aspectos neurofuncionais do cerebelo: o fim de um dogma

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Aspectos neurofuncionais do cerebelo: o m de um dogma Neurofunctional Aspects of Cerebellum: The End of a Dogma Daniel Damiani 1 Vanessa Pires Gonçalves 2 Letícia Kuhl 2 Poliana Helena Aloi 3 Anna Maria Nascimento 4 1 Médico, Biomédico, Professor, Pós-Graduação de Neurociências, Universidade Anhembi-Morumbi, São Paulo, SP, Brasil 2 Monitora, Pós-Graduação em Neurociências, Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo, SP, Brasil 3 Estudante, Pós-Graduação em Neurociências, Universidade Anhembi-Morumbi, São Paulo, SP, Brasil 4 Coordenadora Geral, Pós-Graduação em Neurociências, Universidade Anhembi-Morumbi, São Paulo, SP, Brasil Arq Bras Neurocir 2016;35:3944. Address for correspondence Daniel Damiani, MD, Rua Bela Cintra 2117, AP 09. São Paulo, SP, Brasil 01415-000 (e-mail: [email protected]). Introdução O cerebelo é uma estrutura que ocupa a fossa posterior do crânio, situado abaixo da tenda do cerebelo, sendo, portanto, uma estrutura infratentorial. Componente do sistema ner- voso central (SNC), o cerebelo possui cerca de 80% dos neurônios presentes no SNC, apesar de seu peso bruto corresponder a apenas 10% do peso total do SNC (19% dos neurônios estão situados no córtex cerebral, e 1%, no tronco encefálico). 1 Historicamente, Haerophilus (338-280 a.C.) Palavras-Chave cerebelo síndrome cognitivo- afetiva neurosiologia cerebelar cognição cerebelar Resumo Há séculos o cerebelo é considerado uma estrutura do sistema nervoso central responsável exclusivamente pela coordenação do movimento, fazendo diversas cone- xões com as áreas motoras e associativas do córtex cerebral. No entanto, nos últimos anos, avanços em neuroimagem funcional têm atribuído ao cerebelo funções cogni- tivo-afetivas, identicando-as anatômica e funcionalmente. Nesta revisão, os autores trazem as mais recentes informações sobre as funções cerebelares, considerando a síndrome cognitivo-afetiva correlacionada ao cerebelo e pondo m a mais um dogma das neurociências. Keywords cerebellum cognitive-affective syndrome cerebellar neurofunctions cognitive cerebellum Abstract For centuries the cerebellum is considered a structure of the central nervous system solely responsible for coordination of the movement, making several connections with the motor areas and associations areas of the cerebral cortex. However, in recent years, advances in functional neuroimaging has assigned the cerebellum cognitive-affective functions, identifying the anatomy and functionally pathways. In this review, the authors come with the latest information about the cerebellar functions, whereas the syndrome cerebellar cognitive-affective, it correlated, putting an end to more a dogma in neuroscience. received March 9, 2015 accepted August 28, 2015 published online January 13, 2016 DOI http://dx.doi.org/ 10.1055/s-0035-1570498. ISSN 0103-5355. Copyright © 2016 by Thieme Publicações Ltda, Rio de Janeiro, Brazil THIEME Review Article | Artigo de Revisão 39

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Aspectos neurofuncionais do cerebelo: o fim deum dogma

Neurofunctional Aspects of Cerebellum: The End of aDogma

Daniel Damiani1 Vanessa Pires Gonçalves2 Letícia Kuhl2 Poliana Helena Aloi3

Anna Maria Nascimento4

1Médico, Biomédico, Professor, Pós-Graduação de Neurociências,Universidade Anhembi-Morumbi, São Paulo, SP, Brasil

2Monitora, Pós-Graduação em Neurociências, Universidade AnhembiMorumbi, São Paulo, SP, Brasil

3 Estudante, Pós-Graduação em Neurociências, UniversidadeAnhembi-Morumbi, São Paulo, SP, Brasil

4Coordenadora Geral, Pós-Graduação em Neurociências,Universidade Anhembi-Morumbi, São Paulo, SP, Brasil

Arq Bras Neurocir 2016;35:39–44.

Address for correspondence Daniel Damiani, MD, Rua Bela Cintra2117, AP 09. São Paulo, SP, Brasil 01415-000(e-mail: [email protected]).

Introdução

O cerebelo é uma estrutura que ocupa a fossa posterior docrânio, situado abaixo da tenda do cerebelo, sendo, portanto,uma estrutura infratentorial. Componente do sistema ner-

voso central (SNC), o cerebelo possui cerca de 80% dosneurônios presentes no SNC, apesar de seu peso brutocorresponder a apenas 10% do peso total do SNC (19% dosneurônios estão situados no córtex cerebral, e 1%, no troncoencefálico).1 Historicamente, Haerophilus (338-280 a.C.)

Palavras-Chave

► cerebelo► síndrome cognitivo-

afetiva► neurofisiologia

cerebelar► cognição cerebelar

Resumo Há séculos o cerebelo é considerado uma estrutura do sistema nervoso centralresponsável exclusivamente pela coordenação do movimento, fazendo diversas cone-xões com as áreas motoras e associativas do córtex cerebral. No entanto, nos últimosanos, avanços em neuroimagem funcional têm atribuído ao cerebelo funções cogni-tivo-afetivas, identificando-as anatômica e funcionalmente. Nesta revisão, os autorestrazem as mais recentes informações sobre as funções cerebelares, considerando asíndrome cognitivo-afetiva correlacionada ao cerebelo e pondo fim a mais um dogmadas neurociências.

Keywords

► cerebellum► cognitive-affective

syndrome► cerebellar

neurofunctions► cognitive cerebellum

Abstract For centuries the cerebellum is considered a structure of the central nervous systemsolely responsible for coordination of the movement, making several connections withthemotor areas and associations areas of the cerebral cortex. However, in recent years,advances in functional neuroimaging has assigned the cerebellum cognitive-affectivefunctions, identifying the anatomy and functionally pathways. In this review, theauthors come with the latest information about the cerebellar functions, whereas thesyndrome cerebellar cognitive-affective, it correlated, putting an end to more a dogmain neuroscience.

receivedMarch 9, 2015acceptedAugust 28, 2015published onlineJanuary 13, 2016

DOI http://dx.doi.org/10.1055/s-0035-1570498.ISSN 0103-5355.

Copyright © 2016 by Thieme PublicaçõesLtda, Rio de Janeiro, Brazil

THIEME

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parece ser o pioneiro em considerar o cerebelo uma estruturadistinta do cérebro. No entanto, somente em 1823, é apre-sentada, por Flourens, a primeira hipótese funcional atri-buída ao cerebelo: a função de coordenação motora.Magendie, um ano depois, acrescenta o equilíbrio às funçõescerebelares. Em 1906, Bolk et al. apresentam uma represen-tação somatotópica ao cerebelo.2,3 Anatomicamente, o cere-belo é dividido em hemisférios cerebelares (porções laterais)e verme (porção central do cerebelo, que interconecta seushemisférios). Por razões didáticas, foi feita a partição do lobocerebelar em: lobo anterior (relacionado a funçõesmotoras epropriocepção, também denominado paleocerebelo), loboposterior (o neocerebelo, responsável pela programaçãomotora e atualmente relacionado à cognição) e lobo flo-culo-nodular (o arquicerebelo, relacionado ao sistemavestibular).

O córtex cerebelar possui substância cinzenta (periférica)e substância branca (central), a exemplo da organização docórtex cerebral. A substância cinzenta possui três camadascelulares identificadas pela histologia clássica: camada decélulas de Purkinje, camada molecular e camada de célulasgranulares. Mais internamente, dentro da substância branca,encontram-se núcleos cerebelares no neocerebelo (núcleodenteado), paleocerebelo (núcleo emboliforme e globoso,denominados conjuntamente de núcleo interpósito) e arqui-cerebelo (núcleo fastígio).2–4

Aspectos Funcionais Cerebelares

O arquicerebelo (lobo floculonodular) está diretamente re-lacionado ao controle do sistema vestibular, recebendoaferências dos canais semicirculares e órgãos otolíticos,bem como dos núcleos vestibulares situados no troncoencefálico lateral (de Deiters), medial (de Schwalbe), supe-rior (de Bechterew) e inferior (de Roller). O paleocerebelo(incluindo a área mediana do verme cerebelar e o hemisfériocerebelar medial) está relacionado ao controle da proprio-cepção, recebendo aferências da medula espinal (vias espi-nocerebelares anteriores e posteriores), além de aferênciasvisuais e auditivas. O verme está relacionado à propriocepçãodo esqueleto axial (tronco e porções proximais dos mem-bros), enquanto as porções mediais dos hemisférios corre-lacionam-se com a propriocepção das extremidadesproximais dos membros inferiores e superiores. Ao vermetambém são atribuídas funções afetivas. Por fim, o neocere-belo (área do hemisfério cerebelar lateral) contém o maiornúcleo presente no cerebelo, o núcleo denteado, e estárelacionado com a programação motora e cognição. O neo-cerebelo recebe aferências de todo o córtex cerebral atravésde núcleos pontinos – constituindo a via córtico-pontocere-belar (que passa pela base do pedúnculo cerebral do mesen-céfalo formando os feixes de Arnold e Turck) – e envia fibraseferentes para o núcleo rubro, tálamo e córtex cerebral: áreamotora, pré-motora e córtex pré-frontal.4–7

Estudos com ressonância magnética funcional (RMf), in-clusive com tratografia, demonstraram conexões entre ocerebelo e áreas corticais cerebrais relacionadas à cogniçãoe ao afeto – o circuito cérebro-cerebelo-tálamo cortical

(CCTC). O sistema córtico-pontocerebelar é formado porum conjunto de circuitos fechados, onde o córtex cerebralprojeta-se para o cerebelo via pedúnculo cerebral e núcleospontinos, fechando o circuito ao retornar do cerebelo para ocórtex cerebral via núcleos talâmicos (►Fig. 1).6–8

Objetivo

Apresentar as novas atribuições funcionais relacionadas aocerebelo, após estudos de neuroimagem funcional. Os auto-res abordam aspectos neuroanatômicos, mapeando as pro-váveis regiões relacionadas a afeto e cognição, com impactosobre a fisiopatologia da dislexia, da esquizofrenia, do au-tismo, do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade(TDAH), das depressões e de outros distúrbios.

Desenvolvimento

Larsell propõe a subdivisão do cerebelo em dez lobos,atribuindo números romanos a essas regiões. O lobo anteriorcorresponde às regiões de Larsell I, II, III, IV e V; o loboposterior, às de Larsell VI, VII, VIII e IX; e o lobo floculono-dular, à de Larsell X. A exemplo do que ocorre no córtexcerebral, os hemisférios cerebelares também são assimétri-cos, sendo predominantemente maior o da esquerda. Adivisão realizada por Larsell facilitou em muito a tarefa deidentificar e compreender a apresentação clínica dos sinto-mas associados a lesões cerebelares. Manto et al. descrevem acorrelação entre as alças de conexões cerebelares atribuindo-as às áreas de Larsell: a alça sensoriomotora correlaciona-secom o paleocerebelo e com as áreas I-VI e VIII de Larsell; aalça vestibular correlaciona-se com o arquicerebelo e com asáreas V-VII e IX-X; e a alça límbica correlaciona-se com oneocerebelo e com as áreas de Larsell VI-IX.

As três alças descritas formam sistemas de neurocircuitosem paralelos, que ocorrem concomitantemente. As áreassensoriomotoras, predominantemente localizadas no loboanterior, projetam-se para a porção posterior da ponte,

Fig. 1 Circuito cerebelo-tálamo-cérebro cortical. Adaptado deD’Angelo et al.9 Abreviações: NAcc, núcleo accumbens; NAT, núcleoanterior tálamo; NCP, núcleo cerebelar profundo; NPa, núcleo pontinoanterior; NST, núcleo subtalâmico; NR, núcleo rubro.

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atingindo a área motora cerebral via núcleos talâmicos. Olobo posterior (área de Larsell I, II, VI, VIIA e VIIB) corres-ponde a regiões relacionadas a funções cognitivas cerebela-res. O córtex associativo cerebral projeta-se para os núcleospontinos, projetando-se para o lobo posterior do cerebelo. Osistema límbico projeta-se para o verme cerebelar, correla-cionando-se com os aspectos emocionais. O lobo floculono-dular recebe aferências do sistema vestibular. Três grandesvias foram identificadas: flóculo-paraflóculo, nódulo ven-tral-úvula (Larsell IX e X) e verme oculomotor dorsal (LarsellV-VII). As vias vestibulocerebelar e vestibuloespinhal estãofuncionalmente correlacionadas (►Fig. 2).7,8

Arquitetura Funcional do Cerebelo

Toda a estrutura cerebelar apresenta-se de forma homogêneaem suas seções. Tanto os hemisférios quanto o verme cere-belar apresentam estruturas histológicas semelhantes. Ocerebelo, a exemplo do córtex cerebral, possui substânciacinzenta superficial e substância branca profunda contendonúcleos profundos de controle funcional. Diferentemente docérebro, cada porção do cerebelo mostra-se homogênea,apresentando microscopicamente geometria estereotipadacomposta pelo mesmo conjunto de neurônios, formandocentenas oumilhares demicrozonas oumicrocircuitos. Estasmicrozonas formam, em última análise, módulos funcionaisextremamente eficazes. Outros dois contrastes entre o cere-belo e o córtex cerebral são evidentes: no cerebelo ossistemas de microzonas parecem ser organizados em feed-back apenas positivo, não possuindo alças de retroalimenta-ção negativas; e no cerebelo as microzonas são muitopobremente interconectadas, mostrando com clareza que o

sistema computacional cerebelar difere completamente doencontrado no córtex cerebral.9 Primariamente, há dois tiposde inputs cerebelares: fibras musgosas que ascendem pelasubstância branca cerebelar para formar sinapses excitató-rias aos dendritos das células granulares. As células granu-lares, por sua vez, emitem axônios para a camada molecularque se bifurcam formando fibras em paralelo. Estas fibras emparalelo corremperpendicularmente pela camadamolecularaté atingir os dendritos das células de Purkinje. Todos osoutputs cerebelares são conduzidos pelos axônios das célulasde Purkinje pela substância branca cerebelar. As células dePurkinje formam sinapses inibitórias com as células nucle-ares profundas e os núcleos vestibulares. Outro tipo de inputcerebelar inclui as fibras trepadeiras que surgem exclusiva-mente dos neurônios presentes no núcleo olivar inferiorcontralateral. Estas fibras trepadeiras envolvem o corpocelular e a árvore dendrítica das células de Purkinje, for-mando sinapses excitatórias com as mesmas. Uma fibratrepadeira pode emitir ramos que fazem sinapses com atédez células de Purkinje; enquanto cada célula de Purkinje éinervada por apenas uma fibra trepadeira. O córtex cerebelarpossui diversas classes de interneurônios inibitórios: célulasestreladas e células em cesto estão localizadas na camadamolecular do cerebelo. Estas células são estimuladas porcélulas granulares, causando um processo de inibição lateralàs células de Purkinje. As células de Golgi (presentes nacamada granular) recebem estímulo excitatório das célulasgranulares, promovendo feedback inibitório aos dendritosdas células granulares. Essa interação complexa sinápticaocorre na camada de células granulares localizada em umaregião denominada glomérulo cerebelar. Os glomérulos ce-rebelares são vistos como pequenas clareiras entre as células

Fig. 2 Áreas funcionais de Larsell em visão posterior da superfície cerebelar; lobos cerebelares e topografia das síndromes cerebelares.Adaptado de Manto et al.7 e Manni et al.25

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granulares. Todas as fibras ascendentes são excitatórias:fibras musgosas, fibras trepadeiras e células granulares. Jáas fibras descendentes são inibitórias: células de Purkinje,células estreladas, células em cesto e células de Golgi.9–12

Estudos em animais revelam que, na região do vermeanterior, há três zonas de projeções das células de Purkinjedenominadas de zona A, B e X. A zona A projeta-se para onúcleo fastígio, a zona X projeta-se para um grupo de célulasintersticiais ou interneurônios, e a zona B, para o núcleovestibular lateral (de Deiters). No hemisfério anterior docerebelo, outras cinco zonas são identificadas e denominadasde C1, C2, C3, D1 e D2. C1 e C3 projetam-se para o núcleoemboliforme, C2 projeta-se para o núcleo globoso, e D1 e D2para a porção rostro-caudal do núcleo denteado. As proje-ções de D1 eD2 continuam ininterruptamente para o interiordo flóculo e paraflóculo. No interior do flóculo as zonasreceptoras das projeções de D1 e D2 dividem-se em quatrooutras zonas que farão conexões comos núcleos vestibulares.Os estudos em primatas ainda estão em andamento, masespecula-se que essa subdivisão em zonas também possaocorrer em cerebelos humanos (►Fig. 3). As zonas D deprojeção das células de Purkinje associadas ao núcleo den-teado, bem como os hemisférios cerebelares possivelmenteestão implicados nas funções cognitivas e sensório-motorascerebelares.13

Apresentação Clínica das SíndromesCerebelares

As manobras clínicas comumente utilizadas para o diagnós-tico de uma lesão cerebelar que envolva a alça motora defuncionamento incluem: (1) ataxia cerebelar e disartria

cerebelar: avaliação da qualidade fonética durante a fala etestes padronizados da qualidade fono-articulatória da con-versação; (2) ataxia dos membros: testes que avaliam dis-metria – índex-nariz e índex-índex, calcanhar-crista tibial,manobra de Stewart Holmes ou rechaço, e teste de diadoco-cinesia; c) déficit postural e de marcha: capacidade emlevantar-se, modo como o paciente caminha, equilíbrio ebalanço do corpo, alterações posturais e velocidade dacaminhada. As manobras clínicas que frequentemente diag-nosticam lesões que acometem o controle cerebelar dosistema vestibular incluem: (1) verificação da posição dosglobos oculares; (2) perseguição ocular; (3) sacadas; (4)reflexo vestíbulo-ocular. Ferramentas clínicas para o diag-nóstico da síndrome cognitiva-afetiva cerebelar, descritapela primeira vez por Schmahmann e Sherman, em 1998,incluem: (1) testes aplicados para avaliar déficits da funçãoexecutiva (pensamento abstrato,fluência verbal,memória detrabalho e planejamento); (2) testes para detectar alteraçõesda cognição visuoespacial (prejuízo da memória visuoespa-cial e desorganização visuoespacial); (3) testes para detecçãodas alterações da personalidade (embotamento afetivo ouextravagância, comportamento inapropriado ou desinibido);(4) testes que detectem prejuízo da linguagem, incluindoanomia, agramatismo e disprosódia. As alterações observa-das na síndrome cerebelar cognitivo-afetiva assemelham-seem muito às lesões do lobo frontal (►Tabela 1).4,7,8,12,14

O Cerebelo Cognitivo-Afetivo

Ao cerebelo classicamente se atribui a função motora. Lesõescerebelares são descritas como ataxias cerebelares, podendo-se incluir alterações das vias proprioceptivas, verificadas

Fig. 3 Circuito cerebelo-tálamo-cortical representado por zonas identificadas como projeções das células cerebelares de Purkinje aos seusrespectivos núcleos e então para o tálamo e córtex cerebral. Adaptado de Voogd.13

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através da clássica prova de Romberg, como também pre-sentes nas disfunções do sistema vestibular. Outros sintomasclínicos atribuídos às funções de coordenação do cerebeloincluem: hipotonia, assinergia, dismetria, discronometria edisdiadococinesia.4,15 Gordon Holmes no início do século XXdescreve uma lesão cerebelar onde há comprometimento dafluência da fala. Seu trabalho clássico descreve 21 vítimas daPrimeira Guerra Mundial apresentando decomposição domovimento, com acometimento das estruturas motoras dafala. Outra situaçãomarcante é a dificuldade emproferir umasérie de sílabas de uma sentença, muitas vezes com expres-sões faciais bizarras, lembrando muito uma paralisia pseu-dobulbar. Lechtenberg e Gilman descrevem em um estudocom 122 pacientes que a disartria atáxica cerebelar cursacom lesões na porção cerebelar superior esquerda e/oudireita.14 Em 1998, a partir dos estudos realizados porSchmahmann e Sherman, cria-se um novo conceito relacio-nado ao cerebelo: “dismetria do pensamento” ou “dismetriacognitiva”. Nesse conceito, atribui-se ao cerebelo a ideia deque ele seria o responsável pela cronologia do raciocínio, dasideias, estando alterado em diversas doenças, como esquizo-frenia, autismo, dislexia e depressão bipolar do humor. Nosesquizofrênicos, há atraso no padrão do desenvolvimentoneuropsicomotor, com acometimento das vias frontocere-belares, analisados em estudos post mortem que revelamredução do verme anterior com prejuízo da densidade e dotamanho das células de Purkinje dessa região.9 Nos autistasencontramos redução do tamanho do cerebelo e prejuízo dasconexões entre o cerebelo e o tronco encefálico, incluindo asolivas inferiores, com impacto na redução das células dePurkinje. Esta redução é pronunciada na região dos hemis-férios posteroinferiores do cerebelo. Quanto maior for ahipoplasia do verme cerebelar nas zonas de Larsell VI e VII,maior o comprometimento dos autistas na exploração doambiente. Na síndrome de Williams, contudo, em que háaumento da exploração do ambiente e da desinibição social,encontramos hiperplasia do verme cerebelar.16 Nos quadrosdepressivos, como depressão maior, depressão bipolar dohumor e depressões com episódios maníacos e/ou depressi-vos, exames de ressonância magnética funcional (RMf) etomografia por emissão de pósitrons (PET) notaram evidên-cias da hipoatividade cerebelar, insular, frontal e temporal. Otratamento antidepressivo inclui a recuperação da atividadedestas áreas. O cerebelo possui capacidade de regular ohumor por sua atividade sobre os núcleos da base; o controleemocional é realizado pelo cerebelo através de suas influ-

ências sobre o córtex pré-frontal e hipotálamo. O quadrocognitivo afetivo cerebelar inclui: prejuízo das funções exe-cutivas, como planejamento, pensamento abstrato, memóriade trabalho e fluência verbal; dificuldades com a cogniçãoespacial, incluindo cognição visuoespacial e memória vi-suoespacial; alterações de personalidade com comporta-mento inapropriado e alteração do afeto; déficit delinguagem, como agramatismo, disprosódia e anomia mo-derada. Alguns desses sintomas estão relacionados comfunções pré-frontais, não sendo exclusivos de lesões cerebe-lares. O envolvimento de funções relacionadas ao humor e aoafeto correlaciona-se diretamente com áreas associativas,paralímbicas e pré-frontais. Esta correlação de sintomas comáreas corticais diversas representa, em última instância, oenvolvimento do circuito córtico-tálamo-cerebelo cortical(►Fig. 1). Anatomicamente, a lesão do lobo posterior estáassociada a alterações cognitivas; enquanto lesões no vermecerebelar estão associadas a sintomas afetivos. O lobo ante-rior está diretamente envolvido com funções motoras, apre-sentando pouca correlação com sintomas cognitivos eafetivos (►Fig. 2). Estudos de neuroimagem confirmam ashipóteses neurofuncionais correlacionadas acima.17–19

Alguns autores sugerem que a própria dislexia poderia serdecorrente da presença de anormalidades na oculomotrici-dade controlada pelo cerebelo, presença de nistagmo, e/ouaté uma anormalidade na integração dos estímulos que seprojetam do cerebelo ao córtex cerebral.20

Marien et al relatam associações entre a síndromecerebelar cognitivo-afetiva com dislexia visual e disgrafiaassociada Poucos são os estudos que abordam os mecanis-mos associados a essa disgrafia. Uma possível explicaçãoatravés dos estudos por tomografia computadorizada poremissão de fóton único (SPECT) é o fenômeno da diásquise,isto é, uma interrupção funcional das vias cerebelo-corti-cais resultando em déficits de linguagem. Após lesõescerebelares, há descrições de afasias motoras ou de ex-pressão, e incapacidade de repetição, nomeação e escrita.Estudos de neuroimagem funcional revelam que os distúr-bios de linguagem mencionados acima estão diretamenterelacionados a lesões cerebelares com redução dos impul-sos excitatórios da via cerebelo-tálamo cortical. Nos dislé-xicos, há evidente redução do lobo anterior do hemisfériodireito cerebelar. As lesões observadas, que cursam comdistúrbio de linguagem, acometem geralmente o hemisfé-rio cerebelar contralateral ao hemisfério cerebral domi-nante para a linguagem.18–24

Tabela 1 Características clínicas das síndromes cerebelares

Síndromes motoras esomatossensitivas cerebelares

Síndromes vestibulares Síndromes cognitivo-afetivas

Disartria Nistagmo Déficit executivo

Ataxia de membros Reflexo vestíbulo-ocular (VOR) Alteração da cogniçãovisuo-espacial

Déficit de manutenção de posturae alteração da marcha

Tontura e vertigem Alterações de personalidade e da linguagem

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Conclusões

Tradicionalmente, associava-se exclusivamente ao cerebeloas funções motoras, a coordenação do movimento e o apren-dizado motor. Com as técnicas atuais de neuroimagem,doenças relacionadas ao comprometimento do raciocínio,como distúrbios de linguagem e da cronometria do pensa-mento, são atribuídas também ao cerebelo. No momentoatual, a neuroimagem torna evidente a existência de umcircuito central cerebelar envolvendo o córtex cerebral,cerebelo, tálamo e tronco encefálico. A área pré-frontal sofreinfluência direta da atividade cerebelar; o sistema límbicorecebe fibras cerebelares, os córtices associativos também,justificando alguns dos sintomas presentes em doençascomo esquizofrenias, dislexias, autismo, transtorno do défi-cit de atenção e hiperatividade (TDAH) e afasias. O ponto devista topográfico revela com clareza que, além das funçõesmotoras reconhecidamente atribuídas ao lobo anterior everme (formando um verdadeiro homúnculo motor), tam-bém as funções relacionadas ao afeto são parte do vermeinferior; as funções cognitivas são atribuídas aos hemisférioscerebelares (lobo posterior).22–25

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