o verdadeironome para batizar e honrar semelhantedesejo! "Virtude dadivosa". Assimchamou Zaratustra noutro tempo a essacoisa inefável.

E também então – pela primeira vez,talvez – elogiou o egoísmo, o bom e osão egoísmo que brota da sua almapoderosa a que corresponde o corpoelevado, belo, vitorioso e reconfortante,em redor do qual tudo se troca emespelho: o corpo flexível e persuasivo, odançarino cujo símbolo e expressão é aalma contente de si mesma.

Ao próprio contentamento de tais corpose tais almas chama−se "virtude".

Com os seus assertos sobre o bem e omal essa alegria protege−se a si própriacomo se se rodeasse de bosquessagrados; com os nomes da suaventura, desterra para longe de si tudo oque é desprezível.

Desterra para longe de si tudo quanto écovarde; diz ela: Mau é o que é covarde.

Desprezível lhe parece o que sofre,suspira e se queixa sempre e arrebanhaaté as menores utilidades.

Despreza também toda a sabedoria quefloresce na obscuridade, uma sabedoriade sombra noturna, como a que suspirasempre "tudo é vão".

Não estima a medrosa desconfiança,nem o que quer juramentos em vez deolhares e mãos, tampouco a sabedoriadesconfiada demais porque tudo isto épróprio de almas covardes.

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Ainda mais baixo lhe parece oobsequioso, o cão que se deita depoisde costas, o humilde; e também hásabedoria humilde, piedosa eobsequiosa. Odeia e tem asco àqueleque nunca se quer defender, àquele queengole as salivas venenosas e osolhares de revés, ao pacientíssimo quetudo suporta e com tudo se contenta:porque isso é próprio da ralé servil.

Se há alguém que é servil ante osdeuses e os pés divinos ou ante oshomens e ante estúpidas opiniões dehomens, a todo esse servilismo cospena cara este bendito egoísmo.

Mau; assim chama a tudo o que é baixo,ruim e servil, aos olhos vesgos esubmissos, aos corações contritos eessas criaturas falsas e rasteiras quebeijam com lábios covardes.

E pseudo−sabedoria: chama assim àsinsulsas pretensões da gente servil, dosvelhos e dos aborrecidos, e sobretudo àabsurda loucura pedante dossacerdotes.

Os falsos sábios, todos os sacerdotes,os enfastiados do mundo, a gente dealma efeminada e servil, ó, como temconseguido o egoísmo com as suasmanhas! E propriamente devia servirtude e chamar−se virtude o perseguiro egoísmo!

E todos esses covardes, e todas essasaranhas, cansadas de viver, desejameximir−se com boas razões de apego àprópria pessoa!

Para todos eles, porém chega agora aluz, a espada da justiça, o GrandeMeio−dia: manifestar−se−ão aqui muitascoisas! E o que glorifica o eu e santificao egoísmo, esse, o adivinho, diz naverdade o que sabe: Vedes: vem aí,aproxima−se já o Grande Meio−dia!"

Assim falou Zaratustra.

Do Espírito do Pesadume

I

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"A minha boca é a do povo: falogrosseiro e singelamente demais paraos hipócritas. A minha palavra, porém,ainda parece mais estranha aosescrevinhadores.

A minha mão é uma mão de louco:pobres de todas as mesas e de todas asparedes e de quanto ofereça espaçopara rabiscos e borrões de louco!

O meu pé é casco de cavalo; com eletroto e galopo por montes e vales, de cápara lá, e, no transporte de toda acarreira rápida, sou da pele do diabo.

Meu estômago talvez seja estômago deáguia, pois a tudo prefere a carne decordeiro; mas certamente é estômagode ave.

Sustentado com coisas inocentes e compouco, pronto a voar e impaciente portomar o vôo: assim sou. De resto tenhoo quer que seja ave!

Eu sou como uma ave, sobretudo porser inimigo do espírito de pesadume:inimigo deveras mortal, inimigo jurado,inimigo inato! Aonde não voou já aminha inimizade!

A este respeito poderia entoar umcanto... e quero entoá−lo, conquantoesteja só numa casa vazia e tenha de ocantar aos meus próprios ouvidos.

Há também outros cantores que nãotêm a garganta expedita, a mãoeloqüente, expressivo o olhar e ocoração desperto, senão quando têm acasa cheia: não me pareço com eles.

II

Aquele que um dia ensinar os homens avoar, destruirá todas as barreiras; paraeles as próprias barreiras voarão pelosares; batizará novamente a terrachamando−lhe "a leve".

O avestruz corre mais depressa que omais veloz corcel; também enterra acabeça na pesada terra; assim é ohomem que ainda não sabe voar.

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A terra e a vida parecem−lhe pesadas, eé isso o que quer o espírito dopesadume! Aquele que, porém, desejeser leve como uma ave deve amar−se asi mesmo: assim predico eu.

Claro, não é amar−se com o amor dosenfermos e dos febricitantes; porqueneste até o amor próprio cheira mal.

É preciso aprender a amar−se a sipróprio com o amor são, para aprendera suportar−se a si mesmo e a nãorondar fora de si.

Tal renda chama−se "amor ao próximo";é com esta expressão que se temmentido e fingido mais, ,especialmentepor parte daqueles a quem todo omundo suporta dificilmente.

E não é um mandamento para hoje nemsequer para amanhã este de aprender aamar−se a si mesmo. É, pelo contrário,a mais sutil, a mais astuta, a última e amais paciente de todas as artes.

Que toda a propriedade está oculta parao seu possuidor, e de todos os tesouroso que mais tarde se descobre é o quevos pertence em propriedades: é esta aobra do espírito do pesadume. Quaseno berço ainda nos dotam de pesadaspalavras e pesados valores: "bem" e"mal" − assim se chama o patrimônio.Por causa dele nos desculpam viver.

E se os homens deixam aproximar de sias crianças é para impedir a tempo quese amem a si próprias: tal é a obra doespírito do pesadume.

E nós... arrastamos fielmente aquilocom que nos carregam, sobre durosombros e por áridos montes! Sesuamos, dizem−nos:

"É verdade: a vida é uma cargapesada!"

A única coisa pesada, porém, para ohomem levar é o próprio homem! E quearrasta aos ombros demasiadas coisasestranhas. Como o camelo, ajoelha−see deixa−se carregar bem.

Mormente o homem forte, resistente,cheio de veneração: esse carrega aos

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ombros demasiadas palavras e valoresestranhos e pesados; agora a vidaparece−lhe um deserto.

E, na realidade, muitas coisas que nossão próprias são também pesadas delevar!

E o interior do homem parece−me muitocom a ostra: repelente, viscosa e difícilde apanhar, de forma que uma nobreconcha de nobres adornos se vêobrigada a interceder pelo resto, mastambém se deve aprender essa arte:possuir casca, uma bela aparência euma sábia cegueira.

Também nos enganamos muito acercado homem, por haver muita casca pobree triste de excessiva grossura. Há muitaforça e bondade ocultas que jamais seadivinharam: os manjares maisesquisitos não encontram afeiçoados.

As mais delicadas mulheres o sabem:um pouco mais um pouco menos decarnes, varia muitos destinos!

O homem é difícil de descobrir, e aindamais para si mesmo; a inteligênciamente amiúde acerca do coração. Eis aobra do espírito do pesadume.

Mas aquele que diz: Este é o meu beme o meu mal, esse descobriu−se a simesmo. Com isso faz emudecer omíope e o anão que dizem: "Bem paratodos, mal para todos".

Em verdade, também me não agradamaqueles para quem todas as coisas sãoboas, e que chamam a este mundo omelhor dos mundos. Chamo−lhes"onisatisfeitos."

A facilidade de gostar de tudo não é dosmelhores gostos. Louvo as línguasdelicadas e os estômagos escrupulososque aprendem a dizer: "Eu" e "Sim" e"Não".

Mastigar e digerir tudo, porém... é fazercomo os suínos. Dizer sempre Sim, issosó os asnos e os da sua espécieaprendem.

O que meu gosto deseja é o amarelointenso e o roxo quente − mistura de

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sangue com todas as cores. Mas aqueleque caia de branco revela ter uma almacaiada de branco. Uns, enamorados demúsica, outros de fantasmas e todosigualmente inimigos da carne e dosangue: como são todos contrários aomeu gosto. Que a mim agrada−me osangue. Eu não quero estar onde toda agente escute, é este agora o meu gosto:preferia viver entre perjuros e ladrões.Ninguém tem ouro na boca.

Mas ainda me repugnam mais osengulidores de salivas; e ao animal maisrepugnante que tenho visto entre oshomens chamei−lhes de parasitas: nãoqueria amar e queria viver de amor.

Chamo desgraçados todos aqueles quesó podem escolher entre duas coisas:tornarem−se animais ferozes ou ferozesdomadores de animais; não queriaerguer a minha tenda ao seu lado.

Chamo desgraçados também aos quetêm de estar sempre à espera, são ocontrário de mim todos essesaduaneiros e tendeiros e reis e demaisguardiães de países e de lojas.

Eu também aprendi profundamente aesperar, mas a esperar−me a mim. Eaprendi sobretudo a ter−me de pé, aandar, a correr, a saltar, a trepar e abailar.

Que a minha doutrina é esta: o que queraprender a voar um dia, deve desdelogo aprender a ter−se de pé, a andar, acorrer, a saltar, a trepar e a bailar; nãose aprende a voar logo à primeira!

Com escadas de corda aprendi aescalar mais de uma janela; com pernaságeis trepei a elevados mastros. Nãome parecia pequena venturaencontrar−me no cimo dos altos mastrosdo conhecimento. oscilando como umalabaredazinha: uma luzinha tão só, masum grande consolo, todavia, para asembarcações encalhadas e para osnáufragos.

Cheguei à minha verdade por muitoscaminhos e de muitas maneiras; nãosubi por uma escada só à altura dondeos meus olhos olham ao longe.

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E nunca perguntei o caminho sem mecontrariar. – Sempre fui contrário a isso.– Sempre preferi interrogar e submeterà prova os próprios caminhos.

Provando e interrogando, foi assim quecaminhei, e naturalmente é misteraprender também a responder asemelhantes perguntas. Eis o meugosto: não é um gosto bom nem mau;mas é o meu gosto, e não precisoocultá−los nem dele me envergonhar.

"Este é agora o meu caminho; onde estáo vosso?" Era o que eu respondia aosque me perguntavam "o caminho". Queo caminho... o caminho não existe".

Assim falou Zaratustra.

Das Antigas e das Novas Tábuas

I

"Aqui aguardo sentado, rodeado deantigas tábuas quebradas, e também detábuas novas meio escritas. Quandochegará a minha hora? A hora do meudescimento, da minha declinação:porque eu quero voltar outra vez para olado dos homens.

Eis o que quero agora: hão de vir ossinais indicadores de que chegou aminha hora: o leão risonho com o bandode pombas.

Entretanto, como tenho tempo falocomigo mesmo. Ninguém me contacoisas novas; por conseguinte,narro−me eu a mim mesmo.

II

Quando vim para o lado dos homens,achei−os fortificados numa estranhapresunção: todos julgavam saber hámuito tempo o que é bem e mal para ohomem.

Toda a discussão sobre a virtude lhesparecia coisa velha e cansada, e o que

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queria dormir tranqüilamente até falavado "bem" e do "mal" antes de se irdeitar.

Eu sacudi o torpor desse sono quandoensinei: Ninguém sabe ainda o que é obem e o mal... a não ser o criador.

Só o que cria o fim dos homens e o quedá o sentido e futuro à terra, só essecria o bem e o mal de todas as coisas.

E eu ordenei−lhes que derribassem assuas antigas cátedras, e onde quer queexista essa estranha presunção,mandei−os rir dos seus grandes mestresde virtude, dos seus santos, dos seuspoetas e dos seus salvadores domundo.

Mandei−os rir dos seus sábios austeros,e punha−os em guarda contra os negrosespantalhos plantados na árvore davida.

Sentei−me à beira da sua grande rua desepulturas, até entre os abutres, e ri−mede todo o seu passado e do tristeesplendor desse passado ruinoso.

À semelhança dos pregadores dequaresma e dos loucos, fulmineianátemas contra as suas grandezas epequenezas. – Como é pequeno omelhor deles! E igualmente pequeno opior! − Assim me ria.

E freqüentemente o meu desejo melevou muito longe, mais além, para oalto, por entre riso; eu então voavaestremecendo como uma flecha atravésdos êxtases ébrios de sol: voava pararemotos futuros que nenhum sonho viu,para meios−dias mais cálidos dos quejamais pôde sonhar a fantasia − paraalém onde os deuses se envergonhamde todos os vestidos − para falar emparábolas e balbuciar e coxear como ospoetas, e, na verdade, envergonho−mede ser ainda poeta!

Voava aonde todo o acontecimento meparecia bailes e travessuras divinas, e omundo só e desenfreado refugiando−seem si mesmo; como um eterno fugir eprocurar muitos desses, como o benditocontradizer−se, rir−se e tornar a si demuitos deuses.

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Aonde todo o tempo me parecia umadeliciosa zombaria dos instantes, aondea necessidade era a mesma liberdade,que brincava satisfeita com o aguilhãodessa liberdade.

Aonde tornei a encontrar também o meuantigo demônio e inimigo inato, oespírito de pesadume e tudo o que elecriou: a coação, a lei, a necessidade, aconseqüência, o fim, a vontade, o bem eo mal. Pois não é necessário havercoisas sobre as quais se possa dançar epassear dançando? Não é necessárioque haja, por causa dos leves e dosmais leves, míopes e pesados anões?

III

Também além apanhei no meu caminhoa palavra "Super−homem" e estadoutrina: o homem é uma coisa quedeve ser superada; o homem há de seruna ponte, e não um fim: satisfeito doseu meio−dia e da sua tarde. A palavrade Zaratustra sobre o grande Meio−dia,suspendi aos ombros como um segundomanto de púrpura.

Fiz−lhes também ver novas estrelas enovas noites, e sobre as nuvens e o diae a noite estendi o riso como umverdadeiro tapete de variadas cores.

Ensinei−lhes todos os meuspensamentos e todas as minhasaspirações: a concentrar e a unir tudo oque no homem não é mais quefragmento e enigma e pavoroso azar.

Como poeta, como adivinho deenigmas, como redentor do azar,ensinei−os a serem criadores do futuroe a salvar criando tudo o que foi.

Salvar o passado no homem etransformar tudo "o que foi" até avontade de dizer: "Mas eu queria quefosse assim! Assim o hei de querer!"

Eis o que chamei a sua salvação; só aisso lhes ensinei a chamar salvação.

Agora espero a minha para voltar pelaúltima vez ao lado deles.

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Que mais uma vez quero voltar para olado dos homens: quero desaparecerentre eles, e oferecer−lhes, ao morrer, omais rico dos dons.

Eis o que aprendi do sol, desse opulentosol de inesgotável riqueza que, aopôr−se, derrama o Seu ouro pelo mar;por isso, até os mais pobres pescadoresremam com dourados remos! Vi istouma vez e, enquanto o via, as minhaslágrimas não se cansavam de correr...

À maneira do solo, quer desaparecertambém Zaratustra: Senta−se agoraaqui a esperar, rodeado de antigastábuas quebradas e de tábuas novas...meio escritas.

IV

Vede: tendes aqui uma nova tábua; masonde estão os meus irmãos para alevarem comigo ao Vale e aos coraçõesde carne?

Assim o exige o meu grande amor aosmais afastados: não Vejas pelo teupróximo! O homem é coisa que deve sersuperada.

Pode uma pessoa chegar a superar−sepor múltiplos meios e caminhos: isso écoisa tua. Só um jogral pensa: "Tambémse pode saltar por cima do homem".

Supera−te a ti mesmo, até no teupróximo, e não consintas te dêem umdireito que possas conquistar.

O que tu fazes ninguém te pode forçar afazer.

Fica sabendo: não há recompensa.

O que se não pode mandar a si mesmodeve obedecer.

E há quem saiba mandar, mas estejaainda muito longe de saber obedecer.

V

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Tal é a condição das almas nobres:nada querem ter gratuitamente, emenos que tudo, a vida.

O que forma parte da populaça querviver gratuitamente; mas nós, a quem avida se deu, pensamos sempre nomelhor que poderíamos dar em troca.

E na verdade é nobre a linguagem quediz: "O que a vida nos prometeu a nós,queremo−lo nos cumprir... à vida!"

Não se deve querer gozar onde se nãoé motivo de gozo. E... não se devequerer gozar!

Que o gozo e a inocência são as coisasmais pudicas: nenhuma delas quer serprocurada.

É preciso possuí−las; mas ainda valemais procurar a culpa e a dor.

VI

Meus irmãos, aquele que é uma primíciahá de ser sempre sacrificado; e nósagora somos primícias. Todossangramos no altar secreto dossacrifícios, todos ardemos e nosassamos em honra dos velhos ídolos.

O melhor de nós é ainda novo: excita ospaladares velhos. A nossa carne étenra, a nossa pele não é mais do queuma pele de cordeiro: como nãohavemos de tentar velhos sacerdotesidólatras?

Em nós mesmos respira ainda o velhosacerdote idólatra que se prepara paracelebrar um festim com o melhor quetemos.

Ai, meus irmãos! como não hão de seros precursores sacrificados!

Mas assim o quer a nossa condição, eeu amo os que se não queremconservar. Amo de todo o meu coraçãoos que desaparecem, porque passampara o outro lado.

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VII

Ser verídicos... poucos sabem! E o queo sabe não o quer ser! E, menos queninguém, os bons.

Os tais bons. Os homens bons nuncadizem a verdade: ser bom de talmaneira é uma enfermidade para oespírito.

Esses bons cedem, rendem−se. a suamemória repete como um eco e a suarazão obedece; não se ouve a simesma!

Tudo quanto os bons chamam maudevem reunir−se para nascer umaverdade. Ó, meus irmãos. Sois bastantemaus para essa verdade?

A audácia temerária, a prolongadadesconfiança, o cruel Não, a versão, aincisão no vivo... como é raro isto tudoreunir−se! De tais sementes nascetodavia... a verdade. Ao lado daconsciência réproba cresce todo o saberaté hoje Quebrai, quebrai as antigastábuas, vós que aspirais aoconhecimento!

VIII

Quando há madeiras estendidas sobre aágua, quando há pontes e parapeitospelo rio, não se dá crédito a ninguémque diga: "Tudo corre".

Pelo contrário: até os imbecis ocontradizem "Quê!", exclamam. "Tudocorre? Então as madeiras e osparapeitos que estão sobre o rio?"

"Por cima do rio tudo é sólido; todos osvalores das coisa, os conceitos, todo o"bem e mal", tudo isso é sólido.

E quando vem o cru inverno, o domadordos rios, os mais maliciosos aprendem adesconfiar, e não são só os imbecis quedizem então: "Não estaria tudo imóvel?""No fundo tudo permanece imóvel": eisum verdadeiro ensinamento do inverno,uma boa coisa para os tempos estéreis,um bom consolo para o sono invernal eos sedentários.

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"No fundo tudo permanece imóvel"; maso vento do degelo protesta contra estapalavra.

O vento do degelo, um vento que nãolavra, um touro furioso e destruidor quequebra o gelo, com hastes coléricas! Ogelo, por sua vez, quebra as pontes! O,meus irmãos! Não corre agora tudo!Não caíram à água todos os parapeitose todas as pontes! Quem esperariaainda o bem e o mal?

Ai de nós! Glória a nós! Sopra o ventodo degelo! Pregai isto por todas as ruas,meus irmãos.

IX

Há uma estranha loucura que se chamabem e mal. A roda dessa loucura girouaté hoje em torno dos adivinhos e dosastrólogos.

Noutro tempo cria−se nos adivinhos enos astrólogos, e por isso se cria: "Tudoé fatalidade: tu deves porque énecessário!"

Desconfiou−se depois de todos osadivinhos e de todos os astrólogos, epor isso se acreditou: "Tudo é liberdade:podes porque queres!"

Meus irmãos! Sobre as estrelas e sobreo futuro não se tem feito até hoje senãoconjecturar, sem se saber nunca; e porisso sobre o bem e o mal não se temfeito senão conjecturar, sem se sabernunca.

X

"Não roubarás! Não matarás!" Estaspalavras chamavam−se santas noutrotempo; perante elas dobrava a gente osjoelhos e a cabeça, e descalçava−se.

Eu pergunto−vos, porém: onde houvejamais no mundo melhores salteadorese assassinos que estas santaspalavras? Não há na mesma vida rouboe assassínio? E ao santificar estaspalavras, não se assassinou a própria

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verdade?

Ou seria predicar a morte, santificartudo o que contradizia edesaconselhava a vida? Meus irmãos!Quebrai−me as antigas tábuas.

XI

Compadeço−me do passado inteiroquando vejo o seu abandono à mercêdo arbítrio, das disposições, dosdesvarios de cada geração que chega eolha tudo o que existiu como ponto de simesma. Poderia vir um grande déspota,um gênio maléfico que violentassearbitrariamente todo o passado, atéchegar a ser para ele uma ponte, umprognóstico, um arauto e um canto degalo.

Mas eis aqui o outro perigo e a minhaoutra compaixão: os pensamentos doque forma parte da populaçãoremontam até o avô: mas com o avôacaba o tempo.

Por isso todo o passado fica aoabandono: porque um dia poderiasuceder a populaça tornar−se senhor, etodo o tempo se afogasse em águassuperficiais.

Por isso, meus irmãos, é preciso umanova nobreza adversária de toda apopulaça e de todo o despotismo, e queescreva novamente, em novas tábuas, apalavra "nobre". Que são necessáriosmuitos nobres para haver nobreza! Oucomo em tempo disse uma parábola: "Adivindade consiste precisamente emhaver deuses mas não Deus!"

XII

Meus irmãos! Ao ensinar−vos quedeveis ser para mim criadores eeducadores – semeadores do futuro −,invisto−vos de uma nova nobreza; não éna verdade, nobreza que possaiscomprar como bufarinheiros, porquetudo quanto tem preço pouco valor tem.

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O que vos honrará para o futuro nãoserá a origem donde vindes, mas otempo para onde ides! A vossa vontadee o vosso passo que querem ir maislonge do que vós: cifre−se nisto a vossanova honra!

Não em terdes servido um príncipe –que importam já os príncipes! – ou emvos terdes tornado muralha do existentepara este mais sólido.

Não em ter−se a vossa linhagem feitocortesã na corte, e me terdes aprendidocomo o flamengo, a estar durantelongas horas à beira do lago: porquesaber estar de pé é um mérito noscortesãos; e todos os cortesãos julgamque ter a autorização de se sentar fazparte da felicidade depois da morte.

Nem tampouco em que um espírito aque chamam santo conduziu os vossosascendentes a terras prometidas, queeu não elogio; porque no país ondebrotou a pior das árvores − a cruz −nada há a elogiar!

E na verdade, onde quer que esse"Espírito Santo" conduza os Seuscavaleiros, tais cortejos são Sempre...precedidos de cabras, gansos, loucos etresloucados.

Ó! Meus irmãos! Não é para trás que avossa nobreza deve olhar, mas para afrente! Deveis ser expulsos de todas aspátrias e de todos os países dos vossosascendentes.

Deveis amar o país dos vossos filhos:seja este amor a vossa nobreza; o paísinexplorado no meio de longínquosmares; é isto que eu digo às vossasvelas que procurem e tornem aprocurar!

Deveis redimir−vos em vossos filhos deserdes filhos de vossos pais: assimlibertareis o passado todo! Ponho porcima de vós esta nova tábua.

XIII

"Para que viver? Tudo é vão! Viver... étrilhar palha; viver... é queimar−se sem

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se chegar a aquecer."

Estas velhas cantilenas passam aindapor "sabedoria": são estranhas,transcendem a ranço; por isso são maishonradas. Também a podridãoenobrece.

Crianças é que podiam falar assimporque temem o fogo que já osqueimou. Há muita puerilidade nosantigos livros da sabedoria.

E o que trilha palha, como teria o direitode zombar quando se trilha o trigo?

Seria preciso amordaçar tais loucos!

Estes sentam−se à mesa sem levarnada, nem sequer um bom apetite, eagora blasfemam: "Tudo é vão!"

Mas comer e beber bem, meus irmãos,não é na verdade uma arte vã. Quebrai,quebrai−me as tábuas dos eternamentedescontentes!

XIV

"Para os puros tudo é puro", assimfalava o povo. − Mas eu vos digo: paraos porcos tudo é porco!

Por isso os fanáticos e os que curvam acerviz, que também têm coraçãoinclinado, predicam desta forma: "Opróprio mundo é um monstrolamacento!"

Porque todos esses têm o espírito sujo,especialmente os que se não dão paznem sossego enquanto não vêem omundo por detrás: são os crentes nomundo posterior! A esses lhes digo euna cara, conquanto não soe muito bem:o mundo parece−se com o homem porter também traseiro: isto é grandeverdade!

Há no mundo lama demais: isto égrande verdade! Mas nem por isso omundo é um monstro lamacento!

É sensato haver no mundo muitascoisas que cheirem mal: o próprio ascocria asas e forças que pressentem

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mananciais!

Até nos melhores há qualquer coisarepugnante, até o melhor é coisa que sedeve superar!

Ó! Meus irmãos! E sensato haver muitalama no mundo!

XV

Tenho ouvido piedosos crentes emalém−mundos dizerem à suaconsciência palavras como estas, e deverdade, sem malícia nem zombaria,embora na terra nada haja mais falsonem pior:

"Deixai o mundo ser mundo. Nãomovais sequer um dedo contra ele!"

"Deixai as pessoas estrangularem−se;transpassarem−se e pulverizarem−se;não movais sequer um dedo contra isso.Assim aprenderão a renunciar aomundo."

"E deveria abater e estrangular a suaprópria razão, porque essa razão édeste mundo; dessa maneiraaprenderás tu mesmo a renunciar aomundo."

Quebrai, quebrai, meus irmãos essasvelhas tábuas dos devotos Aniquilai aspalavras dos caluniadores do mundo!

XVI

"Aquele que aprende muito esquecetodos os desejos violentos." Assim semurmura hoje em todas as ruasescuras. "A sabedoria fatiga; nada valea pena.. não devo cobiçar." Tambémencontrei está nova tábua suspensa naspraças públicas.

Quebrai, meus irmãos, quebrai tambémessa nova tábua! Penduraram−na osenfastiados do mundo, os predicadoresda morte e os carcereiros: porque ela étambém um apelo ao servilismo. Elestêm aprendido mal, e não as coisasmelhores, e tudo cedo e muito

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depressa; comeram mal erevolveu−se−lhes o estômago: que umestômago revolto é esse espírito queaconselha a morte! Porque o espírito,meus irmãos, é verdadeiramente umestômago.

A vida é uma fonte de alegria! Mas paraaquele que deixa falar o estômagosobrecarregado a da tristeza, todas asfontes estão envenenadas.

Conhecer é um gozo para quem temvontade de leão.

Mas o que se fatigou é tão somente"querido"; todas as ondas brincam comele.

E assim fazem todos os fracos:perdem−se no caminho. E o seucansaço acaba por perguntar a simesmo: "Por que seguimos estecaminho? Tudo é igual!"

É a eles que agrada ouvir pregar: "Nadavale a pena! Não deveis querer!" Masisso, todavia, é um apelo ao servilismo.

Ó! Meus irmãos! Zaratustra chega comouma rajada de vento fresco para todosos que estão cansados do seu caminho;ainda há de fazer espirrar muitosnarizes!

O meu hálito livre sopra através dasparedes, penetrando nas prisões e nosespíritos presos!

A vontade liberta, porque a liberdade écriadora: assim ensino eu.

E só para criar precisai aprender!

E só de mim necessitais aprender; aaprender, aprender bem. Quem tiverouvidos que ouça.

XVII

A barca está pronta; voga ali, além,talvez para o grande nada.

Quem quererá, porém, embarcar paraesse "talvez?"

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Nenhum de vós quer embarcar na barcada morte? Como quereis então estarcansado do mundo!

Cansados do mundo! E nem sequerestais desprendidos da terra! Eu semprevos vi desejosos da terra, enamoradosdo vosso próprio cansaço da terra!

Não é em vão que tendes o lábiodescaído: ainda nele pesa um desejoterrestre! E em vosso olhar não flutuauma nuvem de alegria terrestre queainda não esqueceste?

Há na terra muitas boas invenções,umas úteis, outras agradáveis; por issoé preciso amar a terra.

E algumas invenções são tão boas que,como o seio da mulher, são úteis eagradáveis ao mesmo tempo.

A vós, porém, fatigados do mundo epreguiçosos, é preciso sacudir−vos comvergastas! É necessário aligeirar−vos aspernas com vergastadas!

Que, se não sois enfermos e seresgatos, de quem a terra está fatigada,sois preguiçosos ladinos ou gatosgulosos e casmurros que só buscam oseu prazer.

E se não quereis tornar a correralegremente o melhor édesaparecerdes.

Não há que ter empenho em ser médicodos incuráveis; assim ensina Zaratustra.Desaparecei, pois!

É necessário, porém, mais valor pararematar do que para fazer um versonovo: isto sabem−no todos os médicose todos os poetas.

XVIII

Meus irmãos! Há tábuas criadas pelafadiga e tábuas criadas pela preguiça:conquanto falem de igual modo, queremser ouvidas de maneira diferente.

Vede esse prostrado! Falta−lhe apenasum passo para chegar ao fim; mas, por

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causa da fadiga, o valente caiu irritadona areia.

Simplesmente rendido boceja à vista docaminho, da terra, do seu fim e de simesmo: não quer dar mais um passo, ovalente!

O sol agora derrete−o, e os cãesquereriam lamber−lhe o suor; mas paraali está caído pertinazmente e prefereconsumir−se.

Consumir−se a um passo do seu fim! Asemelhante herói o melhor é erguê−lopelos cabelos até a sua reação! Maisvale, em verdade, que o deixeis ondecaiu até que lhe venha o sono, o sonoconsolador, com um rumor de chuvarefrigerante.

Deixai−o deitado até despertar; até querepila todo o cansaço e tudo o que neledemonstrava cansaço.

O que haveis de fazer, meus irmãos, éafastar dele os cães, os preguiçososcasmurros e toda essa praga invasora.

Toda a praga invasora da gente"ilustrada" que se alimenta do suor dosheróis!

XIX

Eu traço em torno de mim círculos esantas fronteiras: cada vez são menosos que sobem comigo por montanhasmais elevadas; eu levanto uma cadeiade montes cada vez mais santos.

Mas onde quer que desejeis subircomigo, meus irmãos, olhai que nãohaja parasitas que subam convosco!

Um parasita é um verme rasteiro einsinuante que quer engordar com todasas vossas intimidades enfermas eferidas.

É esta a sua arte; adivinhar onde estão,fatigadas, as almas que sobem. Navossa aflição, no vossodescontentamento, no vosso frágil pudorconstrói o seu repugnante ninho.

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Onde o forte é débil, onde o nobre édemasiado indulgente, é ali que constróio seu repugnante ninho; o parasitahabita onde o grande tem recantosdoentes.

Qual é espécie de seres mais elevada, equal a mais baixa?

O parasita é a espécie mais baixa, maso da espécie mais alta é o que alimentamais parasitas.

Como não há de a alma, que tem aescala mais vasta descer mais baixo,transportar sobre si o maior número deparasitas?

A alma mais vasta que pode correr,extraviar−se e errar mais longe em simesma; a mais necessária, que porprazer se precipita no azar.

A alma que é e se submerge nacorrente do há de ser; a alma quepossui e quer o querer e o desejo.

A alma que foge de si mesma, e que sealcança a si mesma no mais amplocírculo; a alma mais Sensata a quem aloucura convida mais docemente.

A alma que ama mais a si mesma, naqual todas as coisas têm a suaascensão e a sua descensão, o Seufluxo e o seu refluxo... O! como nãohavia a alma mais alta de ter os pioresparasitas?

XX

Ó! Meus irmãos! Acaso serei cruel? Maseu vos digo: ao que é ainda misterempurra−lo! Tudo o que é de hoje cai ese desconcerta: quem, pois, o quereriadeter? Eu, pela minha parte, aindaquero empurrá−lo.

Conheceis a voluptuosidade queprecipita as pedras em profundidades'?Vede os homens de hoje: olhai comorondam pelas minhas profundidades!

Eu sou um prelúdio para melhorestangedores, meus irmãos! Um exemplo!Procedei segundo meu exemplo!

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E a quem não ensinardes a voar,ensinai−lhe... a cair mais depressa!

XXI

Agradam−me os valentes; não basta,contudo, saber manejar bem umaespada; é preciso saber também aquem se fere!

Muitas vezes é mais valentia em seabster e em passar adiante, a fim de sereservar para um inimigo mais digno.

Vós deveis ter somente inimigos dignosde ódio, mas não inimigos dignos dedesprezo: é mister estardes orgulhososdo vosso inimigo; já uma vez vo−loensinei. E mister reservardes−vos parao inimigo mais digno, meus amigos: porisso há muitos adiante dos quais deveispassar; sobretudo ante a canalhanumerosa que vos apedreja os ouvidos,falando−vos do povo e das nações.Livrai os vossos olhos do seu "pró" e doseu "contra"! Há ali muita justiça einjustiça: ver tal coisa revolta.

Vê−la é investir, é tudo a mesma coisa.Ide−vos, pois, ao bosque e dai paz àvossa espada!

Segui os vossos caminhos! E deixai ospovos e nações seguir os seus!Caminhos escuros na verdade, onde jánão brilha nenhuma esperança.

Reine o bufarinheiro onde tudo quantobrilha é só ouro de bufarinheiro! Já nãoé tempo de reis: o que hoje se chamapovo merece rei. Senão, olhai como asnações imitam agora os bufarinheiros:aproveitam as menores utilidades emtodas as varreduras.

Espiam−se, espreitam−se; é a isso quechamam "boa vizinhança". Ditosostempos aqueles em que um povo dizia:"Sobre nações quero eu fazer−mesenhor!"

Que, meus irmãos, o melhor devereinar, o melhor quer também reinar. Eonde se ouve outra doutrina, é que faltao melhor.

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XXII

Se estes tivessem o pão de graça atrásde quem andariam a gritar? Em que seocupariam a gritar? Em que seocupariam se não fosse a subsistência?E é necessário terem vida rigorosa!

São animais rapaces: no seu "trabalho"há também roubo; nos seus "lucros"...há também astúcia. Por isso devem tervida rigorosa. Devem, pois, tornar−semelhores animais rapaces, mais finos eastutos, animais mais semelhantes aohomem porque é o melhor animalrapace.

O homem arrebatou já as suas virtudesa todos os animais; por isso, de todosos animais é o homem que tem tido vidamais dura.

Só as aves estão acima dele. E se ohomem aprendesse também a voar, ó! aque altura voaria sua rapacidade!

XXIII

Eis como quero o homem e mulher: um,apto para a guerra. outra, apta para darà luz; mas os dois aptos para dançarcom cabeças e pernas.

E que todo o dia em que se não hajadançado, pelo menos uma vez, sejapara nós perdido! E toda a verdade quenão traga ao menos um riso nos pareçaverdade falsa.

XXIV

Quando à maneira por que "atais" osvossos matrimônios, cuidai não seja ummau nó.

Ataste com demasiada pressa? Poisdisso se segue um rompimento, umadultério.

E ainda vale mais romper o vínculo doque sujeitar−se e mentir'. Eis o que medisse uma mulher "É verdade que

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quebrei os laços do matrimônio, mas oslaços do matrimônio tinham−mequebrado a mim".

Sempre vi os mal−avindos sedentos dapior vingança: vingam−se em toda agente de não poderem já andarseparados.

Por isso quero que os que estão de boafé digam: "Nós não nos amamos:procuremos conservar o afeto!" Ouentão: "Seria a nossa promessa umequívoco?"

"Dai−nos um prazo, uma breve uniãopara vermos se somos capazes de umalonga união! Grave coisa é ser sempredois!"

Assim aconselho a todos que estio deboa fé; e a que se reduziria o meu amorao Super−homem e a tudo o que devevir, se aconselhasse e falasse doutromodo?

E não só vos deveis multiplicar, maselevar. Ó! Meus irmãos, ajude−vos nissoo jardim do matrimônio!

XXV

Aquele que conhece a fundo as antigasorigens acabará por procurar as fontesdo futuro e novas origens.

Meus irmãos, já não passará muitotempo sem novos mananciais soaremem novas profundidades.

Que o terremoto funda muitas fontes ecria muita sede; eleva também à luzforças interiores e secretas.

O tremor de terra revela mananciais. Docataclismo dos povos antigos surgemmananciais novos. E se alguémexclama: "Olhai: aqui tendes uma fontepara muitos sedentos, um coração paramuitos desmaiados, uma vontade paramuitos instrumentos", em torno dessealguém se reúne o povo, quer dizer,muitos homens que tentam a prova.

O que ali se ensaia é quem sabemandar e quem deve obedecer.

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A sociedade humana é uma tentativa,eis o que eu ensino: uma longainvestigação; mas procura o que mando.

"Uma tentativa, meus irmãos, e não umcontrato. Rompei com tais palavras doscorações covardes e dos amigos decomposições!

XXVI

Ó! Meus irmãos! Em que se encontra omaior perigo do futuro humano? Não énos bons e justos? Nos que dizem esentem no seu coração: "Nós sabemosjá o que é bom e justo, e possuimo−lo:desgraçados dos que ainda queremprocurar aqui!"

E por muito mal que os maus possamfazer, o que fazem os bons é o maisnocivo de tudo!

E por muito mal que os caluniadores domundo possam fazer, o que fazem osbons é o mais nocivo de tudo!

Meus irmãos, alguém olhou uma vez ocoração dos bons e dos justos e disse:"São os fariseus". Ninguém, porém, oentendeu.

Os bons e os justos mesmos não odeviam compreender: o espírito deles éum prisioneiro da sua consciência.

A verdade, porém, é esta: éforçoso osbons serem fariseus, não têm escolha!

É forçoso os bons crucificarem o queinventa a sua própria virtude! E esta averdade!

Outro que descobriu o seu país − opaís, o coração, e o terreno dos bons edos justos − foi aquele que perguntou:"A quem odeiam mais?"

O criador é quem eles mais odeiam:aquele que quebrar tábuas e estranhosvalores, ao destruidor, a esse é quechamam criminosos

Que os bons... no podem criar: sãosempre o princípio do fim.

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Crucificaram aquele que escreve novosvalores em tábuas novas; sacrificampara si o futuro; crucificam o futurointeiro dos homens! Os bons sempre oprincípio do fim.

XXVII

Meus irmãos, compreendestes tambémestas palavras, e o que disse um dia o"último homem?".

Em quem se encontram os maioresperigos para o futuro dos homens? Nãonos bens e nos justos?

Acabai, acabai com os bons e os justos!Meus irmãos, compreendestes tambémesta palavra?

XXVIII

Fugis de mim? Assustai−vos? Tremeisante esta palavra?

Meus irmãos, enquanto vos não disseque acabásseis com os bons e com astábuas dos bons, não embarquei ohomem no seu alto−mar.

Só agora é que lhe sobrevem ograndeterror, o grande olhar inquieto, a grandeenfermidade, a grande náusea, ogrande enjôo.

Os bons ensinaram−vos coisasenganadoras e falsas seguranças:tínheis nascido entre as mentiras dosbons e havíeis−vos refugiado nelas.

Os bons falsearam e desnaturalizaramradicalmente as coisas.

Mas o que descobriu o país "homem"descobriu ao mesmo tempo o país"futuro dos homens". Agora deveis serpara mim corajosos e pacientesmarinheiros! Caminhai direitos a tempo,meus irmãos! Aprendei a caminhardireitos! O mar está agitado; há muitosque necessitam de vós para seencaminharem.

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O mar brama: tudo está no mar! Eia!Avante, velhos corações de marinheiros!

Que importa a pátria? Nós queremosgovernar lá em baixo onde está o paísde nossos filhos! Além, ao longo, maisfogoso do que o mar, se desencadeia onosso grande desejo.

XXIX

"Por que serei tão duro?", disse um diao diamante ao carvão comum. "Nãosomos próximos parentes?"

Por que sois tão brandos? Porventura,não sois meus irmãos?

Por que sois tão brandos, tãopegajosos, tão frouxos? Por que hátanta renúncia, tanta abdicação emvossos corações? Tão pouco alvo novosso olhar?

E se não quereis ser destinos, Se nãoquereis ser inexoráveis, Como poderíeisum dia vencer comigo?

E se a nossa dureza não quer cintilar ecortar e sachar, como poderíeis um diacriar comigo?

Que os criadores são duros.

E deve−nos parecer beatitude imprimir avossa mão em séculos como cerabranda, e escrever sobre a vontade demilenários como sobre bronze − maisduros que o bronze, mais nobres que obronze. − E o mais duro é mais nobre.

Meus irmãos, eu coloco sobre vós estanova tábua: Fazei−vos duros!

XXX

Ó! Tu, vontade, necessidade minha,trégua de toda a miséria! Livra−me detodas as pequenas vitórias!

Azar da minha alma a que chamodestino! 'Tu que estás em mim e sobremim, livra−me e reserva−me para umgrande destino!

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E tu, última grandeza, vontade minha,conserva−a para um fim, para que sejasimplacável na tua vitória! Ai! Quem nãosucumbirá à tua vitória?

Ai! Que olhos se não têm turvado nessaembriaguez de crepúsculo? Que pé nãotem tropeçado e perdido a sua firmezana vitória?

A fim de estar preparado e maduroquando chegar o Grande Meio−dia,preparado e maduro como o bronzereluzente, como a nuvem cheia derelâmpagos e o seio cheio de leite.

Preparado para mim mesmo e paraminha vontade mais oculta: um arcoanelante da sua flecha, uma flechaanelante de sua estrela.

Uma estrela preparada e madura no seumeio−dia, ardente e trespassada,satisfeita da flecha celeste que a destrói.

Sol e implacável vontade de sol, prontaa destruir na vitória.

Ó! Vontade, necessidade minha, tréguade toda a miséria! Reserva−me parauma grande vitória".

Assim falou Zaratustra.

O Convalescente

I

Uma manhã, pouco tempo depois doregresso à sua caverna, Zaratustrasaltou do leito como um louco: começoua gritar com voz terrível, gesticulandocomo se alguma pessoa deitada aindase não quisesse levantar; e a voz deZaratustra troava em termos tais, que osseus animais se lhe aproximaramespantados e de todos os esconderijospróximos da caverna de Zaratustratodos os animais fugiram, voando,revoando, arrastando−se e saltando,consoante tinham patas ou asas.Zaratustra, porém, pronunciou estaspalavras:

"Sobe, pensamento vertiginoso, sai daminha profundidade! Eu sou o teu galo e

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o teu crepúsculo matutino, adormecidoverme! Levanta−te! A minha vozacabará por te despertar!

Escuta! Que eu quero ouvir−te!Levanta−te!

Varre dos teus olhos o sono e tudo oque é míope e cego. Escuta−metambém com os teus olhos: a minha vozé um remédio até para os cegos denascença.

E quando chegares a acordar, acordadoficarás eternamente. Eu não costumodespertar dorminhocos para que tornema adormecer. Moves−te, eespreguiças−te? Levanta−te! Hás de mefalar! É Zaratustra que te chama,Zaratustra o ímpio!

Eu, Zaratustra, o afirmador da vida, oafirmador da dor, o afirmador do círculo,chamo−te a ti. o mais profundo dosmeus pensamentos!

Ditoso de mim! Vens... ouço−te. O meuabismo fala. Tornei à luza minha últimaprofundidade.

Ditoso de mim! Vem! Dá−me a mão!...Deixa! Ah! Ah!... Horror! Horror!... Infelizde mim!

II

Ditas estas palavras, Zaratustra caiu nochão como morto e assim permaneceulongo tempo. Ao tornar a si estavapálido e trêmulo, e continuou caído, semquerer comer nem beber durante muitotempo. Durou isto sete dias; seusanimais, porém, não o abandonaramnem de dia nem de noite, a não serquando a águia percorria os ares embusca de alimento; e a ave depositavano leito d Zaratustra tudo o queencontrava e conseguia apanhar: assimZaratustra acabou por estar deitadoentre bagas amarelas e vermelhas,raízes, maçãs, ervas aromáticas epinhas. A seus pés, contudo, estavamestendidas duas ovelhas que a águiaroubara afanosamente aos seuspastores.

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Ao fim de sete dias, Zaratustrareanimou−se, pegou uma pinha, pôs−sea cheirá−la e agradou−lhe o cheiro.Então os animais julgaram chegado omomento de lhe falar.

"Zaratustra", disseram eles, "já há setedias que estás aí estendido com osolhos pesados; não queres, enfim,pôr−te de pé?

Sai da caverna; o mundo aguarda−tecomo um vergel. O vento brinca com osfortes perfumes que querem vir ao teuencontro, e todos os regatos quereriamcorrer atrás de ti.

Por ti suspiram todas as coisas, aoverem que ficaste sozinho durante setedias. Sai da caverna! Todas as coisasquerem ser teus médicos.

Surpreendeu−te alguma nova certeza,amarga e pesada? Caíste aí como umamassa que fermenta; a tua alma cresciae transbordava por todos os lados".

"Animais meus", respondeu Zaratustra,"prossegui falando assim e deixai−meescutar. A vossa palestra reanima−me:onde se fala, o mundo parece dilatar−seante mim como um jardim.

Como é agradável ouvir palavras esons! Não serão as palavras e os sonsos arco−íris e as pontes ilusórias entreas coisas eternamente separadas?

A cada alma pertence um mundodiferente; para cada alma, toda outraalma é um além−mundo.

Entre as coisas mais semelhantes éonde é mais bela a ilusão: porque ésobre o abismo pequeno que se tornadifícil lançar uma ponte. Para mim...como poderia haver qualquer coisa forade mim? Não há exterior! Todos ossons, porém, nos fazem esquecer isso.Como é agradável podermos esquecer!

Não foram os nomes e os sons dadosàs coisas para o homem se recrear comelas? Falar é uma bela loucura: falando,baila o homem sobre todas as coisas.

Como toda a palavra é doce! Comoparecem doces todas as mentiras dos

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sons! Os sons fazem bailar o nossoamor em variado arco−íris". Então osanimais disseram: Zaratustra, para osque pensam como nós, todas as coisasbailam; vão, dão−se as mãos, riem,fogem... e tornam.

Tudo vai, tudo torna; a roda daexistência gira eternamente. Tudomorre; tudo torna florescer; corremeternamente as estações da existência.

Tudo se destrói, tudo se reconstrói,eternamente se edifica a mesma casada existência. Tudo se separa, tudo sesaúda outra vez; o anel da existênciaconserva−se eternamente fiel a simesmo.

A todos os momentos a existênciaprincipia; em torno de cada aqui, gira abola acolá. O Centro está em toda aparte. A senda da eternidade étortuosa".

"Ah! astutos orgãozinhos!", respondeuZaratustra tornando a sorrir. "Comosabíeis bem o que se devia cumprir emsete dias!

E como aquele monstro se meintroduziu na garganta a fim de meafogar! Mas de uma dentada cortei−lhea cabeça e cuspi−a para longe de mim!

E vós já tínheis tirado disto umestribilho! Eu, contudo, estou aquiestendido, fatigado de ter mordido ecuspido, ainda doente da minha próprialibertação.

E vós fostes espectadores de tudo isto!Ó, animais meus! Também vós soiscruéis?

Quisestes contemplar a minha grandedor, como fazem os homens? Que ohomem é o mais cruel de todos osanimais.

Até agora, como se tem sentido maissatisfeito na terra, é assistindo atragédias, a lides de touros e acrucificações; e quando inventou oinferno, foi esse o seu céu na terra.Quando o grande homem clama, logoacorre o pequeno com a línguapendente de ânsia.

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A isto, porém, chama ele a sua"compaixão".

Vede o homem pequeno, especialmenteo poeta... O ardor com que as suaspalavras acusam a vida! Escutai−o, masnão vos esqueçais de ouvir o prazer quehá em toda a acusação.

A estes acusadores da vida deixa a vidaatados num abrir e fechar de olhos.

"Amas−me?", diz a impertinente.

Espera um bocado, ainda não tenhotempo para ti".

O homem é o animal mais: cruel para simesmo; e sempre que ouvirdes alguémchamar−se "pecador ou penitente", oufalar da "sua cruz , não vos esqueçaisde ouvir a voluptuosidade que respiramessas queixas e essas acusações.

E até eu... acaso quererei ser com istoacusador do homem? Ai, animais meus!O maior mal é necessário para o maiorbem do homem; é a única coisa que atéagora tenho aprendido.

O maior mal e a melhor força dohomem, a pedra mais dura para o maisalto criador; é mister que o homem setorne melhor e mais mau. Eu não só nãome vi cravado nesta cruz − saber que ohomem é mau − mas também griteicomo ninguém gritou ainda:

"Ah, como é pequeno o pior dele! Ah,como é pequeno o melhor dele".

O que me afogava e se me atravessavana garganta era grande tédio dohomem; e também o que predissera oadivinho: "Tudo é igual; nada merece apena; o saber asfixia".

Na minha frente arrastava−se um longocrepúsculo, uma mortal tristeza ébria efatigada que falava bocejando.

"O homem de que estás enfastiadotorna eternamente o homem pequeno."Assim bocejava a minha tristeza,arrastando os pés sem poderadormecer.

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A terra humana transformava−se paramim em caverna; o meu peitofundia−se; tudo quanto vivia era paramim podridão, ossos humanos epassado ruinoso.

Os meus suspiros repousavam emtodas as sepulturas humanas, e nãopodiam tornar a erguer−se; Os meussuspiros e as minhas perguntasgemiam, afogavam−se, consumiam−see lamentavam−se noite e dia.

"Ai, o homem torna eternamente! Ohomem pequeno torna eternamente!"

Noutro tempo vi−os nus, o maior e omenor dos homens; demasiadoparecidos um com o outro!... Demasiadohumanos; mesmo o maior!

É demasiado pequeno o maior! Era esteo meu tédio pelo homem! E o eternoregresso, e ainda do menor! Isso entãoera tédio da minha existência inteira!

"Ai! tédio! tédio! tédio!" Assim falouZaratustra, suspirando e estremecendo,porque se lembrava da sua doença. Osseus animais, porém, não o deixaramprosseguir.

"Não fales mais, convalescente!"responderam−lhe. "Sai daqui; vem paraonde o mundo te espera como umvergel.

Ainda para o lado das roseiras, dasabelhas e dos bandos de pombas! Eespecialmente para o lado das avescantoras, para lhes aprenderes o canto!

Que o canto é o que convém aconvalescentes: diga−o aquele que fruiusaúde. E se o que fruiu saúde quercantos, hão de ser diferentes dos doconvalescente".

"Ah, astutos orgãozinhos, calai−vos!",respondeu Zaratustra, rindo−se dosseus animais. "Como conheceis bem oconsolo que inventei em sete dias!

Ter de cantar de novo: é este o consoloque inventei para mim; eis a minha cura.Também quereis tirar disto umestribilho?"

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"Cessa de falar", tornaram os animais."Prepara uma lira, convalescente, umalira nova!

Olha, Zaratustra, para os teus novoscantos é preciso uma lira nova.

Canta e distrai−te, Zaratustra; cura a tuaalma com cantos novos, para poderessustentar o teu grande destino, queainda não foi destino de ninguém.

Que os teus animais bem sabem quemés, Zaratustra, e o que deves chegar aser: tu és o mestre do eterno regressodas coisas, é este agora o teu destino!

Que tu hás de ser o primeiro a ensinaresta doutrina: como não há de ser essegrande destino também o teu maiorperigo e a tua enfermidade!?

Olha, nós sabemos o que ensinas: quetodas as coisas voltam eternamente enós com elas: que nós temos já existidouma infinidade de vezes, e todas ascoisas conosco.

Ensinas que há um grande ano doacontecer (do sobrevir), um anomonstruoso que, à semelhança de umrelógio de areia, tem sempre de sevoltar novamente para correr e seesvaziar outra vez.

De forma que todos esses grandes anossão iguais a si mesmos, em pontogrande e pequeno; de forma que nósem todo o grande ano somos iguais anós mesmos, em ponto grande epequeno.

E se tu agora quisesses morrer,Zaratustra, também sabemos comofalarias a ti mesmo; mas os teus animaiste suplicam não morras ainda. Falariassem tremer, e antes respirarias alegria,porque tu, o mais paciente, te veriaslivre de um grande peso.

"Agora morro e desapareço", dirias, "edaqui a um instante já nada serei. Asalmas são tão mortais como os corpos.

O nó das causas em que me encontroenlaçado torna... tornara a criar−me!

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Eu próprio formo parte das causas doeterno regresso das coisas.

Regressarei como este sol, como estaterra, como esta águia. com estaserpente, não para urna vida nova oupara uma vida melhor ou análoga.

Tornarei eternamente para esta mesmavida, igual em ponto grande e tambémem pequeno. para ensinar outra vez oeterno regresso das coisas, para repetirmais uma vez as palavras do grandemeio−dia, da terra e dos homens, afimde instruir novamente os homens sobreo Super−homem.

Disse a minha palavra, e por elasucumbo.

Assim o quer o meu destino eterno:desapareço como anunciador!

Chegou a hora: a hora em que o quedesaparece se abençoa a si mesmo.

Assim... acaba "o caso de Zaratustra".

Depois de pronunciarem estas palavras,os animais calaram−se. esperando queZaratustra dissesse alguma coisa, masZaratustra não deu por isso. Estavadeitado tranqüilamente, com os olhoscerrados, e como se dormisse; mas nãodormia: conversava com sua alma.

Vendo−o tão silencioso, a águia e aserpente respeitaram o grande silêncioque o rodeava, e retiraram−se comprecaução.

Do Grande Anelo

"Alma minha, ensinei−te a dizer "hoje",como "um dia" e "noutro tempo e apassar dançando por cima de tudo aqui,acolá e além.

Alma minha, livrei−te de todos osrecantos; afastei de ti o pó as aranhas ea obscuridade.

Alma minha, lavei−te do mesquinhopudor e da virtude meticulosa, ehabituei−te a estar nua ante os olhos dosol.

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Com a tempestade que se chama"espírito" soprei sobre o teu mar revoltoe expulsei dele todas as nuvens e atéestrangulei o estrangulador que sechama "pecado".

Alma minha, dei−te o direito de dizer"não" como a tempestade, e de dizersim como o céu límpido: agora estásserena como a luz e passas através dastempestade.

Alma minha, restitui−te a liberdadesobre o que está criado e por criar; equem como tu conhece avoluptuosidade do futuro?

Alma minha, ensinei−te o desprezo quenão vem como o caruncho, o grandedesprezo amante que onde ma isdespreza mais ama.

Alma minha, ensinei−te a persuadir detal modo, que as próprias coisas serendem a ti tal como o sol que persuadeo próprio mar a erguer−se à sua altura.

Alma minha, afastei de ti toda aobediência, toda a genuflexão e todo oservilismo; eu mesmo te dei o nome de"trégua de misérias" e de "destino".

Alma minha, dei−te nomes novos evistosos brinquedos, chamei−te"destino" e "circunferência dascircunferências", e "centro do tempo" e"abóbada cerúlea".

Alma minha, dei a beber ao teu domínioterrestre toda a sabedoria, já os vinhosnovos, já os mais raros e fortes dasabedoria, os de tempo imemorial.

Alma minha, derramei em ti todo o sol etoda a noite, todos os silêncios e todosos anelos: cresceste então para mimcomo uma vida.

Alma minha, agora estás aí, repleta epesada, como vide de cheios úberes, dedourados cachos exuberantes;exuberante e oprimida de ventura,esperando entre a abundância eenvergonhada da sua expectação.

Alma minha, agora já não há em partealguma alma mais amante, mais amplae compreensiva! Onde estariam o futuro

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e o passado mais perto um do outro doque em ti?

Alma minha, dei−te tudo, por ti esvazieias mãos...e agora! Agora dizes−mesorrindo, cheia de melancolia: "Qual denós dois deve agradecer?"

Não é o doador que deve estaragradecido àquele que houve por bemaceitar?

Não será uma necessidade o dar? Nãoserá... pena aceitar?

Alma minha, compreendo o sorriso datua melancolia: a tua exuberânciaestende agora as mãos anelantes!

A tua plenitude dirige os seus olharesaos mares rugidores, busca e aguarda:o desejo infinito da plenitude lança umolhar através do céu sorridente dos teusolhos!

E na verdade, alma minha, quem teveria o sorriso sem se desfazer emlágrimas?

Os próprios anjos prorrompem empranto vendo a excessiva bondade doteu sorriso.

A tua bondade, a tua bondadedemasiado grande, não se quer lastimarnem chorar e, contudo, alma minha, oteu sorriso deseja as lágrimas, e a tuatrêmula boca os soluços. "Não será todoo pranto uma queixa, e toda a queixauma acusação?" Assim dizes contigo, epor isso preferes sorrir, alma minha, aderramar a tua pena, a derramar emtorrentes de lágrimas toda a pena que tecausa a tua plenitude e toda aansiedade que faz que a vinha suspirepelo vindimador e pelo podão dovindimador. Se não queres chorar,porém, chorar até o fim a tua purpúreamelancolia, precisas cantar, almaminha. − Já vês: eu, que predico isto, eumesmo sorrio. − Precisas cantar comvoz dolente, até os mares ficaremsilenciosos para escutar o teu grandeanelo.

Até que em anelantes e silenciososmares se balouce O barco, a douradamaravilha, em tomo de cujo ouro se

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agitam todas as coisas boas, más emaravilhosas, e muitos animais grandese peque−nos, e tudo quanto possuipernas leves e maravilhosas para podercorrer por caminhos de violetas até àáurea maravilha, até à barca voluntáriae até ao seu dono.

Ele é, porém, o grande vindimador queespera com a sua podadeira dediamante, o teu grande libertador, almaminha, o inevitável... para quem só oscantos do futuro sabem encontrarnomes. E na verdade, já o teu hálito temo perfume dos cantos do futuro, já ardese sonhas, já a tua sede bebe em todosos poços consoladores de graves ecos,já a tua melancolia descansa nabeatitude dos cantos do futuro! Almaminha, dei−te tudo, até o meu últimobem, e as minhas mãos por ti seesvaziaram: ter−te dito que cantassesfoi o meu último dom.

Disse−te que cantasses. Fala. portanto,fala: qual de nós dois deve agoraagradecer? Mas não; canta para mim,canta, alma minha! E deixa−meagradecer−te!"

Assim falou Zaratustra

O Outro Canto de Baile

"Acabo de te olhar nos olhos, vida; vireluzir outro nos teus olhos noturnos, eessa voluptuosidade paralisou−me ocoração: vi brilhar uma barca douradaque se submergia em águas noturnas,uma barca dourada que se submergia ereaparecia fazendo sinais!

Tu dirigias um olhar aos meus pés,doidos por dançar, um olhar acariciador,terno, ri sonho e interrogador.

Duas vezes apenas agitaste com asmãos as tuas castanholas, e já os pésme pulavam, ébrios.

Os calcanhares erguiam−se; os dedosescutavam para te compreender; nãotem o dançarino os ouvidos nos dedosdos pés?

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Saltei ao teu encontro; tu retrocedesteao meu impulso, e até a mim serpeava atua voadora e fugidia cabeleira.

Num pulo me afastei de ti e das tuasserpentes: já tu te erguias com os olhoscheios de desejos.

Com lânguidos olhares me mostrassendas tortuosas; por tortuosas sendasaprende astúcias o meu pé.

Receio−te quando te aproximas, amo−tequando estás longe; a tua fugaatrai−me; as tuas diligências detêm−me.Sofro; mas, por ti, que não sofreria eu?

Ó, tu cuja frialdade incendeia, cujo ódioseduz, cuja fuga prende, cujos enganoscomovem!

Quem te não odiará, grande carcereira,sedutora, esquadrinhadora edescobridora! Quem te não amará,inocente, impaciente, arrebatadorapecadora de olhos infantis!

Aonde me arrastas agora, indômitoprodígio? E já me tornas a fugir, doceesquiva, doce ingrata!

Dançando sigo as tuas menorespisadas. Onde estás? Dá−me a mão!Ou um dedo sequer!

Há por aí cavernas e bosques;extraviar−nos−emos. Pára! Detém−te!Não vês revoarem corujas e morcegos?

Eh! lá, coruja! Morcego! Quereis brincarcomigo? Onde estamos? Com os cãesaprendestes a uivar e a rosnar.

Mostravas−me graciosamente osbrancos dentes, e os teus malvadosolhos asseteavam−me por entre asfrisadas madeixas.

Que correria por montes e vales! Eu souo caçador; queres tu ser o meu cão?

Agora, a meu lado! e depressa,invejável solitária! Acima agora! Ó! Aovoltar, cai. Olha como estou aquiestendido! Olha, altaneira, como imploroo teu socorro! Quereria continuarcontigo... por caminhos maisagradáveis! pelos caminhos do amor,

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através de esmaltados ou pelos quemarginam o lago, onde nadam e saltamdourados peixes! Estás cansada,agora? Ali em baixo há ovelhas evespertinos arrebóis. Não é tão bomadormecer ao som da flauta dospastores?

Então, estás assim cansada? Vou−televar lá; ao menos deixa pender osbraços. E tens sede?... Poderia dar−tequalquer coisa...Mas a tua boca nãoquer beber.

Que maldita serpente esta, feiticeirafugidia, veloz e ágil. Aonde te meteste?Sinto na cara dois sinais da tua mão,dois sinais vermelhos!

Estou deveras farto de te seguir semprecomo ingênuo cordeirinho! Feiticeira, atéagora cantei para ti: agora, para mimdeves tu... gritar! Deves dançar e gritarao compasso de meu látego!

Esquecê−lo−ia eu? Não!"

II

Eis o que então respondeu a vida,tapando os delicados ouvidos:

"Ó! Zaratustra! Não vibres tãoespantosamente o látego? Bem sabesque o ruído assassina ospensamentos... e assaltam−me agorapensamentos tão ternos!

Nós não somos bons nem maus paranada! Além do bem e do malencontramos a nossa ilha e o nossoverde prado: só nos dois oencontramos! Por isso nos devemosamar um ao outro!

E conquanto nos não amemos de todo ocoração, será caso para nosenfadarmos? Enfadam−se as pessoaspor não se amarem de todo o coração?

É que eu te amo, te amo muitas vezescom excesso, sabei−o demais, a razãoé que estou ciosa da tua sabedoria. Ah,que velha louca é a sabedoria!

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Se alguma vez a tua sabedoria tedeixasse, também logo o meu amor tedeixaria".

Então a vida olhou pensativa para trás eem torno de si, e disse em voz baixa:"Ó, Zaratustra não me és bastante fiel!

Ainda falta muito para me teres o amorque dizes; sei que pensas deixar−mebreve.

Há um velho bordão pesadopesadíssimo, que ressoa de noite até láacima, à tua caverna; quando ouvesesse sino dar a meia−noite, pensas −bem o sei, Zaratustra − pensasdeixar−me breve!".

"Assim é,,, respondi titubeando, "mas tutambém sabes..." E disse−lhe uma coisaao ouvido colado à sua emaranhadacabeleira, às suas douradas erevoltadas madeixas.

"Tu sabes isso, Zaratustra? Ninguémsabe isso..." Olhamo−nos, e dirigimos onosso olhar para o verde prado poronde corria a frescura da tarde, echoramos juntos. Mas então a vida erapara mim mais cara do que jamais o foitoda minha sabedoria".

Assim falou Zaratustra

III

Uma!

Alerta, homem!

Duas!

Que diz a meia−noite profunda?

Três!

"Tenho dormido, tenho dormido...

Quatro!

" De um profundo sono despertei.

Cinco!

"O mundo é profundo...

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Seis!

"E mais profundo do que o dia julgava

Sete!

"Profunda é a sua dor...

Oito!

"E a alegria... mais profunda que aaflição.

Nove!

"A dor diz: Passa!

Dez!

"Mas toda alegria quer a eternidade...

Onze!

"Quer profunda eternidade!

Doze!

Os Sete Selos

I

Se sou um adivinho, cheio desseespírito adivinhatório que caminha poruma alta crista entre dois mares, quecaminha entre o passado e o futurocomo uma densa nuvem inimiga detodos os lugares baixos, de tudo quantoestá fatigado e não pode morrer nemviver; disposta a rasgar o seu obscuroseio, como o relâmpago, disposta afulminar o raio de claridade redentora,cheia de relâmpagos que dizem sim!que riem sim! pronta a exalaçõesadivinhadoras − mas, ditoso do que estáassim cheio! e, na verdade, forçoso écingir−se ao cume como pesadatormenta aquele que deve acender umdia luz do futuro! − se eu sou assim,como não hei de estar anelante pelaeternidade, anelante pelo nupcial aneldos anéis do regresso das coisas?

Ainda não encontrei mulher de quemquisesse ter filhos, senão esta mulher aquem amo: porque te amo, eternidade!

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Porque te amo, eternidade!

II

Se alguma vez a minha cólera profanousepulturas, removeu barreiras eprecipitou velhas tábuas partidas emescarpadas profundezas; se à minhazombaria varreu alguma vez as palavrasapodrecidas; se fui como uma escovapara as aranhas e um vento purificadorpara as velhas e bolorentas cavernassepulcrais; se alguma vez estivesentado, cheio de alegria, no sítio ondejazem deuses antigos, abençoando eamando o mundo ao lado dosmonumentos de antigos caluniadores domundo − porque até as igrejas e ostúmulos dos deuses eu amo, contantoque o céu espreite serenamente atravésdas suas rendilhadas abóbadas; que eugosto de repousar sobre as igrejasarruinadas, como a erva e as vermelhaspapoulas − como não estaria anelanteda eternidade, anelante do nupcial aneldos anéis, o anel do regresso?

Nunca encontrei mulher de quemquisesse ter filhos senão esta mulherque amo: porque te amo, eternidade!

Porque te amo, eternidade!

III

Se alguma vez chegou até mim umsopro do sopro criador e dessanecessidade divina que até os azaresobriga a dançar as danças das estrelas;se alguma vez me ri com o riso dorelâmpago criador, ao qual se segueresmungando, mas obediente, oprolongado troar da ação; se algumavez joguei os dados com deuses, namesa divina da terra, fazendo que aterra tremesse e se rasgasse,despedindo rios e chamas – porque aterra é uma mesa divina que treme comnovas palavras criadoras e com umruído de dados divinos − como não heide eu estar anelante da eternidade,anelante do nupcial anel dos anéis, oanel do regresso?

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Nunca encontrei mulher de quemquisesse ter filhos senão esta mulherque amo: porque te amo, eternidade!

Porque te amo, eternidade!

IV

Se alguma vez bebi um longo tragodesse cântaro espumoso de espécies emisturas, onde estão bem misturadastodas as coisas; se a minha mãoalguma vez misturou o mais remoto como mais próximo e o fogo com oengenho, e a alegria com a pena e ascoisas piores com as melhores; se eumesmo sou um grão desse sal redentorque faz que todas as coisas semisturem bem ao cântaro das misturas− para que exista o bem e o mal, e até opior é digno de servir de espécie e defazer que transborde a espuma docântaro − como não hei de estaranelante da eternidade, anelante donupcial anel dos anéis, o anel doregresso?

Nunca encontrei mulher de quemquisesse ter filhos senão esta mulherque amo: porque te amo eternidade!

Porque te amo eternidade!

V

Se eu amo o mar, e tudo quanto ao marse assemelha, e sobre tudo quando mecontradiz fogoso; se existe em mim essapaixão investigadora que impele a velapara o desconhecido; se há na minhapaixão um tanto da paixão donavegante;

se alguma vez exclamei com alegria: Sehá na minha paixão um tanto da paixãodo navegante, se alguma vez exclameicomo medida: Desapareceram ascostas: caiu agora a minha últimacadeia; em meu redor agita−se aimensidade sem limites; longe de mimcintilam o tempo e o espaço; vamos! Acaminho, velho coração!"

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Como não hei de estar anelante daeternidade, anelante do nupcial anel dosanéis, do anel do acontecer e doregresso?

Nunca encontrei mulher de quemquisesse ter filhos senão esta mulherque amo: porque te amo, eternidade!

Porque te amo, eternidade!

VI

Se a minha virtude é virtude debailarino, se muitas vezes pulei entrearroubamentos de ouro e de esmeralda;se a minha maldade é uma maldaderisonha que se acha em seu centroentre ramadas de rosas e sebes deaçucenas, porque no riso se reúne tudoo que é mau, mas santificado eabsolvido pela sua própria beatitude; ese o meu alfa e ômega é tornar levetudo quanto é pesado, todo o corpodançarino, todo o espírito ave: e, naverdade, assim é o meu alfa e ômega.

Como não hei de estar anelante pelaeternidade, anelante pelo nupcial dosanéis, pelo anel do regresso dascoisas?

Nunca encontrei mulher de quemquisesse ter filhos, senão esta mulherque amo: porque te amo, eternidade!

Porque te amo, eternidade!

VII

Se alguma vez descobri céus tranqüilossobre mim voando com as minhaspróprias asas no meu próprio céu; senadei, brincando, em profundos lagosde luz; se a alada sabedoria da minhaliberdade me veio dizer: "Olha! Nempara cima, nem para baixo! Lança−te àroda, para diante, para trás, leve comoés! Canta! Não fales mais! Não estão aspalavras feitas para os que sãoposados? Não mentem todas aspalavras ao que é leve? Canta! Nãofales mais!

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Como não hei de estar anelante pelaeternidade, anelante pelo nupcial aneldos anéis, pelo anel do sucesso e doregresso? Nunca encontrei uma mulherde quem quisesse Ter filhos senão estamulher que amo: porque te amo,eternidade!

Porque te amo eternidade!

Quarta Parte

A oferta do mel

E tornaram a passar meses e anos pelaalma de Zaratustra, sem ele dar porisso; mas o. cabelos faziam−se−lhebrancos. Estando um dia sentado numapedra diante da sua caverna, olhandopara fora em silêncio, pois daqueleponto se via o mar até muito longe, parao outro lado dos abismos tortuosos, osseus animais, pensativos, andavam emtomo dele e acabaram por se lhe pôr emfrente.

"Zaratustra − lhe disseram − procuras atua felicidade com os olhos?" "Queimporta a felicidade? − respondeu ele. −Há muito tempo que não aspiro já àfelicidade; aspiro à minha obra". −"Zaratustra − replicaram os animais −dizes isso como quem está saturado debem. Não estás deitado num lagoazulado de ventura?": "Velhacos! −respondeu Zaratustra, sorrindo −, comoescolheste bem a parábola! Tambémsabes, porém, que a minha felicidade épesada, e que não é líquida como aonda: impele−me e não me quer deixar,aderindo−se como pez derretido".

Os animais tornaram a voltear em tornodele, pensativos, e novamente se lhepostaram defronte. "Zaratustra –disseram – então é isso que explicaporque estás tão sombrio e amarelecesposto que os teus cabelos aparentamser brancos? Consomes−te no teu pez!""Que dizeis – exclamou Zaratustra rindo– fiz mal em me lembrar do pez (pech,desgraça em sentido figurado). – O que

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me sucedeu, sucede a todos os frutosque amadurecem. O mel que tenho nasveias é que torna mais espesso o meusangue e torna mais silenciosa minhaalma". – "Assim deve ser Zaratustra –afirmaram os animais, encostando−se aele. – Mas não queres subir hoje a umaalta montanha? O ar é diáfano, e hojevê−se o mundo melhor do que nunca". –"sim, animais meus – respondeuZaratustra; − aconselhais à maravilha econformemente ao meu desejo. Querosubir hoje a uma alta montanha!Procurai, porém, que haja mel ao meualcance, mel de douradas colmeias,amarelo, branco e bom, de glacialfrescura. Ficai sabendo que quero já emcima fazer a oferta do mel".

Quando Zaratustra chegou ao cume,despediu os animais que o haviamacompanhado, e viu que se encontravasó; riu−se então com toda a alma, olhouem redor, e disse assim: "Falei deoferendas e de ofertas de mel; mas istonão passava de um ardil do meudiscurso e uma útil loucura. Aqui emcima já posso falar mais livremente doque diante dos refúgios dos ermitões edos animais domésticos dos ermitões.

E, falava eu de oferendas e sacrifícios?Eu, que dissipo quando se me dá àsmãos cheias, como me atreveria ainda achamar a isso... sacrifício!

E, quando pedi mel, o que pedia erauma isca, doce mucilagem de que sãogulosos os ursos rosnadores e as avesprodigiosas e altivas.

A melhor isca como a necessitamcaçadores e pescadores. Que se omundo é um como sombrio bosquepovoado de animais de delícias detodos os ferozes caçadores, ainda meparece assemelhar−se mais a um marsem fundo um mar cheio de peixes ecaranguejos que os próprios deusescobiçariam a ponto de se tornarempescadores e lançarem suas redes: tãorico é o mundo em prodígios grandes epequenos! Principalmente o mundo doshomens; o mar dos homens a ele lançoeu minha dourada sedalha, dizendo:"Abra−te, abismo humano.

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Abre−te e traz−me peixes e reluzentescaranguejos! Com a minha maior iscapesco hoje pari mim os mais prodigiosospeixes humanos!"

Eu lanço ao longe a minha felicidade,arrojo−a a todas as paragens, entre oOriente, o Meio−dia e o Ocidente, a verse não haverá muitos peixes humanosque aprendam a puxar por esta isca.

Até que, mordendo o meu agudo eoculto anzol, tenham de subir à minhaaltura, até o mais malicioso dospescadores de homens, os maisvistosos gobios das profundidades.

Porque eu sou, originária efundamentalmente, força que puxa, queatrai, que levanta, que eleva: um guia,um corretor e educador que não foi emvão que disse a si próprio noutro tempo:

"Mostra−te quem és!"

Por conseguinte, subam agora oshomens ao meu lado; porque aindaespero os sinais que me digam terchegado o momento do meu declinar;eu ainda não desapareço dentre oshomens.

Por isso, astuto e zombeteiro, esperoaqui nas altas montanhas, nemimpaciente nem paciente, mas apenascomo quem esqueceu a paci6encia...visto que já não "sofre!".

O meu destino dá−me tempo.Ter−me−á esquecido? Ou entretém−sea caçar moscas, sentado à sombra, pordetrás de uma grande pedra? E, naverdade, estou grato ao meu destinoeterno, que me não fustiga nemempurra e me dá tempo para malícias;tanto que hoje trepei a esta altamontanha para apanhar peixes.

Acaso se viu já um homem pescandoem altas montanhas? Mas ainda que oque eu quero lá em cima seja umaloucura, vale mais do que se lá embaixo me tornasse solene e me pusesseverde e amarelo à força de esperar;cheio de cólera à força de esperar umasanta tempestade rugidora que viesseda montanha, como um paciente quegritasse aos vales: "Ouvi, ou vos sacudo

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com o azorrague de Deus!"

Não é que a mim me irritem taiscoléricos; unicamente me fazem rir.Compreendo que estejam impacientesesses tambores ruidosos que hão de tera palavra hoje ou nunca!

Eu e o meu destino, porém, não falamosao "hoje" e tampouco ao "nunca"; temospaciência para falar, e tempo, muitotempo para isso. Porque ele há dechegar um dia. E não de passagem.

Quem terá de vir um dia, e não depassagem? O nosso grande acaso: éesse o nosso grande e longínquoReinado do Homem, o reinado deZaratustra, que dura mil anos...

Se esse "hoje" está ainda longe, que meimporta? Nem por isso é menos sólidopara mim... Confiadamente me firmocom os dois pés nesta base: sobre umabase eterna, sobre duas rochasprimitivas, sobre estes antigos montes,os mais altos e rijos, de que todos osventos se aproximam como de um limitemeteorológico para se informarem dospontos de origem e destino.

Ri−te aqui, ri luminosa e saudávelmalícia minha! Atira das altasmontanhas o teu cintilante riso trocista!Atrai com o teu cintilar os mais formosospeixes humanos!

E tudo o que pertencer a mim em todosos mares, tudo o que for meu em todasas coisas, pesca−o para mim, traz−moaqui acima: é o que espera o pior detodos os pescadores.

Ao longe, ao longe, meu anzol!!...Desce, vai ao fundo, isca da minhaventura! Esparge o teu mais doceorvalho, mal do meu coração!!! Morde,anzol, no ventre de toda a negra aflição.

Ao longe, ao longe, olhos meus!Quantos mares em torno de mim,quanto futuro humano na aurora! E porcima de mim...que risonho silêncio! Quesilêncio sem nuvens!"

O Grito de Angústia

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No dia seguinte estava Zaratustrasentado na sua pedra diante dacaverna, enquanto os animais andavamà cata de alimento... e de novo mel;porque Zaratustra tinha dissipado até aofim o mel antigo. Estando ali sentadocom um pau na mão, seguindo ocontorno da sombra que o seu corpoprojetava no solo, meditandoprofundamente − mas não em si mesmonem na sua sombra − estremeceu derepente e ficou sobressaltado de terror:porque vira outra sombra ao lado dasua. E levantando−se e voltando−serapidamente, viu em pé a seu lado oadivinho, o mesmo a quem uma vezdera de comer e beber à sua mesa, oproclamador do grande cansaço, quedizia: "Tudo é igual; nada merece apena; o mundo não tem sentido; o saberasfixia".

O semblante, porém,transformara−se−lhe desde então; eZaratustra temorizou−se de novo, aover−lhe os olhos, a tal ponto se lhe lianeles funestas predições.

O adivinho, que logo compreendeu oque agitava a alma de Zaratustra,passou a mão pela face como sequisesse apagar o que havia nela.Zaratustra, por sua parte, fez o mesmo.Quando desta forma serenaram ecobraram ânimo, deram−se as mãos emsinal de quem queriam reconhecer.

"Sê bem−vindo, adivinho d~ grandelassidão − disse Zaratustra. − Não fosteem vão meu hóspede e comensal.Come e bebe hoje também na minhamorada, e deixa que se sente à tuamesa um velho alegre". − "Um velhoalegre? − respondeu o adivinho,meneando a cabeça. − Quem quer quesejas ou desejes ser. Zaratustra, já onão serás por muito tempo cá em cima;dentro em pouco a tua barca já nãoestará ao abrigo". "Acaso estou eu aoabrigo?" perguntou, rindo, Zaratustra. Oadivinho respondeu: "Em tomo da tuamontanha sobem mais e mais as ondasda imensa miséria e da aflição: nãotorna a erguer a tua barca e arrastar−tecom ela". Zaratustra calou−se,admirado. −"Não ouves ainda? −continuou o adivinho. − Não sobe oabismo um zumbido, um rumor surdo'?"

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Zaratustra permaneceu calado eescutou. Ouviu então um gritoprolongado, soltado de uns para osoutros abismos, pois nenhum deles oqueria reter, tão funesto era o seu som.

Sinistro agoureiro − disse afinal,Zaratustra; isto é um grito de angústia, egrito de um homem; provavelmente saide um mar negro. Que me importa,porém, a angústia dos homens! O últimopecado que me está reservado... sabescomo se chama?"

"Compaixão! – respondeu o adivinho,cujo coração transbordava, erguendo asmãos. − Zaratustra! Venho aqui fazer−tecometer o último pecado!"

Apenas pronunciadas estas palavras,tornou a ressoar o grito, 'maisprolongado e angustioso do que dantes,e já muito mais próximo. "Ouves, ouves,Zaratustra? − exclamou o adivinho. − Ati se dirige o grito, é por ti que chama:vem, vem, vem, já é tempo; não há ummomento a perder!"

Zaratustra, entretanto, calava−se,perturbado e alterado. Por fimperguntou, como quem hesitainteriormente: "E quem me chama lá debaixo?"

"Bem o sabes − respondeu vivamente oadivinho. − Por que te ocultas? É ohomem superior que te chama em seuauxílio".

"O homem superior! − gritou Zaratustra,admirado. − E que quer ele? Que quer ohomem superior? O que quer ele aqui?"E o corpo cobriu−se−lhe de suor.

O adivinho não respondeu à angústia deZaratustra: escutava e tornava aescutar, inclinado para o abismo. Mas,como o silêncio se prolongasse muito,olhou para e viu Zaratustra de pé e atremer.

"Zaratustra − começou a dizer em voztriste: − não aparentes brincar dealegria. Embora quisesses dançardiante de mim e dar todos os teussaltos, ninguém me poderia dizer: "Olha,aí tens o baile do último homem alegre!"

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Em vão subirá a esta altura quemprocurar aqui esse homem: encontrariacavernas e grutas, esconderijos para agente que se precisa ocultar, mas nãopoços de felicidade nem tesouros, nemnovos filões áureos de ventura.

Ventura! − como encontrá−la entresemelhantes sepultados, entre taiseremitas!

Hei de buscar ainda a última felicidadenas Ilhas Bem−aventuradas e ao longeentre esquecidos mares?

Mas tudo é igual, nada merece a pena,são inúteis todas as pesquisas; tambémjá não há ilhas Bem−aventuradas?"

Assim suspirou o adivinho, mas ao ouviro seu último suspiro, Zaratustrarecuperou a serenidade e presença deespírito, como uma pessoa queregressa à luz saindo de um antroprofundo. "Não! Não! Mil vezes não! −exclamou com voz firme, cofiando abarba.

− Isso sei − o eu muito melhor que tu.Ainda há Ilhas Bem−aventuradas! Nãodigas uma palavra, saco de tristezas!

Cessa de cair, nuvem chuvosa damanhã! Não me vês já molhado pela tuatristeza e orvalhado como um cão?

Agora sacudo−me e fujo para longe deti, para me secar: não te admires!Pareço−te indelicado? Mas a minhacorte está aqui!

Pelo que respeita ao teu homemsuperior, seja! Vou a correr procurá−lopor esses bosques: foi donde partiu oseu grito. Talvez o ameace alguma fera.

Está no meu domínio; não quero que lhesuceda nenhuma desgraça.

E, na verdade, no meu domínio hámuitas feras!

Dito isto, Zaratustra, dispôs−se a partir.Então o adivinho exclamou: "És umvelhaco, Zaratustra!

Bem sei: o que tu queres é livrar−te demim! Preferes fugir para os bosques a

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perseguir animais monteses!

De que te servirá isso, porém? À noitetornarás a encontrar−me:

estarei sentado na tua própria caverna,com a paciência e o peso de ummadeiro: ali sentado, à tua espera".

"Pois seja! − exclamou Zaratustra,afastando−se.

E o que me pertence na cavernapertence−te também a ti, que és meuhóspede.

Se ainda lá encontrares mel, lambe−otodo, urso rabugento, e adoça a tuaalma. E à noite estaremos alegres:alegres e contentes por ter terminadoeste dia! E tu mesmo devesacompanhar os meus cantos com astuas danças, como se fosse o meu ursoamestrado.

Julgas que não? Meneias a cabeça?

Vai−te daí, velho urso! Também souadivinho!"

Assim falou Zaratustra

Conversação com os Reis

I

Quase uma hora decorrera desde queZaratustra andava caminhando pelassuas montanhas e bosques, quando desúbito viu um singular cortejo. Ao centrodo caminho que ele queria seguir,adiantavam−se dois reis adornados decoroas e de púrpuras multicores comoflamengos; diante deles ia um jumentocarregado. "Que querem estes reis nomeu reino?" − disse assombradoZaratustra, e escondeu−se logo atrás deuma moita. Quando os reis estavammuito perto dele, acrescentou a meiavoz como se falasse consigo mesmo:"Caso raro! raríssimo'. Comocompreender isto? Vejo dois reis... e umasno só!"

Nisto os dois reis pararam, sorriram edirigiram o olhar para o lugar donde

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partira a voz; depois entreolharam−se:"Estas coisas − manifestou o rei dadireita − também se pensam lá entrenós, mas não se dizem".

O rei da esquerda respondeu.encolhendo os ombros: "Deve ser algumcabreiro ou ermitão que tem vivido demais entre brenhas e árvores. Que aabsoluta ausência da sociedadetambém prejudica os bons costumes".

Os Bons costumes!", replicou o outro reicom enfado e amargura. "Pois de quenos queremos nós livrar senão dos"bons costumes" da nossa "boasociedade?"

Antes viver com ermitões e pastores doque com a nossa plebe dourada, falsa epolida, embora se lhe chame a "boasociedade", embora se lhe chame"nobreza".

Ali tudo é falso e corrompido, a começarpelo sangue, graças a estranhas emalignas enfermidades e a piorescurandeiros.

O melhor para mim, e o que hoje prefiroé um camponês sadio, tosco, astuto,tenaz e resistente: é hoje a espéciemais nobre.

O camponês é hoje o melhor; e aespécie camponesa devia ser soberana.Vivemos, porém, no reinado dapopulaça; já me não deixo ofuscar.Populaça quer dizer amontoado.

Amontoamento populaceiro: ali tudoestá misturado: o santo e o bandido, ofidalgo e o judeu e todos os animais daarca de Noé.

Os bons costumes! Entre nós tudo éfalso e corrupto! Já ninguém sabereverenciar. Disso, justamente, é quenos devemos livrar. São sabujosimportunos: douram as palmas.

O desgosto que me sufoca é termo−nosnós mesmos, reis, tornado falsos, ecobrimo−nos e disfarçamo−nos com opassado fausto dos nossosascendentes: sermos medalhas para omais tolos e os mais astutos e paratodos o que hoje traficam com o poder!

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Nós não somos os primeiros enecessitamos aparentar que somos: porfim cansamo−nos e fartamo−nos desteembuste. Apartamo−nos da canalha, detodos esses moscões que vociferam eesperneiam, do cheiro dos merceeiros,da rixa, da ambição, e do hálitopestilento... Puf! nada de viver entre acanalha! nada de passar pelos primeirosentre a canalha!

Horror! horror! horror! Que valemos jánós, reis?"

"Torna a afligir−te a tua estranhadolência − disse neste ponto o rei daesquerda. − Tornam as tuasrepugnâncias, pobre irmão! Já sabes,contudo, que alguém nos escuta".

Imediatamente Zaratustra, que fora todoolhos e ouvidos, se ergueu doesconderijo e dirigindo−se aos reiscomeçou a dizer:

"Aquele que vos escuta, aquele quegosta de vos escutar, a vós, reis,chama−se Zaratustra.

Eu sou Zaratustra que um dia disse:"Que importam já os reis?" Perdoai−me:mas rejubilei quando dissestes um parao outro: "Que valemos já nós, reis?"

Aqui, porém, estais no meu reino e sobo meu domínio: que podeis procurar nomeu reino? Talvez, contudoencontrásseis no caminho o que euprocuro: eu procuro o homem superior".

Ao ouvir isto, os reis bateram no peito edisseram ao mesmo tempo:"Conheceste−nos".

Com a espada dessa palavra cortas amais profunda obscuridade dos nossoscorações. Descobriste a nossa angústia;porque, olha, nós vamos em busca dohomem superior − o homem superior anós outros, conquanto sejamos reis.Para ele trazemos este jumento. Que ohomem mais alto deve ser também naterra o mais alto senhor.

Não há calamidade mais dura em todosos destinos humanos do que quando ospoderosos da terra não são ao mesmotempo os primeiros homens. Então tudo

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se torna falso e monstruoso, tudo andaao invés. E quando são os últimos, eantes animais do que homens, entãosobe de preço a populaça, e pelacontinuação acaba por dizer: "Já vedes:só eu sou virtude!"

− "Que ouço?! – respondeu Zaratustra.− Que sabedoria em reis!

Estou entusiasmado e já me apetecefazer sobre isto uns versos − talvezsejam uns versos que não possamservir para os ouvidos de toda a gente.− Já há muito que esqueci asconsiderações com as orelhascompridas. Vamos! Adiante!

(Mas nesse momento também o asnotomou a palavra: disse claramente ecom mau intuito: I. A).

Noutros tempos − creio que no ano um– disse ébria a sibila (sem ter provadovinho):

"Ai, isto vai mal!

"Decadência! Decadência!

Nunca o mundo caiu tão baixo!

"Roma degenerou em rameira ehabitação de rameiras.

"O César de Roma degenerou embesta: até Deus tornou−se judeu!"

II

Os reis deleitaram−se com os versos deZaratustra, e o da direita disse:"Zaratustra, como fizemos bem em nospormos a caminho para te ver!

Que os teus inimigos mostraram−nos atua imagem num espelho; vimos aestampa de um demônio de risosarcástico, de forma que nosamedrontaste.

De que servia, porém? Sempre tornavasa penetrar com as tuas máximas nosnossos ouvidos e nos nossos corações.De forma que acabamos por dizer: quenos importa a cara dele?

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É preciso

ouvir aquele que ensina: "Deveis amar apaz como meios de novas guerras, e abreve paz mais do que a prolongada!"

Nunca ninguém pronunciou tãoguerreiras palavras: "Que é que é bom?Bom é ser valente. A boa guerrasantifica todas as coisas. Ó, Zaratustra!A estas palavras ferveu nossos corpos osangue dos nossos pais: foram como aspalavras da primavera a tonéis devinhos.

Quando as espadas se cruzavam comoserpentes tintas de vermelho, os nossospais amavam a vida; o sol da pazparecia−lhes brando e tíbio, mas a pazprolongada envergonhava−os.

Como os nossos pais suspiravamquando viam na parede espadaslustrosas e enxutas! Tinham sede deguerra, à semelhança dessas espadas.

Que uma espada quer beber sangue ecintila com o seu ardente desejo".

Quando os reis falaram tãocalorosamente da felicidade de seuspais, Zaratustra sentiu grande tentaçãode zombar daquele ardor:

porque evidentemente eram reis muitopacíficos os que via diante de si, comseus velhos e finos semblantes.Dominou−se, porém. "Vamos! Acaminho! − disse − Estais no caminho;lá em cima encontra−se a caverna deZaratustra; e este dia deve ter umagrande tarde. Agora, porém, chama−separa longe de vós um grito de angústia.

A minha caverna ficará honrada se nelase sentarem reis e se dignarem esperar;verdade é que precisareis esperarmuito!

Que importa? Onde se aprende hoje aesperar melhor do que nas cortes?

E toda a virtude dos reis, a única queconservaram, não se chama saberesperar?

Assim falava Zaratustra

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A Sanguessuga

Zaratustra continuou pensativo o seucaminho, descendo cada vez mais,atravessando bosques e passando pordiante de lagoas; mas, como sucede atodos que meditam em coisas difíceis,pisou por equivoco um homem. Logotroaram aos seus ouvidos um grito dedor, duas pragas, e vinte injúriasterríveis; assustado, ergueu o bordão ebateu outra vez à pessoa pisada. Nomesmo instante, porém, caiu em si, e noseu íntimo pôs−se a rir da loucura queperpetrara. "Desculpa−me − disse aohomem que havia pisado, o qual seacabava de erguer colérico, para setornar a sentar em seguida; −desculpa−me e ouve primeiro umaparábola.

Assim como um viandante que sonhaem coisas longínquas por um caminhosolitário, tropeça por descuido com umcão que dormita, com um cão deitadoao sol, e ambos se erguem e seencaram repentinamente como mortaisinimigos, mortalmente assustados,assim nos sucedeu a nós.

E, todavia... todavia... como faltou poucopara esse solitário e esse cão seafagarem! Não serão ambos solitários!"

"Quem quer que sejas – respondeuenfadado o pisado – ainda te aproximasmuito de mim, não só com o pé, como atua parábola.

Olha para mim: acaso serei algum cão?E dizendo isto ergueu−se tirando dopântano o braço nu. Que a princípioestava caído ao comprido, oculto eimpossível de conhecer, como quemespreita a caça dos pântanos.

"Mas que estás fazendo? − exclamavaZaratustra assustado, porque lhe viacorrer muito sangue do braço nu. − Quete sucedeu? Mordeu−te algum bichoruim, infeliz?"

O que sangrava ria, ainda cheio decólera. "Que tens que ver com isto?",exclamou, querendo prosseguir ocaminho. "Estou aqui nos meus

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domínios. Interrogue−me quem quiser,pois a um néscio é que eu nãoresponderei!"

"Enganas−te", disse Zaratustra,retendo−o, cheio de compaixão."Enganas−te: aqui não estás no teureino, mas no meu, e aqui não devesuceder a ninguém desgraça alguma.Chama−me sempre o que quiseres − eusou o que devo ser. A mim mesmo mechamo Zaratustra.

"Vamos! Lá em cima é o caminho queconduz à caverna de Zaratustra: nãoestá muito longe.

Não queres vir ao meu albergue paracurar as feridas?

Não foste feliz neste mundo desditoso:primeiro mordeu−te o bicho; depois...pisou−te o homem!..."

Quando o homem ouviu, porém o nomeZaratustra, transformou−se. "Que mesucedeu?" exclamou. "Quem é que mepreocupa ainda na vida senão estehomem único, Zaratustra, é o únicoanimal que bebe sangue, aSanguessuga?

Por causa da sanguessuga estava eu aliestendido, à beira do pântano, como umpescador; e já o meu braço estendidofora mordido dez vezes, quando se mepôs a morder o sangue outrasanguessuga mais bela, o próprioZaratustra.

Ó, ventura, ó portento! Bendito seja estedia que me trouxe a este pântano!Bendita seja a melhor ventura, a maisforte que vive hoje! Bendita seja agrande sanguessuga das consciências,Zaratustra !"

Assim falava o pisado, e Zaratustrarejubilou com as suas palavras e com asua aparência fina e respeitosa. Eestendendo−lhe a mão, perguntou:"Quem és? Entre nós ficam muitascoisas por esclarecer e desabafar, masjá me parece nascer o dia puro eluminoso".

"Eu sou o espírito conscencioso −respondeu o interrogado; e nas coisas

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do espírito é difícil alguém conduzir−sede forma mais rigorosa do que eu,exceto aquele de quem a aprendi, opróprio Zaratustra.

Antes não saber nada do que sabermuitas coisas por metade!

Antes ser louco por seu próprio critério,que sábio segundo a opinião dos outros!Eu por mim, vou ao fundo.

Que importa que seja pequeno ougrande, que se chame pântano ou céu?Um pedaço de terra do tamanho da mãome basta, contanto que sejaverdadeiramente terra e solo!

Num pedaço de terra do tamanho damão, pode uma pessoa ter−se de pé.No verdadeiro saber conscienciosonada há grande nem pequeno".

"Então és talvez aquele que procuraconhecer a sanguessuga? − perguntouZaratustra.

Tu, o consciencioso, escutas asanguessuga em busca dos seusúltimos fundamentos?"

"Ó, Zaratustra!", respondeu o pisado."Isto seria uma monstruosidade! Comome atreveria a intentar semelhantecoisa?

O que eu domino e conheço é o cérebroda sanguessuga: é esse o meuuniverso!

E é também um universo! Perdoa,porém, revelar−se−me aqui o orgulho,porque nesse domínio não tenhosemelhante. Por isso disse:

"É este o meu domínio".

Há quanto tempo persigo esta Coisaúnica, o cérebro da sanguessuga, paraque me não escape mais a verdadefugidia. É este o meu reino!

Por isso pus de lado tudo o mais; porisso, tudo o mais se me tornouindiferente; e contígua à minha ciênciaestende−se a minha negra ignorância.

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A minha consciência intelectualexige−me que saiba uma coisa e ignoreo restante: estou farto de todas asmeia−inteligências, de todos osnebulosos, flutuantes e visionários.

Onde cessa a minha probidade soucego e quero ser cego. Onde querosaber, todavia, também quero ser probo,isto é, duro, severo, estreito, cruel,implacável.

O que tu disseste um dia, Zaratustra,"que a inteligência é a vida queesclarifica a própria vida" foi o que meconduziu e me atraiu à tua doutrina. E,na verdade, com o meu próprio sangueacrescentei a minha própria ciência"."Como salta à vista", interrompeuZaratustra; e o sangue continuava acorrer do braço nu do consciencioso,porque se lhe tinham agarrado dezsanguessugas. "Singular personagem,que ensinamento me dá esteespetáculo, quer dizer, tu mesmo!

Eu talvez não me atrevesse a insinuartudo isso nos teus...

Vamos! Separemo−nos aqui!Agradar−me−ia, porém, tornar aencontrar−te. Ali em cima está ocaminho que conduz à minha caverna.

Lá deves ser esta noite bem−vindoentre os meus hóspedes.

Quereria também reparar, no teu corpo,o haver pisado por Zaratustra; nissopenso. Chama−me, porém, para longede ti um grito de angústia".

Assim falou Zaratustra.

O Encantador

I

Na volta de umas penhas, Zaratustra viuperto de si e na parte baixa do caminhoum homem que acenava como doidofurioso e que acabou por se precipitarde bruços no solo. "Alto!", disse entãoZaratustra consigo. "Deve ser este ohomem superior; dele procedia aquelesinistro grito de angústia. Quero ver se o

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posso socorrer."

Quando chegou, porém, ao sítio em queo homem estava deitado, deparou comum velho trêmulo de olhar fixo; e apesarde todas as tentativas de Zaratustrapara o levantar, foram vãos os seusesforços. O infeliz parecia não notar queestivesse alguém junto de si; pelocontrário, não cessava de olhar para ume outro lado, fazendo gestoscomovedores, como quem se vêabandonado, e apartado do mundointeiro. Afinal, depois de muitastremuras, sobressaltos e contorções,começou a lamentar−se desta forma:

"Quem me dá calor? Quem me amaainda? Vinde, mãos quentes! Vinde,corações ardentes!

"Caldo, a tremer, como um moribundocujos pés são aquecidos, estremecido,ai! por ignora das febres, tiritando anteas aceradas flechas de geada,acossado por ti, pensamento! inefável!oculto! espantoso! caçador escondidopor detrás das nuvens!

"Ferido por ti, olho zombeteiro que mecontemplas na escuridão! − Assim jazo,me curvo me contorço, atormentado porto dos os mártires eternos, ferido por ti,crudelíssimo, caçador, Deusdesconhecido...

"Fere mais profundamente Fere outravez! Trespassa, arranca este coração!Para que é este martírio com setasrebotadas? Que olhas ainda, nãocansado de humanos tormentos, comesses olho maliciosos de fulgoresdivinos?

"Não queres matar, mas martirizar,martirizar somente? Par quemartirizar−me a mim, Deu maldoso,Deus incógnito?

"Ah! aproximas−te rastejando emsemelhante noite? Que queres? Fala!Persegues−me e cercas−me.Aproxima−te demais! Ouves−merespirar, espreitas o meu coração,ciumento! Mas, de quem tens ciúmes?Deixa−me, afasta−te daí! Para que éessa escada? Queres penetrar no meucoração, penetrar os meus mais

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secretos pensamentos! Insolente!Desconhecido! Ladrão! Que queremroubar? Que queres ouvir? Que tepropõe arrancar com as tuas torturas,Deus verdugo? Ou terei de me arrastarna tua presença como um cão,entregando−te o meu amor, acorrentadoe fora de mim?

"Eu vão! Punge de novo, crudelíssimoaguilhão?

"Eu não sou um cão, apenas sou tuapresa, caçador cruel entre os cruéis! Oteu mais altivo prisioneiro, salteador,oculto atrás das nuvens!

"Fale de uma vez o que se escondedetrás dos relâmpagos! Fale o incógnito!Que queres de mim, postado aí àespreita no caminho?

"Quê? Um resgate? Que queres deresgate?

"Pede muito − assim o aconselha o meuorgulho! E fala pouco − aconselha−to omeu outro orgulho!

"Ah! A mim mesmo é que tu queres? Amim? A mim todo?

"Ah! E martirizas−me, insensato! Etorturas−me o orgulho? Dá−me o amor− quem me aquece ainda? Quem metem amor ainda? Dá−me mãos quentes,dá−me corações ardentes, dá−te tu,crudelíssimo inimigo; sim, entrega−te amim, ao mais solitário, a quem o gelofaz suspirar sete vezes até pelosmesmos inimigos...

"Foi−se. Até ele fugiu, o meu únicocompanheiro, o meu grande inimigo, omeu desconhecido, o meu Deusverdugo!

"Não! Torna! Torna com os suplícios!"Torna ao último do solitários! Toda asminhas lágrimas correm em tua procura!E por ti desperta a derradeira chama domeu coração! Ó, torna, Deus incógnito!Minha dor! Última ventura minha!"

II

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Neste ponto, porém, Zaratustra não sepôde conter mais tempo, agarrou nobordão e deu com todas as forças noque se lastimava.

"Detém−te! − gritou−lhe com risocolérico − detém−te, histrião, falsomoedeiro! Inveterado embusteiro! Bemte conheço!

Hei de te largar fogo às pernas, sinistroencantador; sei muito bem haver−mecom os da tua ralé!"

"Pára! − disse o velho, erguendo−se derepente. − Não me batas mais,Zaratustra!

Tudo isto não passou de um gracejoforte!

Estas coisas participam da minha arte:quis pôr−te à prova a ti mesmo,apresentando−te esta prova. E, verdadeé que me penetraste bem ospensamentos! Mas também... não épequena a prova que te impuseste a timesmo. És rigoroso, sábio Zaratustra!Feres duramente com as tuas"verdades"; o teu nodoso bordãoobriga−me a confessar...esta verdade!"

"Não me adules, histrião! – respondeuZaratustra, sempre irritado e comsemblante sombrio. − És falso; para quefalas... de verdade?

Pavão, oceano de vaidade, que é que turepresentavas diante de mim, sinistroencantador? Em quem devia eu crerquanto te lamentavas assim?"

"Eu

representava o redentor do espírito −disse o velho: tu mesmo inventastenoutro tempo esta expressão: o poeta eo encantador que acaba por tornar oespírito contra si mesmo, otransformado, aquele a quem gelam asua falsa ciência e a sua máconsciência.

E, confessa francamente, Zaratustra:demoraste−te a descobrir os meusartifícios e mentiras! Acreditavas naminha miséria, quando me amparavas acabeça; ouvi−te gemer: "Amaram−no

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pouco, muito pouco!"

Haver−te enganado a tal ponto era oque intimamente me regozijava amaldade".

Zaratustra respondeu com dureza: "Aoutros mais finos do que eu deves Terenganado. Eu não estou em guardacontra os enganadores; não tenhonecessidade de tomar precauções:assim o quer a minha sorte.

Tu, porém... precisas enganar:conheço−te de sobra para o saber. Astuas palavras hão de Ter sempre duplo,triplo, quádruplo sentido. O que meconfessaste não era bastanteverdadeiro nem bastante falso paramim.

Vil moedeiro falso, como havias de fazeroutra coisa? Até tua enfermidadeencobririas, se te apresentasses nu anteo médico

E acabavas de dourar a tua mentiradiante de mim quando disseste: "Só o fizpor gracejo!' Também nisso haviaseriedade tu és até certo ponto comoum redentor do espírito.

Sei perfeitamente calar−te: fizeste−te deencantador de toda gente; mas, quantoa ti, já te não resta mentira nem astúcia;no que te diz respeito estásdesencantado.

Alcançaste a desilusão com únicaverdade. Nenhuma palavra é jáverdadeira em ti, a não ser desilusãopegada à tua boca".

"Mas quem és tu? − exclamou o velho,já agora com voz altaneira. − Quem temo direito de me falar assim, a mim, quesou o maior dos viventes de hoje?" E osolhos faiscaram−lhe ao encararZaratustra. − No mesmo instante porém,se transformou e disse com tristeza:

"Zaratustra, estou farto; cansam−me asminhas artes; eu não sou grande! Paraque fingir? Mas tu bem o sabes:procurei a grandeza. Eu queria simularde grande homem, e a muita genteconvenci; mas esta mentira foi superioràs minhas forças. Zaratustra, em mim

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tudo é mentira; mas que sucumbo...istoé positivo!

"Honra−te − respondeu Zaratustra,sombrio e desviando o olhar para ochão − honra−te o teres procurado agrandeza, mas deprime−te também. Tunão és grande. Sinistro encantador, omelhor e mais honroso para ti é teres−teenfastiado de ti mesmo e haveresexclamado: "Não sou grande".

Em atenção a isso, honro−te como umredentor do espírito: conquanto fossepor um instante, nesse momento fosteverídico.

Diz−me, porém: que procuras tu aquinos meus bosques e entre as minhasbrenhas? E se te havias atravessado nomeu caminho para me espreitar, queprova querias de mim?

Em que me querias tentar?"

Assim falou Zaratustra, e os olhosfaiscavam−lhe. O velho encantador fezuma pausa e disse depois: "Acaso tetentei? Eu não faço mais do que...procurar.

Zaratustra, eu procuro alguém que sejasincero, reto, simples, alheio aofingimento, um homem de toda aprobidade, um vaso de sabedoria, umsanto de conhecimento, um grandehomem!

Porventura o ignoras, Zaratustra?Procuro Zaratustra!"

Então fez−se um silêncio entre os dois.Zaratustra, concentrando−seprofundamente, cerrou os olhos; depois,virando−se para o encantadorpegou−lhe na mão, disse−lhe delicada eastuciosamente:

"Está bem! Ali em cima encontra−se ocaminho que conduz à caverna deZaratustra. Na minha caverna podesprocurar o que desejas encontrar.

E aconselha−te com os meus animais, aminha águia e a minha serpente: eles teajudarão a procurar. A minha caverna égrande, contudo.

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Verdade é que eu próprio... ainda não vinenhum grande homem. Para o grande,ainda o olho do mais lince é demasiadogrosseiro. Este é o reinado da populaça.

Já tenho visto tantos esticarem einflarem enquanto o povo gritava: "Vede:este é um grande homem!" Mas, paraque servem os foles? Deles apenas saivento.

O sapo que incha demasiado acabarebentando. Furar o ventre de uminchado é uma honesta distração. Ouviisto, meus filhos!

O nosso hoje pertence à populaça:quem pode saber ainda o que é grandeou pequeno?

Quem procuraria ainda com êxito agrandeza? Um louco, quando muito; eos loucos são afortunados.

Procuras os grandes homens, estranholouco! Quem te ensinou tal coisa? Seráhoje tempo oportuno para isso? Ó,malicioso investigador! Porque metentas?"

Assim falou Zaratustra, com o coraçãoconsolado; e rindo, prosseguiu o seucaminho.

Fora de Serviço

Pouco depois de se livrar doencantador, Zaratustra viu outra pessoasentada à beira do caminho que eleseguia, um homem alto e escuro, desemblante pálido e afilado; estecontrariou−se extraordinariamente. "Malvai! − disse consigo. − Vejo afliçãomascarada, que parece coisa desacerdotes. Que querem estes no meureino?

Que! Mal me livrei daquele encantador ejá passa pelo meu caminho outronigromante, um mago que impõe asmãos, um sombrio milagreiro por amorde Deus, um compungido difamador domundo: leve−o o demônio!

O demônio, porém, nunca se acha ondedevia; sempre chega tarde esse maldito

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anão, esse pateta!"

Assim praguejava Zaratustra,impaciente e pensando na maneira depassar diante do homem negro olhandopara outro lado. As coisas, porém,sucederam doutra forma: porque nomesmo instante o viu aquele que estavasentado; e como quem tem uma sorteinesperada, pôs−se de pé de um salto eencaminhou−se para Zaratustra.

"Quem quer que sejas – disse −,viajante errante, auxilia um extraviado aquem poderia suceder algumadesgraça!

Isto aqui é para mim um mundoestranho e longínquo; também ouvirugidos de feras; e quem poderiadar−me guarida já não existe.

Procurei o último homem piedoso, umsanto e um ermitão, único que no seubosque ainda não ouvira dizer o quetoda a gente hoje sabe.

"Que é que toda a gente sabe hoje? −perguntou Zaratustra. − Talvez já nãoesteja vivo o Deus antigo, o Deus emquem dantes acreditava toda a gente?"

"Assim o dizes − respondeu tristementeo velho. − E eu servi esse Deus antigoaté à sua última hora.

Agora, porém, estou fora de serviço;encontro−me sem amo e. apesar disso,não sou livre; por isso só me comprazonas minhas recordações. Por isso subi aestas montanhas, para tornar a celebraraqui uma festa, como convém a umantigo Papa e padre da Igreja, − porquefica sabendo que sou o último Papa! −uma festa e piedosa lembrança e culto aDeus.

Mas agora morreu o mais piedoso doshomens, esse santo do bosque quecontinuamente louvava Deus comcantos e preces.

Já o não encontrei quando descobri achoça; mas vilã dois lobos que uivavampor causa da sua morte − porque todosos animais o queriam. − Ao ver aquifugi.

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Vim depois, debalde a estes bosques ea estas montanhas! Por conseqüência omeu coração decidiu−se a procuraroutro, o mais piedoso de todos os quenão acreditam em Deus: Zaratustra!"

Assim falou o velho, e fixou um olharpenetrante no que estava de pé diantedele. Zaratustra pegou na mão do antigoPapa e contemplou−a largo tempo comadmiração.

"Olha, então, venerando − disse−Ihelogo −, que mão estendida tão bela! É amão de quem deu sempre a benção.Agora, porém, estreita aquele a que tuprocuras, a mim, Zaratustra.

Eu sou Zaratustra, o ímpio que diz:"Quem há mais ímpio do que eu, parame regozijar com o seu ensinamento?"

Assim falou Zaratustra, penetrando como seu olhar nos pensamentos maisíntimos do velho Papa. Por fim, esteprincipiou a dizer:

"Aquele que mais o amava e o possuíafoi também o que mais o perdeu. Olha:creio que agora o mais ímpio de nós soueu. Mas quem se poderia regozijardisso?"

"Serviste−o até o fim? − perguntouZaratustra pensativo, depois de longo eprofundo silêncio.

Sabes como morreu? É certo o que sediz, que o asfixiou a compaixão? O ver ohomem suspenso Da cruz e não podersuportar que O amor pelos homensviesse a ser seu inferno e afinal a suamorte?

O antigo Papa não respondeu, masolhou de soslaio com espanto eexpressão dolorosa e sombria.

"Deixa−o ir − acrescentou Zaratustradepois de longa reflexão, cravandosempre os seus olhos nos do velho.

Deixa−o ir − findou. E embora te honredizer só bem desse morto, tu sabescomo eu quem ele era, e que seguiacaminhos singulares".

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"Aqui, de três olhos − disse tranqüilizadoo Papa, que de um olho era cego −estou mais ao corrente das coisas deDeus que o próprio Zaratustra, e tenhodireito de o estar.

Longos anos o serviu o meu amor, aminha vontade seguia a sua por todaparte. Um bom servidor, porém, sabetudo e até certas coisas que o seusenhor oculta a si mesmo.

Era um Deus oculto, cheio de mistérios.Nem sequer alcançou um filho, senãopor caminhos escusados. As portas dasua crença encontra−se o adultério.

O que o louva como Deus do amor nãoforma juízo bastante elevado do amorem si.

Esse Deus não queria ser juiz também?Pois o que ama, ama acima do castigo eda recompensa.

Quando moço, esse Deus do Orienteera ríspido e estava sedento devingança: criou um inferno para deleitedos seus prediletos.

Por fim, fez−se velhoe brando e terno ecompassivo, assemelhando−se mais aum avô do que a um pai, e até mais auma avó decrépita.

Para ali estava murcho, sentado aocalor do lume, preocupado com afraqueza das pernas, cansado domundo, cansado de querer, e um diaacabou por se afogar em excessivapiedade.

"Antigo Papa − interrompeu Zaratustra −viste isso com os teus próprios olhos?Pode muito bem ter sido assim; assim etambém doutra maneira. Quando osdeuses morrem, é sempre de váriasespécies de mortes.

Mas desta ou doutra maneira, desta oudaquela, já não existe! Era contrário aogosto dos meus olhos e dos meusouvidos: eu nada pior queriaimputar−lhe.

A mim agrada−me tudo o que tem oolhar claro e fala francamente. Ele,porém, bem o sabes antigo sacerdote,

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tinha qualquer coisa da tua raça, dossacerdotes: era contraditório.

Também era confuso. Quanto nos nãolançou em cara esse colérico, por mácompreensão!

Mas por que não falava ele mais claro?

E se a culpa era de nossos ouvidos,para que nos deu ouvidos que oouvissem mal? Se nos nossos ouvidoshavia lama, quem no−lo pôs lá?

Saíram mal demasiadas coisas a esseoleiro que não concluíra aaprendizagem. Mas vinga−se nos seuscacos e nas suas vasilhas porque lhetinham saído más, foi um pecado contrao bom gosto.

Também há um bom gosto na piedade;esse bom gosto acabou por dizer:"Levai−nos tal deus! Vale mais não ternenhum, vale cada qual criar osdestinos ao seu capricho, vale mais serdoido,. vale mais ser deus uma pessoamesma!"

"Que ouço? − disse neste ponto o Papa,apurando o ouvido. − Zaratustra, comessa incredulidade, és mais piedoso doque julgas. Deve ter havido algum deusque te converteu à tua impiedade.

Não é a tua própria impiedade que teimpede de crer em um Deus? E a tuaexcessiva lealdade ainda te há deconduzir mais além do bem e do mal.

Vês o que te está reservado! Tensolhos, mão e boca que estãopredestinados a abençoar toda aeternidade. Não se abençoa Só com amão. A teu lado, embora queiras ser omais ímpio, percebe−se um secretoaroma de dilatadas bênçãos, um odorbenéfico e ao mesmo tempo dolorosopara mim.

Permite−me ser teu hóspede uma sónoite, Zaratustra! Em nenhuma parte daterra me sentirei melhor que a teu lado!"

" Amém – assim seja! – exclamouZaratustra, admiradíssimo. – Ali emcima está o caminho que conduz àcaverna de Zaratustra.

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Venerando, de boa vontade te levaria eumesmo porque estimo todos os homenspiedosos. Agora, porém, chama−mepara longe de ti um grito de angústia.

Nos meus domínios não deve sucedernada mau a ninguém: a minha cavernaé um bom porto. E eu quereria,sobretudo, pôr em terra firme e com opé direito todos os tristes.

Quem poderá, contudo, arrancar−te dosombros essa melancolia? Eu soudemasiado débil para isso. Na verdademuito precisaríamos esperar para quealguém ressuscitasse o teu deus.

Que esse Deus antigo já não é vivo;está morto e bem morto".

Assim falou Zaratustra.

O Homem mais Feio

E Zaratustra continuou a correr pelasmontanhas e pelas selvas, e os seusolhos esquadrinhavam sem cessar; masem nenhuma parte via aquele quequeria ver, o que clamava por socorro,atormentado por profunda angústia.Caminhava, todavia, muito satisfeito echeio de gratidão. "Que boas coisas −disse − este dia me tem dado, para meindenizar de o ter começado tão mal!Que singulares interlocutores encontrei!

Hei de ruminar muito tempo as suaspalavras como se fossem bons grãos;os meus dentes devem triturá−las emoelas muitas vezes, até me correrempela alma como leite".

Mas quando deu volta a outro penhascodo caminho, mudou de súbito apaisagem, e Zaratustra entrou no reinoda Morte. Surgiam ali negros evermelhos penhascos, e não havia erva,árvores, nem canto de pássaros. Queera um vale que todos os animaisdesprezavam, até as feras; só umaespécie muito feia de grandes cobrasverdes ia ali morar, quando envelhecia.Por isso os pastores chamavam aquelevale "Morte das serpentes".

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Zaratustra abismou−se em negrasrecordações, porque lhe parecia ter−sejá encontrado naquele vale. Epreocuparam−lhe o espírito coisas tãopesadas que foi demorando, demorandoo passo até que acabou por parar efechar os olhos.

Quando os abriu, viu qualquer coisasentada à beira do caminho, qualquercoisa onde com muito trabalho sereconheceria a forma de um homem,qualquer coisa inexprimível. EZaratustra sentiu enorme vergonha deseus olhos terem visto semelhantecoisa. Ruborizando−se até à raiz doscabelos, afastou os olhos e ergueu o pépara se retirar daquele lugar nefasto.Mas então se povoou de um ruído otétrico deserto: porque se elevou do soloum gorgolejo como o que faz a água denoite em campos tapados; esse ruídoacabou por se tornar voz humana ehumana palavra. A voz dizia:

"Zaratustra! Zaratustra! Adivinha o meuenigma! Fala! Qual é a vingança contraa testemunha?

Eu atraio−te para trás; aqui há geloresvaladiço. Cuidado, cuidado, não se tequebrem as pernas de orgulho!

Julgas−te sábio, orgulhoso Zaratustra!Pois adivinha o enigma, adivinha oenigma que eu sou.

Fala pois: quem sou eu?"

Mas quando Zaratustra ouviu estaspalavras, que pensais se lhe passou naalma?

Viu−se dominado pela compaixão,

e abateu−se de súbito como umcarvalho que, depois de resistir muitotempo aos lenhadores, cai de repente epesadamente com espanto dos própriosque queriam abatê−lo.

Logo, porém, se ergueu do solo e osemblante tornou−se−lhe duro.

"Conheço−te bem − disse com voz debronze: − és o assassino de Deus.Deixa−me ir embora.

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Não suportaste aquele que te viasempre e até ao mais íntimo teu, maisfeio dos homens! Vingaste−te dessatestemunha!"

Assim falou Zaratustra, e quis ir−seembora; mas o inexprimível segurou−opela roupa e começou a gorgolejar denovo e a procurar as suas expressões:"Detém−te!", disse por fim.

"Detém−te! Não passes de largo!Compreendi qual foi o machado que tederrubou!

Glória a ti, Zaratustra, que estás outravez de pé!

Adivinhaste − sei−o perfeitamente −quais eram os sentimentos do quematou Deus − do assassino de Deus −Fica. Senta−te aqui ao meu lado; nãoserá em vão. A quem queria euencontrar senão a ti? Fica e senta−te.Mas não olhes para mim. Respeitaassim... a minha fealdade!

Perseguem−me: agora tu és o meuúltimo refúgio. Não é que me persigamcom o seu ódio ou seus esbirros. Ó!Zombaria então de tais perseguições!Estaria orgulhoso e satisfeito.

Todo o triunfo não tem Sido até aqui dosque foram bem perseguidos?

E o que persegue bem facilmenteaprende a seguir − não vai já... atrás?

Trata−se, porém, da sua compaixão...

Da compaixão deles é que eu fujo aovir−me refugiar em ti. Defende−me,Zaratustra, último refúgio meu, único serque me adivinhou.

Adivinhaste os sentimentos daquele quematou Deus.

Fica! E se és tão impaciente te que tequeiras ir embora, não tomes o caminhopor onde eu vim. Esse caminho é mau,Tens−me rancor porque há muito tempoque te falo imprudentemente? Porque tedou conselhos? Fica sabendo que eu, omais feio dos homens, sou também oque tem o pé maior e mais pesado.Todo o caminho que pisei se tornou

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mau. Eu esmago e destruo os caminhostodos.

Bem vi, porém, que passavas por diantede mim em silêncio e que teenvergonhavas: nisso conheciZaratustra.

Outro qualquer atirar−me−ia umaesmola, a sua compaixão com o olhar ea palavra. Eu, porém, não sou bastantemendigo para isso: adivinhaste. Eu soudemasiado rico para isso, rico em coisasgrandes e formidáveis, as mais feias einexprimíveis! A tua vergonhahonra−me, Zaratustra!

Difícil me foi sair da multidão doscompassivos para encontrar o único queensina hoje que "a compaixão éimportuna" − para te encontrar a ti,Zaratustra.

Seja piedade de um Deus ou piedadedos homens, a compaixão é contrária aopudor. E não querer auxiliar pode sermais nobre do que essa virtude queassalta pressurosa e solícita.

Mas a isso mesmo é que toda a gentepequena chama hoje virtude acompaixão; tal gente não guardarespeito à grande desgraça, nem àgrande felicidade nem à grande queda.

Deito o meu olhar por cima dospequenos, como o de um cão, por cimados buliçosos rebanhos de ovelhas. Égentinha de boa vontade, parda epeluda.

Tempo demais se deu razão a essagentinha, e assim se acabou por se lhesdar igualmente o poder. Agora pregam:"Só o que a gentinha acha bom, é que ébom".

E hoje chama−se "verdade" ao que diziao pregador, que saiu das fileiras dessagente, aquele santo raro, aqueleadvogado dos pequenos que afirmavapor si só "eu sou a verdade".

E aquele homem imodesto que, ao dizer"eu sou a verdade", pregou um erromais que mediano, foi a causa de sepavonearem há muito as pessoaspequeninas.

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Acaso se respondeu alguma vez maiscortesmente a uma pessoa falha demodéstia?

E tu, Zaratustra, todavia, passaste pordiante dele dizendo:

"Não! Não! Mil vezes não!"

Tu deste a voz de alarme contra o seuerro; foste o primeiro a dar a voz dealarme contra a compaixão; não atodos, nem a nenhum, mas a ti e à tuaespécie.

Envergonhas−te da vergonha dosgrandes sofrimentos; e quando dizes:"Da compaixão vem uma grande nuvem,alerta, humanos". E quando ensinas:"Todos os criadores são duros, todo ogrande amor está por cima da suacompaixão", parece−me conheceresbom os sinais do tempo, Zaratustra!

Mas tu mesmo... livra−te também da tuaprópria piedade. Que há muitos que seencaminham para ti, muitos dos quesofrem, dos que duvidam, dos quedesesperam, dos que se afogam egelam...

Ponho−te também em guarda contramim. Adivinhas o meu melhor e o meupior enigma, adivinhaste−me a mimmesmo e o que tenho feito. Conheço omachado que te derruba.

Foi preciso, contudo, ele morrer: viacom olhos que tudo viam; via asprofundidades e os abismos do homem,toda a sua oculta ignomínia e fealdade.

A sua compaixão não conhecia avergonha; introduzia−se−me nos maissórdidos recantos. Foi mister morrer omais curioso, o mais importuno, o maiscompassivo.

Sempre me via; quis vingar−me de taltestemunha ou deixar de viver.

O Deus que via tudo, até o homem,esse Deus devia morrer! O homem nãosuporta a vida de semelhantetestemunha".

Assim falava o homem mais feio. EZaratustra levantou−se e dispôs−se a

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partir, porque estava gelado até àmedula, e disse:

"Tu, inexprimível, puseste−me emguarda contra o teu caminho. Para terecompensado−te o meu. Olha: ali emcima fica a caverna de Zaratustra.

A minha caverna é grande e profunda etem muitos recantos; o mais escondidoencontra lá o seu esconderijo. E pertohá cem rodeios e cem fugas para osanimais que se arrastam, revolteiam esaltam.

Tu, que te vês repelido e que terepeliste a ti mesmo, não queres vivermais entre os homens e da compaixãodos homens? Pois bem! Faz como eu!Assim aprenderás também comigo, só oque procede aprende.

E fala logo e em primeiro lugar aosmeus animais! Sejam para nós dois osverdadeiros conselheiros, o animal maisativo e o animal mais astuto!"

Assim falou Zaratustra, e prosseguiu oseu caminho ainda mais meditabundo evagaroso do que dantes, porque seinterrogava sobre muitas coisas a quelhe era difícil responder.

"Como o homem é mesquinho! −pensava interiormente. − Que feio, queagonizante e quão cheio de ocultavergonha!

Dizem que o homem se ama a simesmo! Ai! Como deve ser grande esseamor próprio!

Quanto desprezo tem contra si!Também aquele se amadesprezando−se: é para mim um grandedesprezador.

Nunca tropecei com ninguém que sedesprezasse mais profundamente. Istotambém é elevação. O, infortúnio!Talvez fosse aquele o homem superiorcujo grito ouvi!

Eu amo os grandes desprezadores. Maso homem é uma coisa que deve sersuperada".

Assim falou Zaratustra.

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O Mendigo Voluntário

Quando Zaratustra se apartou do maisfeio dos homens, teve frio, sentiu−se só;tantas coisas geladas e solitárias lhecruzaram o espírito que até os membrosse lhe arrefeceram.

Subindo, porém, cada vez mais pormontes e vales, e ao atravessar áridospedregais, que provavelmente tinhamsido noutras épocas leito de um rioimpetuoso, sentiu−se de repente maisvivo e animado. "Que me sucedeu? −perguntou a si mesmo.

− O que quer que seja cálido e vivo mereconforta; deve andar próximo de mim.

Já estou menos só; companheiros eirmãos rondam inconscientemente emtorno de mim; o seu quente hálito agitaa minha alma". Mas quando olhou emroda procurando os consoladores dasua soledade, viu que eram vacas, queestavam umas ao lado das outras numaelevação, fora a proximidade e o bafodesses animais que lhe haviamreanimado o coração. As vacasentretanto, parecia escutarematentamente alguém que falasse, e nãofaziam caso de quem se aproximava.

Já muito perto delas, Zaratustra ouviusair do centro claramente uma voz dehomem, e era visível, pois todasviravam a cabeça para o seuinterlocutor.

Então Zaratustra correu para omontículo e dispersou os animais,porque receava houvesse sucedidoalguma desgraça a alguém, coisa quedificilmente poderia remediar acompaixão das vacas. Enganava−se,porém; o que viu foi um homem sentadono solo, que parecia exortar os animaisa não terem medo dele. Era um homemagradável; um pregador das montanhas,cujos olhos predicavam a própriabondade. "Que procuras aqui?" −exclamou Zaratustra, admirado.

"Que procuro aqui! − respondeu ohomem. − O mesmo que tu, curioso!Isto é, a felicidade na terra.

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Por isso queria aprender com estasvacas. Que, fica sabendo, há meiamanhã que lhes estou falando, eiam−me responder. Por que asespantaste?

Se não tornarmos para trás e nãofizermos como as vacas, nãopoderemos entrar no reino dos céus.Que há uma coisa que deveríamosaprender delas: é ruminar.

E, claro, de que serviria o homemalcançar o mundo inteiro, nãoaprendesse a ruminar?

Não perderia a sua grande aflição.

Essa grande aflição que hoje se chamatédio. Quem não terá hoje o coração, aboca e os olhos cheios de tédio?Também tu. Também tu. Mas olha paraestas vacas!"

Assim falou o pregador da montanha;depois virou os olhos para Zaratustra −porque até então os fixaraamorosamente nos animais.

Logo se transformou, porém: "Comquem estou falando? − exclamou,assustado, saltando do solo.

Este é o homem sem tédio, Zaratustraem pessoa, o que triunfou do grandetédio; são os seus olhos, a sua boca, eo próprio coração de Zaratustra".

E, com essas palavras, beijou as mãosdaquele a quem falava, com olharafetuoso, e em tudo se comportavacomo uma pessoa a quem cai do céuinopinadamente um precioso dom oualgum tesouro. Entretanto as vacascontemplavam tudo aquilo comadmiração.

"Não fales de mim, homem singular eatraente! − respondeu Zaratustra,esquivando−se aos afagos. − Primeiroque tudo fala−me de ti. Não serás tu omendigo voluntário que noutro temporepudiou uma grande riqueza?

Não serás aquele que, envergonhadoda riqueza e dos ricos, fugiu para juntodos mais pobres a dar−lhes a suaabundância e o seu coração? Mas eles

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nada disso te aceitaram".

"Não me aceitaram − disse o mendigovoluntário; já o sabes. Por isso acabeipor vir ter com ~ animais e com estasvacas."

"Assim aprendeste − interrompeuZaratustra − que é muito mais difícil darbem do que aceitar bem; que dar bem éuma arte, é última e a mais astutamestria da bondade".

"Especialmente em nossos dias −respondeu o mendigo voluntário −especialmente hoje que tudo quanto ébaixo se ergue altivamente orgulhoso dasua raça; a raça plebéia. Já deves saberque chegou a hora da grandeinsurreição da populaça e dos escravos,a funesta insurreição, vasta e lenta. quecresce continuamente.

Agora os pequenos revoltam−se contratodos os benefícios e os donsmesquinhos; acautelam−se os que sãodemasiado ricos!

Há frascos bojudos que gotejam poucopor estreitos gargalos... a frascos assimé que se quer hoje cortar a cabeça.

Cobiça ansiosa, inveja acerba. vingançareconcentrada, orgulho plebeu; tudoisso me assaltou à cara. Não é jáverdade os pobres serembem−aventurados. O reino do céu estáentre as vacas".

"E por que não entre ricos?" −perguntou tentadoramente Zaratustra,impedindo que as vacas acariciassemcom o seu hálito o homem agradável.

"Por que me tentas? − respondeu este.− Tu mesmo o sabes muito melhor queeu. Que foi que me impeliu para os maispobres, Zaratustra? Não era a aversãoque sentia pelos mais ricos dosnossos?; pelos forçados da riqueza queaproveitam os seus lucros em todas asvarreduras, com olhos frios e olharesconcupiscentes?; por essa chusma queexala mau cheiro até o céu?; por essadourada e falsa populaça, cujosascendentes eram gente de unhascompridas, aves carnívoras, outrapaceiros, com mulheres

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complacentes, lascivas e esquecediças,pouco diferente de rameiras?

População acima! População abaixo!Que significam já hoje os "pobres", os"ricos"! Eu esqueci essa diferença eacabei por fugir para longe, cada vezmais longe, até vir ter com estas vacas".Assim falou o homem agradável, e aopronunciar aquelas palavras respiravaruidosamente, banhado em suor: tantoque as vacas tornaram a admirar−se.Zaratustra, porém, enquanto o homemfalava assim duramente, fitava nele osolhos, sorrindo e movendosilenciosamente a cabeça.

"pregador da montanha, estás−teviolentando ao empregar expressõestão duras. A tua boca e os teus olhosnão nasceram para tais durezas.

E ó teu estômago tampouco, segundome parece, resistem−lhe essa cólera,esse ódio e essa efervescência. O teuestômago precisa de coisas maisbrandas: não és carnívoro.

Antes me pareces herbívoro. Talvezmastigues grão. Em todo caso, não ésfeito para os gozos carnívoros, eagrada−te o mel.

"Adivinhaste−me perfeitamente −respondeu o mendigo voluntário, com ocoração aliviado. − Agrada−me o mel etambém môo grão, porque procurei oque tem bom gosto e purifica o hálito;também uma tarefa diária e umaocupação para a boca.

Estas vacas de certo foram muito maislonge: inventaram o ruminar e cair nocontrário. Assim se livram de todos ospensamentos pesados que incham asentranhas".

Zaratustra disse: "Pois então deveriasver também os meus animais, a minhaáguia e a minha serpente que não têmrival na terra. Olha: aquele é o caminhoque conduz à minha caverna; sê seuhóspede por esta noite. E fala com osmeus animais da felicidade dos animaisaté que eu regresse.

Agora, porém chama−me apressadopara longe de ti um grito de angústia.

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Também hás de encontrar na minhamorada mel fresco, favos de douradomel de glacial frescura: come−o!

Agora despede−te pressuroso das tuasvacas, homem singular e atraente,embora te custe; pois são os teusmelhores amigos e mestres!"

"À exceção de um só, a quem prefiro −respondeu o mendigo voluntário. − Tués bom, e ainda melhor que uma vaca,Zaratustra!"

"Foge daqui! Vil adulador − exclamou,colérico, Zaratustra. − Porque melisonjeias com tal mel de elogios e delisonjas?"

"Foge, foge para longe de mim!", gritououtra vez, brandindo o bordão nadireção do mendigo adulador. Este,porém, fugiu com presteza.

A Sombra

Apenas o mendigo voluntário fugira,Zaratustra, outra vez sozinho, ouviuuma voz desconhecida gritar: "Pára,Zaratustra! Espere! Sou eu, Zaratustra;eu, a tua sombra!" Zaratustra, porém,não esperou, porque o invadiu umgrande desgosto ao ver a multidão quese amontoava nas montanhas. "Que foifeito da minha soledade? − disse.

É demais; estas montanhas formigam; omeu reino já não é deste mundo;preciso de novas montanhas.

Chama−me a minha sombra? Que meimporta a minha sombra? Corra atrás demim... e eu adiante dela!"

Assim dizia consigo Zaratustra, fugindo;mas o que estava atrás dele seguia−o,de forma que eram três a correr umatrás do outro: primeiro o mendigovoluntário, a seguir Zaratustra, e emúltimo lugar a sua sombra.

Não corriam há muito ainda quandoZaratustra caiu em si, reparou na sualoucura, e de uma sacudidela expulsoupara longe de si todo o despeito eaborrecimento.

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"Quê, exclamou. − Não têm acontecidosempre entre nós outros, santos eeremitas, as coisas mais risíveis?

Na verdade, a minha loucura cresceunas montanhas! Agora ouço soar, umasatrás das seis velhas pernas de loucos!

Terá Zaratustra o direito de se assustarcom uma sombra? E acabo poracreditar que ela tem as pernas maiscompridas que as minhas". Assim falouZaratustra rindo com vontade.

Deteve−se, virou repentinamente equase atirou ao chão a sombra que operseguia: tão agarrada ia aos seustacões e tão fraca era. Ao examiná−la,admirou−se como se de repente lhehouvesse aparecido um fantasma: tãofraco, negro e não era o seuperseguidor, e tão arruinado lhe parecia.

"Quem és ? − perguntouimpetuosamente Zaratustra. − Quefazes aqui? E por que te chamas minhasombra? Não me agradas".

"Perdoa−me − respondeu a sombra −ser eu, e não te agradar, felizmente,Zaratustra! Isso diz muito em teu abonoe a favor do teu bom gosto.

Eu sou um viajante que já há muitotempo te segue as pegadas: sempre acaminhar, mas sem destino nem lugar;de forma que pouco me falta para serjudeu errante, salvo não ser judeu nemeterno.

Quê? Hei de caminhar sempre? Hei deme ver arrastado sem trégua peloremoinho de todos os ventos? Ó, terra,tornaste−te demasiado redonda!

Já me coloquei em todas as superfícies;à semelhança do cansado pó; adormecinos espelhos e nas vidraças. Tudorecebe de mim; ninguém me dá; eudiminuo, quase pareço uma sombra.

Mas a quem tenho seguido eperseguido mais tempo tem sido a ti,Zaratustra; e conquanto me tenhaocultado de ti, fui, todavia, a tua melhorsombra; onde quer que parasses,parava eu também. Contigo vagueipelos mais longínquos e frios mundos,

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como um fantasma que se compraz emcorrer por caminhos invernais e de gelo.

Contigo aspirei a todo o proibido, a todoo pior e mais longínquo; e se algumavirtude há em mim, é não temernenhuma proibição.

Contigo aniquilei quanto o meu coraçãoadorou, derribei todas as barreiras etodas as imagens, correndo após osmais perigosos desejos: realmente,passei uma vez por todos os crimes.

Contigo esqueci a fé nas palavras, osvalores, e os grandes nomes. Quando odemônio muda de pele, não muda aomesmo tempo de nome? Que essenome é apenas pele. Talvez mesmo odemônio não seja mais... que uma pele.

Nada é verdade; tudo é permitido; assimme consolei a mim mesmo. Lancei−menas águas mais frias, de coração e decabeça. Ai! Quantas vezes me vi nu eencarnado em caranguejo!

Ai! Para onde foi tudo o que é bom, etoda a fé nos bons? Ai, para onde fugiuaquela inocência enganadora quedantes possui a inocência dos bons edas suas nobres mentiras? Comdemasiada freqüência pisei a verdade, eela então saltou−me ao rosto. As vezesjulgava mentir, e o caso é que só entãoaflorava a verdade. Demasiadas coisasse me tornaram claras; agora já não meimportam. Já nada vive do que eu amo.Como poderia amar−me ainda a mimmesmo? Viver como me agrade, ou nãoviver de modo nenhum, eis o que quero,eis o que quer também o mais santo.

Mas, ó, desventura! Como poderia eusatisfazer−me ainda?

Acaso tenho... um fim? Um porto paraonde encaminhe a minha vela?

Um bom vento? Ai! Só o que sabe ondevai, sabe também qual é o seu vento,qual é o seu vento próspero.

Que me resta? Um coração fatigado eimpertinente, uma vontade instável,asas trêmulas, uma espinha quebrada.Esse afã de correr em busca da minhamorada, sabes Zaratustra? Esse afã foi

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a minha obsessão: devora−me.

Aonde está... a minha morada? Eis oque pergunto, o que procuro, o queprocurei e não encontrei. Ô, eterno "emtoda a parte!" Ó, eterno em "partenenhuma". Ó, eterno... "em vão!"

Assim falava a sombra, e o semblantede Zaratustra dilatava−se ao ouvi−la. "Éa minha sombra! − disse afinal, comtristeza.

Não é pequeno o teu perigo, espíritolivre e vagabundo! Tiveste mau dia:cuidado não se lhe siga uma noite pior.

Vagabundos como tu acabam por seencontrar bem até num cárcere. Jáalguma vez viste como dormem oscriminosos presos? Dormemtranqüilamente: fruem nova segurança.Não acabe por se apoderar de ti uma féacanhada, uma ilusão dura e severa!Que atualmente tenta e te reduz o que éestreito e sólido.

Perdeste o alvo, desgraçado! Como tepoderias consolar dessa perda? Porisso perdeste também o caminho!

Pobre vagabundo, espírito volúvel,mariposa fatigada! Queres ter esta noitedescanso e asilo? Vai para a minhacaverna!

Por ali acima é o caminho que conduz àminha caverna. E agora quero tornar afugir de ti. Já pesa sobre mim uma comosombra.

Quero correr sozinho para tudo aclararem torno de mim. Por isso precisomover alegremente as pernas durantemuito tempo. Esta noite... com certeza...há de haver baile na minha habitação!"

Assim falou Zaratustra.

Ao Meio−Dia

E Zaratustra correu e correu sem parar,mas não tropeçou com pessoanenhuma. Ia só, tornando aencontrar−se sempre consigo mesmo,gozando a sua solidão e pensando em

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boas coisas durante horas inteiras. Aomeio−dia, contudo, quando o sol seencontrava exatamente sobre a suacabeça, Zaratustra passou por diante deuma idosa árvore retorcida e nodosa,tão envolvida pelo rico amor de umavinha que de todo a ocultava: dessaárvore caiam, abundantes, maduroscachos que convidavam o viandante.Zaratustra teve desejos de acalmar asede que sentia, arrancando um cachode uvas, e já estendia a mão para isso,quando o acometeu outro desejo aindamais violento: o desejo de se deitar aopé da árvore, em pleno meio−dia, paradormir.

E assim fez; e enquanto esteveestendido no meio do silêncio e domistério da esmaltada erva, esqueceu asede e adormeceu.

Que, como diz o provérbio deZaratustra, vasa maior tira menor. Osolhos, contudo, conservavam−se−lheabertos; é que se não cansavam deolhar e gabar a árvore e o amor davinha. Entre os seus devaneios,Zaratustra falou assim ao seu coração.

"Silêncio! Silêncio! Não acaba de seconsumar o mundo? Que é que mesucede?

Como um vento delicioso passa invisívelsobre a superfície do mar, tão leve, tãoligeiro como uma pena, assim o sonopassa por mim.

Não me cerra os olhos, deixa a minhaalma acordada.

Na verdade, é leve, leve como umapena.

Persuade−me, não sei como: afaga−meinteriormente com mão carinhosa,domina−me. Sim; domina−me a pontode a alma se me dilatar.

Como se deita ao comprido a minhaalma singular!

Chegaria para ela, em plena metade dodia, a noite de um sétimo dia? Vagueoujá, feliz demasiado tempo pelas coisasboas e maduras?

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Deita−se ao comprido, mas cada vezmais ao comprido. Está tranqüilamentedeitada a minha alma singular. Jásaboreou demasiadas coisas boas, estadourada tristeza oprime−a.

Como barca que entrou na sua maisserena baía, se encosta agora à terra,fatigada das longas viagens e dosmares incertos. Não é a terra mais fiel?

Como uma barca se encosta e arrima àterra, basta então que uma aranhaestenda o seu fio da terra até ela. Não épreciso cabo mais forte.

Como uma dessas barcas fatigadas, namais tranqüila baía assim agora eurepouso também perto da terra, fiel,confiado, esperando, preso à terra pelosmais tênues fios.

Ó, ventura! Õ, ventura! Queres cantar,minha alma?

Está deitada na erva. Esta, porém, é ahora secreta e solene em que nenhumpastor sopra flauta.

Acautela−te! O calor do meio−diarepousa nos prados. Não cantes!Silêncio! O mundo consumou−se.

Não cantes, aves dos prados, minhaalma! Nem sequer murmures! Olhabem... Silêncio! O velho dormita; mexe aboca; não beberá neste instante umagota de felicidade? Uma rasa gota defelicidade? Uma rasa gota de felicidadedourada, de dourado vinho? A felicidadedesliza por ele e sorri. Assim sorri umdeus! Silêncio!

"Como é preciso pouco para afelicidade!" − assim dizia eu noutrasépocas, julgando−me sábio. − Era,porém, uma blasfêmia: isto foi o queaprendi agora. Os doidos sábios dizemcoisas melhores.

O mínimo, precisamente, o mais tênue,o mais leve, um roçar de lagarto, umsopro, um cht! um abrir e fechar deolhos, o pouco é o característico damelhor felicidade. Silêncio! Que mesucede? Escuta. Acaso me feriu otempo? Não cairei... não caí − escuta! −no poço da eternidade?

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− Que me sucede? Silêncio. Estouferido, desditoso de mim! no coração?No coração! Ó, solta−te, meu coração,depois de tal felicidade, depois desemelhante ferida!

Quê! Não se acabará de consumar omundo redondo e sazonado? Ó,redonda e dourada maturação! Aondevoará? Correrei em seu seguimento?Chf!

"Silêncio' Neste ponto, Zaratustraestirou−se e sentiu que dormia.

"Levanta−te, dorminhoco, preguiçoso –disse consigo mesmo. – vamos, velhaspernas! É tempo e mais qu tempo: aindanos falta andar uma boa parte docaminho. Entregaste−te ao sono.Durante quanto tempo? Meiaeternidade! Vamos, levanta−te tu agora,velho coração. Depois de tal sono,quanto tempo precisará para despertar?(Já outra vez, porém, adormecia, e aalma resistia−lhe e defendia−se etornava a deitar−se ao comprido.)Deixa−me! Silêncio. Não se acabou deconsumar o mundo? Ó, essa bola"redonda e dourada!"

"Levanta−te, preguiçosa! − disseZaratustra. − Que é isso de estaressempre a esticar−te, bocejando,suspirando, caindo no fundo dos poçosprofundos?

Quem és tu, então? Ó, alma minha! Enesse momento assustou−se porque docéu lhe caia um raio de sol sobre osemblante.

"Ô, céu! − disse com um suspirotornando a si. − Contemplas−me?Escutas a minha alma singular?

Poço da eternidade, alegre abismo domeio−dia que faz estremecer... quandoabsorverás em ti a minha alma?"

Assim falou Zaratustra ao pé da árvore,e ergueu−se como se saísse deestranha embriaguez; entretanto o solachava−se exatamente por cima dacabeça dele, do que se podia inferir comrazão que Zaratustra pouco dormira.

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A Saudação

Ia já a tarde muito alta quandoZaratustra, depois de inúteis correriasvoltou à sua caverna. Quando, porém,se encontrava apenas a vinte passos daentrada sucedeu o que menos se podiaesperar:

tornou a ouvir o grande grito deangústia. E, coisa assombrosa, naqueleinstante o grito saía mesmo da suacaverna; mas era um grito prolongado,estranho e múltiplo, e Zaratustradistinguia nele perfeitamente muitasvozes, conquanto à distância parecesseprovir de uma só boca.

Zaratustra precipitou−se para a caverna.Que espetáculo o esperava a seguiraquele concerto! Estavam ali reunidostodos os que encontrara durante o dia: orei da direita e o rei da esquerda, ovelho encantador, o Papa, o mendigovoluntário, a sombra, o consciencioso, olúgubre adivinho e o jumento; o homemmais feio colocara uma coroa e cingiraduas faixas de púrpura − porquegostava de se disfarçar e adornar comotodos os feios. − No meio daquela tristereunião, a águia de Zaratustra estava depé inquieta e com as penas eriçadas,porque tinha de responder ademasiadas coisas para que o seuorgulho não tinha resposta; e a astutaserpente enroscara−se−lhe em torno dopescoço.

Zaratustra olhou tudo aquilo com grandeassombro; depois examinou cada umdos hóspedes de per si, com benévolacuriosidade, lendo nas suas almas etornando a assombrar−se. Enquanto eleassim fazia, os que estavam reunidoslevantaram−se, aguardandorespeitosamente que Zaratustratomasse a palavra.

E Zaratustra falou assim:

"Homens singulares, que desesperais!Foi pois o vosso grito de angústia queouvi? E sei agora aonde hei de ir buscaro que hoje procurei em vão, o homemsuperior.

Está sentado na minha própria caverna!Para que me hei de admirar? Fui eu

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mesmo que o atrai com os meusoferecimentos de mel e com a maliciosatentação da minha felicidade.

Mas vós proferis gritos de angústia,parece−me que andais muito emdesacordo; os vossos coraçõesentristecem−se uns aos outros aover−vos aqui reunidos. Primeiro de tudodevia ter estado aqui alguém: que vosfizesse rir outra vez, um chistoso, umdançarino, um cata−vento, umaventoinha, algum velho louco: que vosparece isto? Perdoem−me os quedesesperam empregar eu tão frívolaspalavras, indignas, na verdade, de taishóspedes! No entanto, não imaginais oque me enche de petulância o coração.

Desculpai−me! Sois vós mesmos, e oespetáculo que me ofereceis. Que todoo que contempla um desesperado cobraânimo. Para consolar um desesperado...qualquer se julga forte bastante.

A mim destes−me vós essa força − umdom precioso, hóspedes ilustres, umverdadeiro presente de hóspedes! Poisbem, não vos enfadeis se por minha vezvos ofereço o meu.

Este é o meu reino e o meu domínio;mas o que me pertence deve ser vossodurante esta tarde e esta noite.Sirvam−vos os meus animais, e seja aminha caverna o vosso lugar derepouso!

Aqui albergados, nenhum de vós devedesesperar; eu protejo toda a gentecontra os animais selvagens dos meusdomínios. Segurança: eis a primeiracoisa que vos ofereço!

A segunda é o meu dedo mínimo. E sevos dou o dedo mínimo, tomareis a mãointeira e o coração ao mesmo tempo.Sede bem−vindos aqui; saúde,hóspedes meus!"

Assim falou Zaratustra, com amável emalicioso sorriso. Depois daquelasaudação os hóspedes tornaram ainclinar−se guardando respeitososilêncio; mas o rei da direita respondeuem nome de todos:

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"Na maneira de nos ofereceres a mão, ena tua saudação, Zaratustra,conhecemos quem és. Curvaste−te antenós.

Mas quem, como tu, saberia curvar−secom tal orgulho? Isto nos enaltecereconfortando−nos.

Só para contemplar tal coisa subiríamosde bom grado a montanhas mais altasdo que esta. Porque viemos ávidos doespetáculo: queríamos ver o que aclaraolhos turvos.

E agora acabaram−se todos os nossosgritos de angústia. Já estão abertos eextasiados os nossos sentidos e osnossos corações. Um pouco mais, e onosso ânimo brilhará desenfadado.

Zaratustra, na terra nada cresce maissatisfatório do que uma elevada e firmevontade. Uma elevada e firme vontade éa planta mais bela da terra. Semelhanteárvore anima uma paisagem inteira.

Eu comparo a um pinheiro. Zaratustra,aquele que, como tu. cresce esbelto,silencioso, duro, solitário, feito damaneira mais flexível, soberbo,querendo enfim tocar o seu senhoriocom verdes e vigorosos ramos, dirigindoenérgicas perguntas aos ventos, astempestades, a quanto é familiar àsalturas, e respondendo maisenergicamente ainda imperativo evitorioso. Ah! Quem não subiria àsalturas para contemplar semelhantesplantas?

A vista da tua árvore, Zaratustra, animao triste e abatido e também acalma oinquieto e cura o seu coração. E,certamente, para a tua montanha e paraa tua árvore dirigem−se hoje muitosolhares; há muitos que aprenderam aperguntar: "Quem é Zaratustra?"

E todos aqueles em cujos ouvidoschegaste a destilar o teu mel e as tuascanções, todos os ocultos, todos ossolitários disseram de repente ao seucoração: "Ainda vive Zaratustra? Já nãovale a pena viver; tudo é igual, tudo évão, se não vivemos com Zaratustra!"

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"Por que não chega o que se anunciouhá tanto tempo? − assim pergunta umgrande número. − Devorá−lo−ia asoledade? Ou nós é que o devemosbuscar?"

Agora até a própria soledade abranda ese quebra, como túmulo que se abre ejá não pode reter os seus mortos. Portoda parte se vêm ressuscitados.

Agora as ondas sobem cada vez maisem torno da tua montanha, Zaratustra.E, apesar da elevação da tua altura, émister que muitas subam até ti; a tuabarca já não deve permanecer muitotempo abrigada.

E termos vindo à tua caverna, nós, osque desesperamos, e já nãodesesperamos, não é senão um sinal eum presságio de que vêm a caminhooutros melhores do que nós.

Porque a caminho para ti se encontratambém o último resto de Deus entre oshomens; quer dizer, todos os homensde grande anelo, do grande tédio, dagrande sociedade. Todos os que nãoquerem viver sem poder aprender aesperar novamente; a aprender contigo,Zaratustra, a grande esperança!

Assim falou o rei da direita, e pegou namão de Zaratustra para lha beijar, masZaratustra subtraiu−se à sua veneraçãoe retrocedeu assombrado, silencioso esumindo−se de repente, como muito aolonge. Passados instantes, todavia,voltou para o pé dos seus hóspedes e,olhando−os com olhos límpidos eperscrutadores, disse:

"Hóspedes meus, homens superiores,quero−vos falar em alemão eclaramente; não era a vós que euesperava nas montanhas".

"Em alemão e claramente? Deus nosacuda! − disse então à parte o rei daesquerda. − Bem se vê que este sábiodo Oriente não conhece estes bonsalemães! Quererá dizer "em alemão ebarbaramente". Bom! Hoje ainda não éeste o pior dos gostos!"

Zaratustra continuou:

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"Pode ser que todos vós sejaissuperiores, mas para mim não soisbastante altos nem bastante fortes.

"Para mim" significa o implacável quereside em mim, mas que não residirásempre. E se me pertenceis, não é,todavia, como meu braço direito.

Que o que anda com pernas doentes efracas, como vós, primeiro que tudoquer − conscientemente ou não − que ocontemplem.

Eu, porém, não guardo contemplaçõescom os meus braços e as minhaspernas, eu não guardo contemplaçõescom os meus guerreiros.

Como poderíeis ser bons para a minhaguerra?

Convosco perderia todas as vitórias, ehá alguns de vós que cairiam só aoouvir o rufar dos meus tambores.

Também para mim não sois bastantebelos nem bem nascidos. Para asminhas doutrinas preciso espelhoslímpidos e polidos; na vossa superfíciedesnaturar−se−ia a minha própriaimagem.

Sobre os vossos ombros pesam muitascargas, muitas recordações; nos vossosrecônditos estão sentados muitos anõesmaldosos. Também em vós hápopulação escondida.

E embora sejais elevados e de espéciesuperior, em vós encerram−se muitascoisas torcidas e disformes. Não háferreiro no mundo capaz de vosreformar e endireitar.

Apenas sois pontes; passe sobre vóspara o outro lado gente mais elevada!Representais degraus; não vosenfadeis, portanto, com aquele quesuba por cima de vós até à sua altura.

Talvez da vossa semente nasça um diapara mim um verdadeiro filho, umherdeiro completo; mas esse ainda estáafastado.

Vós, porém, não sois os seres a quempertencem o meu nome e os meus bens

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deste mundo. Não é a vós que esperonestas montanhas, não é convosco quetenho o direito de descer pela últimavez. Vós apenas sois sinaisprecursores, anúncios de que seencaminham para mim outros maiselevados; e não os homens do grandeanelo, do grande tédio, da grandesociedade e aquilo a que chamastes"resto de Deus sobre a terra".

Não, não! Mil vezes não! A outrosespero nestas montanhas e sem elesnão me arredo daqui; espero outrosmais altos, mais fortes, mais vitoriosos,mais alegres. retangulares do corpo ealma. E preciso chegarem os leõesrisonhos!

Hóspedes meus, homens singulares,ainda não ouvistes falar dos meusfilhos? Não ouvistes dizer que seencaminham para aqui?

Falai dos meus jardins, das minhas IlhasBem−aventuradas, da minha bela enova espécie. Por que me não falaisdisso?

Da vossa estima imploro esta fineza:falai−me de meus filhos. Para isso sourico, para isso me empobreci. Quantodei!

E quanto daria para ter uma coisa:esses filhos, essas plantações vivas,essas árvores da vida da minha vontadee da minha mais alta esperança!"

Assim falou Zaratustra, mas interrompeude súbito o discurso porque o assaltou oseu grande desejo, e cerrou os olhos ea boca, tal era a agitação do seu peito.

E todos os hóspedes guardaram silênciotambém e permaneceram imóveis econfusos, a não ser o velho feiticeiro,que acenava com as mãos e contraía osemblante.

A Ceia

Que neste ponto o feiticeiro interrompeua saudação de Zaratustra e doshóspedes, adiantou−se pressurosocomo quem não tem tempo a perder,

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pegou na mão de Zaratustra eexclamou: "Mas Zaratustra! Umascoisas são mais necessárias do queoutras, segundo tu mesmo dizes. Poisbem! Agora há uma coisa que para mimé mais necessária do que todas asoutras.

O prometido é devido; não meconvidaste para uma refeição? Estãoaqui muitos que deram longascaminhadas, e é de supor que os nãoqueiras satisfazer com palavras.

Já a todos falaste demasiado de morrerde frio, de se afogarem, asfixiarem e deoutras fraquezas do corpo; mas aindaninguém se lembrou da minha fraqueza:o receio de morrer de fome".

Assim falou o adivinho; mas, ao ouvirestas palavras, os animais de Zaratustrafugiram espantados, pois viram que oque tinham trazido durante o dia nãochegava nem para o adivinho só.

"Ninguém se lembra do receio de morrerde fome − prosseguiu o adivinho. − Econquanto ouça correr a águaabundante e infatigavelmente, como osdiscursos da sabedoria, eu, pela minhaparte, quero vinho!

Nem todos são, como Zaratustra,bebedores natos de água; a águatambém não é boa para gente cansadae prostrada; nós precisamos de vinho,só o vinho cura rapidamente e dá saúderepentina!

Neste somenos, enquanto o adivinhopedia vinho, o rei da esquerda, osilencioso, tomou também a palavradizendo: "Do vinho nos encarregaremosnós, eu e o meu irmão, o rei da direita;vinho temos bastante uma cargacompleta de burro. − Não falta, portanto,senão pão".

"Pão − exclamou Zaratustra, rindo. −Pão, positivamente, não têm ossolitários. No entanto o homem não sealimenta só de pão, mas também deboa carne de carneiros, e eu tenho dois.

É esquartejá−los depressa earomatizá−los com salva, que é assimque me agrada a carne de cordeiro. E

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não nos faltam raízes nem frutos queaté contentariam gastrônomos epaladares delicados, nem nozes eoutros enigmas que partir.

Vamos, pois fazer já boa refeição. Masquem quiser comer conosco precisa pôrmãos a obra, inclusive os reis.

Que nos domínios de Zaratustra até umrei pode ser cozinheiro".

A proposta agradava a todos; o mendigovoluntário era o único que se opunha àcarne, ao vinho e às espécies. "Olhem oglutão do Zaratustra! − disse em ar dezombaria. − Vêm−se então para ascavernas e para as altas montanhaspara celebrar semelhantes festins?Agora compreendo o que ele nospredicou noutra ocasião: "Bendita seja apequena pobreza!" É porque quersuprimir os mendigos". "Tem bomhumor como eu − respondeu Zaratustra.− Conserva os teus hábitos, bomhomem! Mastiga o teu grão, bebe a tuaágua, gaba a tua cozinha, de forma quete contentes.

Eu apenas sou lei para os meus, nãosou uma lei para toda gente. Masaquele que pertencer ao número dosmeus têm de ter ossos fortes e pernaságeis; há de ser animado para asguerras e festins; nem sombrio nemsonhador; disposto para as coisas maisdifíceis como para uma festa; são erobusto. O melhor que existepertence−nos, a mim e aos meus, e senão no−lo derem, tomamo−lo: o melhoralimento, o céu mais puro, ospensamentos mais fortes, as mulheresmais formosas!"

Assim falou Zaratustra; e o rei da direitarespondeu: "É singular! Nunca seouviram coisas tão judiciosas na bocade um sábio.

E ainda mais singular por se tratar deum sábio que é, todavia, inteligente,nada tem de asno".

Assim falou admirado o rei da direita, eo jumento concluiu maliciosamente comum I. A.

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E foi este o princípio da longa refeiçãoque se chama "a ceia" nos livros dehistórias. Durante essa refeição só sefalou do homem superior.

O Homem Superior

I

Quando pela primeira vez estive com oshomens cometi a loucura do solitário, agrande loucura: fui para a praça pública.

E como falava a todos, não falava aninguém. E de noite tinha porcompanheiros volatins e cadáveres; eupróprio era quase um cadáver!

A nova manhã trouxe−me uma novaverdade; aprendi então a dizer: "Que meimportam a praça pública e a populaça eas orelhas compridas da populaça?"

Homens superiores, aprendei istocomigo, na praça pública ninguémacredita no homem superior. E seteimais em falar lá, a populaça diz:"Todos somos iguais".

"Homens superiores – assim diz apopulaça. – Não há homens superiores;todos somo iguais; perante Deus umhomem não é mais do que outro; todossomos iguais!"

Perante Deus! Mas agora esse Deusmorreu; e perante a população nós nãoqueremos ser iguais. Homenssuperiores, fugi da praça pública!

II

Perante Deus! Mas agora esse Deusmorreu! Homens superiores, esse Deusfoi o vosso maior perigo.

Ressuscitastes desde que ele jaz nasepultura. Só agora torna o GrandeMeio−Dia; agora torna−se senhor ohomem superior. Compreendeis estapalavra, meus irmãos? Assustai−vos:apodera−se−vos do coração avertigem? Abre−se aqui para vós oabismo? Ladravos o cão do inferno?

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Homens superiores! Só agora vai dar àluz a montanha do futuro humano. Deusmorreu: agora nós queremos que viva oSuper−homem.

III

Os mais preocupados perguntam hoje:"Como se conserva o homem? MasZaratustra pergunta – e é o primeiro eúnico a fazê−lo: Como será o homemsuperado?" O super−homem é que mepreocupa; para mim é ele o primeiro e oúnico, e não o homem; não o próximo, omais pobre, nem o mais aflito, nem omelhor.

Meus irmãos, o que eu posso amar nohomem é ele ser uma transição e umfim. E em vós também há muitas coisasque me fazem amar e esperar.

Desprezastes, homens superiores; éisso que me faz esperar, porque osgrandes desprezadores são também osgrandes reverenciadores.

Desesperastes, coisa que merecegrande respeito; porque nãoaprendestes a render−vos, nemaprendestes a ser prudentes.

Hoje, os pequenos tomaram−sesenhores: todos pregam a resignação ea modéstia e a prudência, e a aplicação,e as considerações, e as virtudespacatas.

O que é que de espécie feminil, o queprocede de servil condição, e mormentea turba plebéia, é o que quer agoraassenhorear−se do destino humano.Horror! Horror! Horror!

Esse pergunta uma e outra vez, sem secansar: "Como se conservará o homemmelhor, mais tempo e maisagradavelmente? "Assim são hoje ossenhores".

meus irmãos! Subjugai−me essessenhores atuais, subjugai−me essagentinha: é o maior perigo doSuper−homem.

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Homens superiores, dominai as virtudesenganosas, as considerações com osgrãos de areia, o bulício de formigas, aruim complacência, a "felicidade dosoutros!" A ter de vos renderdes preferidesesperar.

Amo−vos deveras, homens superiores,porque hoje não sabeis viver! Poisassim viveis... melhor!

IV

Tendes valor, meus irmãos? Estaisdecididos? Não falo de valor, perantetestemunhas, mas de valor, desolitários, valor de águias, do que nãotem por espectador nenhum deus.

As almas frias, os cegos, os bêbados,não têm o que eu chamo coração.Coração tem aquele que conhece omedo, mas domina o medo; o que vêabismo, mas com arrogância.

O que vê o abismo, mas com olhos deáguia; o que se prende ao abismo comgarras de águia: é este o valoroso.

V

"O homem é mau." Assim falavam osoutros sábios para consolo meu. Ai! Seisto fosse verdade ainda hoje! Que omal é a melhor força do homem.

"O homem deve−se fazer melhor e pio."É isso o que conselho, pela minha parte!O maior mal é necessário para o maiorbem do Super−homem.

Padecer pelos pecados dos homenspodia ser bom para o tal pregador doshumildes.

Eu, porém, rejubilo como grande pecadocomo minha maior consolação. Estascoisas não são ditas para as orelhascompridas; e nem toda a palavraconvém a toda a boca. Isto são coisassutis e afastadas: não as devemapanhar patas de carneiros.

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VI

Homens superiores: acreditais queestou aqui para fazer bem ao que vósfizestes mal?

Ou que quero daqui por diante deitarmais comodamente os que sofrem? Ouensinar−vos, a vós, que andais errantese extraviados e perdidos na montanha,caminhos mais fáceis?

Não! Não! Mil vezes não! É preciso quemorram cada vez mais e os melhores davossa espécie: porque é preciso que ovosso destino seja cada vez maisrigoroso. Só assim... Só assim cresce ohomem até à altura em que o raio o feree aniquila! Há suficiente altura para oraio.

A minha inteligência e o meu anelotendem para o raio, para o durável, parao afastado: que me importaria a vossamesquinha, comum e breve fraqueza?Para mim ainda não sofreis bastante.Pois sofreis por vós; ainda não sofrestespelo homem. Mentiríeis se dissésseis ocontrário! Vós não sofreis pelo que eusofri.

VII

Não me basta que o raio já nãoprejudique.

Não quero desviá−lo; quero queaprenda a trabalhar para mim.

A minha sabedoria acumula−se hámuito tempo como uma tempestade;cada vez se torna mais tranqüila esombria. Assim faz toda a sabedoriaque há de chegar a engendrar o raio.

Para estes homens de hoje não queroser nem chamar−me luz. A estes...quero cegá−los. Raio da minhasabedoria, cega−os!

VIII

Nada quereis superior às vossas forças:adoecem de deplorável hipocrisia os

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que querem coisas superiores às suasforças.

Mormente quando querem grandescoisas! Que esses moedeiros falsos,esses cômicos sutis despertam adesconfiança pelas grandes coisas, eacabam por serem falsos consigomesmos, gente de olhar de revés, entesretrógrados, disfarçados com palavrassolenes, de virtudes aparatosas, deobras ,vistosas. Muito cuidado com eles,homens superiores!

Para mim nada é hoje mais precioso eraro do que a probidade.

Não pertence isto hoje à populaça? Poisa populaça não sabe o que é grande, oque é pequeno, o que é reto nem o queé honrado: é inocentemente tortuosa;mente sempre.

IX

Homens superiores! Homens animosos!Homens francos! Abri hoje uma salutardesconfiança! E conservai secretas asvossas razões; porque isto hojepertence à populaça. O que a populaçaaprendeu a crer sem razão quem opoderia derrubar à sua vista com razão?

Na praça pública convence−se comgestos. As razões inspiramdesconfiança à populaça.

E se alguma vez triunfa lá a verdade,perguntai a vós mesmos com salutardesconfiança? "Que grande erro lutariaem prol dela?"

Livrai−vos também dos doutos!Odeiam−vos porque são estéreis ! Têmolhos frios e secos, aos quais todo opássaro parece depenado.

Gabam−se de não mentir, mas aincapacidade de mentir está ainda muitolonge do amor à verdade.Acautelai−vos!

A ausência de ardor difere muito doconhecimento. Eu não creio nosespíritos frios. O que pode mentir ignorao que é a verdade.

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X

Se quereis subir, servi−vos das vossaspernas! Não vos deixeis levar ao alto,não vos senteis nas costas nem nacabeça de outrem!

Montastes a cavalo! Galopas agora embom passo até o fim? Bem, meu amigo!Mas o teu pé coxo vai também a cavalo!

Quando chegares ao teu fim, quandodesceres do cavalo, homem superior,tropeçarás precisamente na tua altura.

XI

Homens superiores! Homens que criais!Não se concebe senão ao teu própriofilho.

Não vos deixeis induzir em erro! Quemé, pois, o vosso próximo? E tambémfazeis as coisas "pelo próximo"! Nãocrieis, contudo, por ele.

Esquecei esse "por" vós todos quecriais: a vossa virtude quer justamenteque nada façais "por" nem "devido a"nem "porque".

Precisais cerrar os ouvidos a essaspalavras falsas.

O "pelo próximo" não passa de virtudedos pequenos, dos que dizem "assimcomo fizeres assim acharás" e "umamão lava a outra"; tal gente não tem odireito nem a força do vosso egoísmo.

No vosso egoísmo, criadores há aprevisão e a precaução da mulherprenhe! O que ainda ninguém viu comos olhos, o fruto, é isso que o vossoamor protege. conserva e alimenta.Onde esta todo o vosso amor, no vossofilho. está também toda a vossa virtudeA vossa obra, a vossa vontade. eis ovosso "próximo": não vos deixeis induzira falsos valores!

XII

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Homens superiores, homens que criais!Quem quer que há de dar à luz estáenfermo: mas o que deu à luz acha−seimpuro.

Perguntais às mulheres: não se dá luzpor gosto. A dor faz cacarejar asgalinhas e os poetas.

Em vós, que criais, há muitasimpurezas. E que tivestes de ser mães.Um novo filho: quantas impurezasvieram ao mundo! Afastai−vos! O quedá à luz deve purificar a alma.

XIII

Não queirais ser mais virtuosos do quevô−lo consentem as próprias forças. Enão exijais de vós coisa que sejainverossímil.

Segui as pisadas que deixou já a virtudede vossos pais. Como querereis subirtanto, se a virtude de vossos pais nãosubisse convosco? Mas aquele quequiser ser o primeiro, livre−se bem denão ser o último. E não coloqueis asantidade onde estejam os vícios devossos pais.

Que sucederia se aquele cujosprogenitores foram afeiçoados àsmulheres, aos vinhos fortes e aosjavalis, exigisse de si castidade?

Seria loucura! Muito me parece issopara semelhante homem, se é homemde uma só mulher, ou de duas ou detrês.

E se fundasse conventos, eu diria damesma maneira: Para quê? É uma novaloucura.

Fundou para si mesmo uma casa decorreção e um refúgio. Bom proveito!Eu, porém, não acredito nisso.

Na soledade cresce o que cada qualleva consigo, inclusive a besta inferior.Por isso a muitos é preciso afastá−losdo isolamento.

Terá havido até hoje na terra coisa maisimpura do que um santo desterro?

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XIV

Tímidos, envergonhados, encolhidos,como o tigre que falha uma investida,assim vos vi fugir amiúde, homenssuperiores. Erraste uma partida

Mas isso que vos importa, jogadores dedados? Não aprendestes a jogar e alograr−vos como se deve jogar e lograr?Não estamos sempre sentados a umagrande mesa de logro e de jogo?

E por se vos haverem malogradograndes coisas, haveis de ser entesmalogrados? E por vós o serdes,sê−lo−á por isso o homem?

Mas se o homem é um ser malogrado,então que importa?

XV

Quanto mais elevada no seu gênero éuma coisa, mais raro é o seu logro. Vós,homens superiores, que vos encontraisaqui, não sois todos seres malogrados?

Coragem! Isso que importa? Quantascoisas são ainda possíveis! Aprendei arir−vos de vós mesmos; é necessário rir!

Que se em muito que falais nãoacertardes mais que em metade, poisestais meio truncados, nem por issodeixa de se agitar a resolver em vós ofuturo do homem.

O mais remoto e profundo que há nohomem, a sua altura estelar e a suaforça imensa, todas estas coisas sechocam umas com as outras na vossamarmita em ebulição.

E muito mais de uma marmita rebenta!Aprendei a rir−vos de vós mesmos,como é preciso rir! Ó homenssuperiores! Quantas coisas são aindapossíveis!

E, realmente, quantas coisas sealcançaram já!

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Como esta terra é rica de coisas boas eperfeitas e afortunadas!

Rodeai−vos de coisas boas e perfeitas,homens superiores.

A sua dourada madureza cura ocoração. As coisas perfeitasensinam−nos a esperar.

XVI

Qual tem sido hoje, na terra, o maiorpecado? Não foi a palavra daquele quedisse: "Pobres dos que riem aqui...?

Seria porque não encontrava na terranenhum motivo de riso? Então procuroumal. Até uma criança encontra aquimotivos.

Esse... não amava bastante, senãoamar−nos−ia também a nós, risonhos!Mas anatematizava−nos e odiava−nos,prometendo−nos gemidos e ranger dedentes.

Por se não amar é logo maldizer? Isso écoisa de mau gosto. E foi o que fezaquele intolerante. Saíra da populaça.

Ele é que não amava bastante; senãoirritar−se−ia menos por não ser amado.O grande amor não quer amor, quermais.

Afastai−vos do caminho de todos essesintolerantes: gente pobre, enferma,plebéia; olha esta vida malignamente,dão mau−olhado à terra. Afastai−vos docaminho de todos esses intolerantes!Pesam−lhes os pés e o coração: nãosabem dançar. Como a terra há de serleve para tal gente!

XVII

Todas as coisas boas se aproximam doseu fim por maneira tortuosa. Como osgatos, arqueiam o lombo e rosnaminteriormente, recreando−se com a suapróxima felicidade; todas as coisas boasriem.

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O modo de andar de uma pessoa revelao seu caminho. Vede−me andar a mim!Aquele que se aproxima do seu fimdança.

E eu certamente não me converti emestátua nem me encontro postado comouma coluna, rígido, entumecido,petrificado; gosto da carreira veloz.

E embora haja na terra atoleiros edenso nevoeiro, aquele que tem os pésleves corre e dança por cima da lamacomo sobre gelo liso. Elevai, elevai cadavez mais os vossos corações, meusirmãos! E não vos esqueçais das pernastambém. Alçai também as pernas. bonsbailarinos, e erguei também a cabeça!

XVIII

Esta coroa do risonho, esta coroa derosas, eu mesmo a cingi, ei própriocanonizei meu riso.

Ainda não encontrei ninguém capaz defazer outro tanto.

Eu, Zaratustra, o dançarino, Zaratustra,o leve, o que agita as suas asas prontoa voar, acenando a todas as aves,ligeiro e ágil, divinamente leve e ágil; eu,Zaratustra, o adivinho, Zaratustra, orisonho, nem impaciente nemintolerante, afeiçoado aos saltos, eumesmo cingi esta coroa.

XIX

Elevai, elevai cada vez mais os vossoscorações, meus irmãos! E não vosesqueçais também das pernas! Alçai aspernas, bons bailarinos, esuster−vos−eis até a cabeça.

Também animais pesados conhecem aventura; há cambaios de nascimentoque forcejam singularmente à maneirade um elefante que tentasse suster−sede cabeça.

Mas vale mais estar doido de alegria doque de tristeza; vale mais dançarpesadamente do que andar

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claudicando. Aprendei, pois, comigo asabedoria; até a pior das coisas temdois reversos, até a pior das coisas tempernas para bailar; aprendei, pois, vós,homens superiores, a afirmar−vos sobreboas pernas.

Esquecei a melancolia e todas astristezas da populaça. Como hoje meparecem triste os arlequins plebeus.Mas isto hoje pertence à populaça.

XX

Fazei como o vento quando se precipitadas cavernas montanhosas; querdançar à sua vontade. Os marestremem e saltam à sua passagem.

Louvado seja aquele que dá asas aosburros e ordenha as leoas, esse espíritobom e indômito que chega como umfuracão para tudo o que é de hoje, paratoda a populaça!

Louvado seja o inimigo de todas asfolhas murchas; esse espírito detempestade, esse espírito selvagem,bom e livre que dança nos atoleiroscomo no meio de prados!

Bendito seja o que odeia os cães dapopulaça e a toda essa relé malogradae sombria! Bendito seja esse espírito detodos os espíritos livres, a tempestaderisonha que sopra o pó nos olhos detodos que vêm negro e estão ulcerados.

Homens superiores, o pior que tendes énão haver aprendido a dançar como épreciso dançar; a dançar por cima dasvossas cabeças! Que importa nãoterdes sido felizes?

Quantas coisas são ainda possíveis!Prendei, pois, a rir por cima de vós

Elevai, elevai cada vez mais os vossoscorações, bons bailarinos! E nãoesqueçais também o belo riso!

Esta coroa do risonho, esta coroa derosas, ofereço−a a vós, meus irmãos!Canonizei o riso; aprendei, pois, a rir,homens superiores!"

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O Canto da Melancolia

I

Quando Zaratustra pronunciou estesdiscursos, encontrava−se junto daentrada da sua caverna; mas, às últimaspalavras, desapareceu de diante doshóspedes e fugiu um instante para o arlivre.

aromas puros! − exclamou. − Ó,tranqüilidade benéfica! Mas onde estãoos meus animais? Vinde, vinde, águia eserpente minhas!

Dizei−me, todos aqueles homenssuperiores... cheiram bem?

Ó, aromas puros! Só agora sei e sintoquanto vos amo, animais meus!"

E Zaratustra tornou a dizer: "Quanto vosamo, animais meus!" A águia e aserpente, por seu turno,juntaram−se−lhe quando ele pronunciouestas palavras, e lá puseram−se aolhá−lo. Ali fora era melhor ar do queonde estavam os homens superiores.

II

Apenas Zaratustra saiu da caverna, ovelho feiticeiro ergueu−se, e, olhandomaliciosamente, disse: "Foi−se. E já,homens superiores − permiti vosenvaideça com este nome de elogio elisonja como ele o faz −, já de mim seapodera o espírito maligno e falaz, omeu espírito feiticeiro, o demônio damelancolia, que é o adversário deZaratustra: desculpai−o! Quer agorarealizar os seus encantamentos navossa presença; é positivamente a suahora. Em vão luto com este espíritomau.

A todos vós, sejam os que querem ashonras que vos pretendem adjudicarcom palavras − ora vos chameis "osespíritos livres", ora "os verídicos", já"os redentores do espírito", já os"libertos" ou então "os do grande anelo"−, a todos os que, como eu, estão

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atacados pelo "grande tédio", para osquais morreu o antigo deus e para quemnão existe ainda no berço envolto emfaixas nenhum deus novo: a todos vós épropício o meu espírito maligno, o meudemônio encantador.

Conheço−vos, homens superiores, econheço também este duende queestimo a meu pesar, este Zaratustra. Asmais das vezes parece−me uma larvade santo.

Parece−me um como novo e estranhoartifício, em que se compraz o meuespírito maligno, o demônio damelancolia; amiúde suponho amarZaratustra por causa do meu espíritomaligno. Mas já se apodera de mim eme domina esse espírito maligno, esseespírito de melancolia, esse demônio docrepúsculo; e ainda o tenta...

Abri os olhos, homens superiores!...Dá−lhe tentações de vir, nu, não seicomo homem ou mulher; mas vem,domina−me, infeliz de mim! Abri osvossos sentidos!

Extingue−se o dia para todas as coisas,mesmo para as melhores; chega ocrepúsculo! Ouvi e vede, homenssuperiores, que demônio, homem oumulher, é este espírito da melancolia docrepúsculo!"

Assim falou o velho feiticeiro; depoisolhou maliciosamente ao derredor epegou na harpa.

III

"Na serena atmosfera, quando já oconsolo do rocio desce à terra, invisívele silencioso − porque o rocio consoladorveste delicadamente como todos osmeigos consoladores −, então recordastu, coração ardente, como estavassedento de lágrimas divinas e gotas deorvalho, quando te sentias abrasado efatigado, porque nos erbosos caminhosamarelos, corriam em torno de ti,através das escuras árvores, maliciososraios de sol poente, ardentes olhares desol, deslumbrantes e malévolos.

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"Pretendente da verdade! Tu? − assimchasqueavam. – Não. Simples poeta.Um animal astuto e rasteiro que mentedeliberada mente; um animal ansioso depresa, mascarado de cores vivasmáscara para si próprio, presa para simesmo. Isto... pretendente daverdade?... Um pobre louco um simplespoeta, um palrado pitoresco que perorapor de trás de uma máscara de dementeque anda vagueando por enganosaspontes de palavras, por ilusóriosarco−íris; que anda errante ebamboleante de cá para lá em ilusórioszelos! Um louco, nada mais!

Isto... é que é ser pretendente daverdade?... Não! Nem silencioso, rígidoe frio como uma imagem, como umaestátua divina; nem postado em frentedos templos como guarda dos umbraisde um deus, não!

Inimigo destes monumentos de virtude,mais harmonizado com os desertos doque com os templos, cheios dearteirices felinas, saltas por todas asjanelas para te lançares em todas asaventuras, farejas todos os bosquesvirgens, e entre as carapintadas feras,rapace, astuto, embusteiro, corres comlábios sensuais fresco, coroado e belocomo o pecado, soberanamentechasqueador, soberanamente infernal,soberanamente cruel.

Ou és como a águia que olha e torna aolhar fixamente o abismo, o seuabismo... Ó, como desce, como cai,como se some, girando emprofundidades cada vez mais fundas! Edepois que maneira de se precipitar desúbito, faminta, ansiosa de cordeiros,cheia de furibunda aversão por tudoquanto tem aparências virtuosas,cortesia, humilde, pêlo encrespado easpecto sereno, como a meigabenevolência do cordeiro!

São assim as ânsias do poeta: como depantera, como de águia. Assim são osteus anelos sob os teus artifícios, louco,poeta!

Tu, que és um homem, viste um Deuscomo um cordeiro... Separar o Deus dohomem como o cordeiro do homem, erir−se ao separá−lo; esta é a tua

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felicidade! A felicidade de uma pantera ede uma águia, a felicidade de um poetae um louco!

Assim como na serena atmosfera,quando já a meia luz, inimiga do dia,desliza invejosa verdejante entrerubores purpurinos, empalidecem à suapassagem as rosas celestes; até caíreme sumirem−se na noite; assim caí eumesmo, noutro tempo, da minha loucurade verdade, dos meus anelos do dia,fatigado do dia, enfermo de luz; assimcai para o caos, para as sombras...abrasado pela sede de uma verdade.Recordas−te, coração ardente, comoentão estavas sedento? Esteja eudesterrado de toda a verdade! Mais doque um louco, não! Tanto como umpoeta!"

Da Ciência

Assim cantava o feiticeiro, e todos osque estavam ali reunidos caíram comopássaros na rede da sua astuta emelancólica voluptuosidade.

O único que se não deixou apanhar foi oconsciencioso, que. arrebatando−lhe aharpa das mãos. gritou: "Deixa entrar oar puro! Mandai entrar Zaratustra!Infeccionas esta caverna e tornas aatmosfera sufocante, maligno feiticeiro!

Homem falso e ardiloso, a tua seduçãoconduz a desejos e a desertosdesconhecidos! E, ai de nós, se homenscomo tu dão em falar da verdade comares importantes!

Ai de todos os espíritos livres que nãoestejam precavidos contra semelhantesfeiticeiros! Podem despedir−se da sualiberdade, porque tu aconselhas oregresso as prisões e a elas conduzes!

No teu lamento, demônio melancólico,percebe−se um reclamo: pareces−tecom aqueles cujo elogio da castidadeimpele secretamente à voluptuosidade!"

Assim falou o consciencioso, mas ovelho feiticeiro olhava em seu derredor,gozando a sua vitória, e devido a issosuportava a cólera do consciencioso.

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"Cala−te − disse com voz modesta −, asboas canções requerem bons ecos;depois de boas canções é preciso haversilêncio durante um bom espaço detempo.

Assim fazem todos os homenssuperiores.

Tu, porém, pouco compreendeste domeu canto, provavelmente! Tens poucoespírito encantador".

− "Honras−me − tornou o consciencioso− distinguindo−me assim. Mas quevejo? Vós, ainda continuais aíassentados com olhares ansiosos? Ó,almas livres, que foi feito então da vossaliberdade?

Creio que vos deveis parecer comaqueles que por muito tempo vêm bailarraparigas nuas − até as vossas própriasalmas se põem a bailar!

Deve haver em vós, homens superiores,muito mais do que aquilo a que ofeiticeiro chama o seu maligno espíritode encantamento e de fraude; de certosomos diferentes.

E na verdade, antes de Zaratustra tornarà sua caverna, falamos e pensamosjuntos o suficiente para eu saber quesomos diferentes.

Vós e eu buscamos também aqui emcima coisas diferentes. Pois eu procuromais certeza; por isso me acerquei deZaratustra, que é a torre e a vontademais firme, hoje que tudo vacila e tremena terra.

Quanto a vós, porém, basta−me ver osolhos que fazeis para apostar queprocurais antes incertezas,estremecimentos, perigos, tremores deterra.

Parece−me − desculpai−me apresunção, homens superiores −,parece−me que desejais a vida maislastimável e perigosa, a que a mim meinspira temor: a vida dos animaisselvagens, os bosques, as cavernas, asmontanhas abruptas e os labirintos. Eos que mais vos agradam não são osque conduzem para fora do perigo, mas

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os que levam para fora de todos oscaminhos, os sedutores. Contudo se taisanelos são verdadeiros em vós, a mimparecem−se de toda a maneiraimpossíveis.

Que o sentimento inato e primordial é otemor; pelo temor se explica tudo; opecado original e a virtude original.

A minha própria virtude nasceu dotemor; chama−se ciência.

E o temor que mais tem logrado nohomem é o temor aos animaisselvagens, incluso o animal que ohomem oculta e receia em si, aquele aque Zaratustra chama "a besta interior".

Este estranho temor, por fim requintadoe espiritualizado, parece−me que hojese chama ciência". Assim falava oconsciencioso; mas Zaratustra, quenesse mesmo instante tornava àcaverna e que ouvira e adivinhara aúltima parte do discurso, atirou aoconsciencioso um punhado de rosas,rindo−se das suas "verdades". −"Quê? −exclamou. − Que acabo de ouvir?Parece−me que estás louco deveras, ouentão que o estou eu; vou já virar a tuaverdade de cima para baixo.

Que o temor é a nossa exceção.

Em compensação, o valor e a paixãopelas aventuras, pelo incerto, pelascoisas ainda não apontadas: o valorparece−me toda a história primitiva dohomem.

Invejou e arrebatou aos animais maisselvagens e valorosos todas as suasvirtudes; só assim se fez homem.

Esse valor, apurado e espiritualizadopor fim, esse valor humano com asas deáguia e astúcia de serpente, parece−mechamar−se hoje".

"Zaratustra!" − exclamaramsimultaneamente todos os ali reunidos,soltando uma gargalhada; mas qualquercoisa se elevou deles que seassemelhava a uma nuvem negra.Também o feiticeiro se pôs a rir e dissemaliciosamente: "Arre! Foi−se−me oespírito maligno! Eu vos preveni contra

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ele, quando vos dizia que era umimpostor, um espírito mentiroso efraudulento .

Sobretudo quando se mostra a nu. Queposso eu fazer, porém, contra seusardis? Acaso fui eu que o criei e quemcriou o mundo?

Vamos! Tornemos a ser bons e joviais!E conquanto Zaratustra franza osobrolho − olhem−no! tem−me aversão!− antes de chegar a noite aprenderáoutra vez amar−me e a elogiar−me; nãopode estar muito tempo sem fazerdoidices destas...

Este ama os seus inimigos: dos quetenho encontrado é quem melhorconhece tal arte. Mas vinga−se deles...nos amigos!"

Assim falou o velho feiticeiro, e oshomens superiores aclamaram−no; deforma que Zaratustra rodeando, foiestreitando maliciosa e amoravelmenteas mãos dos seus amigos, como quemtem de que se desculpar; mas, quandochegou à porta da caverna, tornou aansiar pelo ar puro de fora e acompanhia dos seus animais, e quissair.

Entre as Filhas do Deserto

"Não te retires − disse então o viandanteque se dizia a sombra de Zaratustra. −Fica ao pé de nós, quando não, poderiatornar a invadir−nos a antiga eesmagadora aflição.

Já o velho feiticeiro nos prodigalizou omelhor da sua colheita; e olha: o Papa,tão piedoso, tem os olhos inundados delágrimas, e tornou a embarcar no marda melancolia.

Estes reis ainda podiam mostrar boacara diante de nós todos; porque são osque melhor aprenderam essa arte.Aposto que, se não tivessemtestemunhas, também lhes chegaria amá peça, a má peça das nuvenspassageiras, da úmida melancolia, docéu nublado, dos sóis roubados, dosventos de outono que zumbem; a má

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peça do nosso alarido e dos nossosgritos de angústia. Zaratustra, deixa−teestar conosco! Há aqui muita misériaoculta, muita noite, muitas nuvens,muito ar pesado!

Nutriste−nos de fortes alimentos viris ede máximas fortificantes; não permitasque para conclusão nos surpreendamnovamente os espíritos da frouxidão, osespíritos efeminados!

Só tu sabes fortificar e purificar oambiente que te rodeia! Acaso jáencontrei na terra ar tão puro como natua caverna e nos teus domínios?

E, contudo, tenho visto muitos países;as minhas narinas aprenderam aexaminar e a apreciar ares múltiplos;mas onde elas experimentam o seumaior deleite é a teu lado. A não ser... anão ser... Ó! Perdoa−me uma antigarecordação! Perdoa−me um antigocanto de sobremesa que compus emtempos às filhas do deserto.

Que lá também havia ar puro e límpidode Oriente; foi onde estive mais longeda velha Europa, nebulosa, úmida emelancólica.

Então amava eu as filhas do Oriente edoutros remos do céu azulado onde senão chocam nuvens nem pensamentos.

Nem imaginais as feiticeiras que lá seencontravam sentadas, quando nãodançavam, profundas, mas sempensamentos, como segredos, comoenigmas engalanados, como nozes desobremesa, coloridas everdadeiramente singulares, mas semnuvens: enigmas que se deixamadivinhar. Em honra dessas donzelasinventei então um salmo de sobremesa".

Assim falou o viandante que se diziasombra de Zaratustra; e antes quealguém lho pudesse impedir, pegou naharpa do velho feiticeiro, cruzou aspernas e olhou tranqüilamente à suaroda, aspirando o ar pelo nariz comexpressão interrogadora, como quemaprecia ar novo em novos países.Depois principiou a cantar com uma vozque parecia um rugido.

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O Deserto Cresce. Ai Daquele QueOculta Desertos!

Solene! Digno principio! Princípio desolenidade africana! Digno de um leãoou de um bramador moral...mas não devós, arrebatadoras amigas, a cujo pésme é dado a mim, europeu, sentar−meentre palmeiras.

Maravilhoso! Eis−me agora aqui,próximo do deserto, e já outra vez tãolonge do deserto, absorto por estepequenino oásis; porque mesmo agoraabriu ele a boca bocejando, a maisperfumada de todas as bocas, e eu lhecaí dentro, profundamente, entre vós,arrebatadoras amigas.

Bendita, bendita aquela baleia, que tãobondosa quis ser para o seu hóspede!Compreendeis a minha douta alusão?...Bendito o seu ventre, se foi tão gratovento de oásis como este!

Coisa de que duvido, no entanto; porquevenho da Europa, que é a maisincrédula de todas as esposas.

Deus a melhore! Amém!

Eis−me aqui, pois, agora, nestepequenino oásis, como uma tâmara,madura, açucarada, de áureo suco,ansiosa por boca redonda de donzela,mas ainda mais por virginais dentesincisivos acerados, frios como o gelo ebrancos como neve, que por eles penao ardente coração de todas as tâmaras.

Semelhante a esses frutos do meio−dia,aqui estou cercado de alados insetosque dançam e folgam à roda de mim,assim como os desejos e pensamentosmais pequeninos, mais loucos e aindamaliciosos; aqui estou, bichinhasdonzelas mudas e cheias depressentimento. Duda e Zuleika,assediado por vós − esfingezado, paracondensar numa palavra muitassignificações (Perdoe−me Deus estepecado lingüístico!...); aqui estouaspirando o melhor dos ares, verdadeiroar de paraíso, ar diáfano e tênue, raiadode ouro, ar tão bom como jamais caiuoutro da lua. Seria casualidade ou

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presunção, como contam os antigospoetas? Eu, porém, cético, duvido,porque venho da Europa que é a maisincrédula de todas as esposas. Deus amelhore. Amém.

Saboreando este belo ar, com asnarinas dilatadas, sem futuro, semrecordação assim estou aqui,arrebatadoras amigas, e vejo a palmeiraarquear−se, dobrar−se e vergar−se − oque qualquer um faz quando acontempla longo tempo − como umabailarina que, a meu ver, se susteve jámuito, muito, com perigosa insistência,sobre uma perna. Ao que parece,esqueceu a outra. Eu, pelo menos,debalde procurei a gêmea alfaia − querodizer, a outra perna − nas santasimediações das suas graciosas earrebatadoras saias, das suas saiasenfeitadas, ondulantes como leques.

E verdade, belas amigas, perdeu−a...Adeus! Foi−se, foi−se para sempre aoutra perna! Aonde parará, abandonadae triste, essa perna solitária? Talvezprostrada por feroz leão monstruoso deraivas guedelhas? E já roída, horror!horror! Miseravelmente dilacerada!

Ó, Não me choreis, ternos corações!Não me choreis, corações de tâmaras,seios de leite! Sê homem, Zuleika!Valor! Valor! Não chores mais, pálidaDuda.

Ó, ergue−te, dignidade! Sopra, sopra,outra vez, fole da verdade! É bramarainda, bramar moralmente, bramarcomo leão moral ante as filhas dodeserto! Que os alaridos da virtude,arrebatadoras jovens, são,principalmente, a paixão ardente, afome voraz do europeu.

E vede já em mim o europeu:

não posso remediá−lo. Deus me valha!Amém!

O deserto cresce. Ai daquele que ocultadesertos!"

O Despertar

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I

Depois do canto do viandante e dasombra, a caverna encheu−sesubitamente de risos e ruídos; e comotodos os hóspedes falavam ao mesmotempo e até o próprio jumento com talanimação não podia estar quieto,Zaratustra experimentou certo enfado ecerto prurido zombeteiro contra as suasVisitas, embora tal regozijo osatisfizesse por julgá−lo um sinal decura. Escapou−se, pois para o exterior,para o ar livre, e falou aos seus animais.

"Para onde iria parar agora a tuaangústia? − disse, e já se lhe dissipavao enfado. Parece terem esquecido naminha moradia os seus gritos deangústia, conquanto, desgraçadamente,não perdessem o costume de gritar."

E Zaratustra tapou os ouvidos, porquenesse momento os I.A. do jumento e aalgazarra dos homens superioresformavam um estranho concerto.

"Estão alegres – prosseguiu − e, quemsabe? talvez à custa do seu hóspede;conquanto aprendessem a rir de mim,não foi o meu riso, todavia, que elesaprenderam.

Mas que importa? São velhos;curam−se à sua maneira, riem a seumodo; os meus ouvidos já suportaramcoisas piores.

Este dia foi uma vitória. Já retrocede, jáfoge o espírito do pesadume, meuantigo inimigo mortal. Como quer acabarbem este dia que tão mal e tãomaliciosamente principiou!

E quer acabar. Chega o crepúsculo;atravessa a cavalo no mar, o bomcorcel. Como se meneia obem−aventurado, que torna na sua selade púrpura.

O céu olha sereno; o mundo dilata−seprofundamente; homens singulares, quevos aproximastes de mim, vale a penaviver ao pé de mim!"

Assim falou Zaratustra. E nessesomenos tomaram a sair da caverna osgritos e as risadas dos homens

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superiores. Então Zaratustra continuou:

"Excitam−se; o meu cevo faz o seuefeito; também deles foge o inimigo, oespírito do pesadume. Já aprendem a rirde si mesmos: ouvirei bem?

As minhas saborosas e rigorosasmáximas surtem efeito; e, na verdade,não o alimentei com legumes queincham, mas com um alimento deguerreiros, com um alimento deconquistadores: despertei novosdesejos.

As suas pernas e os seus braçosrevelam novas esperanças; o coraçãodilata−se−lhes. Encontram novaspalavras; breve o seu espírito respirarádesenfadado.

Compreendo que este alimento não sejapara crianças, nem para mulhereslânguidas. São precisos outros meiospara lhes convencer as entranhas: delesnão sou médico nem mestre.

Foge o tédio desses homens superiores;eis a minha vitória. Sentem−se segurosno meu reino, perdem a imbecilvergonha, espraiam−se.

Espraiam os corações; para eles tornamos bons momentos, divertem−se eruminam; tornam−se agradecidos.

Isso é que eu tenho como melhor sinal;tornam−se agradecidos. Não passarámuito tempo que não inventem festas eerijam monumentos comemorativos àssuas antigas alegrias. Sãoconvalescentes!"

Assim falou Zaratustra com íntimo júbiloe olhando para fora. Os animaisencostaram−se a ele, honrando−lhe afelicidade e o silencio.

II

De súbito, porém, sobressaltou−se oouvido de Zaratustra, porque a caverna,até ali animada pela bulha e o riso, ficoude repente num silencio sepulcral. Asnarinas de Zaratustra chegou um odoragradável de fumo e de incenso, como

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se tivessem posto pinhas ao lume.

"Que sucedera? Que estarão a fazer?" −perguntou a si mesmo, aproximando−seda entrada para ver os convidados semser visto. Mas, ó, maravilha dasmaravilhas! Que viram então os seusolhos?

"Tornaram−se todos religiosos! Rezam!Estão doidos! − disse numa admiraçãosem limites.

E, efetivamente, todos aqueles homenssuperiores − os dois reis. e o papa, osinistro feiticeiro; o mendigo voluntário,o viandante e a sombra, o velhoadivinho, o consciencioso e o homemmais feio – estavam prostrados dejoelhos, como velhas beatas; estavamde joelhos a adorar o jumento!

E o mais feio dos homens começava asoprar, como se dele quisesse sairqualquer coisa inexprimível; mas,quando afinal se pôs a falar, salmodiavauma piedosa e singular ladainha emlouvor do adorado e incensado burro.Eis qual era essa ladainha:

"Amém! E honra e estima e gratidão elouvores e forças sejam com o nossodeus, de eternidade em eternidade".

E o burro zurrava: I. A.

"Ele leva as nossas cargas; é pacífico enunca diz não. E o ama o seu deus;castiga−o".

E o burro zurrava: I. A.

"Não fala senão para dizer sim aomundo que criou; assim canta louvoresao seu mundo. A sua astúcia não fala;por isso mesmo rara vez erra

E o burro zurrava: I. A.

"Ignorado passa pelo mundo. A cor doseu corpo, como que envolve a suavirtude, é parda. Se tem talento,oculta−o; mas todos lhe vêem ascompridas orelhas".

E o burro zurrava: I. A.

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"Que recôndita sabedoria é ter orelhascompridas e dizer sempre sim e nuncanão. Não criou ele o mundo à suaimagem? Isto é, o mais burro possível?"

E o burro zurrava: I. A.

"Tu segues caminhos direitos ecaminhos tortuosos; aquele a que oshomens chamam direito ou torto, poucote importa. O teu reino encontra−sealém do bem e do mal. A tua inocênciaé não saber o que se chama inocência".

E o burro zurrava: I. A.

"Vê como tu não repeles ninguém, nemos mendigos, nem os reis. Deixas vir a tias criancinhas, e se os velhacos tequerem tentar dizes simplesmente: I. A."

E o burro zurrava: I. A.

"Gostas das burras e dos figos frescos,e não és exigente com a comida.

Um caldo te satisfaz as entranhasquando tens fome. Nisso reside asabedoria de um deus".

E o burro zurrava: I. A.

A Festa do Burro

I

Neste ponto da ladainha, porém,Zaratustra não se pôde conter mais.Gritou por sua vez I. A., com voz aindamais roufenha do que a do jumento, ede um salto postou−se no centro dosseus enlouquecidos hóspedes.

"Mas que estais aí fazendo, filhos doshomens? − exclamou, erguendo do soloos que rezavam. − Pobres de vós, seoutro que não fosse Zaratustra vosvisse!

Todos acreditariam que, com a vossa fé,vos haveis tornado piores blasfemos, ouas mais insensatas velhas.

E tu, antigo Papa, como podes estar deacordo contigo mesmo, adorando assimum burro como se fosse um deus?"

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"Perdoa, Zaratustra − respondeu o Papa−, mas das coisas de Deus ainda euentendo mais do que tu. Antes adorar aDeus sob esta forma do que o nãoadorar de forma nenhuma! Refletenestas palavras, eminente amigo; brevecompreenderás que contêm sabedoria.

Aquele que diz: "Deus é espírito" foi oque até hoje deu na terra o passo, osalto maior para a incredulidade! Taispalavras não são fáceis de reparar naterra!

O meu velho coração salta e rejubila aover que ainda há que adorar na terra.

Perdoa, Zaratustra, ao velho coração deum Papa religioso!"

"E tu − disse Zaratustra ao viandante eà sombra −, dizes e imaginas ser umespírito livre? E entregas−te asemelhantes idolatrias e momices?

Antes adorar a Deus sob esta forma doque o não. Na verdade, fazes ainda aquicoisas piores do que as que fazias aolado das raparigas morenas emaliciosas, novo e malicioso crente".Respondeu o viandante e a sombra:"Tens razão; mas que havia eu defazer? Digas o que disseres, Zaratustra,o Deus antigo revive.

A causa de tudo isto é o mais feio doshomens: foi ele que o ressuscitou. E sediz que em tempos o matou, a morteentre os deuses é tão só um prejuízo".

"E tu maligno velho encantador, quefizeste? − prosseguiu Zaratustra. −Quem há de crer em ti nestes temposde liberdade, quando tu crês em taisburricadas divinas?

Como tu, tão astuto, pudeste cometersemelhante sandice!"

"Tens razão, Zaratustra − respondeu oastuto encantador −, foi uma sandice ebem cara me custou

"E tu também − disse Zaratustra aoconsciencioso −, reflete e põe o dedo nonariz! Nada vês nisto que te perturbe aconsciência? Não será o teu espíritodemasiado limpo para tais adorações e

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para a presunção de semelhantesboatos?

"Há neste espetáculo − responde oconsciencioso levando o dedo ao nariz−, há neste espetáculo qualquer coisaque faz bem à minha consciência.

Talvez eu não tenha o direito de crer emDeus; mas o certo e que, sob estaforma, Deus ainda me parece altamentedigno de fé.

Deus deve ser eterno, segundo otestemunho dos mais piedosos: quemtanto tempo tem, tempo toma. De formaque, com toda a Ientidão e estupidezque queira pode ir verdadeiramentelonge.

E quem tenha inteligência demais podiamuito bem suspirar pela estupidez epela loucura. Quando não, pensa em timesmo, Zaratustra!

Tu mesmo, na verdade, te poderiasmuito bem tornar burro à força desabedoria.

Um sábio perfeito não gosta de seguiros caminhos mais tortuosos?

A aparência o diz, Zaratustra:

di−lo a tua aparência!"

"E tu, afinal − disse Zaratustradirigindo−se ao mais feio dos homens,que caminhava no chão estendendo osbraços até ao borro para lhe dar vinho abeber −' falas, inexprimível: que foi quefizeste?

Dize : que fizeste?

É verdade que o ressuscitaste, comoestes dizem? E por que? Não estavamorto com razão?

Como te converteste? Falainexprimível!"

"Ó, Zaratustra − respondeu o mais feiodos homens. − Es um brejeiro! Se eleainda vive, ou se revive, ou se morreucompletamente, qual de nós o sabemelhor?

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Sei, porém, de uma coisa − e contigo aaprendi em tempos, Zaratustra: aqueleque quer matar mais completamentepõe−se a rir.

"Não é com a cólera, mas com o risoque se mata." Assim falavas tu noutrotempo.

− Ó, Zaratustra! Tu que permanecesoculto destruidor sem cólera, santoperigoso, é um brejeiro!"

II

Então Zaratustra, pasmado de tantossofismas, tornou a correr para a portada caverna, e dirigindo−se a todos osconvidados começou a gritar com vozforte.

"Refinados loucos, truões! Para quedissimular e ocultar−vos diante de mim!

Como folgava, contudo, de alegria emalícia o vosso coração, porque afinaltomastes a ser como crianças − isto é,religiosos −, porque afinal tomastes arezar, a juntar as mãos e a dizer "amadoDeus!" Mas agora saí deste quarto decrianças, desta minha caverna ondehoje estão como em sua casa todas asinfantilidades.

Refrescai lá fora os vossos ardoresinfantis e apaziguai o tumulto do vossocoração!

É verdade que, se não tomais a sercomo crianças, não podereis entrar notal reino dos céus − e Zaratustra ergueuas mãos para o ar.

− Nós, porém, não queremos entrar noreino dos céus; tornamo−nos homens,por isso mesmo queremos o reino daterra".

III

E tornando a usar a palavra, Zaratustradisse:

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"Ó, meus novos amigos! Homenssingulares! Homens superiores! Comome agradais desde que vos tomastesalegres!

Estais em pleno florescimento, eparece−me que, para flores como vós,são precisas festas novas, uma boaloucura, um culto e uma festa do burro,um velho tresloucado e alegre àmaneira de Zaratustra, um turbilhão quecom o seu sopro vos varra a alma.

Não esqueçais esta noite e esta festa doburro, homens superiores! Foi o queinventastes na minha mansão, e paramim isso é um bom sinal: não há comoconvalescentes para inventarem taiscoisas!

E se tomardes a celebrar esta festa doburro, fazei−a por amor de vós e poramor de mim. E fazei−a em minhalembrança".

Assim falou Zaratustra.

O Canto de Embriaguez

I

Entretanto, todos haviam saído um apósoutro, e se encontravam ao ar livre noseio da noite fresca e silenciosa; eZaratustra pegou na mão do mais feiodos homens, para lhe mostrar o seumundo noturno, a grande lua redonda eas cascatas prateadas junto da caverna.Por fim, todos aqueles velhos decoração consolado e valoroso sedetiveram, admirando−se intimamentede sentirem tão bem na terra; a placidezda noite penetrava−lhes nos corações,cada vez mais profundamente. EZaratustra pensava de novo consigo:"Ó, como me agradam agora esteshomens superiores!" − mas não lhesdisse por que lhes respeitava afelicidade e o silêncio.

Então surgiu o mais surpreendente dequanto surpreendente aconteceranaquele dia. O mais feio dos homenscomeçou por derradeira vez a resfolegare, quando conseguiu falar, saiu−lhe doslábios uma pergunta profunda e clara

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que agitou o coração de quantos aouviram.

"Meus amigos, todos que estais aquipresentes − disse o mais feio doshomens − que vos parece? Graças aeste, estou pela primeira vez satisfeitode ter vivido a vida inteira.

E ainda não me basta fazer taldeclaração.

Vale a pena viver na terra: um dia, umafesta em companhia de Zaratustra meensinaram a amar a terra.

"Era isto a vida? − ditei à morte.

Pois bem: repita−se!"

Assim falava o mais feio dos homens,perto da meia−noite. E que julgaissucedeu nesse momento? Enquanto oshomens superiores ouviam a pergunta,repararam na sua transformação e cura,e em que lhes proporcionara; por issose precipitaram para Zaratustrabeijando−lhe a mão etestemunhando−lhe a sua gratidão,cada qual a seu modo: de forma queuns riam e outros choravam. O velhoencantador dançava de prazer; e se,como crêem certos narradores, estavaentão cheio de vinho doce, mais cheioestava certamente de vida doce, edespedira−se de toda a melancolia. Háainda quem conte que o burro tambémse pusera a dançar porque não foradebalde que o homem mais feio lhedera vinho. Fosse isso verdade ou não,pouco importa, e se o burro não bailounessa noite, sucederam, contudo,coisas maiores e mais singulares do quea de um burro bailar.

Em suma, como diz o provérbio deZaratustra:

"Que importa!"

II

Quando tal se passou com o mais feiodos homens, Zaratustra ficou comotonto: toldava−se−lhe o olhar, a sualíngua tartamudeava e os pés

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vacilavam−lhe. Quem poderia adivinharos pensamentos que naquele instanteatravessaram a alma de Zaratustra? Eravisível, porém, que o seu espíritovagueava para trás e para diante, epassava muito alto, como : sobreelevada cordilheira (conforme estáescrito) que, interposta entre doismares, caminha entre o passado e ofuturo como pesada nuvem".

Nisto, enquanto os homens superiores oamparavam nos braços, tornou a sipouco a pouco, afastando com o gestoos seus assustados veneradores; masnão falava. Súbito voltou a cabeça,porque lhe parecia ouvir qualquer coisa;então pôs o dedo na boca e disse:"Vinde!"

E imediatamente tudo ficou tranqüilo eem silêncio em torno dele; mas dasprofundidades subia lentamente o somde um sino. Zaratustra aplicou o ouvido,assim como os homens superiores;depois tornou a pôr o dedo na boca edisse outra vez: "Vinde! Vinde!Aproxima−se a meia−noite!" E a voztransformara−se−lhe; mas elecontinuava imóvel no mesmo lugar.Então reinou um silêncio ainda maior euma quietação ainda mais profunda, etoda a gente escutava, até o burro e osanimais de Zaratustra, a águia e aserpente, e também a caserna e a frialua e a própria noite.

Mas Zaratustra ergueu−se pela terceiravez, levou a mão aos lábios e disse:

"Vinde! Vinde! Vamos! É a hora:caminhemos para a noite!"

III

Homens superiores, aproxima−se ameia−noite; quero−vos dizer uma coisaao ouvido, como mo disse ao ouvidoaquele velho sino; com o mesmosegredo, espanto e cordialidade comque me falou esse sino da meia−noite,que tem vivido mais do que um sóhomem que já cantou as palpitaçõesdolorosas dos corações de vossos pais.

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Como suspira! Como ri em sonhos avenerável e profunda, profundíssimameia−noite.

Silêncio! Silêncio! Ouvem−se muitascoisas que se não atrevem a erguer avez durante o dia: mas agora que o ar épuro e se calou também o ruído dosnossos corações, agora as coisas falame ouvem−se, agora introduzem−se nasalmas noturnas e despertas. Comosuspira! Como ri em sonhos!

Não ouves como te fala a tisecretamente, com espanto ecordialidade, a venerável e profunda,profundíssima meia−noite?

Ó! Homem! Excita o cérebro!

IV

Ai de mim! Que foi do tempo? Não caiuem profundos poços? O mundo dorme.O cão uiva; brilha a lua. Antes morrer doque dizer−vos o que pensa agora o meucoração de meia−noite!

Estou morto. Tudo findou, Aranha: porque teces tua teia, à minha roda?Queres sangue! Cai o orvalho, chega ahora em que gelo, a hora que perguntae torna a perguntar incessante: "Quemtem valor para tanto? Quem há de ser odono da terra? Quem quer dizer: tendesde correr assim, rios grandes epequenos?"

Aproxima−se a hora! Excita o cérebro,homem superior! Este discurso é paraouvidos finos, para os teus ouvidos. Quediz a profunda meia−noite?

V

Vejo−me arrebatado; a minha almasalta. Cotidiana tarefa! Cotidiana tarefa!Quem deve ser o dono do mundo?

A lua é fresca; o vento emudece. Ai! Ai!Já voastes a bastante altura?Dançaste? Mas uma perna não é umaasa.

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Bons dançarinos, agora passou aalegria toda; o vinho converteu−se emfezes; as sepulturas balbuciam.

Não voastes a bastante altura; agora assepulturas balbuciam: "Mas salvai osmortos! Por que é noite há tanto tempo?Não vos embriaga a lua?"

Salvai as sepulturas, homenssuperiores! Despertai os cadáveres! Ai!Por que é que o verme ainda rói?

Aproxima−se a hora, aproxima−se; soao sino; ainda o coração anela; o verme,o verme do coração ainda rói.

VI

Maviosa lira! Maviosa lira! Adoro o teusom, o teu encantador som de sapo!

Há que tempos e que de longe dostanques do amor − chega a mim essesom!

Velho sino! Maviosa lira! Todas as doreste têm desfibrado o coração: a dor depai, a dor dos antepassados, a dor dosprimeiros pais; o teu discurso alcança jáa maturação como o dourado outono e atarde, como o meu coração de solitário,agora fala; o próprio mundoamadureceu; a uva enegrece; agoraquer morrer, morrer de felicidade. Não oconjecturas, homens superiores?

Secretamente sobe um perfume e umodor de eternidade, um aroma − comode dourado vinho delicioso − de raraventura.

Ventura inebriante de morrer, ventura demeia−noite, que canta:

O fundo é profundo e mais profundo doque o dia.

VII

Deixa−me! Deixa−me. Sou puro demaispara ti. Não me toques! Não se acabade consumar o meu mundo?

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A minha pele é demasiado pura para astuas mãos? Deixa−me, triste e sombriodia! Não é mais clara a meia−noite?

Donos da terra devem ser os maisfortes, as almas da meia−noite, que sãomais claras e profundas que todos osdias.

Ó, dia! Andas às cegas atrás de mim?Exploras a minha felicidade? Serei parati, rico, solitário, um tesouro oculto, umaarca de ouro?

Ó, mundo! Serei o que queres? Sereiespiritual para ti? Serei divino para ti?Dia e mundo são demasiado tristes,tendes mãos mais aptas, colhei umafelicidade mais profunda, um infortúniomais profundo; colhei um deus qualquer;não me prendais a mim. A minhadesdita e a minha dita são profundas,dia singular; mas não sou um deus, nemo inferno de um deus. Profunda é a suador.

VIII

A dor de Deus é mais profunda, mundosingular! Procura a dor de Deus; não meprocures a mim! Quem sou eu?

Maviosa lira cheia de embriaguez; umalira de meia−noite, um sino plangenteque deve falar diante dos surdos,homens superiores. Que vós não mecompreendeis!

Isto é fato! Isto é fato! Ó, mocidade! Ó,meio−dia! Ó, tarde! Chegaram agora ocrepúsculo e a noite e a meia−noite;uiva o cão, o vento – não será tambémo vento um cão? − geme, ladra, uiva.Como suspira, como se ri e geme ameia−noite! Como agora falasobriamente esta ébria poetisa!Passar−lhe−ia a embriaguez?Tresnoitaria? Rumina?

A velha e profunda meia−noite ruminaem sonhos a sua dor e ainda mais a suaalegria: pois, se a dor é profunda, aalegria é mais profunda do que osofrimento.

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IX

Por que me elogias, vinha? Eu, todavia,podei−te. Sou cruel; sangras; que quero teu louvor da minha sombriacrueldade?

"Tudo quanto está sazonado quermorrer!" Assim falas tu. Bendita seja apoda do vindimador! Tudo que não estámaduro quer, porém, viver, ó,desventura!

A dor diz: "Passa! Vai−te, dor!" Mas tudoque sofre quer viver para amadurecer,regozijar−se e anelar, anelar o maislongínquo, o mais alto, o mais luminoso.Quero herdeiros (assim fala todo aqueleque sofre) quero filhos, não me quero amim".

A alegria, contudo, não quer herdeirosnem filhos; alegria quer−se a si mesmo,quer a eternidade, quer o regresso, quertudo igual a si eternamente. A dor diz:"Desfibra−se, sangra, coração!Caminhai, pernas! Asas, voai! Entãovamos, meu velho coração! A dor dizPassa!

X

Que vos parece, homens superiores?Serei um adivinho? Um sonhador? Umbêbedo? Um intérprete de sonhos? Umsino da meia−noite? Uma gota deorvalho? Um vapor e um perfume daeternidade? Não ouvis? Não percebeis?O meu mundo acaba de se consumar; ameia−noite é também meio−dia, a dor étambém uma alegria, a maldição étambém uma bênção, a noite é tambémsol; afastai−vos ou ficareis sabendo: umsábio é também um louco.

Dissestes alguma vez sim a umaalegria? Ó, meus amigos. Entãodissestes também sim a todas as dores!Todas as coisas estão encadeadas,forçadas; se algum dia quisestes queuma vez se repetisse, se algum diadissestes: "Agradas−me, felicidade!"Então quisestes que tudo tornasse.

Tudo de novo, tudo eternamente, tudoencadeado, forçado: assim amastes o

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mundo; vós, os eternos, amai−oeternamente e sempre, e dizeis tambémà dor: "Passa, mas torna! Porque toda aalegria quer eternidade!

XI

Toda a alegria quer a eternidade detodas as coisas, quer mal, quer fazer,quer inebriante meia−noite e quersepulturas, que o consolo das lágrimas,das sepulturas, quer o douradocrepúsculo...

Que não há de querer a alegria! É maissedenta, mais cordial, mais terrível,mais secreta que toda a dor; quer−se asi mesma, morde−se a si mesma,agita−se nela a vontade da anilha; queramor, quer ódio, nada na abundância,dá, arroja para longe de si, suplica que aaceitem, agradece a quem a recebe,quereria ser odiada; é tão rica que temsede de dor, de inferno, de ódio, devergonha, do mundo, porque estemundo, ah, já o conheceis.

Homens superiores, por vós suspira aalegria, a desenfreada, abem−aventurada; suspira pela vossamalograda dor. Toda a alegria eternasuspira pelas coisas malogradas.

Pois toda a alegria se estima a simesma; por isso quer também osofrimento! Ó, felicidade! Ó, dor!Desfibra−te, coração! Aprendei−o,homens superiores: a alegria quer aeternidade!

A alegria quer a eternidade de todas ascoisas.

Quer profunda eternidade.

XII

Aprendeste agora o meu canto?Adivinhastes o que quer dizer?

Eia, pois homens superiores, entoai omeu canto!

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Entoai agora vós o canto cujo título é"Outra vez" e cujo sentido é "por toda aeternidade". Entoai, homens superiores,entoai o canto de Zaratustra!

Homem, excita o cérebro!

Que diz a profunda meia−

noite?

"Tenho dormido, tenho dormido!

De um profundo sono despertei.

O mundo é profundo, mais profundo doque o dia pensava.

Profunda é a sua dor e a alegria maisprofunda que o sofrimento!

A dor diz: Passa!

Mas toda a alegria quer eternidade, querprofunda eternidade!

O Sinal

Na manhã seguinte, Zaratustra saltouda sua jazida, apertou os rins e saiu dacaverna, ardente e vigoroso, como o solmatutino que sai dos sombrios montes.

"Grande astro − disse como noutraocasião −, olho profundo de felicidade,que seria desta se te faltassem aquelesa quem iluminas? E se elespermanecessem em seus aposentosquando tu já estás desperto e vens dare repartir, como se te feriria o pudor!

Pois bem! Estes homens superioresdormem enquanto eu estou acordado.Não são meus verdadeiroscompanheiros! Não é a eles que esperoaqui nas minhas montanhas.

Quero principiar o meu labor, o meu dia,mas eles não compreendem quais ossinais da minha alvorada; os meuspassos não são para eles uma vozdespertadora.

Dormem ainda na minha caverna, aindao seu sono saboreia os meus cantos deembriaguez. Aos seus membros falta

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ouvido que me escute, ouvidoobediente".

Disse Zaratustra isto ao seu coraçãoquando o sol nascia. Depois dirigiu paraas alturas um olhar interrogador porqueouvia por cima de si o chamadopenetrante da sua águia. "Bem! − gritoupara cima. − Assim me agrada econvém. Os meus animais estãoacordados, porque eu estou acordado.A minha águia acordou e saúda o solcomo eu. Com as suas garras apanha anova luz. Vós sois os meus verdadeirosanimais; tendes a minha afeição.

Faltam−me, porém, os meusverdadeiros homens!"

Assim falou Zaratustra, quando derepente se sentiu rodeado por umainfinidade de aves que revoavam emtorno dele; o ruído de tantas asas e otropel que lhe rodeava a cabeça eramtais que cerrou os olhos. E na verdadesentiu cair sobre ele qualquer coisaassim como uma nuvem de setasdisparadas sobre um novo inimigo! Masnão! Era uma nuvem de amor sobre umamigo novo.

"Que sucederá?", perguntou a si mesmoassombrado Zaratustra, e deixou−secair vagarosamente na pedra grandeque havia à entrada da sua caverna.Agitando, porém, as mãos em torno desi e por cima e por baixo de si, para sesubtrair às carícias das aves,sucedeu−lhe uma coisa ainda maissingular, e foi que, sem dar por isso, pôsa mão sobre quentes e fartasguedelhas, e ao mesmo tempo se ouviuum rugido, um meigo e prolongadorugido de leão. "Chega o sinal", disseZaratustra, e o coraçãotransmudou−se−lhe. E viu diante de si,estendido a seus pés, um corpulentoanimal ruivo, que encostava a cabeçaaos seus joelhos e se não queria afastardele como um cão afetuoso que torna aencontrar o antigo dono. Mas aspombas não eram menos carinhosasque o leão e, de cada vez que algumalhe passava pelo focinho, o leão sacudiaa cabeça e punha−se a rir.

Vendo tudo isto, Zaratustra só disseuma coisa: "Estão perto os meus filhos".

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E depois emudeceu completamente;mas sentia o coração aliviado, e dosseus olhos corriam lágrimas que lhebanhavam as mãos. E ali permaneciaimóvel, sem se preocupar com coisaalguma, sem sequer se defender dosanimais. Entretanto, as pombas voavamde um lado para outro, pousavam−lhenos ombros, acariciavam−lhe osbrancos cabelos, e eram infatigáveis nasua ternura. E o leão lambiaincessantemente as lágrimas quecorriam pelas mãos de Zaratustra,rugindo e rosnando timidamente. Eis oque fizeram estes animais.

Tudo isto poderia durar muito ou poucotempo, porque, falando propriamente,na terra não há tempo para coisas tais.Entrementes, tinham os homenssuperiores acordado na caverna, edispunham−se a ir em procissão aoencontro de Zaratustra, para o saudar,porque já haviam reparado na suaausência. Quando chegaram, porém, àporta da caverna, o leão, ao ouvir−lhesos passos, afastou−se rapidamente deZaratustra e precipitou−se para acaverna rugindo furiosamente.Ouvindo−o rugir, os homens superiorescomeçaram a grita como uma só boca,e, retrocedendo, desapareceram numabrir e fechar de olhos.

Por seu lado, Zaratustra, aturdido edistraído, ergueu−se do seu assento,olhou em roda, assombrado,interrogou−se, refletiu e permaneceusozinho. "Mas, que foi que ouvi? −disse, afinal, lentamente. − Que acabade me suceder?" E, recuperada amemória, compreendeu o que sucederaentre a véspera e o dia em que seencontrava. "Aqui está a pedra ondeontem pela manhã me sentei – dissecofiando a barba −, aqui se abeirou demim o adivinho, e ouvi pela primeira vezo grito que acabo de ouvir, o grandegrito de angústia.

Homens superiores, a vossa angustia foio que ontem pela manhã me predisse ovelho adivinho; quis atrair−me à vossaangústia para me tentar. "Ó! Zaratustra– disse−me ele − venho aqui induzir−teao último pecado."

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"Ao meu último pecado? − exclamouZaratustra rindo−se das suas própriaspalavras. − Que será que ainda me estáreservado como último pecado?"

E outra vez se concentrou em simesmo, tornando a sentar−se na pedrapara refletir.

De repente ergueu−se:

"Compaixão! A compaixão pelo homemsuperior! − exclamou, e o semblantetornou−se−lhe da mármore.

Ora!

Já se vai esse tempo!

Que importam a minha paixão e a minhacompaixão? Acaso aspiro à felicidade?Eu aspiro à minha obra!

Chegou o leão, os meus filhos nãotardam; Zaratustra está sazonado;chegou a minha hora.

Esta é a minha alvorada; começa o meudia; sobe, pois, sobe, Grande Meio−dia!"

Assim falou Zaratustra, e afastou−se dacaverna, ardente e vigoroso, como o solmatinal que surge dos sombrios