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ASPECTOS EDUCATIVOS DO ESTUDO DA FILOSOFIA DOS DOZE PASSOS - UM OLHAR SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DE COORDENADORES DOS GRUPOS DE ALCÓOLICOS ANÔNIMOS AA DO BRASIL E DE PORTUGAL Joana Angélica da Costa Dissertação de Mestrado em Ciências da Educação Março, 2016

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ASPECTOS EDUCATIVOS DO ESTUDO DA FILOSOFIA DOS DOZE PASSOS -

UM OLHAR SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DE COORDENADORES DOS GRUPOS

DE ALCÓOLICOS ANÔNIMOS – AA DO BRASIL E DE PORTUGAL

Joana Angélica da Costa

Dissertação de Mestrado em Ciências da Educação

Março, 2016

Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de

Mestre em Ciências da Educação, realizada sob a orientação científica da

Profª. Doutora Maria do Carmo Vieira da Silva

DEDICATÓRIA

Aos grupos de Alcoólicos Anônimos, essa valiosa irmandade que com 81 anos de

existência, espalhados em mais de 170 países, tem salvado mais de dois milhões de

alcoolatras em todo o mundo.

AGRADECIMENTOS

Um trabalho de investigação como este, onde há um percurso a se trilhar,

descobrimos rapidamente que apesar de ele se construir a partir de nós, esses nós, carregam

muitos. Não há como agradecer a esses muitos, porque eles estão espalhados tantos no Brasil

como em Portugal. No entanto pediria a esses muitos, a permissão para aqui fazer alguns

poucos e especiais agradecimentos:

Agradecer ao mestre da simplicidade, o médico, psiquiatra Luis Teixeira Neto,

responsável pela instituição Vila Serena no Ceará - Nordeste do Brasil, que dá suporte aos

dependetentes químicos. O ser humano que mais me ensinou sobre o cuidado, sobre o afeto,

a coragem, a força do trabalho com humildade e simplicidade e que tanto contribuiu para

que esta investigação aqui chegasse.

A Doutora Maria do Carmo Vieira da Silva, minha professora, minha mestra, minha

orientadora. Seu exemplo diário de coerência e beleza na prática docente, bem como seu

encorajamento, seriedade e comprometimento, me animam a alma e me faz ter esperança.

Agradecer a valiosa contribuição prática do Dr. Hyérides Macedo, para que eu

pudesse estar aqui em Lisboa e realizar o referido trabalho.

Meu agradecimento a AAFEC - Associação de Aposentados Fazendários do Estado

do Ceará, instituição onde pude desenvolver vários projetos de arte e que, de forma

significativa, contribui para que eu pudesse realizar esse trabalho investigativo.

Meu muito obrigada.

ASPECTOS EDUCATIVOS DO ESTUDO DA FILOSOFIA DOS DOZE PASSOS -

UM OLHAR SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DE COORDENADORES DOS GRUPOS

DE ALCÓOLICOS ANÔNIMOS – AA DO BRASIL E DE PORTUGAL

RESUMO

O trabalho investigativo que se apresenta lança o olhar para os aspectos educativos do

estudo em grupo da filosofia dos Doze Passos, nas salas de Alcóolicos Anônimos - AA, na

perspectiva dos coordenadores dos referidos grupos no Brasil e em Portugal. A fim de trazer

conhecimento sobre as questões referentes a dependência química, em especial o

alcoolismo, trouxemos a lume a sua problemática, bem como as estratégias de ajuda

desenvolvidas pelos grupos do AA, sob o roteiro de estudo do programa dos Doze Passos,

elaborado pela própria irmandade, assim como as dinâmicas e os processos educativos

aplicados nos referidos grupos. Nos debruçamos, em seguida, nas estratégias de educação

em saúde, o que nos trouxe a atenção para a educação do sujeito. Articulamos com quatro

teóricos que nos ofereceram subsídios valiosos para a referida prática, como Feuerstein

(1994), Dewey (1959), Freire (1996) e Makarenko (1975). Em seguida empreendemos um

estudo empírico entrevistando coordenadores dos grupos de AA no Brasil e em Portugal, e

fizemos o levantamento das impressões dos mesmos quanto aos aspectos educativos

existentes nas dinâmicas das salas de AA. Os resultados desse estudo apontaram não só para

o valor do conteúdo em si mas, especialmente, para o modo de os trabalhar, lançando um

olhar atento aos sujeitos do processo. Questões referentes ao valor das narrativas em sala, o

não protagonismo dos que conduzem o grupo de estudo, a auto-gestão e a autonomia

ficaram patentes, trazendo uma reflexão valiosa, a ser feita por todos aqueles que transitam

em cenários educativos diversos.

Palavras chaves: Grupos de Alcóolicos Anônimos, Doze Passos e Educação do Sujeito

EDUCATIONAL ASPECTS OF THE STUDY OF PHILOSOPHY OF THE TWELVE

STEPS - A LOOK ON THE ENGINEERS OF EXPERIENCES OF GROUPS

ALCOHOLICS ANONYMOUS - AA BRAZIL AND PORTUGAL

ABSTRACT

The investigative work that presents itself launches look at the educational aspects of the

study in the philosophy of the group of the Twelve Steps, in the rooms of Alcoholics

Anonymous - AA in view of the groups coordinators in Brazil and Portugal. In order to

bring knowledge about the issues of substance abuse, particularly alcoholism, brought to

light their problems as well as help strategies developed by AA groups in the study guide of

the Twelve Step program, prepared by own brotherhood, as well as the dynamics and

educational processes applied in these groups. We worked through and then in health

education strategies, which brought our attention to the education of the subject. We

articulated with four theoretical who offer us valuable information to that practice, as

Feuerstein (1994), Dewey (1959), Freire (1996) and Makarenko (1975). Then we undertake

an empirical study interviewing coordinators of AA groups in Brazil and Portugal and do the

survey of impressions of the coordinators as to the educational aspects existing in the

dynamics of AA rooms. The results of this study show not only to the value of content, but

especially for the way of working them, casting a closer look at the subject of the process.

Issues relating to value of room in narratives, lack of leadership of conducting the study

group, self-management and autonomy were patents, bringing a valuable reflection, to be

made by all those who move in different educational settings.

Key words: Alcoholics Anonymous groups, Twelve Steps and Education Subject

ÍNDICE

INTRODUÇÃO.....................................................................................................................01

CAPÍTULO 1- DEPENDÊNCIA QUÍMICA........................................................................07

1.1- A problemática da dependência química e os grupos de Alcóolicos Anônimos........07

1.2- Os Doze Passos nos grupos de Alcoólicos Anônimos - AA......................................12

1.3- Roteiro e processo pedagógico aplicado a cada um dos Doze Passos........................17

1.4- Dinâmicas e processos educativos nas salas de Alcóolicos Anônimos- AA..............24

CAPÍTULO 2 - EDUCAÇÃO DO SUJEITO........................................................................35

2.1- Educação em Saúde....................................................................................................35

2.2- Teóricos inspiradores da prática educativa nas salas de Alcóolicos Anônimos-AA..37

2.3- Educação mediada na perspectiva de Reuven Feuerstein...........................................44

2.4- Democracia e Liberdade de Jonh Dewey na prática do estudo dos Doze Passos.......49

2.5- Paulo Freire - A autonomia ao serviço da liberdade de escolha, na prática

pedagógica..................................................................................................................55

2.6- Anton Makarenko: o coletivo como pedra fundamental............................................58

2.7- Educação do Sujeito e Formação Humana.................................................................60

SÍNTESE GERAL..................................................................................................................64

CAPÍTULO 3 - ESTUDO EMPÍRICO..................................................................................65

3.1- Preâmbulo........................................................................................................................65

3.2- Metodologia da pesquisa.................................................................................................65

3.3 - Participantes do estudo...................................................................................................66

3.3.1- Informantes chave........................................................................................................67

3.3.2- Coordenadores de grupo de estudo nas salas de Alcóolicos Anônimos- AA..............70

3.4- Considerações sobre o levantamento dos dados das entrevistas.....................................70

3.5 - Análise e discussão dos dados........................................................................................73

SÍNTESE GERAL..................................................................................................................87

CAPÍTULO 4 – CONCLUSÃO E RECOMENDAÇÕES.....................................................88

BIBLIOGRAFIA....................................................................................................................92

ANEXOS

A- Guião de entrevistas

B- Transcrição das entrevistas dos portugueses

C- Transcrição das entrevistas dos brasileiros

D- Tabela de dados dos entrevistados portugueses

E- Tabela de dados dos entrevistados brasileiros

F- Símbolo dos Alcóolicos Anônimos- AA

G- Fotos de publicações dos Alcóolicos Anônimos – AA

H- Termo de autorização para citação em trabalho científico

Glossário de Siglas

AA - Alcóolicos Anônimos

NA- Narcóticos Anônimos

OMS- Organização Mundial da Saúde

AABR- Alcóolicos Anônimos do Brasil

EAM- Experiência de Aprendizagem Mediada

JUNAAB- Junta de Serviços Gerais de AA do Brasil

CID- Código Internacional de Doenças

PORDATA- Base de Dados Portugal Contemporâneo

IBGE- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

1

INTRODUÇÃO

A Dependência Química assim como o diabetes e a hipertensão são consideradas

pela Organização Mundial da Saúde - OMS como uma doença crônica, não havendo ainda

cura e sim controle, sendo importante para isso que o paciente aprenda a conviver com ela

e a controlá-la através de determinadas atitudes.

O trabalho a ser feito com esses pacientes está intimamente relacionado com a

educação, já que geralmente o controle só de forma medicamentosa tem se mostrado

insuficiente. Nesses casos se faz necessário instigar e promover uma mudança de estilo

de vida e isso é alcançado através de um processo educativo. O que se faz nesse

momento é educação em saúde. Por esse motivo o trabalho proposto procura se

debruçar sobre a referida questão e, em especial, a questão da Dependência Química e o

seu controle através do estudo em grupo da filosofia dos Doze Passos, sugerida pela

irmandade dos Alcóolicos Anônimos1 - AA. A referida i r m and ad e , co m o se

d e s i gn am , são um exemplo de controle através da educação em saúde, ainda não

superada por nenhuma outra intervenção, haja visto prêmios e reconhecimentos

recebidos.

Diante desse quadro é imprescindível investigar a fim de identificar quais os

aspectos educativos e características pedagógicas que são usadas na prática do referido

estudo dos Doze Passos, que faz com que s tenham resultados tão exitosos e por tanto

tempo e como podemos a partir da referida investigação sugerir, aplicabilidade em outros

cenários similares, em especial em salas de aulas.

Com a finalidade de compreender como este processo de aprendizagem se faz,

investigámos os atores que estão intimamente ligados à referida prática, que são os

coordenadores de grupo nas salas de Alcóolicos Anônimos - AA, onde o estudo se faz.

Investigámos, igualmente, os aspectos educativos, significados e importância atribuídos

por esses coordenadores, nas suas experiências e práticas diárias nas salas de AA no

Brasil e em Portugal.

1 O referido trabalho está escrito na língua portuguesa praticada no Brasil.

2

Centrámos a atenção em alguns valiosos educadores e suas perspectivas

pedagógicas que, nós entendemos, oferecem subsídios teóricos para a referida prática,

independente de terem desenvolvido as suas teorias antes ou depois do programa dos

Doze Passo se apresentar como é. A educação em saúde a serviço da educação do sujeito.

Por fim procurámos apresentar as questões, baseadas na referida pesquisa que possam vir

a contribuir com e outros cenários educativos.

Como Pedagoga e Pós-graduada em Arte-educação e com formação em

Arteterapia assumimos, em 2011, o desafio a convite do amigo Luís Teixeira Neto,

renomado médico do Estado do Ceará, no nordeste do Brasil, com experiência na área de

suporte ao dependente químico e sua família, para que nós viéssemos a implantar um grupo

de arteterapia na comunidade terapêutica Vila Serena, do qual ele era gestor. A referida

comunidade se dedica a dar suporte e acompanhamento ao tratamento dos dependentes

químicos que lá estão em sistema de internação.

Foi em contato com a realidade dos dependentes químicos em tratamento que

iniciamos o trabalho de realizar dois encontros por semana, onde a arteeducação e a

arteterapia cumpririam um papel fundamental no tratamento multidisciplinar no

adoecimento de dependência química. Foram três anos de intenso e valioso trabalho, onde

pudemos então tomar conhecimento do Modelo Minnesota2, bem como do estudo dos Doze

Passos e, com ele como norteador, pudemos desenvolver todo o nosso trabalho durante esse

tempo.

O roteiro para desenvolver o trabalho foi seguido através do estudo sistematizado

dos Doze Passos e foi o debruçar no referido estudo, que nos ampliou e possibilitou a

compreensão sobre a educação em saúde e nos motivou a empreender o estudo que agora se

apresenta. Como pode um modelo de estudo sistematizado, seguindo um roteiro de Doze

Passos, dar conta de forma tão eficaz e por tanto tempo do adoecimento de dependência

química em detrimento de tantos anos de investimento medicamentoso e psicoterápico? O

2 Modelo desenvolvido no Estado do Minnesota, onde integram membros do AA, em recuperação, que

atuavam como conselheiros combinando a psicoterapia humanista, a psicoterapia comportamental e a psicoterapia baseada na confrontação da realidade. O primeiro modelo de tratamento da dependência química a assumir uma base estruturada nos preceitos dos Doze Passos e a fazer uso, paralelamente, de uma abordagem e equipe multidisciplinar, onde pacientes e profissionais colaboram conjuntamente na definição do seu tratamento.

3

que esse modelo educativo tinha de tão valioso para suprir finalmente a grande lacuna que

fazia com que se enchessem as alas psiquiátricas dos hospitais?

Durante o processo de construção do referido trabalho na comunidade terapêutica,

foi possível observar o aspecto educativo de forma evidente, pois a condução do trabalho

em grupo, lançava à atenção para o modo de perceber a vida. Ali se apresentava uma

educação do sujeito na sua dimensão moral, onde a atenção estava voltada para sua

dimensão humana de forma holística. Mais do que o estudo dos Doze Passos, logo ficou

patente que o modo de o apresentar e aplicá-lo estava também extremamente alinhado com

a sua textualidade. Seria então de grande valia, investigar a forma de conduzir e estudar os

referidos passos.

A educação se apresentava nesse contexto como uma questão social e não apenas

de natureza pedagógica, ficando patente a perspectiva socioeducativa durante o processo. A

aprendizagem advinda do estudo dos Doze Passos é muito mais moral que cognitiva e se

estende desde a quem funciona no primeiro momento como estudantes do roteiro, aos que

exercem o papel de coordenar o grupo de estudo, trabalhando mesmo que de forma

empírica com mediação.

A partir das experiências na comunidade terapêutica Vila Serena, conforme

explicitado acima, cremos ficar patente o valor da educação no processo de controle da

doença da dependência química, utilizando como norteador o estudo sistemático e em

grupo dos Doze Passos. Acreditamos, portanto, ser de grande relevância, a investigação

do referido tema no que se refere aos seus aspectos educativos, a fim de descobrir que

especificidades podemos aplicar e ampliar em outros cenários.

Diante da problemática da dependência química e sua dimensão social, bem como

seus desdobramentos na área da saúde física, mental e emocional em grande escala e sem

considerável controle por parte das políticas públicas em saúde, surgem inúmeras tentativas

de intervenção sem êxito. A busca por saídas que viessem a ter significativos resultados,

fizeram com que dois alcóolatras se reunissem em busca de um suporte para o adoecimento

que enfrentavam.

4

Em 1935 foi criado o primeiro grupo autônimo nos Estados Unidos América,

com a proposta de criar uma comunidade de entreajuda para apoiar os que sofrem com o

alcoolismo. Nascia os Alcoólicos Anônimos - AA, que se difundiram por todo o globo,

numa clara indicação de que a dimensão puramente medicamentosa não estava dando

conta da problemática que se apresentava. Tornava-se necessário uma abordagem

multidisciplinar nesses casos. A educação em saúde ali se apresentava como uma

dimensão que fez a real diferença, tendo em vista os 81 anos de trabalho respeitado que

os grupos de AA têm desenvolvidos em todo o mundo até aos dias de hoje.

No que se refere aos grupos de Alcoólicos Anônimos, o mesmo é constituído

por mais de 90 mil grupos locais, em 175 países e com o número estimado de mais de

dois milhões de membros (Mota, 2006). Cada grupo realiza reuniões regulares, nas quais

os membros relatam entre si as suas experiências, tendo como norteador o Modelo

Minnesota sob a f i lo so f i a dos Doze Passos. A ideia da reunião se funda na

necessidade e importância de estar entre os “iguais”, os únicos capazes de compreender

verdadeiramente a problemática da dependência do álcool é um alcoólatra. O que

acontece nesse momento é o trabalho d e educação em saúde nas relações dentro da

irmandade do AA e com a comunidade fora dela.

O trabalho proposto procura se debruçar sobre a referida questão e em especial,

questão da dependência química e o seu controle através do estudo sistematizado dos

Doze Passos, aplicados nos grupos de autoajuda sugerida pelo AA. O referido estudo tem

se mostrado como um valioso exemplo de controle través da educação em saúde, ainda

não superada por nenhuma outra intervenção.

A dimensão e o valor dos referidos grupos têm um alcance tão grande que, na

literatura de AA (2004), é referenciado o reconhecimento dado pelo Prêmio Lasker3 em

1951 aos Alcoólicos Anônimos, em um claro reconhecimento da contribuição da

irmandade para as políticas públicas em saúde. Uma parte do texto diz o seguinte:

3 O prêmio Lasker (em inglês: Lasker Award) é concedido deste 1946 a pessoas que realizam contribuições

significativas à medicina, ou que realizaram serviços públicos notórios em medicina.É concedido pela Lasker Foundation, fundada por Albert Lasker e sua esposa Mary Woodward Lasker. Os prêmios são denominados “Prêmios Nobel da América”. Setenta e seis premiados com o Lanker Award receberam também o Prêmio Nobel.

5

A Associação Americana de Saúde pública atribui aos

Alcoólicos Anónimos, a título coletivo, o Prêmio Lasker para

1951, em reconhecimento da sua abordagem única e

altamente eficaz desse problema secular de saúde pública e

social, que é o alcoolismo...Ao evidenciar que o alcoolismo é

uma doença, o estigma social associado a esta condição está

a desaparecer...Talvez um dia os historiadores venham a

reconhecer que os Alcoólicos Anónimos representaram uma

obra pioneira no seu campo, ao criarem um novo instrumento

de ação social, uma nova terapia baseada na afinidade do

sofrimento comum, e que encerra um enorme potencial para

a solução de milhares de outros padecimentos da humanidade

(p.328).

Diante desse quadro é imprescindível investigar que estratégias e quais os

aspectos pedagógicos existentes no referido estudo que fazem com que eles tenham

resultados tão exitosos. De igual importância, lançar luz sobre as particularidades

pedagógicas a partir da perspectiva dos coordenadores de grupo de AA, quando da

práxis do estudo em grupo da filosofia dos Doze Passos, sugerida pela irmandade dos

Alcoólicos Anônimos - AA, para o controle da doença do alcoolismo. Para tanto,

constituem-se assim, objetivos deste trabalho:

- Identificar os aspectos educativos e particularidades do estudo sistematizado da

filosofia dos Doze Passos, que fazem com que o processo de construção do conhecimento

aplicado pelo referido estudo se mantenha por tanto tempo e de forma tão eficaz na

perspectiva dos coordenadores das salas de estudo do AA.

- Recolher informações e dados que se têm apresentado como mola propulsora para as

experiências ex itosas sobre o trabalho dos grupos de Alcóolicos Anônimos - AA,

através do depoimento dos coordenadores das reuniões de grupo dos Alcoólicos

Anônimos, no Brasil e em Portugal.

- Identificar que teóricos da educação oferecem suporte teórico a prática do estudo dos

Doze Passos, mesmo que de forma empírica, a fim de poder apontar os aspectos relevantes

e sua aplicabilidade em outros cenários pedagógicos.

Esta investigação é uma pesquisa qualitativa que utilizou como método para a

coleta de dados a entrevista. Foram entrevistados um total de dez coordenadores do

6

estudo da filosofia dos Doze Passos nas salas de Alcoólicos Anônimos, sendo cinco do

Brasil e cinco de Portugal.

A referida entrevista foi dividia em três blocos de perguntas, onde a atenção

esteve voltada para o perfil dos coordenadores, como cada um sente, entende e percebe a

sua função, bem como que importância e especificidades que os mesmos atribuem ao

estudo em grupo dos Doze Passos.

O trabalho aqui apresentado está estruturado em quatro capítulos. O primeiro diz

respeito a dependência química, sua problemática, os grupos de Alcoólicos Anônimos, a

prática dos Doze Passos nos grupos de Alcoólicos Anônimos, um roteiro detalhado de

cada um dos Doze Passos e sua relação com as práticas pedagógicas vigentes e os

teóricos da educação que o subsidiam e, finalmente, a dinâmica e os processos educativos

nas salas de Alcoólicos Anônimos.

O segundo capítulo se debruça sobre a educação do sujeito trazendo a atenção

para a educação em saúde, teóricos inspiradores a prática educativa nas salas de

Alcoólicos Anônimos, com atenção voltada para quatro grandes teóricos que entendemos

estão de mãos dadas com a dinâmica educativa que acontece nos grupos anônimos como:

a educação mediada de Feuerstein, a democracia e a liberdade preconizada por Dewey, a

autonomia e a criticidade ao serviço da liberdade de escolha de Freire e Makarenko com

a educação do coletivo e a assembleia de turma. Por fim, ainda nesse capítulo, nos

debruçamos sobre a educação do sujeito e a formação humana.

No terceiro capítulo apresentamos o nosso estudo empírico, onde está descrito o

processo de investigação da pesquisa com as entrevistas, a metodologia usada, os

participantes do estudo, considerações sobre o levantamento dos dados e de cada

entrevista, bem como a análise e discussão dos dados. No quarto e último capítulo

trazemos as nossas conclusões e recomendações acerca do tema.

7

CAPÍTULO 1- DEPENDÊNCIA QUÍMICA

No referido capítulo, nos debruçaremos sobre a problemática da dependência

química, a questão do adoecimento e as diversas intervenções a respeito. A questão dos

grupos de alcóolicos anônimos, juntamente com a programação dos Doze Passos e seu

estudo em grupo. Nos debruçaremos sobre cada um dos Doze Passos em uma análise

detalhada da forma de condução pedagógica e os teóricos que entendemos oferecem

suporte a referida prática. Por fim apresentaremos como funciona a dinâmica e o processo

educativo dentro das salas de AA, juntamente com algumas contribuições de autores que se

debruçaram sobre o tema e que consideramos de valia trazer à tona.

1.1- A problemática da Dependência Química e os Grupos de Alcoólicos

Anônimos

Em 1966, conforme relatório da Organização Mundial da Saúde – OMS, no

Código Internacional de Doenças- CID 10, a dependência química é reconhecida como

uma doença social grave, sendo a terceira doença que mais mata no mundo, é progressiva

e fatal, não há cura e sim controle, trazendo danos não só a quem é portador da

doença, mas também aos que estão vinculados ao dependente ou mesmo ao seu redor.

Semelhante a declaração da OMS, no folheto informativo publicado pelo AA, o

alcoolismo é definido como uma doença que se manifesta na maneira incontrolada de

beber da vítima. É uma doença progressiva que leva a loucura e a morte prematura. É

incurável e mesmo depois de muitos anos sem beber, o indivíduo não poderá voltar a

beber normalmente, pois logo estará bebendo mais do que nunca. O alcoolismo embora

não tenha cura, pode ser detido a sua marcha e para que não volte a beber é necessária

uma mudança na personalidade do doente.

8

O adoecimento do alcoolismo passa por três fases bem distintas e progressivas

que diz respeito:

- Fase inicial (10 a 15 anos): começa bebendo socialmente, mais tarde habitualmente e

depois descontroladamente. Faz promessas para si e para os outros que vai se controlar.

Acredita que bebe só quando quer e que para quando quiser. Experimenta os primeiros

“apagamentos”, momentos de amnésia e não lembra o que fez na noite anterior.

- Fase intermediária (dura aproximadamente 5 anos): mente toda hora para esconder o

fato e passa a beber onde não o conhecem, perde a fome e come irregularmente. Anda

sempre nervoso, agitado e deprimido. Sempre culpa os outros por seu estado. Começa

então a parar de beber, mas acaba sempre voltando e com mais força.

- Fase final (que termina em loucura, morte ou no desejo sincero de se recuperar): sua

vida se torna intolerável com a bebida e impossível sem ela. Começam as internações em

hospitais e sanatórios. Ao sair desintoxicado, entra no primeiro bar para tomar uma só e

sai de lá bêbado. Perde o emprego, passa a depender da família, torna-se rebelde e

agressivo, perdendo totalmente o sentido de responsabilidade

O alcoólatra é uma pessoa cuja maneira de beber causa um contínuo e crescente

conflito em qualquer aspecto de sua vida. Quando o depende químico toma conhecimento

e consciência de que a sua problemática diz respeito a uma doença e não um desvio de

caráter, a problemática toma outros contornos, bem como a forma de tratar a mesma.

Parsons (1979) salienta:

Ao doente não podem ser imputadas culpas relativamente

à sua condição. Isto é, não é uma condição que dependa da

sua própria vontade. Contudo, o doente deve ser

responsabilizado pelo empenho em recuperar do seu

problema. É sua obrigação procurar e aceitar ajuda para

recuperar seu problema (pp.140-141).

Portanto, como já foi dito anteriormente, o diabetes e a hipertensão, a

dependência química foram consideradas pela Organização Mundial da Saúde - OMS

como uma doença crônica, não havendo ainda cura e sim controle, por isso sendo

importante que o paciente aprenda a conviver com ela e a controlá-la através de

9

determinadas atitudes. O trabalho a ser feito com esses pacientes está intimamente

relacionado com a educação, já que geralmente o controle só de forma medicamentosa é

insuficiente. Nesses casos se faz necessário instigar e promover uma mudança de estilo

de vida. Isso é alcançado através de um processo educativo. O que se faz nesse

momento é educação em saúde.

Em 1935, a partir das experiências empíricas de dois alcoólicos desenganados

pelos médicos, Bill Wilson (Willian Griffith Wilson) e Dr. Bob Smith (Dr. Robert Smith),

surge o primeiro grupo autônimo nos Estados Unidos América, com a proposta de criar

uma comunidade de entreajuda para apoiar os que sofrem com o alcoolismo. Nascia os

Alcóolicos Anônimos - AA, que se difundiram por todo o globo, onde o principal

objetivo é a recuperação do membro que dela faz parte. Uma clara indicação que a

dimensão puramente medicamentosa e/ou psicoterápica, não estava dando conta da

problemática que se apresentava, com um grande número de alcoólicos que enchiam as

alas psiquiátricas dos hospitais e manicômios. Fazia-se necessário uma abordagem

multidisciplinar nesses casos.

A proposta dentro da referida abordagem multidisciplinar traz a atenção para a

educação em saúde e se apresenta como uma dimensão, que fez a real diferença, haja

vista atualmente já contar com 81 anos de trabalho respeitado que os grupos de AA, tem

desenvolvidos em todo o mundo.

A compulsão e o vício tornaram-se a “revolução cognitiva” da modernidade, uma

alternativa ao vazio interior característico do homem moderno. Daí surge inúmeras

associações humanitárias de autoajuda como fala Oliveira (2001, p.138, apud Mota,

2004). O autor destaca ainda que concomitante à problemática das drogas surge como

resposta o vazio existencial e em s e g u i d a , as comunidades de cooperação como os

grupos de autoajuda.

No que se refere aos grupos de Alcóolicos Anônimos, o mesmo é constituído

por mais de 90 mil grupos locais em 175 países. (Mota, 2006). Cada grupo realiza reuniões

regulares, nas quais os membros relatam entre si suas experiências, tendo como norteador a

filosofia e o ro t e i ro dos Doze P assos, sugeridos para o trabalho d e educação para a

saúde nas relações dentro da Irmandade e com a comunidade de fora dela. Nos grupos não

10

existem líderes, a participação é voluntária, não há regras formais e obrigações e sim

sugestões, não há pagamento de nenhuma quantia ou qualquer formulário de inscrição. No

preâmbulo da publicação de Alcoólicos Anônimos (2004), a associação é assim definida:

Alcoólicos Anônimos é uma comunidade de homens e

mulheres que partilham entre si a sua experiência, força e

esperança para resolverem o seu problema comum e

ajudarem outros a se recuperarem do alcoolismo. O Único

requisito para ser membro é o desejo de parar de beber.

Para ser membro de AA não é necessário pagar taxas de

admissão nem quotas. Somos autossuficientes pelas nossas

próprias contribuições. AA não está ligado a nenhuma

seita, religião, instituição política ou organização: não se

envolve em qualquer controvérsia, não subscreve nem

combate qualquer causa. O nosso propósito primordial é

mantermo-nos sóbrios e ajudar outros alcoólicos a alcançar

a sobriedade (p.4).

Importante destacar a questão do anonimato dentro da irmandade e como essa

ferramenta se torna valiosa para o processo de reconstrução humana. Quanto ao anonimato

destaca Frois (2009); “são eliminadas as distinções pessoais” (p.93), fator importante para

que as referidas distinções não interfiram no processo de aprendizagem. Nesse caso é

possível haver uma uniformização do discurso e das práticas. Não há ali distinção

econômica, intelectual, política etc. O adoecimento é democrático, a todos alcança sem

distinção, a dor (nas devidas proporções) é a mesma e o desejo de parar também.

Resende (2000) fala de uma problemática que, por sua vez, formulou um

esquema tríade que é composto por: droga - indivíduo - meio; e os mesmos devem ser

objeto de análise quanto a sua relação e à dependência química. Paixão (1995)

apresentou quatro modelos de estudo; o modelo Jurídico/Moral que diz respeito a: o

Médico; o Psicossocial; o Sociocultural e o Religioso. Destacamos aqui para o referido

projeto o modelo Sociocultural. No modelo Sociocultural a ênfase é dada no contexto e

no ambiente, elementos esses que são vistas também como razões dos desvios ou não do

processo de aprendizagem. Nesse modelo os grupos de AA desempenham o seu papel.

Na abordagem sociocultural, há a utilização de atividades grupais que visam

estabelecer um ambiente terapêutico (socioterapia), onde a ênfase recai sobre os

11

processos de socialização e na manipulação deste, a exemplo das comunidades

terapêuticas e dos grupos de AA. Um fator importante diz respeito a quem conduz os

grupos de estudo, que deve ser sempre um dependente químico em recuperação, já que

não consideram existir um ex - dependente químico.

Na Inglaterra há variações desta técnica desenvolvida conforme destaca Jones

(1943), onde a equipe pode e deve ser dirigida apenas por dependentes químicos em

recuperação. O autor do referido artigo considera difícil fazer uma avaliação científica da

efetividade da metodologia dos Doze Passos, porém, diz não poder deixar de considerar a

sua relevância social, em um cenário onde os modelos terapêuticos têm oferecido

avanços modestos e resultados poucos encorajadores. Acredita o autor ser importante

que se façam das irmandades dos Alcóolicos Anônimos - AA, bem como dos Narcóticos

Anônimos - NA, objetos de pesquisas.

Mota (2004) fala sobre o cenário atual e a importância da ajuda mútua quando

cita o clássico estudo de Durkheim sobre suicídio no século 19. Ele adverte que as

grandes elevações das mortes voluntárias estão relacionadas com um estado de crise e

perturbação atual, cujo prolongamento pode ser perigoso. O autor também cita Giddens,

quando diz que a nossa segurança foi afetada em várias áreas ligadas à afetividade.

Segundo White (2004), em 2002 foi registrado cerca de 20 mil grupos atuando

em 100 países. Atualmente os norte-americanos procuram mais esses grupos que os

serviços psiquiátricos especializados, refere Samhsa (2003). Cerca da metade dos

indivíduos com problemas de alcoolismo nos Estados Unidos, buscam os Alcóolicos

Anônimos, antes de qualquer recurso terapêutico afirma Room (1998).

De acordo com Habermas (1989), os grupos de estudos dos Doze Passos,

baseiam- se na premissa que rejeitam hierarquia rígidas e objetivam um modelo de

agir orientado para o entendimento mútuo. Utilizando uma terapia leiga na qual a

experiência de vida ocupa o lugar central na recuperação de seus integrantes, tais grupos

então desafiam a perícia médica.

Mota (2003) compara os Alcóolicos Anônimos a um movimento de auto

identidade emprestado pelo conceito de Self-Identity de Giddens. Estima que cerca de 3

12

milhões de pessoas no mundo inteiro estejam se recuperando através do programa dos

Doze Passos em diferentes grupos. O autor destaca que nesses grupos há o

desenvolvimento da autonomia e um espaço discursivo, também destaca o perfil do

trabalho em grupo onde os membros dos Alcoólicos Anônimos - AA e também os

Narcóticos Anônimos - NA não “governam”, “servem”.

O estímulo dentro do processo educativo é de cooperação e não competição.

Existe a postura da crença na capacidade de cada um em se recuperar, e que o mesmo

não está sozinho no seu processo de aprendizagem. Existe uma relação mediada das

coisas, e uma conduta de consciência coletiva de grupo e o princípio da cooperação de

Peter Tropotkin4. A linguagem é direta e objetiva, sem imposições e sim com sugestões,

essa é a tônica do processo educativo.

Frois (2009) no que se refere ao início dos grupos de AA em Portugal: “A

associação de Alcoólicos Anônimos é a mais antiga das associações de Doze Passos

existente em Portugal, sendo o ano de 1972 a data da existência do primeiro grupo

existente em Lisboa” (p.42).

No Brasil, o Alcoólicos Anônimos Brasil – AABR5, em seu websites apresenta

registros documentado no livro de registros do grupo em que a data oficial de fundação

do primeiro grupo de AA, se deu no Rio de Janeiro em 05 de setembro de 1947.

Importante destacar que mesmo sendo o Brasil um país mais jovem que Portugal

o mesmo implantou o referido programa vinte e cinco anos antes que Portugal viesse a

implantar o seu.

1.2 - Os Doze Passos nos grupos de Alcoólicos Anônimos

Em 1939, percebendo o valor das práticas, a princípio de forma extremamente

empírica, desenvolvidas por eles, o Dr.Bill Wilson (Willian Griffith Wilson) e Dr. Bob

Smith (Dr. Robert Smith), ambos publicaram a práxis que o ajudaram a manter-se sóbrios

4 Geógrafo, escritor e ativista político russo, considerado pai do “educacionismo” do século dezoito.

Defendia que somente educando um povo intelectual e moralmente esse se emancipa. 5 AABR- Alcóolico Anônimo do Brasil- Grupo on-line de A A do Brasil.

13

por esses anos, eles, e a um pequeno grupo que contava com cerca de vinte deles. A

publicação trazia um roteiro de Doze Passos do qual acreditavam que qualquer pessoa

que o seguisse conseguiria o mesmo e embora a referida publicação tivesse sido iniciada

pelos referidos autores, a mesma trazia depoimentos e história de vida de vários

alcóolatras, de forma que se definiu como autoria do livro o grupo de AA.

O referido roteiro é considerado um programa de recuperação e reformulação de

conceitos de vida, conhecidos também como um grupo de princípios espirituais na sua

natureza, que se praticados como modo de vida podem contribuir por afastar a compulsão

pela bebida de forma a tornar o indivíduo íntegro, feliz e útil. Embora não haja um

controle formal ou regras quanto ao estudo e a práticas dos Doze Passos, há no discurso

do grupo de que, quem trabalha diariamente o programa6, é capaz de ter um novo modo

de vida tão almejada como destaca Frois (2006).

O estudo do roteiro dos Doze Passos é conhecido como um Abordagem

evolucionária e multidisciplinar de recuperação para os que sofrem com a dependência

química. O referido modelo traz também em seu bojo uma abordagem humanista com

intervenção psicológica e educativa. Tal abordagem surge com a finalidade de apresentar

uma saída para as ações puramente medicamentosas ou psicológicas que se mostravam

ineficientes no tratamento e suporte dos que sofrem, no primeiro momento com a doença

do alcoolismo.

Os Doze Passos é um programa para ajudar o dependente químico a mudar

comportamentos que estão na gênesis das questões humanas que causam desequilíbrio,

através do estudo sistematizado e em grupo, que podem acontecer nas reuniões de

Alcoólicos Anônimos, Narcóticos Anônimos, Comunidades Terapêuticas etc. Os Doze

Passos são descritos e enumerados da seguinte forma:1. Admitimos que éramos impotentes

perante o álcool - que tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas; 2. Viemos a

acreditar que um Poder Superior a nós mesmos poderia devolver-nos à sanidade; 3.

Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na forma em que O

concebíamos;4. Fizemos minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos; 5.

Admitimos perante Deus, perante nós mesmos e perante outro ser humano, a natureza exata

6 Quando se referem ao programa, estão falando do roteiro dos Doze Passos e das Doze Tradições.

14

de nossas falhas; 6. Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses

defeitos de caráter; 7. Humildemente rogamos a Ele que nos livrasse de nossas

imperfeições; 8. Fizemos uma relação de todas as pessoas a quem tínhamos prejudicado e

nos dispusemos a reparar os danos a elas causados; 9. Fizemos reparações diretas dos danos

causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo quando fazê-las significasse prejudicá-

las ou a outrem;10. Continuamos fazendo o inventário pessoal e quando estávamos errados,

nós o admitíamos prontamente;11. Procuramos, através da prece e da meditação, melhorar

nosso contato consciente com Deus, na forma em que O concebíamos, rogando apenas o

conhecimento de Sua vontade em relação a nós, e forças para realizar essa vontade; 12.

Tendo experimentado um despertar espiritual, graças a estes Passos, procuramos transmitir

esta mensagem aos alcoólicos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades.

Os Doze Passos trazem em seu bojo um forte elemento espiritual não religioso,

onde a concepção um Deus se apresenta da forma como cada um O entende e vê. Essa

característica particular de não impor forma nenhuma de compreensão das coisas como a

questão da espiritualidade, deixa claro a postura respeitosa, livre e democrática que existe

nesses grupos. Valiosa ferramenta que contribui significativamente para que os membros

que lá frequentem, permaneçam com um sentimento de pertencimento e autonomia quanto

a forma de pensar frente aos assuntos tratados.

Os dependentes químicos são encorajados a praticar os Doze Passos e a frequentar

as reuniões. Importante perceber que os passos têm uma linguagem simples e acessíveis a

todos os níveis culturais, são numerados indicando um processo e não um momento de

cura, aborda princípios fundamentais, incluindo a espiritualidade. Importante salientar que

quando se referem a questão da espiritualidade, diz respeito a tudo aquilo que sentimos que

existe, mas não percebemos diretamente ou percebemos mais que entendemos. Religião

pode ou não expressar ou imprimir espiritualidade. Outro ponto valioso é que há grupos dos

Doze Passos no mundo todo, o mais recende dado publicado pela JUNAAB7 conta com

cerca de 97 mil grupos, espalhados em 150 países, podendo assim o dependente químico

onde estiver a obter ajuda.

7 JUNAAB- Junta de Serviços Gerais de AA do Brasil

15

Assim como os Doze Passos, os Alcóolicos Anônimos, criaram para suporte e

orientação das ações nos grupos as Doze Tradições, as mesmas norteiam a dinâmica e os

processos dos grupos. Aqui as referidas orientações não mais se destinam aos indivíduos,

como os Doze Passos e sim ao coletivo. As orientações abaixo especificadas têm como

objetivo manter a unidade e a uniformidade, trazer orientação quanto ao funcionamento e

constituição dos grupos. São eles: 1. Nosso bem-estar comum deve estar em primeiro lugar;

a reabilitação individual depende da unidade de A.A; 2. Somente uma autoridade preside,

em última análise, o nosso propósito comum - um Deus amantíssimo que Se manifesta em

nossa consciência coletiva. Nossos líderes são apenas servidores de confiança; não têm

poderes para governar; 3. Para ser membro de A.A., o único requisito é o desejo de parar de

beber; 4. Cada Grupo deve ser autônomo, salvo em assuntos que digam respeito a outros

grupos ou a A.A em seu conjunto; 5. Cada grupo é animado de um único propósito

primordial - o de transmitir sua mensagem ao alcoólico que ainda sofre; 6. Nenhum grupo

de A.A, deverá jamais sancionar, financiar ou emprestar o nome de A.A, a qualquer

sociedade parecida ou empreendimento alheio à Irmandade, a fim de que problemas de

dinheiro, propriedade e prestígio não nos afastem de nosso propósito primordial; 7. Todos

os grupos de A.A, deverão ser absolutamente autossuficientes, rejeitando quaisquer

doações de fora; 8. Alcoólicos Anônimos deverá manter-se sempre não profissional,

embora nossos centros de serviços possam contratar funcionários especializados; 9. A.A

jamais deverá organizar-se como tal; podemos, porém, criar juntas ou comitês de serviço

diretamente responsáveis perante aqueles a quem prestam serviços; 10. Alcoólicos

Anônimos não opinam sobre questões alheias à Irmandade; portanto, o nome de A.A,

jamais deverá aparecer em controvérsias públicas; 11. Nossas relações com o público

baseiam-se na atração em vez da promoção; cabe-nos sempre preservar o anonimato

pessoal na imprensa, no rádio e em filmes; 12. O anonimato é o alicerce espiritual das

nossas Tradições, lembrando-nos sempre da necessidade de colocar os princípios acima das

personalidades.

Como os próprios membros afirmam, os Doze Passos e as Doze Tradições são um

conjunto de linhas orientadoras tanto para cada membro individualmente, como para a

associação enquanto coletivo.

16

Frois (2009) cita que a dimensão e o alcance do programa dos Doze Passos e das

Doze Tradições, ultrapassaram as fronteiras dos grupos de Alcóolicos Anônimos e foram

responsáveis por diversos outros grupos de autoajuda. Nesses outros grupos, o que se vê

são pequenas variações adequadas a outras problemáticas que não a dependência do álcool

e por isso com nomenclaturas diferentes, se referindo a outras patologias emocionais e

sociais, no entanto sem alterar o cerne e a filosofia dos Doze Passos, como uma clara

amostragem do alcance das ramificações que deles se fizeram.

A autora ainda apresenta um quadro onde é possível conhecer vinte seis novos

grupos anônimos que fazem uso do roteiro doa Doze Passos, destacando que o mesmo não

encerra o número total de novos grupos anônimos, apresentando somente uma amostra do

que foi recolhida entres os anos de 2003 a 2007, mas sem dúvida uma valiosa indicação da

importância do programa dos Doze Passos (p.37).

Frois (2009) aponta sete aspectos organizacionais que considera como principais nas

associações de Doze Passos:

01- Assentam num modelo de participação igualitária,

marcada pela ausência de controle formal e de líderes;

02- O funcionamento quer dos grupos (através das Tradições)

quer da conduta do indivíduo (através do Passos) é feito

através de sugestões, não tendo um caráter vinculativo a

que todos tenham de corresponder de igual modo;

03- A participação voluntária, autônoma e independente de

membro, não há sujeição relativamente à pertença, não há

filiação, não existem pagamentos e as contribuições são

entendidas como donativos;

04- Os membros podem decidir quando frequentam, quando

não frequentam, podem abandonar por completo a

associação, ficando o seu critério regressar ou não;

05- Os grupos, reuniões ou encontros mais alargados

(convenções, reuniões de serviços) são efêmeros no

tempo, circunscritos a um espaço que tem múltiplas

funcionalidades e que não é pertença física das

associações.

06- A principal característica de qualquer associação de Doze

Passos é a sua componente terapêutica direcionada para

uma determinada patologia.

07- O elemento espiritual, na formulação “Deus conforme

cada um O concebe”, obedece à mesma característica de

17

não imposição e democratização de valores e perspectivas

(pp.39 a 40)

As características acima apresentadas quantos a questão estrutural e

organizacional, nos dá um valioso indício de como podemos nos beneficiar com o referido

modelo em outros cenários.

1.3-Roteiro de condução do estudo, aplicado a cada um dos Doze Passos

Nos debruçaremos agora de forma pormenorizada a cada um dos Doze Passos e

seus desdobramentos quando da condução e estudo realizado em grupo pelos

coordenadores, sob a orientação da literatura de suporte para o mesmo fim. As publicações

“ Doze Passos e Doze Tradições” e Guia para Trabalhar os Passos de Narcóticos

Anônimos”, dão uma visão da forma como é feito trabalho educativo com os referidos

conteúdo.

Importante notar que toda a narrativa dos Doze Passos é escrita na primeira pessoa

do plural “nós”, de forma a promover a unidade daquilo que todos têm em comum, ou seja

a dependência química e a recuperação. No que se refere as perguntas que se desdobram

quando da reflexão de cada passo, a pessoa do verbo muda e passa a ser usado a primeira

pessoa do singular ”eu”, de modo que cada um se pergunte a si mesmo e com isso, o

processo de comprometimento e respostas seja tão somente de responsabilidade de cada um

que o responde. A unidade é apresentada e junto com ela o sentimento de pertença ao local

e o assunto em questão, seguida da individualidade quando das perguntas onde o

sentimento de comprometimento e responsabilidade é estimulado. Durante toda a nossa

reflexão aqui detida aos Doze Passo, estaremos apresentando não só os passos, mas

também as perguntas sugeridas, que acompanham os referidos passos e que com elas a

compreensão da textualidade do mesmo se amplia.

A clareza da textualidade, seu tempo do verbo na sua narrativa e nas perguntas, a

condução dos mesmos sendo apresentada de forma mediada por aqueles que coordenam o

grupo, bem como o estímulo a pensar, são patentes durante todo o processo do estudo dos

Doze Passos. Vejamos a seguir alguns exemplos para reflexão. Vale ressaltar que para que

o indivíduo comece com o primeiro passo se faz necessário que ele esteja abstêmio.

18

1. Admitimos que éramos impotentes perante o álcool - que tínhamos perdido o domínio

sobre nossas vidas.

O primeiro passo é considerado a base do tratamento e consiste em um processo

de reflexão prévia. Cada membro que deseja fazer parte do grupo tem que,

necessariamente, admitir a sua impotência diante do álcool. Somente àquele que reconhece

que precisa de ajuda pode se abrir a ela. Somente àquele que reconhece sua ignorância

sobre o assunto em questão pode se abrir a qualquer que seja o aprendizado. Nesse

momento se inicia o processo educativo com reflexões acerca do tema, bem como o

processo de aprender a aprender. Perguntas como: “Como me comporto quando estou

obcecado por algo? Tenho culpado outras pessoas pelo meu comportamento? O que é a

perda de controle significa para mim? ”, funcionam como mola propulsora na dinâmica

educativa que se apresenta. Desencadeia a partir daí o processo de reflexão crítica tão bem

fundamentada e descrita por Freire (1987) na sua pedagogia do oprimido, bem como a

educação socrática quando visava a formação das consciências.

2. Viemos a acreditar que um Poder Superior a nós mesmos poderia devolver-nos à

sanidade.

Esse é o primeiro passo que se relaciona a questão de um poder superior.

Importante notar que o referido poder superior aqui não é designado com nenhuma

nomenclatura em especifico. A ênfase é dada no que o poder superior pode fazer pelo

alcoólatra, devolvendo a sanidade. A palavra esperança é trabalhada nesse passo, o que nos

leva a Freire (1987), quando colocava que o tempo do medo já passou e que agora

começava o tempo da esperança. Perguntas como: “em que tenho esperança hoje? Acreditei

que poderia controlar meu uso? Tenho medo de vir a acreditar? Em que eu acredito? ”, são

questionamentos novamente apresentados pelo coordenador em uma postura de mediação

como preconiza Feuerstein (1980), com as ferramentas de EAM8, que detalharemos mais à

frente.

8 EAM- Experiência de Aprendizagem Mediada.

19

3. Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na forma em que

O concebíamos.

Nesse momento vemos o tempo e a ação na textualidade do verbo decidir, seguida

da forma integralmente democrática quando se referem a “Deus, na forma em que O

concebíamos”. A extraordinária expressão de liberdade e democracia tão bem defendida

por Dewey (1959) aqui se apresenta. O poder superior passará a ser o que cada um entende

como seu. Dentro da irmandade é comum se falar que o poder superior pode ser chamado

de Deus, Jesus, a família, uma corrente filosófica, o grupo, a família, etc. Cada um toma

para si o poder superior como O entende.

Um programa espiritual e não religioso, onde os ateus têm também seu lugar.

Perguntas como: “Por que tomar uma decisão é o trabalho principal desse passo? Que áreas

da minha vida é difícil entregar? Qual a minha compreensão de um poder maior do que eu

mesmo, hoje? ”. Novamente se apresenta a brilhante condução sem respostas e sim um

convite a cada um formular as suas a partir de uma mediação de intencionalidade e

reciprocidade preconizada por Feuerstein (1980).

Na história das bases de fundamentação do AA está registrado a carta escrita por

um dos fundadores da irmandade, o senhor Bill ao grande médico Carl Gustav Jung, datada

de 23 de janeiro de 1961, que o faz lembrar o conselho do renomado médico a um

alcoólatra amigo de Bill. O conselho dado por Jung que vinha tratando o referido amigo e

que veio a ser posteriormente também cofundador de AA, foi que o mesmo buscasse uma

experiência espiritual ou religiosa, em uma humilde e clara manifestação do quanto o

tratamento por ele quer medicamentoso e psicoterápico não estava dando conta de todas as

necessidades observada para o paciente. Esse conselho tornou-se a base para o programa

espiritual do AA. Boff (2011) mais tarde, corrobora com o conselho de Jung, quando fala

da necessidade de se ter uma experiência de espiritualidade, e do quanto é urgente a

necessidade dessa experiência em virtude das situações dramáticas em que vivemos. O

autor ainda destaca que essa espiritualidade não só se apresenta nas religiões, mas, nas

buscas humanas, na vida, do trabalho, nos estudos.

4. Fizemos minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos.

20

O inventário moral, o ato de refletir sobre si mesmo com coragem é uma das mais

valiosas ações dentro do processo educativo dos membros de AA. Portasio (2008), destaca

a história da educação nos primórdios da filosofia, quando imortalizando a frase: “Homem

conhece a ti mesmo”, que teria sido elaborada por um dos sete sábios da Grécia antiga e

estava esculpida no pórtico do Templo de Apolo em Delfos. O filósofo grego Sócrates (469

a.C - 399 a.C) já dizia: “a vida sem exame é indigna do homem”, e nesse mister, o

inventário moral faz seu papel. Perguntas como: “O que significa para mim ser profundo e

destemido? Tenho reservas em trabalhar esse passo? Quais os benefícios poderei obter, ao

fazer um inventário moral destemido e minucioso de mim mesmo? ”

O referido inventário é sugerido que depois de feito, seja lido em voz alta para si

mesmo. Novamente um convite a reflexão crítica, de autoexame, séria e comprometida,

trazendo a atenção para a formação humana do sujeito.

5. Admitimos perante Deus, perante nós mesmos e perante outro ser humano, a natureza

exata de nossas falhas.

O trabalho com o reconhecimento e admissão, bem como a avaliação das

fragilidades é outro valioso ponto neste trabalho educativo conduzido pelos passos. Ser

capaz de identificar e admitir as falhas e fragilidades é um grandioso passo que conduz

além de um conhecimento de si mesmo, o conhecimento de onde se deve investir para o

aprimoramento pessoal. Importante notar também que o assunto em questão, a fragilidade,

deverá ser estudada, identificada e reconhecida em três estâncias: perante um poder

superior, perante si mesmo e perante o outro, e nesse caso o outro é alguém que o membro

de AA escolhe para ser seu ouvinte e a ele se dirige quase que como forma confessional e

terapêutica apresentando suas fragilidades. O mundo de relação se abre assim como

também a necessidade de saber lidar com ele.

O conhecimento se estende além dos muros da sala, um conhecimento sendo

convidado a ser experiência como preconiza Dewey (1959), bem como a mediação de

transcendência, sendo aplicada conforme Feuerstein (1980) e explicitada no capítulo sobre

mediação do referido trabalho. Perguntas como: “ Que reservas tenho em trabalhar esse

passo? Estarei pronto para confiar na pessoa que ouvirá o meu quinto passo? De que

21

maneira a natureza exata das minhas falhas difere das minhas ações? ”, são ferramentas

fundamentais nesse processo.

6. Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de

caráter.

Após identificar padrões de comportamentos e fragilidades reconhecidas e

explicitadas agora o convite é a estar inteiramente pronto a algo. A literatura sobre o guia

para trabalhar os Doze Passos de NA, descreve quando diz de “estar confiante de que Deus

da nossa compreensão, removerá o que for preciso”. Aqui o trabalho com a espiritualidade

no sentido de o ser humano buscar sentido, valor e confiança em algo que não material

como destaca Boff (2011) em sua obra sobre espiritualidade.

Perguntas como: “o que penso que será removido? O que posso fazer para

mostrar que estou inteiramente pronto? De que maneira tenho tentado remover ou controlar

meus próprios defeitos de caráter? Qual foi o resultado dessa tentativa? ” Importante notar

que cada passo sempre é trabalhado de forma pormenorizada, detalhada. Vem da parte para

o todo com o trabalho das perguntas que servem como condução do processo educativo de

cada passo em questão.

7. Humildemente rogamos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeições.

Quando se referem ao sétimo passo, a literatura9 destaca a relação com os demais

e que embora os passos sejam autônomos, guardam em si uma relação estreita. Assim

acontece na textualidade do referido passo. A questão da humildade como uma atitude

estimulada para o processo de construção humana relacionada com a possibilidade de estar

livre das imperfeições e ignorâncias a respeito do aprisionamento que o adoecimento do

alcoolismo e seus desdobramentos se apresentam aqui nesse momento. Perguntas como:

9 Quando se usam o termo “literatura”, ela diz respeito a toda publicação escrita pelo AA.

22

“De que maneira a humildade influi na minha recuperação? Como se desenvolveu o meu

relacionamento com o poder superior? Quais podem ser os benefícios de permitir que um

poder superior influa na minha vida? ”. Esses questionamentos vão apontando caminhos

que deverão aos poucos ser estudados e refletidos.

8. Fizemos uma relação de todas as pessoas a quem tínhamos caudado danos e dispusemo-

nos a fazer reparação a todas elas.

Na literatura AA (2003) sobre os passos e as tradições, o grupo destaca que o

referido passo está intimamente relacionado a questão das relações pessoais. Aprender a

viver com outro. Necessidade de uma análise exaustiva do passado a fim de fazer a relação

das pessoas das quais devem fazer as reparações. Aqui também o trabalho de identificação

dos danos causados, o que pede do membro do grupo o trabalho com a reflexão,

comparação e identificação dos referidos danos. Perguntas como: “Por que apenas

modificar meu comportamento não é o suficiente para reparar o dano que causei? Estou

hesitando em fazer o referido passo? Existem nomes que não acrescentei a minha lista? ”

Percebe-se nitidamente o trabalho exaustivo de consciência em cada coisa a ser

tratada. Também o trabalho com a pormenorização das coisas, o detalhamento e ao

aprofundamento em tudo que se trata nas salas de AA, deixando claro o valor de não ser

superficial em nada, nem tão pouco deixar nada sem ser claramente respondido e

compreendido.

9. Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possível,

salvo quando fazê-las significasse prejudicá-las ou a outrem.

Este passo se apresenta como consequência do anterior. Uma clara indicação de

reflexões sobre a prática do oitavo passo que traz junto com ele a atenção para a prudência

e o cuidado na execução do mesmo. A questão da subjetividade das ações e suas

consequências é resultado de um trabalho de estudo das ações. Perguntas como: “De que

forma o trabalho com os oito passos anteriores me preparou para trabalhar o nono passo? O

que significa fazer reparações? Como deve ser feito as reparações? O que temo quanto a

fazer reparações? Devo reparações que poderiam trazer sérias consequências? ” Todo esse

23

roteiro de perguntas são um suporte ao entendimento da prática de cada passo. A questão

do bom senso é elemento a ser considerado mesmo que de difícil mensuração, o que nos

leva a Freinet (1996) e sua pedagogia do bom senso.

10. Continuamos fazendo o inventário pessoal e quando estávamos errados, nós o

admitíamos prontamente.

Aqui o inventário pessoal torna-se um hábito regular, necessidade de repetição para

melhor compreensão e fixação do que está sendo posto. Colocar a questão não como algo

pontual, mas que deve fazer parte integrante da vida daqui por diante é colocar o processo

de aprendizagem como parte integrante da vida e aqui novamente de forma a transcender a

outros tempos e cenários. Perguntas como: “Qual o propósito de continuar a fazer um

inventário pessoal? O que significa para mim admitir prontamente quando estou errado?

Como a pronta admissão de meus erros ajuda a modificar meu comportamento? ” As

referidas perguntas são caminhos para uma melhor compreensão do “eu”, que está sendo

estudado.

Portasio (2008) no capítulo sobre educação e autoconhecimento, destaca a fala do

mais influente pensador ocidental dos primeiros séculos da idade média, Santo Agostinho,

reforçando a referida prática do décimo passo, corroborando com a prática do referido

passo, quando diz:

...no fim de cada dia interrogava a minha consciência, passava

em revista o que havia feito e perguntava a mim mesmo se

não tinha faltado ao cumprimento de algum dever, se ninguém

teria motivo para se queixar de mim. Foi assim que cheguei a

me conhecer e ver o que em mim, necessitava de reforma

(p.32).

11. Procuramos, através da prece e da meditação, melhorar nosso contato consciente com

Deus, na forma em que O concebíamos, rogando apenas o conhecimento de Sua vontade

em relação a nós, e forças para realizar essa vontade.

24

Nesse passo há uma apropriação de conquistas já realizadas nos passos anteriores,

onde aqui o que se traz é a questão de melhorar, aperfeiçoar o que já se tem. Perguntas

como: “Como meu caminho espiritual contribui para minha recuperação? Como e quando

medito? Qual a minha visão sobre a vontade de Deus para mim? ”, deixa patente as

conquistas e o percurso traçado pelos membros do grupo dos passos anteriores de forma a

reforçar o trabalho que tem sido feito.

12. Tendo experimentado um despertar espiritual, graças a estes Passos, procuramos

transmitir esta mensagem aos alcóolicos e praticar estes princípios em todas as nossas

atividades.

O referido passo funciona antes de mais nada como uma ação de retroalimentação

do programa dos Doze Passos. Aqui a auto-gestão preconizada por Makarenko (1975), bem

como a assembleia de turma e as decisões nas mãos dos próprios membros do grupo, se vê

aqui de forma patente. O mediado passa a mediar como é destacado na mediação de

compartilhar destacada por Feuerstein (1980). Perguntas como: “O que levar a mensagem

faz por mim? O que é para mim experimentar um despertar espiritual? Que tipo de serviço

estou prestando para levar a mensagem? ”, conduzem a um processo de continuidade do

trabalho.

É possível observar que o referido roteiro sem dúvida, tem se mostrado eficaz na

condução do tratamento da doença do alcoolismo, por todas as especificidades, método e

textualidade do mesmo. Almeida e Rodrigues (2002), na sua análise sobre os Doze Passos,

concluem que “se a programação dos Doze Passos tem sido tão repleta de êxitos, é porque

ela, mesmo sem disso dar-se conta, vem trabalhando com a dimensão da escolha, que

permite que cada um possa, a todo momento, determinar seu destino”. Falam do valor do

que chamam de “exercício de vontade”, quando o dependente químico tem a liberdade de

escolher e escolhe se manter limpo10

. Sem dúvida o trabalho com a liberdade e o respeito

são fatores valioso para o processo de aprendizagem significativa.

10

Termo usado para designar aquele dependente químico que se encontra abstêmio do álcool.

25

1.4 Dinâmica e processo educativo nas reuniões de Alcóolicos Anônimos

Nas salas de reunião do grupo de AA, há geralmente o símbolo11

do grupo

anexado a porta, como forma de identificação da mesma. Nessas salas uma dinâmica e um

programa de trabalho e de estudo ali se desenha, desde a preparação da mesma, o roteiro de

ordem das falas de quem conduz o grupo de estudo, a literatura disponível, a ordem das

falas e narrativas daqueles que estão na assistência etc. O que se apresenta é um programa

essencialmente didático que é aplicável a qualquer pessoa. Um mundo novo e impar se

apresentar àqueles que lá se dirigem a procura de ajuda e orientação e o processo educativo

por sua vez, já se apresenta de forma empírica na dinâmica das salas, a cada um que lá se

dirigem.

Aguiar (2011) destaca que quando um dependente químico se integra nos grupos

de Alcóolicos Anônimos - AA, a procura de uma solução para seu problema, com o

tempo e a participação, percebe que a superação de seus dilemas é viabilizada por uma

aprendizagem, em um processo socioeducativo e sociocomunitário. A autora ainda destaca

que o perfil e o processo do trabalho educativo dizem respeito a uma aprendizagem

espontânea, com troca de experiências e a partir da vivência do programa.

Destaca também que o caráter educativo do grupo é feito coletivamente, não há

obrigação formal com o mesmo e que os que o conduzem o fazem de forma alternada,

onde a unidade é reforçada pelo sistema de rotação daqueles que estão no serviço e onde a

posição de destaque é inibida pelo grupo. Não há cargos, mas sim encargos, ou seja,

responsabilidades na execução de determinadas tarefas. Descreve o que os p r o c e s s o s

e d u c a c i o n a i s a t r a v é s d o s D o z e P a s s o s t ê m como objetivo entre outros,

superar sentimentos e mudar comportamentos dentro de um processo educativo de

autogestão.

11

O símbolo do AA será explicitado nos anexos, como anexo G.

26

As regras são no máximo sugestões, jamais imposições, sendo o processo de

ajuda mútua. Ninguém é estudante passivo, todos podem opinar e manifestar-se, o que

gera um sentimento de pertença e de igualdade de condições, o que na visão da autora,

são condições que facilita a aprendizagem.

O primeiro passo nesse processo de aprendizagem se apresenta quando o indivíduo

reconhece a necessidade de receber ajuda, necessidade de aprender. Quanto a quem

coordena e conduz o grupo de estudo, é necessário já ter passado pela experiência. Nesse

caso conhecimento teórico não dá autoridade para conduzir a referida aprendizagem, a

autoridade se faz quando da experiência e vivência no assunto abordado.

O grupo funciona como facilitador de uma aprendizagem individual e ao mesmo

tempo coletiva, mas antes de tudo produzida pelo membro do grupo de estudo, através da

busca dele próprio, para as suas questões de conflito. O processo é similar a “Maiêutica

Socrática” – o parto das ideias, da procura da verdade através da autorreflexão. Como cada

um é um indivíduo ímpar, as soluções também são únicas para cada um

O modo informativo dos Doze Passos passa logo de início por uma dinâmica de

partilha onde fica patente o valor dado a experiência como sendo a base que fundamenta o

conhecimento ali partilhado. O conhecimento empírico, onde a sabedoria das coisas e

conquistada a partir das percepções e seus significados é a mola propulsora, no entanto a

instrução, baseada no conhecimento empírico do outro que se apresenta em forma de

partilha de depoimentos, bem como a literatura produzida pelo grupo, oferece o olhar de

esperança e ciência de possibilidades antes não observada. Ali se testemunha nos

depoimentos, mudanças de paradigmas de vida diante do quadro de adoecimento,

consideradas por muitos quase que impossível.

Nos grupos de AA existem dois tipos de reuniões, as abertas (onde é permitida a

participação e assistência de pessoas que não sejam membros do grupo, como familiares,

técnicos, profissionais de saúde, membros de outras associações etc) e as fechadas (para os

que são admitidos como membros ou pessoas que ali estejam pela primeira vez na condição

de pedir auxílio para o mesmo problema). Mais recentemente iniciou-se reuniões on-line.

Frois (2009) descreve de forma sucinta como acontece as reuniões depois dos

preparativos de organização do espaço como, mesas, cadeiras, organizações da literatura

27

nas mesas e paredes e pôr fim a Oração da Serenidade12

sendo recitada por todos em voz

alta:

Em seguida, o coordenador anuncia as regaras da reunião (por

norma tem 90 minutos) e pede a cada um para falar na sua

vez, tendo apenas que levantar o braço para solicitar o uso da

palavra. Pergunta ainda se existe algum membro novo ou

visitante.Caso haja algum presente, lhe é explicado que ele é

“a pessoa mais importante naquela sala”, e que não intervenha

ao longo da reunião, para que possa escutar o que os outros

membros têm para dizer, sendo-lhe reservado os últimos 30

minutos (p.77).

Valioso modo de preparar e conduzir a reunião. A atenção quanto a manter um

ambiente organizado e de disponibilizar a literatura de forma a deixar à mão de quem

quiser folhear, bem como comprar a preços módicos, em uma clara postura pedagógica. O

convite para que todos possam juntos dizer a Oração da Serenidade13

, marca o momento de

dar início da reunião em um convite a criar um ambiente respeitoso e unidade e

concentração.

Vê-se nitidamente a postura respeitosa, democrática como preconiza Dewey

(1959) quando de informar logo no início da reunião como ela acontecerá para os que não

estão ciente ainda de sua dinâmica, bem como deixando claro que para aqueles que ali

estão, que todos podem falar bastando tão somente levantar o braço para isso.

Aos que estão na reunião pela primeira vez é estimulado a primeiro ouvir e em

seguida lhe é avisado que terá um tempo falar o que desejar. Percebemos nesse momento

um cuidado quanto a estimular cada membro do grupo ao envolvimento com os assuntos,

que cada um possa se assumir agente ativo do processo, como tão bem estimula Feire

(1996) em sua Pedagogia da Autonomia.

A educação do coletivo e assembleia de turma defendida por Makarenko (1975)

onde os alunos votam e participam de forma efetiva nas decisões do grupo é outra tônica

12

Oração eleita pelo grupo como sendo a única oração lá recitada, com perfil abrangente e cheio de significados e que ainda hoje há controvérsias sobre o autor da mesma. 13

“Concedei-me senhor a serenidade para aceitar as coisas que eu não posso modificar, coragem para modificar aquelas que eu posso e sabedoria para distinguir umas das outras”

28

observada nos grupos de estudo dos Alcóolicos Anônimos, já que os coordenadores das

salas de AA, que conduzem os estudos do programa dos Doze Passos, são escolhidos pelos

membros do grupo de forma democrática, participativa e autônoma.

Nesse assunto em questão a escolha se dá levando em conta não a qualificação

profissional ou acadêmica e sim a experiência de estar limpo14

. A autoridade se faz pela

experiência, este é o fator importante para conduzir uma aprendizagem significativa,

portanto esse é o elemento a ser levado em conta quando da escolha para estar na função de

coordenadores de grupo.

Outro valioso destaque para a dinâmica dentro dos grupos, diz respeito a

participação dos membros no que se refere a falar. Há o estímulo e a orientação para que

toda a narrativa feita por cada indivíduo, seja ela feita na primeira pessoa, cada um pode

falar somente de si, em uma clara orientação de empoderamento e responsabilidade pessoal

para cada coisa ali dita. Nenhum julgamento de valor e /ou colocações sobre a partilha de

qualquer um. Frois (2009) descreve como isso acontece: “durante 90 minutos decorrem as

intervenções num discurso na primeira pessoa, confessional, sem diálogo ou comentários”

(p.78).

A questão do anonimato dentro das salas de estudo dos Doze Passos nos grupos de

AA, (pois os mesmos só se apresentam com o primeiro nome e não divulgam elementos

como profissão, escolaridade, etc), mais do que proteger os membros de estigmas sociais

associado à sua condição e os desdobramentos das ações muitas vezes insanas em

consequência do uso abusivo do álcool, permite aos membros se colocarem nas reuniões

em situação de igualdade. Nesse ambiente ninguém é medido pelo seu nível de

escolaridade, pelo seu trabalho, nível social ou econômico. Ali todos são tratados de forma

igual e tal tratamento facilita a narrativa de cada um e evita as inibições que em muitos

casos nós vemos em sala de aulas, quando alguns alunos consideram que suas colocações

podem ser sem valor, simplistas e ignorantes diante de outros. A atenção é voltada para o

que é dito e não para quem disse.

14

Expressão usada pelos membros do AA para designar àqueles que se encontram sem uso de álcool.

29

A ausência de pré-conceitos facilita o processo de quem fala, pois não se sente

associado ao que é ou deixou de ser, bem como quem escuta, pois não associa a fala de

quem quer que seja a sua posição, social, política, econômica etc. Não se agrega valor a fala

que o diz. Como destaca Frois (2009), “o anonimato funciona como nivelador de

diferenciações sociais entre os membros” (p75).

Fazendo uma reflexão sobre a sala de aula, a questão do fardamento escolar é um

elemento que funciona como nivelador social, no entanto ainda temos, todo o material

didático das crianças e jovens, como mochilas, material escolar... que podem fazer essa

diferenciação. Diferente do que acontece no Japão onde até o material didático é todo ele

igual, trazendo assim em seu bojo uma tentativa de que a questão do nivelador social

funcione de forma efetiva.

Outro ponto importante diz respeito a um código de ética previamente estabelecido

de que ninguém deve levar para fora do grupo falas qualquer que sejam sobre o que foi dito

nas reuniões, bem como quem o disse. Um elemento fundamental que contribui para a

liberdade das narrativas e o processo de aprendizagem em qualquer que seja o cenário.

Em outro momento Frois (2009) afirmar categoricamente que: “ ser membro de

uma associação de doze passos acarreta todo um processo de aprendizagem” (p.81). Ainda

sobre o processo de aprendizagem a autora descreve:

As próprias intervenções ilustram que há um processo de

aprendizagem, interiorização e racionalização nos membros

destas associações, uma vez que é fácil observar existir um

padrão nas exposições e nos comportamentos dos vários

membros quando estão em grupo. Esta aprendizagem verifica-

se, por exemplo, no uso comum de novos/velhos termos que

expliquem as situações que passaram e como as expõem,

revivendo um passado que poderia ser considerado como

antes e depois de ter conhecido o programa (p.83).

A possibilidade e o direito à livre expressão para falar de seus sentimentos em

relação ao adoecimento em si e seus desdobramentos pessoais e sociais, traz no membro do

grupo um sentimento de pertencimento e igualdade e tal sentimento favorece o processo de

aprendizagem através da identificação com o mesmo. Nessa perspectiva a problemática da

30

baixo autoestima, tão responsável pela dificuldade de aprendizagem, pois na maioria das

vezes está carregada de conceitos de incompetência e um sentimento de desesperança,

deixam de existir. Feire (1987), destaca essa questão quando diz que há necessidade de se

ter esperança e empoderamento do saber.

O processo educativo e terapêutico se constrói quando da possibilidade e estímulo

a fala e com ela a construção da narrativa através da estória15

de cada um. Miller (1981)

destaca:

Para contar uma estória precisa-se de voz, palavras, audiência

e outras pessoas. O dependente perde a voz, audiência,

palavras e as outras estórias. [...] É possível viver e encontrar-

se na estória de outro. Nenhuma estória é a estória total.

Precisamos de muitas estórias para contar uma estória inteira

(p.62).

Avens (1993) destaca que a maior descoberta de Freud não foi a inconsciência,

mas a afirmação de ser, de individualidade e de subjetividade conferida a uma pessoa pelo

simples fato de deixa-la contar sua estória para um ouvinte atento. A cura pela fala.

Novamente aqui a narrativa toma seu lugar de destaque e valor que tão bem é utilizada

pelos grupos anônimos de AA. Nessa questão muito mais do que um processo terapêutico,

há um processo educativo, que se constrói a partir das narrativas sobre a aprendizagem do

novo modo de se mover no mundo, sem o uso abusivo do álcool.

Hillman (1995) disserta sobre o que chama de “a poesia na estória”, referindo-se

ao processo de narrativa da história de cada um quando diz que ao ouvir sua própria voz, a

pessoa assume sua própria estória, ou como disse o filósofo e poeta Stevens (1990), ele

passa a ver o poema no coração das coisas. O dependente químico, perdeu o poema no

coração das coisas.

Um dos processos de adoecimento decorrente do abuso de álcool é a depressão e

quanto a ela Dinesesn (1972) diz que podemos aguentar todas as tristezas da vida, se

conseguirmos coloca-las numa estória e contar para outros. Novamente o valor da narrativa,

15

O autor destaca o termo estória e não história, pois considera que as narrativas de cada alcoólatra é uma narrativa cheia de particularidades que em muitos casos não podem ser entendidas como verdade. Por isso faz a alusão a escrita nesse caso como uma narrativa popular.

31

elaboração do discurso, falar e também ouvir a narrativa do outro. Processo constante

dentro das salas de AA.

Durante o processo de contar sua estória, a narração é cada vez mais comprovada

como sendo a mais profunda de todas as terapias e aprendizagem. Quando uma pessoa ouve

sua voz, ela assume sua própria estória. Esse é um modelo de tratamento narrativo, poético

e não literal e analítico. O poético aqui não se refere a romântico, mas no sentido filosófico

e político. Um contraponto ao classicismo racional. Como cada um elabora a sua estória,

cada um pode mudar, “reestoriar” e se “resignificar”.

No que se refere a unidade nos grupos de AA, a mesma é reforçada pelo sistema

de rotação daqueles que estão no serviço. Não há cargos, mas sim encargos, ou seja, o que

existe são responsabilidades na execução de determinadas tarefas. Nesse mister surge a

figura do padrinho e/ou madrinha16

, que mais recentemente temos visto nas corporações

empresarias como nome de Mentoring17

.

O padrinho ou a madrinha, nos grupos de AA é escolhido pelo novo membro e

baseado na empatia e confiança que o mesmo sente pelo padrinho escolhido. Solicita o

padrinho como guia para seu processo de aprendizagem significativa. Frois (2009) destaca

que o pedido de apadrinhamento é uma honra para quem o recebe e transcreve em seu livro

o depoimento de um membro apadrinhado e o trabalho com os Doze Passos.

A princípio sentia-me tão dilacerada que até tinha medo de

falar nas reuniões. Porém escolhi uma madrinha e, para mim,

foi uma verdadeira bênção poder contar com ela para lhe

telefonar a qualquer hora. Quando parecia que ia tudo

enlouquecer, não havia ninguém como ela para me ouvir

pacientemente durante horas e para me dizer, com alegria, a

mesma coisa vezes repetidas e guiar-me através dos Doze

Passos (p.100).

16

São pessoas que acompanham mais de perto o membro do grupo que ainda necessita de maior atenção e suporte. Nesse processo os laços são mais estreitos e no processo de apadrinhamento o membro do grupo apadrinhado recebe atenção mais direcionada e exclusiva de um membro do grupo onde haja maior afinidade. 17

Termo em inglês que normalmente é traduzido por mentor ou apadrinhamento. É considerada atualmente como uma ferramenta de desenvolvimento pessoal e consiste em uma pessoa experiente ajudar outra menos experiente em determinada área profissional de atuação.

32

Outro fator de suma importância no processo de aprendizagem nos grupos de

AA, acontecem quando os membros do grupo se envolvem com as tarefas de organização

estrutural da reunião de estudo e partilha. Ao se envolverem com ações simples como

organização na infraestrutura da sala, organização dos livros, serviço de água e café por

exemplo, surge nesse momento o sentimento de pertença e esse sentimento reforça o

sentimento de empoderamento, no sentido restrito da palavra e com isso um

comprometimento com o que acontece dentro da sala.

Sentir-se com poder de fazer as coisas diferentes de antes, voltar a ter controle da

própria vida que começa a se apresentar em pequenas coisas como essas citadas, mas que

na verdade representam grandes coisas , haja visto quando o alcoólatra estava como

chamam na ativa18

, não ser capaz muitas vezes até de arrumar a própria cama de dormir,

quanto mais uma sala e suas especificidades para determinado fim. Outro aspecto que essa

ação encerra, diz respeito ao 12º passo19

que se refere a levar a mensagem a outros

alcoólatras.

Outro fator de suma importância diz respeito a literatura. O primeiro foi o livro

“Alcoólicos Anônimos” também chamado de “O livro azul”, que contém o texto básico do

programa de recuperação de Alcoólicos Anônimos, publicado em 1939, sendo sua primeira

publicação em português datada do ano de 1965. No início de século XXI essa obra já

estava traduzida em mais de 40 idiomas e dialetos. A literatura de AA está distribuída

atualmente em cerca de 15 livros, 4 manuais e 30 folhetos / livretos. Em quase a totalidade

deles, a autoria é dada ao grupo. Destacaremos aqui alguns deles:

Quanto aos livros20

:

1- Alcoólico Anônimo, também chamado de Livro azul, publicado pela primeira vez

em 1935. Contém o texto básico do programa de recuperação de AA. Seu texto

básico do programa mantém-se inalterado desde a primeira edição. Traz nele a

história de muitos milhares de homens e mulheres que se recuperaram do

alcoolismo, bem a história do início do grupo.

18

Termo usado para designar o estado de embriaguez do alcoólatra em questão. 19

Tendo tido o despertar espiritual como resultados destes passos, procuramos levar esta mensagem a outros alcoólicos e praticar estes princípios em todos os aspectos de nossa vida. 20

Em anexo estarão fotos dos livros citados.

33

2- Viver Sóbrio, considerado como um manual de sobrevivência, mostra um conjunto

de métodos para não tomar o primeiro copo, que derivam da experiência dos

membros de AA, é um livro extremamente prático com perguntas básicas de como

enfrentar o cotidiano sem usar o álcool.

3- Alcoólicos Anônimos Atinge a Maioridade; escrito por Bill W., e traz uma breve

história do nascimento e desenvolvimento de AA e destina-se a todos aqueles que

estão interessados em conhecer a irmandade de AA.

4- Compartilhando a Sobriedade que é uma coletânea de depoimentos da Revista

Vivência, onde traz os depoimentos da vida de cada membro em seus processos de

recuperação.

5- Os Doze Passos e As Doze Tradições; este livro traz uma visão clara dos princípios

para o indivíduo e para o grupo em forma de um roteiro, um programa de ações

individuais e coletivas para se manter longe do álcool. São princípios de

recuperação pessoal (12 passos) e os que têm assegurado a sobrevivência dos

grupos (12 tradições).

6- Na opinião de Bill; este livro contém várias centenas de trechos da literatura já

publicada abordando os aspectos do modo de vida de AA.

7- Reflexões Diárias, contendo reflexões escritas pelos membros, destinado a leitura

diária. Tem um texto para cada dia do ano com o objetivo de ajudar o membro a

colocar em curso o plano das 24 horas.

Quantos aos folhetos e livretos:

1- Os Jovens e AA; contém dez histórias de jovens que ingressaram na irmandade entre

quinze e vinte e cinco anos.

2- A. A. Para Índios Norte-Americanos; partilha de índios que deixaram de beber e se

mantiveram fiéis aos ensinamentos espirituais indígenas.

3- Colcha de Retalhos; nesse folheto mulheres alcoólatras compartilham sua nova vida

em AA.

34

4- A.A. Para a Mulher; neste folheto há quinze perguntas dirigidas a mulheres que

suspeitam ter problemas com o álcool, juntamente com depoimentos de oito

mulheres, das diversas condições de vida que se encontram em recuperação em AA.

5- Perguntas Frequentes Sobre AA; traz perguntas frequentes que são dirigidas ao AA

pelo público leigo, esclarecendo de maneira simples e objetiva as questões da

irmandade.

6- Você Pensa Que é Diferente?; traz treze relatos que demonstram de forma cabal que

o alcoolismo atinge pessoas das mais diferentes condições.

7- Outros Problemas Além do Álcool; fala de como o AA lida com o problema de

dependência de outras substâncias químicas.

8- O AA é Para Mim?; traz perguntas visando o autoexame individual e confidencial,

formuladas na primeira pessoa do singular.

9- A.A. Para o Alcoólico Idoso; destinado aqueles que começaram a enfrentar o seu

alcoolismo por volta dos 60 anos.

10- Três Palestras às Sociedades Médicas por Bill W., Cofundador de AA; contém três

palestras proferidas por Bill W. destinadas a comunidade científica.

11- Perguntas e Respostas sobre Apadrinhamento; essa publicação apresenta 34

perguntas/respostas para quem procura um padrinho/madrinha e para quem deseja

ser padrinho/madrinha, ajudando e ser ajudado.

Quanto aos manuais:

1- Manual de Serviço de AA; oferece mais segurança no desempenho dos encargos da

estrutura do AA, com uma síntese do pensamento e da filosofia da irmandade.

2- Doze Conceitos Para Serviço Mundial; nela se apresenta uma interpretação da

estrutura de serviços mundiais de AA. Mostra a evolução pela qual a irmandade

passou o porquê de se manter da forma que é.

Toda essa literatura é disponibilizada por preços bem acessíveis e se transforma

em uma melhor forma de veicular a filosofia da associação. Sem dúvida ter literatura

especifica para o membro onde aborda as questões que estão intimamente ligadas a

35

qualquer um que passa pela experiência do alcoolismo é de suma importância e faz com

que os membros andem de mãos dadas com a literatura de suporte. Frois (2009) destaca:

O estudo e o trabalho dos Doze Passos e das Doze Tradições

são uma das mais importantes componentes da assimilação do

programa. Usando a literatura, materializada através dos

folhetos, manuais, livros de meditação e livros temáticos [...],

os membros têm acesso a toda a ideologia que servirá de

explicação passado que se teve, e integra o processo de

transformação da própria pessoa (p.104).

Nos grupos de estudo e nas salas de AA, há um incentivo constante a que o

membro do grupo se coloque, fale, exponha suas necessidades. Independente do conteúdo a

ser tratado no que se refere aos temas, o importante é que uma aprendizagem já começa a

ser construída - a da narrativa. Ali o membro do grupo inicia a aprendizagem de aprender a

falar sobre questões referente ao seu adoecimento e necessidade de ajuda. Inicia- se nesse

momento o processo de organização e exposição das ideias e sentimentos. Uma ação

proativa é estimulada e construída e ali se vê um indivíduo exercitando a autonomia, o

direito de falar, verbalizar em um ambiente que é democrático e acolhedor, sem

interrupções, críticas ou julgamentos de valor.

Frois (2009) destaca questão da aprendizagem nesse processo de estudo dos Doze

Passos:

[...] aprendendo a verbalizar os seus problemas recorrendo à

narrativa. Este processo de aprendizagem e transformação da

pessoa faz-se acompanhar de uma progressiva imersão nas

múltiplas esferas das associações, ocupando um lugar central

nas suas escolhas de vida. As ferramentas do programa,

permite aos membros das associações adquirir capacidades de

racionalizar, interpretar e agir em conformidade com a sua

nova condição (p.109).

A aprendizagem nos grupos de AA é um processo constante e dinâmico nas suas

salas espalhadas no mundo inteiro, em uma clara postura de comprometimento educativo.

36

CAPÍTULO 2 – EDUCAÇÃO DO SUJEITO

No referido capítulo traremos a atenção para a concepção de educação em saúde e

educação do sujeito em seus aspectos referentes e formação humana e moral. Faremos um

percurso e um olhar mais apurado, sobre os grandes educadores desde a Grécia antiga até

os dias de hoje, que entendemos são inspiradores mesmo que informalmente do modelo de

estudo sistematizado dos Doze Passos nas salas de AA. Traremos a atenção para quatro

teóricos que na nossa perspectiva estão mais alinhados com o que se pratica de forma

educativa nas salas com o referido programa. Caminharemos então com educação mediada

de Feuerstein (1994), a democracia e a liberdade de Dewey (1959), a autonomia e a

criticidade de Freire (1987) e a educação coletiva de Makarenko (1975).

2.1- Educação em Saúde

O conceito moderno de promoção da saúde desenvolveu-se nos últimos trinta anos

em uma reação ao aumento vertiginoso da cultura da medicalização em massa com ínfimos

resultados em detrimento de seu investimento. O primeiro documento oficial a usar o

conceito de promoção em saúde, onde a educação faz seu papel, e a colocá-lo como

prioridade nas políticas de saúde foi o Relatório Lalonde21

em 1974 no Canadá. Dentro do

relatório são descritas quatro determinantes de saúde/doença, 01 - biologia (genes, idade,

21

O Relatório Lalonde, foi um relatório produzido em 1974 no Canadá, sob o nome de A new perspective on the health of Canadians (uma nova perspectiva da saúde de canadenses). É considerado o primeiro relatório governamental moderno no mundo acidental a reconhecer que a ênfase em assistência médica sob um ponto de vista biomédico é errada, e que é necessário olhar além do sistema tradicional de saúde.

37

sexo); 02 - ambiente (físico, ar, água, radiação, agentes infecciosos; social e econômico;

pobreza, classe social, educação, emprego, desigualdades); 03 - estilo de vida (álcool,

tabaco, drogas, nutrição, exercício, atitudes sexuais) e 04 – serviços de saúde (acesso,

equidade, serviços, saúde pública, medicamentos, cuidados primários). Dentro dessas

determinantes nos voltaremos para a determinante “ambiente”, onde a educação cumpre seu

papel.

A Carta de Ottawa22

define Promoção de Saúde como “o processo que visa

aumentar a capacidade dos indivíduos e das comunidades para controlarem a sua saúde, no

sentido de a melhorar”. Nesse mister a Carta de Ottawa assume a definição do conceito de

saúde declarado pela Organização Mundial da Saúde - OMS em 1968 onde define

“Educação para a Saúde” - “uma ação exercida sobre os indivíduos no sentido de

modificarem os seus comportamentos, adquirirem e conservarem hábitos saudáveis,

aprenderem a usar os serviços de forma criteriosa e estarem capacitados para tomada de

decisões que implicam a melhoria do seu estado de saúde”. Buss (1999), traz a atenção

para a questão da educação em saúde quando afirma que a mesma, tem sido reconhecida

como ferramenta importante para a promoção da saúde de indivíduos e da comunidade.

Diante deste quadro, fica patente o valor da educação na promoção da saúde e por

isso o referido processo no qual nos debruçamos agora tem como centro de atenção a

Educação em Saúde, a educação como um bem semi-público de caráter individual e

coletivo. Por sua vez os agentes do processo aqui estudado estão em situação de

vulnerabilidade social, ou podemos chamar de pessoas que se encontram em condições

sociais desfavoráveis, haja visto serem um grupo de homens e mulheres de diferentes faixas

etárias e classe social, adoecidos de forma grave e sem suporte adequado, acessível e eficaz

pelo sistema.

Nesse momento a Pedagogia Social faz eco quando procura alcançar aqueles que

são esquecidos e objetivam a socialização do sujeito, a educação do homem em uma

perspectiva humanística. O grande educador Pestalozzi (1969) por sua vez, reconhece a

necessidade de contemplar as questões humanitárias, filosóficas e políticas em sua

22

Carta de Ottawa é um documento apresentado na primeira Conferência Internacional sobre Promoção as Saúde, realizado em Ottawa, Canadá, em novembro de 1986.

38

pedagogia, em uma clara indicação do quanto a educação tem papel a cumprir no processo

de construção humana.

Importante lembrar que a dependência química é uma doença de múltiplas causas e

por isso pede também um olhar e um tratamento multidisciplinar e a educação vem a esse

socorro.

2.2 - Teóricos Inspiradores a prática educativa nas salas de Alcoólicos Anônimos

Debruçando-me sobre os educadores que fizeram história, da Grécia antiga aos

dias de hoje, foi possível identificar particularidades em cada um deles em que o estudo dos

Doze Passos se assenta, mesmo que de forma empírica, já que o referido modelo de estudo,

dentro desse contexto, é consideravelmente jovem, com cerca de 81 anos. No entanto e

possível observar na sua filosofia e práticas pedagógicas, muitos desses grandes

educadores, a exemplo:

Sócrates (469-399 a. C), o grande filósofo grego, traz a atenção para o valor da

busca da verdade e o ato do homem se voltar para si mesmo, para seu interior a fim de

chegar a sabedoria. O aforismo escrito no templo de Delfos “conhece a ti mesmo”, era para

ele o ponto mais importante a ser cultivado. Algo tão antigo e ao mesmo tempo tão atual!

O programa dos Doze Passo tem como ponto central o olhar honesto para si mesmo a fim

de descortinar as demais fragilidades que contribuem para o adoecimento da dependência

química, como também o trabalho de mediação feito pelos coordenadores de grupo, tem

sua ressonância na maiêutica socrática do parto das ideias, que diz respeito a levar os seus

discípulos a reconstrução de conceitos a fim de a frente, poder parir as próprias ideais.

Em Aristóteles (384-322 a. C), o defensor da instrução para a virtude, onde a

mesma é conquistada através da prática e o exercício diário é visto nos membros do AA,

quando estão sempre atentos e trabalhando em prol do dia a dia, do seu cotidiano e isso fica

patente quando do uso comumente o termo “só por hoje”, que nos leva ao poema de

Horácio (65-8 a.C), que traz a expressão Carpe diem, e o estímulo a vive-lo. A prática

sendo estimulada a fim de desenvolver ações virtuosas no dia a dia.

39

Brachtendorf, J. (2008), traz a atenção a Santo Agostinho (354-430), o idealizador

da revelação divina. Ele afirmava que o homem só tem acesso ao conhecimento quando

iluminado por Deus. A concepção espiritual do AA é descrita na sua literatura, quando

fala sobre o chamam de despertar espiritual 23

, descrito no 12º passo. No livro Confissões,

Santo Agostinho, narra a própria conversão, trazendo o princípio da confissão, onde

encontramos similaridade no trabalhado no 8º, 9º e 10º passo subsequentemente: “Fizemos

uma relação de todas as pessoas a quem tínhamos prejudicado e nos dispusemos a reparar

os danos a elas causados”; “ Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas,

sempre que possível, salvo quando fazê-las significasse prejudicá-las ou a outrem”; e “

Continuamos fazendo o inventário pessoal e quando estávamos errados, nós o admitíamos

prontamente”.

Em Tomás de Aquino (1225-1274), o pregador da razão e da prudência, podemos

identificar no 9º Passo - “Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas,

sempre que possível, salvo quando fazê-las significasse prejudicá-las ou a outrem”, bem

como a ênfase que dava ao mundo real e ao aprendizado pelo raciocínio. Para o filósofo, há

dois tipos de conhecimento; a sensível, captado pelos sentidos, e o intelectivo, que se

alcança pela razão. Lauand (2013), destaca que Tomás de Aquino, chama de inteligência

ativa, em complemento a inteligência passiva, com o qual cada um pode formar seus

próprios conceitos. Ele introduz assim um princípio pedagógico moderno e revolucionário

para sua época, onde diz que o conhecimento é construído pelo estudante e não somente

pelo professor. Todo o programa de Doze Passos foi construído por um grupo de pessoas,

os mesmos que se beneficiam deles. Por esse motivo não há nas publicações do AA um

autor, uma personalidade e sim um grupo.

Em Lutero (1483-1546), vemos o conceito da utilidade social da educação,

intensamente trabalhado nos grupos de AA. Em Montaigne (1533-1592), o estímulo para

que o indivíduo viesse a ser investigador de si mesmo, cultivando a interiorização é

encontrado nos grupos de estudo de AA. O referido filósofo e jurista, fazia crítica ao

trabalho das escolas que era de encher as memórias, deixando o entendimento e as

23

Momento descrito pelos membros de AA, em que o indivíduo entrou em contato consciente com uma nova forma de ser, livre do álcool.

40

consciências vazias. Dele é a famosa frase “uma cabeça bem-feita vale mais do que uma

cabeça cheia”. A referida expressão “cabeça bem-feita”, foi mais tarde escolhida por Morin

(2005) para título de um dos seus livros. Aqui vemos a ressonância nos grupos de AA

quando todo o trabalho está voltado para a consciência e aprofundamento das coisas a

serem trabalhadas dentro das salas.

Lago (2002) destaca a obra de John Locke (1632-1704) o explorador do

entendimento humano, quando ele dizia que os homens não são bons ou maus, úteis ou

inúteis, tudo diz respeito a educação dos mesmos. Aqui novamente vemos a ressonância

valiosa do processo educativo para formação humana. Trabalho exaustivamente realizado

nos grupos de AA.

Em Rousseau (1712-1778), a liberdade como valor supremo é a sua máxima. Um

dos princípios fundamentais de toda a sua obra diz respeito a afirmar que o homem é bom

por natureza, mas está submetido à influência corruptora da sociedade. Com o

entendimento de que o alcoolismo é uma doença e não um defeito de caráter e que as

dificuldades do alcoólatra estão intimamente relacionadas com sua doença e com a forma

como se relaciona com ela e a influência do meio, traz nesse momento a ressonância do

filósofo. Pissarra (2006) destaca que o filósofo Rousseau preconizava um mergulho interior

por parte dos indivíduos rumo ao autoconhecimento, mas isso não se dá por meio da razão,

e sim da emoção, e traduz-se numa entrega sensorial à natureza. Importante notar que no

12º passo é possível observar especificamente essas particularidades da filosofia do referido

pensador quando diz: “Tendo experimentado um despertar espiritual, graças a estes Passos,

procuramos transmitir esta mensagem aos alcoólicos e praticar estes princípios em todas as

nossas atividades”.

O educador suíço Pestalozzi (1746-1827), chega trazendo o afeto na prática

pedagógica. Para ele os sentimentos tinham o poder de despertar o processo de

aprendizagem autônoma na criança. Incontri (1996), destaca que a escola idealizada por

Pestalozzi deveria oferecer uma atmosfera de segurança e afeto. Indiscutivelmente esse é o

ambiente nas salas de AA. Um lugar onde cada membro se sente plenamente seguro e

receptor de muito afeto, haja vistos àqueles que chegam pela primeira vez no grupo, lhe é

dito que ele é naquele dia a pessoa mais importante, mais valiosa. O sentimento de afeto é

41

relatado por todos os membros como sendo um dos fatores responsáveis pelo retorno e

permanência dos mesmos ao grupo.

O surgimento do que veio a ser chamado de sociologia da educação, tem na figura

do sociólogo Durkheim (1967) a referida concepção. Para ele o homem, mais do que

formador da sociedade, é um produto dela. A influência do meio surge como fator

preponderante a ser considerado quando se fala em educação. Todo o trabalho da filosofia

dos Doze Passos, está intimamente relacionada com a maneira de viver e agir consigo e

com a sociedade. Uma educação social para o meio é o objetivo de todo o trabalho

desenvolvido nas salas de AA. Aprender a viver em sociedade e viver bem, sem causar

danos a si e aos outros. Encontramos também Dewey (1959), onde a democracia, liberdade

e a prática em foco, encontra ressonância nos grupos de estudo dos Doze Passos nas salas

de AA, e do qual dedicaremos mais a frente um capitulo detalhado da sua contribuição à

dinâmica nas salas.

Na pesquisadora italiana Montessori (1870-1952), encontramos a valorização do

aluno e a crença no potencial de aprender de cada um. Para ela objetivo da escola é a

formação integral do jovem, uma educação para a vida destaca. Machado (1986) destaca

que o principal legado da italiana Montessori foi afirmar que as crianças trazem dentro de si

o potencial criador que permite que elas mesmas conduzam o aprendizado e encontrem

um lugar no mundo. É o que Montessori chamou de “ajude-me a agir por mim mesmo”.

No estudo da filosofia dos Doze Passos é possível observar o trabalho constante para esse

fim, pois o estímulo a consciência e a ação comprometida de cada um, bem como o

estímulo a autonomia é a tônica dentro das salas de AA.

Encontramos na teoria da emoção e a educação integral de Wallon (1879-1962),

contribuições valiosas que se repercute nas salas de AA. Oliveira (1992), traz a atenção

para a construção do eu na teoria de Wallon, que depende essencialmente do outro, seja

para ser referência, seja para ser negado. Tal relação é observado de forma patente quando

no estudo dos seguintes passos: o 5º- “Admitimos perante Deus, perante nós mesmos e

perante outro ser humano, a natureza exata de nossas falhas”; o 8º - “Fizemos uma relação

de todas as pessoas a quem tínhamos prejudicado e nos dispusemos a reparar os danos a

elas causados”; o 9º-“Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre

42

que possível, salvo quando fazê-las significasse prejudicá-las ou a outrem” ; e o 12º “Tendo

experimentado um despertar espiritual, graças a estes Passos, procuramos transmitir esta

mensagem aos alcoólicos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades”. Em

Makarenko (1888-1939), o mestre ucraniano e professor do coletivo, iremos nos debruçar

mais detalhadamente em um capítulo mais a frente, visto ter o mesmo, muitas contribuições

valiosas para a prática do estudo dos Doze Passos, nas salas de AA.

Em Freinet (1896-1966), encontramos uma pedagogia do bom senso, pela qual a

aprendizagem resulta de uma relação dialética entre ação e pensamento, ou teoria e pratica.

Para ele todo conhecimento é fruto do que chamou de tateamento experimental - a

atividade de formular hipóteses e testar a sua validade. Nada mais parecido do que acontece

nos grupos de AA, quando se formula a hipótese de viver de outra maneira e com essa

experimentação se certificar de sua validade. A questão da cooperação e não competição,

quando do estímulo ao espirito colaborativo, a afetividade e o valor do eu e a questão do

bom senso, tão defendida por ele, é bem claro quando do trabalho com o 9ºpasso: “Fizemos

reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo quando

fazê-las significasse prejudicá-las ou a outrem”.

Elias (2002) descreve quatro eixos no qual se fundamenta a pedagogia de Freinet e

do qual podemos observar uma similaridade nas práticas em salas de AA, vejamos: O

primeiro eixo - a cooperação - para construir o conhecimento comunitariamente - aspecto

permanente nos grupos de AA, onde se propaga a necessidade do outro no processo de

conhecimento; o segundo e o terceiro eixo - a comunicação - para formalizá-lo, transmiti-

lo e divulga-lo - e a documentação - com o chamado livro da vida , para registro diário dos

fatos históricos. Exatamente que acontece nos grupos anônimos que diz respeito a

comunicar, criando laços e fortalecendo o entendimento com os depoimentos e narrativas

das histórias de vida em grupo, bem como com a publicação de folhetos, revistas e livros; o

quarto e último eixo - a afetividade - com vínculo entre pessoas e delas com o

conhecimento. O apadrinhamento, prática exercida nos grupos para com os membros que

ingressão, a fim de oferecer suporte e orientação, mostra claramente esse eixo sendo

aplicado.

43

Em Vygotsky (1896-1934), o ensino como processo social e com ele as correntes

pedagógicas chamadas de socioconstrutivismo ou sociointeracionismo, mostra o papel

preponderante das relações sociais e a compreensão de que o aprendizado decorre da

compreensão do homem como um ser que se forma em contato com a sociedade. Oliveira

(1998) destaca que para Vygotsky, a formulação do conhecimento se dá numa relação

dialética entre o sujeito e a sociedade ao seu redor. Para ele o que interessa é a interação

que cada pessoa estabelece com determinado ambiente, a chamada experiência

pessoalmente significativa. Exatamente o que acontece nos grupos de AA, onde o trabalho

vinculado a relação com o meio e a forma de se relacionar com o mesmo, tão bem

apresentado no roteiro dos Doze Passos, tem papel preponderante no processo de

recuperação de um alcoólatra. A relação com a experiência é patente assim como Dewey a

defende, bem como a relação com o significado e o fazer sentido como os membros do AA

descrevem, alinham com a referida teoria. Para Vygostky, o saber que não vem da

experiência não é realmente saber. Outra contribuição significativa diz respeito ao conceito

chave de mediação, onde mais a frente iremos dissertar com a EAM de Feuerstein.

Em Skinner (1904-1990), o cientista do comportamento e da aprendizagem, temos

conceitos complexos em virtude da carga de cientificismo ao comportamento, mas é

possível identificar sua a ressonância no comportamento em especial do dependente

químico em processo de recuperação através da educação em saúde, com o conceito

“condicionamento operante”, uma formulação acrescida ao conceito de “reflexo

condicionado”, formulado pelo cientista Ivan Pavlov. Skinner (1984) defende que o

condicionamento operante é um mecanismo que premia uma determinada resposta de um

indivíduo até ele ficar condicionado a associar a necessidade da ação. A diferença entre

reflexo condicionado e o condicionamento operante é que o primeiro é uma resposta a um

estímulo puramente externo; e o segundo, o hábito gerado por uma ação do indivíduo. A

teoria do reflexo condicionado de Pavlov e o condicionamento operante de Skinner

consegue responder muitas facetas do adoecimento da dependência química, ela também

oferece subsídios para o tratamento quando do exercício visando o condicionamento

contrário e isso se dá quando há o que Skinner chama de reforço positivo, onde ao aluno é

dado ênfase nos resultados positivos de determinada ação. Fica patente tal condicionamento

aplicado nos grupos de AA quando do estudo do 12º passo - “Tendo experimentado um

44

despertar espiritual, graças a estes Passos, procuramos transmitir esta mensagem aos

alcoólicos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades”.

Em Freire (1921-1997), e sua teoria da educação para a consciência, a pedagogia da

autonomia e do oprimido, iremos dissertar mais detalhadamente a fim de trazer suas

contribuições significativas ao trabalho desenvolvido nos grupos de AA. Em Morin

(2013), encontramos o conceito de complexidade e o saber passa a não mais ficar estanque

a uma forma. Ele traz o conceito de vários saberes. A compreensão da complexidade

humana e do seu saber corrobora com a prática pedagógica que o grupo de AA se debruça,

pois, para um adoecimento que tem múltiplos fatores, se faz necessário uma abordagem

multidisciplinar - conceito desenvolvido pelo autor e aplicado nas salas de AA pelo modelo

Minnesota e na condução do estudo sistematizado dos Doze Passos.

É possível ver que epistemologicamente falando, os trabalhos educativos

desenvolvidos nos grupos de AA apresentam em suas práticas elementos e princípios em

maior ou menor grau de diversos pensadores da educação, mesmo muito antes e/ou muito

depois do modelo de trabalho nas salas com os Doze passos terem sido desenvolvidos,

conforme explicitado acima. No entanto é importante notar que aqueles que iniciaram e

construíram o que é hoje o programa dos Doze Passos, não registram em nenhuma obra por

eles publicadas ou registros de declarações mesmo que informal, a menção sobre qualquer

teórico que poderiam dizer tiveram como referência para construção do programa. As

declarações acerca do tema estão sempre relacionadas a uma construção coletiva a partir

das práticas, do ensaio e erro e do conhecimento tácito.

Não há escola ou teóricos a seguir, no entanto é possível observar que há em

muito do seu fio condutor, teóricos e teorias que se desenvolveram depois do programa dos

Doze Passos ser criado e desenvolvido, que traz similaridades nas práticas em salas do AA.

Fica a pergunta no ar sobre como o referido modelo educativo tomou corpo e se

desenvolveu sem apontar para nenhuma referência teórica, embora comporte tantas delas,

ainda mais quando é sabido que o referido programa dos Doze Passos não sofreu

modificações no que cerne a filosofia, prática e forma de condução.

45

2.3 - Educação mediada na perspectiva de Reuven Feuerstein

O surgimento da experiência de aprendizagem mediada se deu entre 1950 e 1963,

por Reuven Feuerstein, psicólogo israelense que desenvolveu o conceito de Experiência de

Aprendizagem Mediada (EAM). A referida concepção surgiu a partir da experiência de

Feuerstein, quando incumbido de ajudar na educação das crianças do pós-guerra que

apresentavam desvantagens intelectuais e baixo rendimento escolar.

Feuerstein (1994) afirma que duas são as formas de aprendizagem humana. Uma

delas é a experiência direta de aprendizado - que é a interação dos organismos com o meio

ambiente; a outra é a Experiência de Aprendizagem Mediada - que requer a presença e a

atividade de um ser humano para organizar, selecionar, interpretar e elaborar aquilo que foi

experimentado e essa presença e ação deve acontecer intencionalmente para desenvolver o

estímulo entre o sujeito e o conhecimento. Feuerstein tem na sua base de estudos as

influências do psicólogo bielo-russo Lev Vygotsky (1896-1934), considerado o precursor

da ideia de mediação.

Vygotsky (1999) por sua vez, traz a lume a teoria do ensino como processo social,

a compreensão do homem como um ser que se forma em contato com a sociedade. Para ele

o que o que interessa é a interação que cada pessoa estabelece com determinado ambiente, a

chamada experiência pessoalmente significativa. Oliveira (1995) destaca a compreensão

do saber e da experiência por Vygotsky quando ele diz que o saber que não vem da

experiência não é realmente saber. A mediação estava ali formulada, colocando o professor

como instrumento dessa mediação, que mais tarde é desenvolvida por Feuerstein de forma

mais patente.

Feuerstein e Vygostsky acreditavam na existência de um potencial não-manifesto e

na necessidade de elaborar metodologias avaliativas mais eficientes e voltadas para a

potencialidade do indivíduo. Ambos buscavam desbravar potenciais humanos que não eram

observáveis pelos métodos tradicionais, como destaca Gomes (2002). Influenciado por

Vygotsky, Feuerstein traz à atenção três critérios que são Sine Qua Non, para que haja de

fato uma mediação. São eles:

46

- Mediação de Intencionalidade e Reciprocidade: intencionalidade por parte do mediador e

reciprocidade perante o mediado focando na satisfação das necessidades do mediado.

Nesse processo há ali consciência do mediador embora nem sempre no primeiro

momento essa consciência se apresenta para o mediado, no entanto todo o processo tem um

objetivo claro e simples. Ao mediado o que se espera é que venha a se sentir estimulado e

com predisposição de interagir e de cooperar no processo de construção do conhecimento.

- Mediação de Transcendência: transcendência da realidade concreta, “do aqui e agora” e

da tarefa aprendida, generalizando para posterior aplicação da compreensão de um

fenômeno aprendido em outros cenários e contextos.

Nesse processo o valor do aprendizado se faz quando o mediado consegue aplicá-lo

de fato, fora do contexto apreendido, descobrindo a aplicabilidade do referido aprendizado

em outras situações de sua realidade.

- Mediação de Significado: construção (estimulada pelo mediador) de significados que

permitam compreender a importância da aprendizagem e interpretar os resultados

alcançados.

Nesse processo, a relação com os afetos se apresenta de forma patente tendo em

vista que todo significado tem em sua gênesis cargas afetivas. Outra questão diz respeito a

leitura de mundo24

e os conceitos de significado que são específicos para cada indivíduo ou

grupo de indivíduos, fator que favorece a aproximação e a identificação com o referido

saber. Essa simpatia em relação ao conhecimento aproxima e facilita o processo de

aprendizagem, bem como um envolvimento emocional no processo.

Além destes três critérios considerados primordiais para o processo de

aprendizagem mediada, Feuerstein (1994) elenca mais nove que são: 01-Sentimento de

Competência; 02-Controle e Regulação da Conduta; 03-Comportamento de Compartilhar;

04-Individuação e Diferenciação Psicológica; 05-Conduta de Busca de Planificação e

Realização de Objetivos; 06-Desafio de Busca Pelo Novo e Complexo; 07-Percepção da

24

Termo usado pelo teórico Paulo Freire para designar que leitura não parte só da interpretação dos símbolos gráficos, mas antes dela ser feita, existem a leitura das coisas, ou a forma como cada um percebe e interpreta o mundo, e que essa leitura precede a interfere na leitura das palavras.

47

Consciência da Modificabilidade Humana; 08-Escolha da Alternativa Otimista e 09-

Sentimento de Inclusão. Identificamos em quase a totalidade dos critérios apontados por

Feuerstein, a aplicação nas salas de AA.

A EAM, assim como a experiência de existência em estado de dependência

química, possui características e fatores diversos. O tratamento do adoecimento da

dependência química só se mostrou eficaz, quando o mesmo passou a ser feito de forma

multidisciplinar, a bordando fatores diversos do referido processo.

A mediação naturalmente proporciona ao sujeito mediado o exercício da

autonomia, autonomia essa que ele terá que aprender também a possuir e fazer uso, com tão

bem defendeu Freire (1996), em sua pedagogia da autonomia.

Turra (2007) destaca que “essa autonomia por sua vez leva o mediado a exercer

naturalmente a função de mediador, quando consegue partilhar, descrever e aplicar a

aprendizagem construída no momento em que procura resolver as tarefas propostas. Nesse

caso o mediador possibilita ao mediado maior capacidade de comunicação estendendo-se às

necessidades de outros sujeitos” (p.306).

A função destacada pelo autor é claramente observada quando o dependente

químico em recuperação, seguindo as orientações do programa dos Doze Passos, inicia a

aplicação do 12º passo onde ele “procura levar esta mensagem a outros adictos”,

corroborando com a referida teoria.

Gomes (2002) destaca que a EAM, tem o seu foco no diálogo intencional entre o

emissor e o receptor da mensagem e não especificamente no conteúdo das informações. O

referido destaque nos leva novamente a Freire (1987) e à sua crítica ao conceito de

educação depositária, chamando-a de educação bancária 25

porque impossibilita o

desenvolvimento do pensamento livre e autônomo do sujeito.

Em lugar de comunicar-se, o educador fez “comunicados” e

depósitos que os educandos, meras incidências, recebem

pacientemente, memorizam e repetem. Eis aí a concepção

“bancária” da educação, em que a única margem de ação que

25

Conceito criado pelo educador Paulo Freire para designar uma educação depositária de informações, onde o professor só fala e não escuta e onde não há possibilidade de diálogo e questionamentos críticos por parte dos alunos.

48

se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos,

guarda-los e arquivá-los. Margem para serem colecionadores

ou fixadores das coisas que arquivam. No fundo, porém, os

grandes arquivados são os homens, nesta (na melhor das

hipóteses) equivocada concepção “bancária” da educação.

Arquivados, porque, fora da busca, fora da práxis, os homens

não poder ser. Educador e educandos se arquivam na medida

em que, nesta destorcida visão da educação, não há

criatividade, não há transformação, não há saber (Freire 1987,

p.33).

Conforme Turra (2007), para Feuerstein, a EAM, é importante porque acontece,

justamente, em interações sociais nas quais as pessoas produzem processos de

aprendizagem que lhes possibilitam apropriar-se de conhecimentos e reelabora-los,

chegando a elevados patamares de entendimento. A modificabilidade do sujeito é,

necessariamente, a modificação da relação do sujeito consigo próprio no e com o seu

entorno. Feuerstein (1980) destaca que “ [...] há uma relação dinâmica constante do sujeito

com o ambiente, estando ambos em movimento e interagindo com a realidade

sociocultural” (p.9).

Importante notar que as teorias de comprometimento cognitivo resultante do abuso

de drogas e sua relação com a dificuldade de aprendizagem, aqui não acham ressonância

em face aos estudos de Feuerstein. Em seus experimentos o psicólogo israelense, obteve

resultados significativos em paciente com comprometimento cognitivos como portadores

da Síndrome de Down e pessoas com danos cognitivos causados por traumas de guerra,

abusos, choques culturais ou extrema pobreza, deixando patente o valor de sua teoria diante

de um cenário tão desprivilegiado.

Turra (2007) também destaca outro ponto importante do processo de mediação de

Feuerstein, que diz respeito a tomada de consciência do processo, bem como as

possibilidades de escolhas, que devem ser um aspecto central do desenvolvimento humano

e exige que o sujeito, além de escolher, seja capaz de usufruir a transcender as

oportunidades sociais. A referida ação está alinhada ao segundo critério de mediação

apontado pelo autor que é a mediação de transcendência, onde o mediado consegue aplicar

a aprendizado fora do contexto aprendido, transcendendo para outros cenários.

49

É possível observar o referido critério se processar na ação estimulada dentro das

salas de AA, quando da indicação do 8º- (Fizemos uma relação de todas as pessoas a quem

tínhamos prejudicado e nos dispusemos a reparar os danos a elas causados); 9º- ( Fizemos

reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo quando

fazê-las significasse prejudicá-las ou a outrem) e 12º passo - (Tendo experimentado um

despertar espiritual, graças a estes Passos, procuramos transmitir esta mensagem aos

alcoólicos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades). A ação de reparação a

outras pessoas, bem como a prática de ajudar a outros que sofrem é apresentada nesses

passos como processo importante para a educação e recuperação.

Para Feuertein (1980), uma mediação educativa deve ter integrados três elementos:

o educador (ou qualquer pessoa que propicie desenvolvimento a outra), o aprendiz (ou

qualquer pessoa na condição de mediado) e as relações (tudo o que é

expressado/vivenciado no processo de ensino e aprendizagem). O primeiro - o

educador/mediador- realiza a valiosa função de ser um elo entre o mediado e o saber, entre

o mediado e o meio e entre o mediado e os outros mediados.

Entendemos que a EAM e as suas especificidades, fazem parte integrante do

processo de construção do conhecimento que acontecem no estudo da filosofia dos Doze

Passos nos grupos de Alcoólicos Anônimos. Importante notar que sua aplicabilidade

acontece, independente de ele ter sido aplicado de forma consciente ou não, o fato é que foi

possível observar que o mesmo se apresenta de forma patente durante todo o processo. O

mediador realiza a função de impulsionar a maturação da estrutura cognitiva do sujeito.

Tzuriel (1994) no que refere a mediação de Feuerstein, afirma que o mediador

modula os seguintes aspectos no processo de aprendizagem:

- Filtra os estímulos e “embala-os”, em um grau de ordem por valores de relevância;

- Modula a intensidade do estímulo de acordo com a necessidade do mediado;

- Intervém na capacidade do mediado para planejar e responder com eficiência, inibindo a

ação por impulsividade;

-Estabelece relações temporais e espaciais sobre o plano concreto;

50

- Promove a interpretação do mundo através do raciocínio intuitivo e /ou lógico,

relacionando-os com as necessidades mais imediatas;

- Extrapola o dia-a-dia, o aqui e agora da situação imediata, transcendendo relações e

produzindo “verdades” junto ao mediado.

Ao observar os referidos aspectos apontados por Feuerstein , entendemos que os

mesmos estão intimamente ligados às práticas que ocorrem na dinâmica das salas de AA,

haja visto a condução do estudo nas salas seguir um roteiro que está bem alinhado com os

referidos aspectos que incluem: apresentar o que vai ser estudado naquela hora, deixar claro

como a reunião ocorrerá no que se refere a tema, ordem das falas, acordos que facilitam o

andamento da mesma, intervenções em momentos específicos, estimulo ao trabalho fora

dos muros da associação etc. Embora não se tenha registros de que os fundadores da

irmandade de AA tenham ido buscar na metodologia de Feuerstein algum norte para suas

práticas, o fato é que é possível observar tais aspectos na dinâmica de estudos nas salas de

AA.

2.4 - A Democracia e a Liberdade de Jonh Dewey na prática do estudo dos Doze

Passos.

Westbrook26

(2010), destaca as contribuições do filósofo norte-americano Jonh

Dewey para a educação, quando desenvolveu e advogava a unidade entre teoria e prática.

O pensamento de Dewey baseava-se na convicção moral de que “a democracia e a

liberdade de pensamento são instrumentos para a maturação emocional e intelectual das

crianças” (p.8).

Como para ele a prática deveria está sempre em foco e estar unida a teoria. A

referida questão trouxe muitos questionamentos que dizem respeito a muitos considerarem

Dewey como um educador que não estava interessado nas questões teóricas das letras e em

26

Robert B.Westbrook, foi professor no Scripps College antes de ser professor da Universidade do Rochester (Nova York), onde é professor associado de História. Autor de numerosos artigos e ensaios sobre a história cultural e intelectual americana. È também autor de Jonh Dewey and the American Democracy e de Pragmatism and politics.

51

alfabetizar as pessoas. A questão, no entanto, não era essa, na verdade Dewey (1959)

lançava luz sobre o valor de uma aprendizagem significativa, cotidiana e que pudesse ser

exercitada.

Westbrook (2010) também destaca em seu livro, que Dewey estava convencido

que não havia nenhuma diferença na dinâmica das experiências de crianças e de adultos.

Que ambos são seres ativos, que aprendem mediante o enfrentamento de situações

problemáticas que surgem no curso das atividades que merecem seu interesse. Importante

notar que o processo de aprendizagem significativa que acontecem nas salas de AA, são

exatamente essas, tendo em vista o fato de que elas precisam estar sendo aplicadas

diariamente na vida cotidiana. Elas só se fazem de fato na prática e no enfrentamento de

situações reais, experiências de um dia de cada vez, com costumam explicitar nas reuniões

e de fato só se tornam prática cotidiana quando as mesmas têm significado para quem as

pratica.

Dewey não hesitava em afirmar que “a formação de certo caráter constituía a única

base verdadeira de uma conduta moral” (Dewey,1897b). Para ele a função principal da

educação em toda a sociedade é a de ajudar as crianças a desenvolver um caráter - conjunto

de hábitos e virtudes que lhes permitam realizar-se plenamente desta forma.

Nos grupos de AA, vimos a ressonância do referido teórico quando a atenção se

volta para a educação do sujeito, o conjunto de seus hábitos e virtudes e sua aplicabilidade

no seu cotidiano.

No Brasil, Dewey, inspirou o movimento da Escola Nova, liderado por Anísio

Teixeira e embora tenha sido conhecido como fazendo parte da corrente filosófica

conhecida como pragmatismo, ele preferisse o nome instrumentalismo. Para ele a

aprendizagem se dá quando compartilhamos experiências e isso só é possível em um

ambiente democrático, onde não haja barreiras ao intercâmbio de pensamentos. Ambiente

similar é encontrado nas salas de AA.

Teixeira (1971) destaca em sua obra sobre a pedagogia de Dewey, o valor dado a

experiência que sustenta essa prática, e sendo ela reflexiva, onde se atenta para o antes e o

depois do seu processo, faz com que haja aquisição de novos conhecimentos mais extensos

52

do que antes como resultado natural do processo. No processo de educação nos grupos de

AA, é patente que todo raciocínio pedagógico ali estabelecido está intimamente ligada as

práticas cotidianas dos membros do grupo e, o processo comparativo funciona como

referencial. Nesse momento a teoria só funciona quando de mãos dadas com a prática

como preconiza Dewey.

A educação para Dewey era um processo de reconstrução e reorganização da

experiência, pelo qual lhe percebemos mais agudamente o sentido, e com isso nos

habilitamos a melhor dirigir o curso de nossas experiências futuras. Essa contínua

reconstrução em que consiste a educação, tem por fim imediato melhorar pela inteligência a

qualidade da experiência.

Mais uma vez aqui esse processo é observado dentro dos grupos de AA quando da

reflexão e estudo das práticas necessárias para viabilizar a melhor experiência na vida

cotidiana através do estudo da filosofia dos Doze Passos. A educação acontece de forma

concreta por intermédio das experiências vividas inteligentemente. Nesse momento a

educação que afeta de forma significativa o indivíduo.

Quando pensamos na escola, identificamos a necessidade de que a mesma, deve

proporcionar práticas conjuntas e promover situações de cooperação, em vez de lidar com

as crianças de forma isolada. Dewey acreditava que, para o sucesso do processo educativo,

basta um grupo de pessoas se comunicando e trocando ideias, sentimentos e experiências

sobre as situações práticas do dia -a dia. Nesse ponto podemos dizer que o autor descreve a

exata prática nas salas de estudo nos grupos de AA.

Para ele o objetivo da escola é ensinar a criança a viver no mundo e que deve

oferecer aos alunos um material de instrução que é da vida. Nesse momento a educação

tácita e não formal naturalmente se apresenta na prática da experiência cotidiana e o

processo de crescimento se opera por uma constante reorganização e reconstrução da

experiência. Para Dewey de forma errônea, a aprendizagem na escola é extrínseca à vida,

por isso faz a referida crítica e traz atenção a essas questões e lança luz ao movimento da

escola nova.

Dewey (1959) dizia que educar, portanto, é mais do que reproduzir conhecimentos.

Aqui vemos nitidamente o que Freire (1998) mais à frente colocou como crítica a Educação

Bancária. É incentivar o desenvolvimento contínuo, preparar pessoas para transformar

53

algo. Dewey defendia a necessidade de preparar o aluno para a vida, promovendo constante

desenvolvimento e interação. Nesse sentido a educação é social. Nada se ensina nem se

aprende senão pela compreensão comum ou de um uso comum.

O referido autor, lança o olhar sempre para a prática e as questões cotidianas é o

interesse fundamental no processo de educação para a vida. Portanto aprender significa

adquirir um novo modo de agir, novo comportamento e como a aprendizagem deverá ser

reflexiva, a pessoa não somente poderá agir, mas agirá do novo modo aprendido, assim que

a ocasião que exija esse saber, apareça. Aqui novamente a aprendizagem transcende a sala

de aula como também corrobora Feustein (1994), com sua mediação de transcendência.

Essa é a grande questão que Dewey valoriza, a prática de mãos dadas com a teoria,

reforçando, ampliando o saber.

No que se refere a objetivos da educação (Dewey 2007) destaca: “Um objetivo

educacional deve basear-se nas atividades e necessidades intrínsecas (incluindo instintos

naturais e hábitos adquiridos) de determinado indivíduo a ser educado” (p.24). Aqui

novamente a ressonância nos grupos de AA quando a educação está intimamente ligada às

necessidades intrínsecas de cada membro do grupo que lá procura suporte.

Em outro momento Dewey (1959) traz atenção a educação ministrada por um

grupo, bem como a questão dos hábitos e aspirações do mesmo. É possível observar em seu

texto a ressonância com o que acontece nos grupos de AA quando afirma que “ toda

educação ministrada por um grupo tende a socializar seus membros, mas a qualidade e o

valor da socialização dependem dos hábitos e aspirações do grupo. Para terem numerosos

valores comuns, todos os membros da sociedade devem dispor de oportunidades iguais para

aquele mútuo dar e receber” (p.93).

Quando o pensamento reflexivo não é estimulado e trabalhado, as ações ficam à

mercê da impulsividade. Trazendo à atenção para o objeto de investigação em questão,

temos como exemplo, o adoecimento da dependência química que tem em seu cerne o

comportamento compulsivo, quando do desejo incontrolável de agir de determinada forma

sem refletir em suas consequências. Dewey (1959) traz a atenção para o valor do estímulo a

educação e o pensamento reflexivo quando diz que “o pensamento faz-nos saber a quantas

andamos ao agir. Converte uma ação puramente apetitiva, cega e impulsiva, em ação

54

inteligente” (p.26). Valiosa reflexão impulsionadora da necessidade de mudança e de

valiosos desdobramentos quando aplicados a temática da educação em saúde com atenção

voltada para o adoecimento da dependência química, em especial o alcoolismo.

Mais à frente em seu livro Dewey (1959), acrescenta a necessidade de dar e ter

sentido, bem como o valor das coisas que nos rodeiam, para pôr fim agirmos de forma que

possamos intencionalmente e deliberadamente controla-las. Quanto a essa questão Dewey

escreve que “somente quando as coisas que nos rodeiam têm sentido para nós, somente

quando significam consequências que poderemos obter se manejarmos essas coisas de certo

modo, somente então é que se torna possível controla-las intencionalmente e

deliberadamente” (p.27). Noção de significado e consequência é o que vemos no trabalho

educativo nas salas de AA e que por sua vez impulsiona mudanças.

Nesse processo reflexivo então é possível compararmos uma coisa ou

acontecimento como era antes com o que é depois de obtermos domínio intelectual sobre

ele e a partir daí, seguindo a teoria de Dewey, unindo a teoria à prática, transcender a outros

cenários da vida cotidiana com grandes ganhos a existência. É exatamente isso que

acontece nos grupos de AA, quando os membros se reúnem no estudo sistematizado dos

Doze Passos, partilham seus depoimentos encorajadores sobre o antes e o depois da

aplicabilidade do referido programa, comparado e decidindo caminhos a partir das referidas

comparações.

Similar aos conceitos sugeridos no AA, quanto as características que venham a

facilitar o trabalho educativo, a filosofia dos Doze Passos estimula ao membro do grupo a

ser e estar com “ a mente e coração aberto”, para receber o que chamam de “a graça da

sobriedade”, Dewey também salienta essa ação, o que chama de cultivar atitudes favoráveis

facilitadoras ao processo de aprendizagem.

No que se refere a atitudes facilitadoras ao processo de aprendizagem, Dewey

(1959) destaca três que são:1º- Espírito aberto (entendida como independência de

preconceitos, partidarismo e outros hábitos de cerrar a mente para novas ideias), 2º -De

todo coração (Quem esteja absolutamente interessado em determinado objeto, em

determinada causa, como dizemos “de coração” ou “de todo coração”, que aqui é

55

reconhecida como questões práticas e morais) e 3º- Responsabilidade (como a sinceridade

ou devotamento de todo coração, também a responsabilidade é comumente concebida como

traço moral, mais do que recurso intelectual). Novamente acha-se nas referidas atitudes

destacadas por Dewey, ações constantes e assinaladas nos grupos de AA.

Teixeira (1971) fala sobre o influxo das atitudes pessoais sobre a prontidão para

pensar relacionada às três atitudes mencionadas:

As três atitudes mencionadas, espirito aberto, de todo coração

ou responsabilidades de enfrentar as consequências, são em si

mesmas, qualidades pessoais, traços de caráter. Não são as

únicas importantes para o desenvolvimento do hábito de

pensar de maneira reflexiva. Mas as outras que se poderiam

apresentar constituem igualmente, traços de caráter, atitudes

morais, no sentido próprio da palavra, como traços, que são,

de caráter pessoal, merecedores de cultivo. (Teixeira 1971,

p.127)

Novamente acha-se nas referidas atitudes destacadas por Dewey (1959) e Teixeira

(1971), ressonância nas práticas educativas de AA, quando sempre destacam o valor da

mente aberta, boa vontade e honestidade para que a aprendizagem se faça. Nesse momento

mais do que o conteúdo a ser apreendido, o que vem à tona é a postura diante do conteúdo a

ser apreendido, bem como identificar de que maneira o indivíduo lança mão do que

apreendeu, deixando claro nesse momento o valor da educação do sujeito

Quando Dewey (1959), traz a atenção para o valor da educação e o pensamento

reflexivo, onde sua conquista está intimamente ligada a atitudes e escolhas, ele apresenta

como consequência a construção de um indivíduo que tem como prática ser

Intelectualmente Responsável.

Ser intelectualmente responsável é examinar as

consequências de um passo projetado; significa estar disposto

a adotá-las, quando seguem, como de razão, qualquer posição

já tomada. A responsabilidade intelectual assegura a

integridade, isto é, a consistência e harmonia da crença. É

comum ver-se pessoas continuarem a aceitar crenças cujas

consequências lógicas recusam a conhecer. Professam-nas,

56

mas não querem admitir os seus efeitos. O resultado é a

confusão mental (p.39).

A nova aprendizagem referente a um novo modo de vida que acontece nas salas de

AA, tem a atenção voltada para o processo reflexivo e a construção de um indivíduo

intelectualmente responsável, como defende Dewey e mais a frente veremos as

contribuições de Freire (1996) a esse respeito.

2.5 - Paulo Freire - A autonomia ao serviço da liberdade de escolha na prática

pedagógica.

Em Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa, Freire

(1996) traz reflexões valiosas sobre a autonomia e a prática docente, quando destaca que

ensinar não é transferir conhecimentos. Sendo assim, professor e aluno são sujeitos ativos

no processo de ensino e aprendizagem, nessa relação ambos aprendem juntos com o

estímulo a conquista da autonomia. Para ele os sujeitos autônomos são sujeitos críticos,

com maiores possibilidades de apropriação e recriação do conhecimento.

Similar a Dewey, Freire (1996), traz atenção a interrelação entre a prática e a

teoria, como pares essenciais e afirma que a prática sem teoria se torna ativismo e a teoria

sem a prática discurso. A prática precisa ser pensada para ganhar sentido e para que o

processo educacional seja compreendido, de modo que, dessa concepção, a docência seja

vista relacionada a discência. Destaca o autor:

[...] ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos, nem

formar, é ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo

ou alma a um copo indeciso e acomodado. A docência

inexiste sem a discência, o professor não é o detentor do

saber, nem o aluno é destinado a ser apenas um mero

receptor, ambos são sujeitos ativos a sua condição de

aprendentes (p.25).

Ensinar não é um ato mecânico, pronto, é uma questão de construção e requer

metodologia. O docente precisa instigar, inquietar mexer com a curiosidade do seu

educando para que este tenha meios de aprender criticamente. Aqui fica patente a

aprendizagem reflexiva de Dewey e a mediada de Feuerstein.

57

Freire (1996) destaca ainda que o aprender criticamente não se faz através de

transferência, mas da construção, pois é na verdadeira aprendizagem crítica que os

educandos se transformam em sujeitos do processo. Quando os sujeitos passam a olhar o

mundo de modo inquieto e começa a indagar os porquês, há uma promoção da ingenuidade

à criticidade desenvolvendo a curiosidade epistemológica. A crítica faz parte da natureza

humana, ele considera que “somos seres históricos - sociais, nos tornamos capazes de

comparar, de valorar, de intervir, de escolher, de decidi, de romper, por tudo isso, nos

fizemos seres éticos” (p.34). A escola é lugar para formação humana, por isso o pensar

certo é requerido.

O professor precisa ser o que defende, fazer o que se cobra, ser coerente. Aqui a

ressonância novamente com os grupos de AA, quando aquele que coordena os grupos de

estudo têm que necessariamente ter autoridade para isso e essa autoridade diz respeito a

agir como partilha o conhecimento. Essa é a autoridade reconhecida e que dá àquele que

conduz o estudo dos Doze Passos a condição de fazê-lo.

Além de associar seu discurso a sua prática, ter a generosidade para respeitar a

discordância alheia, pois pensar certo exige o risco do novo e ou do respeito ao novo. Para

Feire (1996), faz parte do pensar certo a rejeição de qualquer forma de discriminação. Por

isso o pensar certo é uma ação dialógica que tem que ser produzida entre o fazer e o pensar

fazer. Nos grupos de AA, o que é considerado regra é o fato de que ninguém pode se

colocar fazendo juízo de valor de ninguém e que o comportamento de confronto diante das

diferenças não tem lugar nas salas estudo. Nesse momento a democracia e a liberdade

preconizada por Dewey faz ressonância, no entanto haverá que estar de mãos dadas com o

respeito às diferenças.

No que se refere a necessidade de apontar às demandas a respeito do ato de

educar, Freire (1996) indica que ensinar exige reflexão crítica sobre a prática, quando

destaca: “uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as

condições em que os educandos em suas relações um com os outros e todos com o

professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se” (p.42)

Assumir-se para reconhecerem-se como agente ativo do processo de construção do

seu próprio conhecimento. O primeiro passo do roteiro dos Doze passos diz respeito a esse

58

“assumir-se”, pois traz a atenção para a responsabilidade individual quando do

“reconhecimento da impotência diante da droga”27

.

Freire (1996) defende a necessidade de construir o conhecimento e não transmitir.

Para construir é necessária humildade pois, parte da premissa que o outro vai estar nesse

processo e que o trabalho não é feito sozinho. A consciência real, do inacabado, de que algo

está sempre em constante movimento é a tónica da defesa do autor.

Quando fala sobre o respeito a autonomia do educando, isso naturalmente pede do

professor uma consciência plena de quem se é. Um professor que não tem plena

consciência do seu saber e/ou não saber, não irá conseguir trabalhar com alunos autônomos.

Esses mesmos alunos que ele mesmo estimulou a referida autonomia.

O exercício da autonomia implica em muitos casos discordância do aluno em

relação as práticas do professor, tal ação, faz parte do processo do referido exercício. Se o

professor não está ciente de quem ele é e faz, inevitavelmente entrará em confronto com o

aluno. O estímulo e o exercício da autonomia pedem do professor essa consciência plena de

quem se é, a fim de que a referida autonomia no aluno possa se manifestar em sua inteireza,

independente se na mesma, habita conteúdos considerados corretos ou não.

A famosa frase atribuída ao filósofo e historiador francês Voltaire (1694-1778),

pseudônimo de François-Marie Arouet, que defendia a liberdade de ser e pensar diferente é

capaz de traduzir muito bem a fala de Paulo Freire sobre o exercício da autonomia quando

diz: “Posso discordar daquilo que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito de o

dizer”.

Nos grupos de AA, o respeito a forma de pensar, perceber, entender e conduzir sua

vida é exercida por cada um dos membros. Umas das sugestões é que nenhuma expressão lá

produzida seja de julgamento, enfrentamento, embate ou disputa. O respeito às diferenças é

tônica nas reuniões, haja visto o 3º Passo - ( Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida

aos cuidados de Deus, na forma em que O concebíamos), que se relaciona a questão

espiritual e a ideia de Deus, que se apresenta na forma como cada um entende e percebe

essa entidade.

27

1º passo: Admitimos que éramos impotentes perante o álcool - que tínhamos perdido o domínio

sobre nossas vidas.

59

Como já destacamos anteriormente, mais do que o conteúdo a ser estudado, o

mesmo têm que estar de mãos dadas com a prática. A forma como o aprendente28

faz uso,

lança mão do que foi apreendido é fator intrínseco ao conhecimento adquirido. Semelhante

a Dewey quando diz que não se está vivendo em um momento e em outro momento

ensinando, trazendo assim a atenção para as práticas cotidianas, Freire (1996) diz: “o

mundo não é, ele está sendo” (p.39). Nesse momento coloca cada um como agente do

processo de construção do conhecimento, agentes da sua própria história e por isso capaz

de mudá-la se assim o desejar, par a passo com a teoria e a prática.

2.6 - Anton Makarenko: o coletivo como pedra fundamental.

Makarenko, professor na Ucrânia, país do leste europeu, marcou a história da

educação quando abraçou o desafio de dirigir um colégio interno na zona rural, cheio de

crianças e jovens infratores, muitos órfãos, que não sabiam ler e escrever de 1920 até 1928.

Sua atenção estava voltada para pôr em prática o ensino que privilegiava a vida em

comunidade e a participação da criança na organização da escola. Na sua gestão, concebeu

um modelo de escola baseado na vida em grupo, na autogestão, no trabalho e na disciplina,

contribuindo para a recuperação de jovens infratores.

Sua pedagogia tornou-se conhecida por transformar centenas de crianças e

adolescentes marginalizados em cidadãos. Organizava a escola como coletividade e levava

em conta os sentimentos das crianças na busca pela felicidade. Um conceito que só teria

sentido se fossem para todos. As crianças tinham direitos impensados na época que era de

opinar e discutir suas necessidades no universo escolar.

Luedemann (2002), aponta para a contribuição valiosa de Makarenko quanto a

forma de ver e tratar as crianças, quando destaca em seu livro: “foi a primeira vez que a

infância foi encarada com respeito e direitos” (p.117). Mais do que educar com rigidez e

disciplina ele quis formar personalidades conscientes principalmente com seu papel social e

coletivo, preocupados com o bem-estar do grupo e solidários.

28

Termo utilizado por Freira para designar àqueles que estão em situação de aprendizagem, seja alunos ou professores.

60

A ideia do coletivo preconizada pelo autor, no entanto, se opõe a visão massificada

e que despersonaliza a criança. O grupo estimula as individualidades no sentido de seu

desenvolvimento e a noção de coletividade trazia juntamente a noção de responsabilidade,

já que tudo estava interligado e todos dependiam de todos. Como exemplo, o trabalho

coletivo em oficinas que era amplamente estimulado.

A noção de responsabilidade, cumprimento de planejamento e metas construídas

coletivamente davam o norte do processo de construção da aprendizagem. Se houvesse

punição pelo não cumprimento das regras essas eram aplicadas depois de muita discussão

entre alunos e professores, sendo decididas assim conjuntamente.

Makarenko publicou em 1938 de forma incompleta o Livro dos Pais, onde tinha o

objetivo de mostrar a importância da participação da família na escola e na vida dos alunos.

Os pais que não conseguiam educar seus filhos deveriam ser reeducados por essa escola.

Criticava os pais “melosos” ou “ausentes”, dizendo que dessa forma seriam incapazes de

educar uma pessoa forte, madura e inteligente.

Para ele os alunos devem ter voz. A eles eram dados o direito de voto nas decisões

que diz respeito a sua dinâmica social e escolar onde transitavam. O espírito de grupo e

noção do valor da coletividade eram a tônica desse valioso educador. Apesar do olhar e

atenção para os direitos das crianças e liberdade para opinar, votar em assembleias para

decisões da própria escola, Makarenko também dava grande valor a disciplina e

questionava o excesso de permissividade. Aqui a noção de equilíbrio entre limites e

liberdade é que se apresenta como um grande desafio, no que se refere a poder mensurar,

dentro da teoria de Makarenko.

Em seu livro Poema Pedagógico, Makarenko (1975) escreve como que um diário

de campo, onde cada capitulo se destina a determinada circunstância vivenciada no período

em que era diretor do colégio interno. No referido livro as lições que o autor pretende

ensinar se fazem presentes na prática do seu dia a dia, no modo como conduz cada situação.

A exemplo, quando no início do seu trabalho na escola, entrando em contato com o antigo

funcionário que atendia pelo nome de senhor Kalina Ivanovitc, um contato um tanto tenso e

cheio de ruídos de comunicação no primeiro momento, o autor descreve: “Kalina Ivanovitc

61

tornou-se o primeiro objeto da minha atividade educadora. O que sobretudo me tornava a

tarefa difícil era encontrá-lo atafulhado das convicções mais diversas” (p.24).

Uma clara indicação de como o autor via a educação. O quanto seu olhar estava

voltado para as práticas cotidianas, assim como Dewey e como a educação se podia fazer

em qualquer ambiente e situação, trazendo nesse momento a transcendência da prática

educativa.

Autogestão, assembleia de turma, praticas cotidianas sendo valorizadas,

responsabilidade social e da coletividade, bem-estar do grupo, direito a voto, educação em

qualquer espaço etc, são elementos trabalhados diariamente nos grupos de AA durante seu

processo de educação do sujeito, assim como defendia Makarenko.

2.7 - Educação do Sujeito e Formação Humana

O processo de construção humana passa por várias eras conhecidas a exemplo

como sendo: a era da informação, da tecnologia e do conhecimento. Hoje esse

conhecimento pede criticidade, seleção, empoderamento e decisão. Um olhar coletivo e ao

mesmo tempo individual e singular, trazendo uma construção do sujeito de forma integral,

em todas as suas dimensões. Como destaca Boff (2003), é preciso pensar diferente e agir

diferente. Pensar outro modo de vida, valores e forma de convivência, ter a educação a

serviço da formação humana e educação moral.

Morin (2013) traz a atenção para o que chama de Antropoética (a ética em escala

humana), salienta que em nenhum lugar nos é ensinado a compreender os outros. Isso vai

mais além do que entender o ser humano não só como objeto, mas também como sujeito. É

a proposição de um trabalho coletivo, e o ensinar a compreender, destacado pelo autor,

carece de lugar para ser realizado.

Boff (2003) traz a atenção para o que chama de crise da perca de sentido e da

necessidade de filosofar no sentido de pensar a vida e como Morin (2000) sua crítica se

debruça ao homem como sujeito e não objeto e descreve que, no sistema capitalista em que

vivemos, o que se ama no indivíduo e a cabeça, os músculos etc. Não a pessoa, mas o que

nele pode virar mercadoria e nesse caso importante lembrar que existem coisas que tem

62

valor, mas não têm preço. Se faz necessário então, para falar sobre os problemas da

humanidade, ter uma visão sistêmica29

. Nesse momento a abordagem multidisciplinar no

processo de aprendizagem da filosofia dos Doze Passos nos grupos de AA, têm feito seu

papel. Sobre a necessidade de construção humana do sujeito, Tonet (2005) destaca:

[...] percebemos que não nascemos humanos, nos tornamos. É

nesse momento que descobrimos a natureza e a função social

da educação. Cabe a ela, aqui conceituada num sentido

extremamente amplo, a tarefa de permitir aos indivíduos a

apropriação dos conhecimentos, habilidades e valores

necessários para se tornarem membros do gênero humano

(p.25).

O grande desafio dos nossos dias é articular a educação e formação humana,

dentro de uma sociedade de consumo como a nossa atualmente. Questões e valores

subjetivos em que a filosofia e em certo grau a educação do sujeito se debruça. A educação

para a vida passa a ser o foco central nesse processo de construção humana.

Pestalozzi (1969), lança luz sobre o valor da educação moral quando escreve:

“...sou feito das forças físicas, sociais e morais. A primeira advém de minha natureza

animal; a segunda de minha associação com meus iguais; mas a terceira vem somente de

meu interior quando empenhado na virtude” (p.15).

Quando a irmandade de AA diz da prática do programa como sugestão e não a

obrigação, quanto sugere tomar essa ou aquela ação com o objetivo de obter determinado

fim, no caso a sobriedade, os conceitos de Kant (2006) fazem ressonância quando descreve:

Como, no entanto, o uso dos meios não tem outra necessidade

senão aquela que é atribuída ao fim, então todas as ações, que

a moral prescreve sob a condição de certos fins, são,

entretanto, acidentais e não podem ser designadas

obrigatoriedades enquanto não forem subordinadas a um fim

necessário em si.[...] fiquei convencido de que a regra “ faz o

mais perfeito que através de ti é possível” é o primeiro

princípio formal de toda obrigação de agir, assim como a

proposição “ abandona aquilo através do qual a maior

perfeição possível realizada por ti seja impedida”, é o

princípio formal em relação ao dever de se abster ( p. 103).

29

Consiste na habilidade em compreender os sistemas de acordo coma abordagem da teoria geral dos sistemas, ou seja, ter conhecimento do todo, de modo a permitir a análise ou a interferência no mesmo.

63

Kant (2006), quando se refere às regras de comportamentos que considera

importante a ser exercida pelo professor quanto ao processo de educar, saliente em seu

texto o valor de exercer uma ação educativa voltada para uma educação para a vida e para

a autonomia:

Por conseguinte, a regra de comportamento é esta: em

primeiro lugar, amadurecer o entendimento e acelerar o seu

crescimento, na medida em que o exercitamos em juízos de

experiências e o tornamos atento àquilo que lhe podem

ensinar as impressões comparadas dos sentidos. [...] Em

resultado, ele não deve aprender pensamentos, mas sim a

pensar; não devemos carrega-lo, mas sim conduzi-lo, se se

quiser que ele esteja apto, no futuro, a caminhar por si mesmo

(p.115).

Sobre a questão da necessidade de ter boa vontade, tão falada nos grupos de AA,

para que o processo de aprendizagem se faça, destaca Kant (1960) “...esta vontade não será

na verdade o único bem nem o bem total, mas terá de ser, contudo, o bem supremo a e a

condição de tudo o mais, mesmo de toda a aspiração de felicidade” (p.20).

No que se refere a questão da capacidade de julgar, condição importante para

tomada de decisões, saber julgar que caminho ou práticas tomadas, serão ou não valiosas

para o processo de recuperação, é algo que não se ensina. Kant (1980) destaca quando

afirma que “ o entendimento é capaz de ser instruído e abastecido por regras, mas que a

capacidade de julgar é um talento particular, que não pode ser ensinado, mas somente

exercitado” (p.102).

Nesse momento fica claro a importância da prática cotidiana para o fortalecimento

do conhecimento, com o papel de corroborar ou não com as teorias apresentadas como

afirma Dewey (1959) e Freire (1996), bem como o valor da experiência que fortaleça e

contribua para uma aprendizagem significativa ao longo da vida. Nesse aspecto a

UNESCO (1996) destaca como sendo essa educação a porta de entrada no século XXI.

Azevedo (2006), destaca:

64

Uma educação que já não se resume às escolas, que já não se

acantona na infância e na juventude, uma educação que já

não se confunde com o ensino. O que está em jogo é

aprender, aprender a todo tempo, em todo lugar e ao longo do

tempo de toda a vida, com a vida, porque este aprender é a

prender a ser. [...] não é só fomentar a aquisição de saberes,

mas também o desenvolvimento de competências, a aquisição

de novas atitudes, de novos comportamentos, novos modos

de vida em comum. O objetivo central do ensino-

aprendizagem não será a emissão de diplomas, mas a

construção lenta e quotidiana, responsabilidade de todos, de

formas superiores de vida comum (p.10).

É nessa perspectiva que a educação em saúde aplicada nos grupos de AA se

debruça, com a educação do sujeito. Um lugar onde se vai mais longe do que os currículos

propõem, se vai mais longe do que ensinar a se mover para viver abstêmio e sim viver

sóbrio. É uma aprendizagem para a vida, pois como os membros dos grupos de AA

destacam; viver sóbrio é diferente de viver abstêmio. Você pode estar abstêmio, mas são

está e ser sóbrio e a sobriedade é o grande objetivo dos que se encarceram na dependência

química, e nisso Azevedo (2006), destaca; “ é aprender a acolher o outro, aprender a

desenhar e fortalecer os laços humanos que, por mais débeis que sejam, são os espaços e

tempos que podem dar sentido à vida” (p.11).

Como recomenda a UNESCO (1996), a ideia central para a educação está em

ajudar cada um a conhecer-se, a conhecer o outro e a transformar a “interdependência real”

entre as pessoas em “ solidariedade desejada”. Não se trata de um discurso romântico e

irreal, é na verdade uma necessidade premente nos dias de hoje, características da

“modernidade líquida”, conceito tão discutido atualmente e trazido por Bauman (2003),

onde a liquidez, a incerteza, a fluidez, volatilidade e a insegurança são a tônica. As

constantes transformações, características do nosso tempo, assim como aponta o autor,

pede uma mudança também de paradigmas no que se refere as questões da educação do

sujeito, esse sujeito que está se movendo em uma sociedade líquida.

Quando a esse processo de aprender a ser, Azevedo (2007) chama de

“aprendente”, relaciona a importância das relações, bem como um espaço onde essa

aprendizagem se faz. Identificamos nitidamente as especificidades apontadas pelo autor,

65

acontecer nas salas de AA, com destaques para o trabalho em grupo, fortalecimento de

vínculos e interesses em comum.

[...] ninguém aprende a ser sozinho. A comunidade de

aprendizagem é uma longa mesa posta (e sempre posta), feita

de relações e de instituições fortes, de acordos, associações

de interesses e compromissos, projetos conjuntos, vínculos

sociais fortes, onde todos têm um lugar, independentemente

da sua idade. Do seu sexo, da sua origem social e do seu nível

de escolarização (p12).

O que se vê é uma ação socioeducativa que se desenvolve na comunidade - a

comunidade de aprendizagem que os membros do AA estão inseridos, em uma clara

manifestação da necessidade premente de se construir como sujeito pleno e apto para a

vida de significados.

66

SÍNTESE GERAL

Foi nossa intenção, ao abordar as temáticas dos capítulos 1 e 2, darmos a conhecer

no primeiro momento a problemática da dependência química, em especial o alcoolismo,

sua dimensão, complexidade e efeitos nocivos quer em escala individual como social.

Juntamente com a referida problemática, trazer a lume as estratégias educativas

desenvolvidas por uma associação de anônimos, os Alcoólicos Anônimos – AA, que há

cerca de 81 anos têm apresentados significativos resultados em detrimento de tantos

investimentos científicos, medicamentoso e psicoterápico. Apresentando nesse contexto o

processo de educação em saúde oferecido pelo programa de estudo sistematizado da

filosofia dos Doze Passos, desenvolvido pela referida associação, bem como a sua práxis

nas salas de AA.

Em um segundo momento nos debruçámos sobre a educação do sujeito, aspecto

desenvolvido nas salas de AA, e articulámos com os teóricos das ciências da educação que

oferecem subsídios para a referida prática. Destacámos as contribuições de quatro teóricos

que entendemos alinham com as práticas educativas de promoção da saúde eda educação

do sujeito nas salas de AA como: Feuerstein (1994), com a educação mediada, Dewey

(1959) com a tenção voltada a liberdade e a prática, Freire (1996), com a pedagogia da

autonomia, os diversos saberes e a criticidade e Makarenko (1975), com a defesa do

coletivo e assembleia de turma.

A fim de oferecer contribuições acerca do estudo em questão, considerámos

fundamental a articulação com o estudo empírico, ouvindo os sujeitos ativos desse

processo educativo, que são os coordenadores do estudo sistematizado dos Doze Passos

nas salas de AA em Portugal e no Brasil. Dessa forma acreditamos que poderemos além de

dar a conhecer as práticas educativas e estratégias pedagógicas existentes nessas salas,

também oferecer contribuições significativas para outros cenários de aprendizagem.

67

CAPÍTULO 3 – ESTUDO EMPÍRICO

3.1- Preâmbulo

Neste capítulo debruçamo-nos sobre o estudo empírico, descrevendo os primeiros

encontros com os membros do AA, bem como encontros com os pesquisadores na área.

Apresentamos a metodologia da pesquisa e os participantes do estudo. Fazemos, ainda,

considerações sobre o levantamento dos dados de cada entrevista referente à percepção e ao

entendimento dos coordenadores de grupo de estudo da filosofia dos Doze Passos para a

educação e controle do adoecimento da dependência química, em especial o alcoolismo.

Finalizamos com a análise e discussão dos resultados.

3.2- Metodologia da pesquisa

Esta investigação é uma pesquisa qualitativa que utilizou como instrumento para

a coleta de dados a entrevista direta com perguntas semiabertas. Foram entrevistados um

total de dez coordenadores do estudo da filosofia dos Doze Passos nos grupos de

Alcoólicos Anônimos, sendo cinco do Brasil e cinco de Portugal, no que se refere aos

aspectos educativos do estudo da filosofia dos Doze Passos nos referidos grupos.

A recolha dos dados foi feita, com os coordenadores portugueses, através de

entrevistas, tendo um guião previamente construído para tal fim, e quanto aos

entrevistados brasileiros, a coleta dos referidos dados também seguiu o mesmo guião,

mas o procedimento utilizado foi por escrito, via e-mail, em virtude da limitação do uso

da ferramenta tecnológica Skype, anteriormente planejada.

A entrevista está dividia em três blocos de perguntas, estando o seu foco centrado

em: a) o perfil dos coordenadores, como cada um sente, entende e percebe a sua função;

b) a questão do estudo dos Doze Passos; c) a importância e as especificidades que os

coordenadores atribuem ao estudo e ao grupo.

68

No que se refere ao perfil dos coordenadores, fizemos o levantamento relativa a

idade, tempo de coordenação, escolaridade, número de participantes do grupo

coordenado, postura e pré-requisitos para coordenar. Quanto à função de coordenar,

listámos como cada um entende e designa a sua função, como afeta e é afetado pelo

grupo e sobre as diferenças de compreensão do conteúdo quando coordena e quando é

coordenado. Sobre as questões do estudo, levantámos as diferenças entre fazê-lo em

grupo e individualmente, o uso da literatura e livros de destaque, os pré-requisitos para a

aprendizagem e fatores que facilitam o entendimento do estudo. Finalmente no que se

refere ao grupo, levantámos as contribuições do mesmo para a aprendizagem, fatores de

êxito do estudo em grupo, bem como os aspectos importantes das dinâmicas nas salas de

AA.

Em termos de procedimentos, começámos por recolher os dados dos

entrevistados portugueses, seguidos dos entrevistados brasileiros. Na continuidade

fizemos a análise dos dados, articulando com os teóricos das ciências da educação que,

entendemos, oferecem subsídios valiosos para a referida prática educativa nas salas de

AA. Finalmente procedemos às nossas conclusões, tendo por objetivo a formulação de

hipóteses para oferecer recomendações da sua aplicabilidade em outros cenários

pedagógicos e em especial nas salas de aula.

3.3- Participantes no estudo

Nesse ponto incluímos todos os participantes que de forma direta e menos direta

contribuíram para este estudo. De forma indireta obtivemos as contribuições do grupo de

Alcoólicos Anônimos - AA da freguesia dos Anjos em Lisboa, e de informantes chave

como o médico psiquiatra Dr. Domingos Neto, dedicado ao tratamento de álcool e outras

drogas, a doutora e pesquisadora em antropologia, Catarina Frois, que investigou sobre a

dependência, estigma e anonimato nas associações de Doze Passos, bem como três

membros de Alcoólicos Anônimos, sendo um de Portugal, um de Angola e outro do Brasil.

Com os participantes de forma direta, fizemos uma entrevista a dez coordenadores

do grupo de estudo dos Doze Passos nas salas de Alcoólicos Anônimos, sendo cinco de

69

Portugal e cinco do Brasil. Iniciámos o estudo com as entrevistas aos coordenadores de

grupo de estudo nas salas de AA em Lisboa.

Concomitante às pesquisas em Portugal, fizemos os contatos com os

coordenadores de grupos de estudo da filosofia dos Doze Passos nas salas de AA no Brasil,

com a ajuda de um dos membros da irmandade no Brasil, a fim de realizar a referida

investigação, dessa vez por Skype. Durante o processo de investigação, no que diz respeito

ao Brasil, ficou patente a dificuldade em obtermos as referidas entrevistas via Skype, pois

esta ferramenta, para muitos dos coordenadores de grupo, se transformava em um

impedimento quanto à habilidade do seu uso. Por esse motivo optou-se por recolher os

referidos dados enviando as perguntas das entrevistas para que os mesmos respondessem

por escrito e enviassem via e-mail. Assim ocorreu e, finalmente, todos os dados

necessários foram colhidos.

3.3.1- Informantes chave

Os informantes chave aqui apresentados esclarecem algumas particularidades a

respeito dos caminhos que a investigação pode tomar, oferecendo, em muitos casos, um

valioso norte para o processo de pesquisa. Foi assim que obtivemos o contato e marcámos

um encontro com o Dr. Domingos Neto, renomado professor e psiquiatra responsável pela

implantação do Modelo Minnesota bem como a filosofia dos Doze Passos em Portugal.

Dr. Domingos Neto nos recebeu em seu consultório, onde em uma breve conversa

pudemos conhecer um pouco mais sobre o seu trabalho com a dependência química e um

pouco da sua história sobre o contato com o Modelo Minnesota e o estudo dos Doze

Passos, que se iniciou por volta do ano de 1986. O Dr. Domingos Neto informou-nos que,

nessa oportunidade, em uma comunidade terapêutica dirigido por ele, foi procurado por um

membro do AA que, naquele momento, fazia o pedido para usar o espaço a fim de realizar

reuniões da irmandade de AA, para estudo, ao que ele acedeu. No entanto o Dr. Domingos

Neto confessou que, na altura, lançava um olhar de descrédito quanto ao AA, bem como se

sentiu intrigado em ver um homem tão bem vestido se dizer alcóolatra em recuperação,

olhar esse bem diferente atualmente.

70

Foi em contato com a realidade dos grupos de AA, a partir desse encontro, que o

Dr. Domingos Neto, dez anos depois, em 1996, se desloca aos Estados Unidos da

América a fim de entrar em maior contato com o Modelo Minnessota e a filosofia dos

Doze Passos. De volta a Portugal, cria o Centro de Alcoologia de Lisboa e a sua trajetória

se apresenta cada vez mais consistente, oferendo um valioso contributo para a questão da

drogadição em Portugal. Questionado por nós sobre a sua visão a respeito dos aspectos

pedagógicos do estudo do programa dos Doze Passo nos grupos de AA, o mesmo

afirmou que, para ele, o referido programa não se reduz a um modelo psicopedagógico,

porque ele é muito maior que isso.

Em outra oportunidade, estivemos em Angola por três meses e aproveitámos a

para entrar em contato com os grupos de AA em Luanda. Tomámos conhecimento que na

Igreja da Sagrada Família, no centro de Luanda, existia um grupo que lá se reunia.

Através do endereço eletrônico do AA em Angola, entrámos em contato com um membro

do grupo que prontamente marcou um encontro conosco para uma conversa informal.

Importante destacar a facilidade de entrar em contato e a inteira disposição dos membros

em ajudar no que fosse possível, quando o assunto diz respeito aos grupos de AA. E

notória a atenção e a disposição de ajudar seja em que continente for, americano, europeu

ou africano pelos seus membros, a qualquer um que os procure.

O membro do grupo que neste estudo é designado por o nome fictício de João se

colocou ao nosso inteiro dispor. Ele, um trabalhador braçal em uma construção de um

centro comercial perto de onde residíamos, se prontificou em nos encontrar ao lado do

canteiro de obras, ao final do expediente.

Conforme a sua narrativa, Luanda contava com apenas dois grupos de AA, que os

mesmos eram pequenos, cerca de 4 a 6 membros, e que o primeiro grupo de AA em

Luanda se iniciou no ano de 2007. Fácil verificar o quanto esse grupo tem tido

dificuldade de crescer pois, nove anos depois, continua com o mesmo cenário frágil. No

entanto os que ali estavam, conforme nos relatava, eram quase sempre os mesmos, não

havendo novos membros.

Quando colocámos o assunto do processo de aprendizagem nesses grupos, ele se

antecipou para falar do nível de analfabetismo em Luanda, o que nos trouxe a impressão

71

de ser esse um dos elementos fundamentais para a pouca representatividade da

irmandade de AA em Angola.

Voltando a Portugal e a fim de iniciar o processo de investigação empírica com as

entrevistas, entrámos em contato telefônico com o AA de Lisboa e solicitámos um

encontro com algum membro a fim de poder explicar e apresentar o referido trabalho

investigativo e o pedido de ajuda nessa questão. Depois de alguns telefonemas e

encaminhamentos, fomos recebidas por uma distinta senhora, um membro de AA de

Lisboa, para uma conversa informal, como o objetivo de averiguar a possibilidade de

fazer um levantamento sobre os que poderiam ser objeto da nossa investigação. Em nossa

conversa sobre ser membro do AA e seu percurso, algo em especial nos chamou a

atenção, no decorrer da conversa, que descrevemos a seguir:

Quando eu entrei no AA, eu tinha algo muito forte em mente,

eu dizia: quero minha vida de volta, quero voltar a minha

vida antes de eu me tornar o que tornei uma alcoólatra, esse

era meu objetivo. Com o tempo fui descobrindo que não era

mais essa vida que eu tinha antes de me tornar uma alcoólatra

que queria de volta, essa vida também não era a melhor.

Queria a vida que tinha agora. Essa vida depois de passar

pela experiência do alcoolismo, é que é verdadeira vida!

A reflexão dessa senhora, quanto à sua vida antes e depois da experiência do

abuso do álcool, nos levou a Swora (2004) quando diz:

Para muitos membros, o alcoolismo torna-se uma “doença

divina”; os membros veem o seu alcoolismo como algo que

os conduziu a uma vida melhor e mais significativa do que

teriam tido caso não tivessem sido alcoólatras (p.206)

Ainda no processo de investigação do tema, entrámos em contato com a

publicação da Doutora em Antropologia Cultural e Social no Instituto de Ciências Sociais

da Universidade de Lisboa, Catarina Frois. O seu trabalho de investigação foi desenvolvido

junto das associações de Doze Passos em Lisboa, Portugal. Por e-mail, solicitámos uma

oportunidade para nos encontrar, para uma conversa mesmo que informal sobre o tema, do

qual se prontificou de imediato para um encontro ainda na mesma semana. Reunimo-nos

72

no Instituto Universitário de Lisboa- ISCTE, em um encontro rápido, mas proveitoso. Nos

falou sobre o seu trabalho de investigação e suas impressões sobre a investigação

desenhada por nós até àquele momento. Corroborou em grande parte com o nosso

raciocínio sobre educação em saúde e os caminhos por nós percorridos. Chamou a atenção

para o fato de que devemos estar muito atentos aos discursos dos entrevistados a fim de

observar as nuanças e subtextos neles contidos.

3.3.2- Coordenadores de grupo de estudo do AA

Os coordenadores de grupo de estudo dos Doze Passos nas salas de alcoólicos

Anônimos são o centro da pesquisa. Foram escolhidos os coordenadores de grupos pois

eles são os membros dos alcoólicos Anônimos que estiveram no papel de receptores /

estudantes do programa de estudo dos Doze Passos e depois passaram a exercer a função de

coordenadores do mesmo estudo do qual foram receptores/estudantes. São homens e

mulheres numa faixa etária que varia entre 40 e 70 anos, na sua maioria com escolaridade

de nível superior e com cerca de 10 anos na função de coordenação de grupo.

3.4 - Considerações sobre o levantamento dos dados das entrevistas.

Nas entrevistas foram investigados aspectos relacionados com o perfil dos

coordenadores, a função de coordenar o grupo, questões referentes ao estudo e ao grupo.

Apresentaremos a seguir os dados de cada um desses aspectos, sendo no primeiro momento

referente aos entrevistados portugueses, a que se seguem os entrevistados brasileiros. No

final apresentamos uma comparação e conclusão dos referidos dados (ver Anexos).

Quanto aos entrevistados portugueses foi possível observar o seguinte:

1- No que se refere ao perfil dos coordenadores de grupo, os mesmos têm entre

45 e 70 anos, 60% deles são do gênero feminino, têm uma média de 10 anos de

coordenação e o nível de escolaridade na sua maioria é licenciado. Coordenam em média

10 membros no grupo e destacam como perfil ideal para coordenar serem assertivos, não

protagonistas, empáticos, honestos, conhecer e ter experiência no assunto a ser trabalhado,

gostar de ler, ter boa vontade, conhecer as tradições, ter respeito e saber ouvir o outro.

73

2-No que se refere à função do coordenador de grupo nas salas de AA, descrevem

como entendem a referida função como sendo a de orientar, motivar as pessoas a seguir o

programa, conduzir o tema sem se sobressair ao assunto, dar a conhecer o programa de

forma clara e sem imposição. Em relação a afetar e ser afetado durante o processo de

estudo dos passos, todos são unânimes em dizer que o afetar e o ser afetado está

intimamente relacionado com a identificação que vierem a ter de cada partilha feita nos

grupos, quer seja uma identificação positiva ou negativa. No que se refere à existência ou

não de diferenças de compreensão do conteúdo quando estão a coordenar e quando se é

coordenado, todos concordam que sim. Descrevem alguns aspectos que consideram

relevantes como o fato de ao elaborar o raciocínio, bem como quando estudam para

coordenar um tema, o aprendizado se faz de forma mais efetiva e por isso o ato de

coordenar favorece mais o aprendizado, pois o comprometimento com o tema a ser

estudado é maior.

3- Quando respondem sobre as questões referente ao estudo dos Doze Passos, a

totalidade dos entrevistados concordam que estudar em grupo os referidos temas é de maior

valor do que individualmente, e atribuem esse valor ao fato de que, durante esse processo, a

partilha das experiências enriquece e facilita o entendimento dos temas estudados. Quando

falam sobre a literatura, descrevem o modo como cada um faz uso da mesma e 90% dos

entrevistados destacam o livro “Viver Sóbrio” como sendo o de maior importância para a

sua recuperação, seguida do livro “Alcoólicos Anônimos”. Referente aos pré-requisitos

necessários para facilitar o entendimento do estudo dos Doze Passos, 90% afirma que é

necessário ter boa vontade, humildade e mente aberta. No que se refere aos fatores que

consideram ser imprescindíveis para o entendimento do que é estudado, destacam o

respeito, as partilhas das experiências, o espírito de grupo e a crença de que se uns

conseguiram eles também podem conseguir, trazendo ali a questão da esperança.

4-Referente às questões relacionadas com o grupo, destacam que as contribuições

para o aprendizado se dão quando do sentimento de integração e pertença, um lugar onde se

pode expressar sem ser criticado, onde se pode ser ouvido e ouvir respeitosamente e

74

aprender com as experiências de todos. Quando questionados sobre os fatores que

consideram responsáveis pelo grande êxito do grupo, destacam como sendo o fato de terem

um programa simples de vida aplicado ao cotidiano, um programa de estudo constante onde

há o exercício dos passos e o cumprimento do programa. Outro destaque se refere ao fato

de ter um alcoólatra, um igual, conduzindo o estudo em grupo. No que se refere aos

aspectos importantes da dinâmica nas salas de AA, são destacados o fato de não haver

obrigatoriedade e sim sugestões, o fato de todos poderem e serem estimulados a falar, a

questão da ordem das intervenções e o respeito pela partilha de cada um, contribuindo

assim para o aprendizado do ouvir.

Quanto aos entrevistados brasileiros foi possível verificar os seguintes

elementos:

1-No que se refere ao perfil dos coordenadores de grupo, os mesmos têm entre

45 e 70 anos, 90% deles são do gênero masculino, têm uma média de 5 anos de

coordenação e o nível de escolaridade na sua maioria é licenciado. Coordenam em média

15 membros no grupo e destacam como perfil ideal para coordenar serem membros do AA,

ter experiências no serviço, ter liderança e ser facilitador, não monopolizar, saber manter a

ordem, ser sereno, ter conhecimento da literatura e saber encaminhar as questões na sala.

2- No que se refere a função do coordenador de grupo nas salas de AA, descrevem

como entendem a referida função como sendo a de passar o conhecimento do AA, acreditar

no programa, mostrar a aplicação na vida cotidiana, realizar um serviço para a irmandade e

liderar como serviço de ajuda. Em relação a afetar e ser afetado durante o processo de

estudo dos passos, todos são unânimes em dizer que o afetar e o ser afetado está

intimamente relacionado com a identificação que vierem a ter de cada partilha feita nos

grupos, onde a experiência é a grande mola propulsora na narrativa das histórias de vida.

No que se refere se à existência ou não de diferenças de compreensão do conteúdo, quando

estão a coordenar e quando se é coordenado, todos concordam que sim, há diferenças

valiosas quando o fazem em grupo. Descrevem alguns aspectos que consideram relevantes

como a troca de experiência, a comparação de antes e depois de aplicarem o programa, o

75

amadurecimento quando desenvolvem a escuta ativa e com isso a capacidade de aceitação e

empatia com o outro, facilitando assim o desenvolvimento individual e em grupo.

3- Quando respondem sobre as questões referente ao estudo dos Doze Passos, a

totalidade dos entrevistados concorda que estudar em grupo os referidos temas é de maior

valor do que individualmente, e atribuem esse valor ao fato de que, durante esse processo, a

partilha das experiências enriquece e facilita o entendimento dos temas estudados.

Destacam questões como: identificação com o outro, aprofundamento e melhor

compreensão da literatura quando em grupo. Quando falam sobre a literatura, descrevem o

modo como cada um faz uso dos mesmos e 80% dos entrevistados destaca o livro “Viver

Sóbrio” como sendo o de maior importância para a sua recuperação, seguida do livro

“Alcoólicos Anônimos”. Referente aos pré-requisitos necessários para facilitar o

entendimento do estudo dos Doze Passos, 90% afirma que é necessário ter boa vontade,

humildade e mente aberta, e 10% acrescenta a necessidade de se ter fé no futuro. No que se

refere aos fatores que consideram ser imprescindíveis para o entendimento do que é

estudado, destacam o fato de ser um serviço gratuito e haver o estímulo para dar de graça o

que receberam de graça. Outro ponto diz respeito ao fato de ser ele um programa de vida

simples com práticas cotidianas, bem como o fato de ser dirigido por outro alcoólatra.

4-Referente as questões relacionadas com o grupo, destacam com grande ênfase o

valor do mesmo para a recuperação. Relatam o valor das narrativas e da dinâmica com as

trocas de experiências que trazem identificação e fazem crescer individualmente. Quando

questionados sobre os fatores que consideram responsáveis pelo grande êxito do grupo,

destacam como sendo o fator preponderante a unidade do grupo, o aprofundamento dos

conhecimentos de forma constante e o ouvir e passar adiante exercendo o que sugere o 12º

passo. No que se refere aos aspectos importantes da dinâmica nas salas de AA, 90%

menciona o fato de poderem se expressar sem se sentirem julgados ou interrompidos; outro

destaque diz respeito a haver várias formas de levar a mensagem.

76

.5- Análise e discussão dos dados

A apresentação dos quadros abaixo segue uma estrutura por categoria e

subcategorias, conforme guião de perguntas das entrevistas. Os dados estão tratados por

percentual e a partir da análise dos entrevistados portugueses e brasileiros.

Relativamente ao perfil dos coordenadores, não iremos nos deter aos dados

quantitativos dos entrevistados, mas analisaremos com atenção a subcategoria que diz

respeito ao entendimento dos coordenadores e aos requisitos necessários para a prática de

coordenação nas salas de AA, pois endentemos que a referida subcategoria nos oferece

subsídios teóricos significativos para a nossa investigação.

Quadro 1- Perfil dos Coordenadores

ATEGORIA SUBCATEGORIAS INDICADORES/ MÉDIA

Perfil

Dos Coordenadores

- Idade e Gênero

Entrevistado Português Entrevistado Brasileiro

- 55 Anos.

- 80% Feminino.

-50 Anos.

- 90% Masculino.

- Tempo de Coordenação - 13 Anos. - 4 Anos.

- Nível de escolaridade - Licenciado. - Licenciado.

-Nº de participantes da

reunião que coordena - 10 -16

- Requisitos para

coordenar

- 40% ser assertivo e ter

experiência, ter boa vontade

e conhecer o assunto.

- 30% saber ouvir.

-30% outros

- 60 % ter conhecimento

- 40% ser facilitador

No que se refere ao perfil dos coordenadores, os entrevistados portugueses têm no

gênero feminino a sua maioria, e uma média de idade de 55 anos. Apresentam um tempo

médio de 13 anos de coordenação com nível de escolaridade de licenciado. Têm um

número médio de dez participantes por reunião e destacam, como requisitos importantes

77

para coordenar, características como ser assertivo, ter experiência, boa vontade, conhecer o

assunto e saber ouvir.

Importante perceber o que os coordenadores de grupo de estudo português

apontam como sendo requisito necessários para coordenar. Quase que a metade deles

destacam características como ser assertivo, ter experiência, boa vontade e conhecer o

assunto. A questão da experiência é o grande elemento, o que nos leva para Dewey (1959) e

o valor atribuído por ele à experiência para um aprendizado significativo.

No que se refere ao perfil dos coordenadores, os entrevistados brasileiros têm no

gênero masculino a sua maioria, e uma média de idade de 50 anos. Apresentam um tempo

médio de 4 anos de coordenação, com nível de escolaridade de licenciado. Têm um número

médio de dezesseis participantes por reunião e destacam como requisitos importantes para

coordenar, ter conhecimento do que está a falar e ter habilidade em facilitar o grupo.

Nesse aspecto os coordenadores brasileiros chamam a atenção para o conhecimento

do assunto e em especial ao modo de trabalhar esse conhecimento, trazendo o foco para a

ação, bem como de se ter habilidade de facilitar a aprendizagem dentro da sala. Nesse

aspecto a teoria de Feustain (1994), Experiência de Aprendizagem Mediada – EAM,

cumpre o seu papel, em especial a mediação de intencionalidade e reciprocidade.

Fazendo uma análise comparativa do quadro do perfil dos coordenadores

portugueses e brasileiros no que se refere a idade e o gênero foi possível observar, em nossa

amostra, que as mulheres são a maioria em Portugal, diferente do Brasil, onde os homens

são a maioria, embora tanto o portal PORDATA30

em Portugal , como o IBGE31

no Brasil,

acuse a maioria da população feminina. Concomitante a isso a idade média das mulheres

em Portugal é um pouco mais acima da idade média dos homens no Brasil. Fator ao que

nos parece previsível quando studos apresentados pela OMS32

em 2014 apontam Portugal

como fazendo parte do ranking dos dez países onde as pessoas vivem mais tempo, e

somando a isso, o fato das mulheres portuguesas terem uma maior expectativa de vida. No

entanto pesquisas realizadas tanto em Portugal, pela World Health Statistics 2014, como no

30

PORDATA é uma base de dados sobre Portugal contemporâneo com estatísticas oficiais e certificadas. Todas as suas informações provêm de entidades oficiais como Instituto Nacional de Estatística ou Eurostat. 31

IBGE- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. 32

OMS – Organização Mundial da Saúde.

78

Brasil, pelo Ministério da Saúde em 2010, apontam para o aumento considerável do

número de mulheres dependentes do álcool.

Importante ponderar o porquê de nos dois países haver mais mulheres que homens,

e concomitante a esse dado o de que elas têm aumentado também em número no que se

refere ao abuso de álcool, porque no Brasil o número de coordenadores do gênero feminino

é menor, levando em conta o fato de que, historicamente, as mulheres são mais dedicadas a

questões referentes ao ensino. Entendemos que uma pesquisa antropológica com atenção

voltada para a questão do gênero e a relação com o preconceito de que a mulher também

detém na problemática do alcoolismo, pode vir a responder a essas questões.

No que se refere ao tempo dedicado ao serviço de coordenação, há uma distância

considerável de tempo; enquanto em Portugal há uma média de 13 anos, no Brasil o tempo

médio é de 4 anos. No que se refere a esses questionamentos, alguns entrevistados

apontam a questão da rotatividade no serviço de coordenação, umas práxis do AA, para que

não haja o que chamam de protagonismo, e que os princípios do AA estejam acima das

personalidades. Portanto, se há a orientação do grupo para que haja rotatividade a fim de

que não se permaneça muito tempo em determinada função, porque há um número maior

de permanência de coordenador na função em Portugal do que no Brasil?

Não atribuímos a esse fato o não cumprimento das orientações da irmandade de

AA e sim ao fato de que há um número menor de grupos, bem como de tempo de existência

em Portugal em comparação ao Brasil, o que se justifica também no que se refere ao

número médio de participantes dos grupos, tendo em consideração a diferença de densidade

demográfica dos dois países, bem como o fato do AA ter sido implantado no Brasil 25

anos antes do que em Portugal, acarretando com isso a possibilidade de uma maior

sensibilidade e conhecimento por parte brasileiros quanto à problemática da dependência

química e às estratégias de educação em saúde implementadas pelo AA.

No que se refere ao nível de escolaridade, importante perceber que, em ambos os

países, a média diz respeito a coordenadores licenciados e que, por isso, acreditamos,

ambos destacam como requisito para coordenar ter conhecimento do assunto do qual vai

coordenar, valorizando assim o estudo.

79

Quadro 2- Função dos Coordenadores

CATEGORIA SUB-CATEGORIAS INDICADORES/ MÉDIA

Função

De

Coordenadores

- Como designa a função.

Entrevistado Português Entrevistado Brasileiro

-70% orientar o grupo

- 30% outros

- 30% função de liderar

-70% outros

- Como afeta e é afetado

no grupo.

- 100% quando partilham e

recebem experiências dos

membros do grupo.

- 100% quando partilham e

recebem experiências dos membros do grupo.

- Se há diferenças de

compreensão do conteúdo

quando coordena e quando

é coordenado.

- 100% sim, quando

coordena o aprendizado é

maior, pois há maior

comprometimento do estudo

e maior atenção ao

depoimentos dos demais.

- 90% sim, quando coordena o

aprendizado é maior. pois há

maior comprometimento do

estudo e maior atenção ao depoimentos dos demais.

No que se refere à função dos coordenadores, os entrevistados portugueses, 70%

deles, atribuem a essa função o papel de orientar. As demais especificidades da função,

cerca de 30%, estão relacionadas a não ser protagonista nem exercer imposições.

Importante perceber que todas as especificidades destacadas pelos coordenadores

portugueses estão intimamente relacionadas com uma atitude de encaminhar de forma não

impositiva e em não se destacar dos demais.

Quando questionados sobre como se sentem afetados e como afetam dentro da

função de coordenador, todos relacionam com o processo de partilha das experiências uns

dos outros dentro das salas de AA. O valor atribuído a essa dinâmica é imenso e se estende

quando nas entrevistas falam a esse respeito, como exemplo quando relatam:

“...a experiência daquele que já vivenciou é importante

para aquele que está a começar. A experiência da partilha

do passo que estamos a falar tem... fica mais rico”.

“Eu sou afetado muito com a realidade da vida de outra

pessoa. A tal identificação em que eu vou buscar

identificação da minha, seja do passado seja do presente

com o outro. Portanto isso afeta-me e isso sempre de forma

positiva, pode ter alguma memória, alguma recordação

menos boa, mas o que é verdade que até isso me ajuda a

olhar para ela e arrumar isso. E penso que ao contrário

80

também acontece. Acho que a identificação é a palavra-

chave”.

Quando perguntados sobre a diferença de compreensão do conteúdo quando

coordena e quando são coordenados, 100% enfatiza que a função de coordenar oferece para

os mesmos a possibilidade de aprofundamento e comprometimento com o estudo. Segue-se

alguns fragmentos nos depoimentos dos entrevistados portugueses:

“Sim, há diferença. Quando eu falo eu elaboro o raciocínio

e assim fico mais próximo do entendimento”. “Sim há

diferença, quando eu me escuto eu me situo e quando eu

escuto o outro eu me identifico”. “Há diferença, porque

espera-se que quando eu falo, eu tenha estudado antes

melhora minha aprendizagem”.

No que se refere à função dos coordenadores, os entrevistados brasileiros, embora

não sejam uma maioria, 30% deles, atribuem a essa função o papel de liderar. Entre outros

aspectos apontados pelos entrevistados, observamos com especial atenção a atribuição do

aspecto espiritual, nas respostas descritas por alguns deles, o que nos leva à conhecida

compreensão de muitos sobre a função de ser professor, como sendo a de exercer uma

missão, trazendo em seu cerne o elemento espiritual/religioso da função.

“A função de acreditar no programa dos Doze Passos e

mostrar a aplicação dele na vida cotidiana”. “A função de

realizar um serviço para a irmandade”.

Quando questionados sobre como se sentem afetados e como afetam dentro da

função de coordenador, 100% dos entrevistados brasileiros aponta para a experiência de

ouvir os depoimentos de vida dos demais, como a grande chave para o processo de

aprendizagem significativa. Seguem-se algumas afirmações que trazem grande validade ao

valor e significado da partilha de experiências na fala de todos os entrevistados:

“Nas trocas constantes das experiências de recuperação”.

“Na identificação das experiências dos outros”. “Sou

afetado pela mudança de vida que os seguidores dos Doze

Passos conseguiram em suas vidas”. “Sou afetado na hora

da partilha, quando me identifico com o companheiro”.

81

“Sou afetado na partilha minha e do outro que conta sua

história de vida”.

Neste particular, a teoria de Dewey (1959), sobre o valor da experiência, e a

necessidade de se ter esperança apontada por Feire (1987), para que o processo de

aprendizagem se faça, reverberam neste momento.

Quando perguntados sobre a diferença de compreensão do conteúdo quando

coordenam e quando são coordenados, 90% aponta para a função de coordenar como sendo

a de mais valia para o processo de aprendizagem. Segue-se alguns fragmentos dos

depoimentos de alguns dos entrevistados brasileiros:

“Sim, há diferença. Muda mais quando você escuta o

outro”. “Sim. A aceitação faz com que escutemos e

aceitemos boas sugestões, melhorando minha auto

percepção da minha recuperação”. “Sim. Quando eu me

escuto eu amadureço mais a compreensão da minha

doença”.

Fazendo uma análise comparativa do quadro referente á função dos coordenadores

aos entrevistados portugueses e brasileiros, foi possível observar que embora não haja uma

similaridade nas respostas no que se refere à sua maioria, pois enquanto um grupo diz

respeito a orientar o outro diz respeito a liderar, ambos destacam outros aspectos

fundamentais que nos remetem a Freire (1996) e à sua crítica a educação bancária, vertical

e autoritária, e a Feustain (1994) com a sua atenção voltada para a mediação, quando

chamam a atenção para o não protagonismo dos que coordenam: deixar fluir os assuntos

em sala e só intervir quando necessário, trazer os assuntos de forma clara e sem imposição.

A mediação de controle e regulação de conduta faz ressonância, nesse momento.

No que se refere a afetar e ser afetado dentro do processo de coordenação do estudo

em grupo nas salas de AA, todos os entrevistados portugueses como brasileiros apontam

para o valor da partilha das experiências como condição fundamental para o processo de

aprendizagem efetiva. Quanto à diferença de compreensão dos conteúdos quando coordena

e quando é coordenado, quase que a totalidade dos entrevistados nos dois países afirma que

o ato de coordenar contribui de forma mais significativa para o processo de aprendizagem.

82

Destacam que, dentro do referido processo, há a aprendizagem da escuta ativa, condição

indiscutivelmente assinalada por eles para uma aprendizagem significativa.

É possível observar nessas características assinaladas pelos entrevistados

portugueses e brasileiros, a mediação preconizada por Feuerstein (1980) como a Mediação

de Comportamento de Partilha e a Mediação de Sentimento de Inclusão. A Mediação de

Significado surge para que permitam compreender a importância da aprendizagem e

interpretar os resultados alcançados.

Quadro 3- Sobre o estudo dos Doze Passos

CATEGORIA SUB-CATEGORIAS INDICADORES/ MÉDIA

Sobre o estudo dos

Doze Passos

- Diferença e valor do

estudo em grupo e

individual.

Entrevistado Português Entrevistado Brasileiro

- 100% estudo em grupo é

mais valioso, em virtude da

partilha das experiências

- 100% estudo em grupo é mais

valioso, em virtude da partilha

das experiências

- Como faz uso da

literatura.

-100% ler regularmente - 90% ler regularmente

- Literatura de destaque. - 90% livro “AA” e “Viver

Sóbrio”.

-10% outros .

- 90% livro “AA” e “Viver

Sóbrio”. -10% outros .

-Pré requisito para

compreender o estudo

- 80% mente aberta e boa

vontade.

- 20% outros

-90% mente aberta e boa vontade -10% outros

- Fatores que facilitam o

entendimento do estudo. - 60% a partilha do outro.

- 40% outros

- 60 % ser gratuito e replicado

pelos demais.

- 20% ser prático, simples e

cotidiano.

- 20% outros

No que se refere ao estudo dos Doze Passos, os coordenadores portugueses, em

sua totalidade, destacam o valor do estudo em grupo em detrimento do estudo individual.

A esse estudo em grupo associam a importância dele para o aprendizado, pela possibilidade

de entrar em contato com os depoimentos das experiências dos membros do grupo.

83

Destacamos alguns depoimentos dos entrevistados portugueses contidos nas entrevistas

sobre o referido tema:

“Muita diferença. Em grupo a partilha e a experiência

enriquece o aprendizado”. “Em grupo o estudo é mais

importante pelas partilhas das experiências”.

Individualmente é perigoso. É necessário a partilha das

experiências para facilitar a aprendizagem”. “O programa

funciona porque há o outro. Por isso o grupo é essencial”.

“Eu acho que ganho muito mais se eu estudar em grupo”.

Quando perguntado sobre o uso da literatura e qual deles destacam como valioso

para o seu processo de aprendizagem, 100% deles afirmam ler regularmente e 90% deles

destacam os livros Alcoólicos Anônimos e Viver Sóbrio, como material didático que mais

contribui para o seu processo de aprendizagem. Questionados sobre qual pré-requisito

consideravam importante para compreender o referido estudo, quase que a totalidade deles

afirma ser: ter mente aberta e boa vontade. O que se vê é um apontar para a qualificação

humana e não acadêmica. Àqueles que podem compreender o programa de estudos são

todos indistintamente dispostos a ter mente aberta e boa vontade. Não há necessidade de

formação X, Y e Z, em qualquer que seja a área, podendo inclusive analfabetos

compreender o estudo, graças à dinâmica das partilhas que trazem o conhecimento através

da oralidade, nem tão pouco diz respeito a faixa etária (aqui não incluem crianças).

Perguntados sobre os fatores que facilitam o entendimento do estudo, 60% deles

sinalizam para a questão da partilha das experiências. Outros aspectos importantes

assinalados, dizem respeito a ser um estudo conduzido por um alcoólatra e a perspectiva de

esperança tão bem apontada por Freire (1996). Vejamos alguns fragmentos dos referidos

testemunhos sobre o que cada um aponta como fatores que facilitam o entendimento do

estudo.

“O respeito as partilhas e o espirito de grupo”. “Ser

conduzido por um alcoólatra, pois só um alcoólatra

entende um outro alcoólatra e a partilha das experiências”.

“Não sei bem, acho que é eu saber que outros conseguiram

eu também posso conseguir”. “A partilha é a grande

chave”.

84

Novamente identificamos a EAM dentro das salas de AA, quando da Mediação de

Comportamento de Compartilhar, de Individuação e Diferenciação Psicológica e a

mediação de Sentimento de Inclusão. Identificamos que o coordenador, mesmo que

algumas vezes não tenha consciência disso, realiza a função de modular alguns aspectos no

processo de aprendizagem como destacou Tzuriel (1994) em relação a EAM. Conseguimos

identificar nas respostas aos questionamentos referente aos fatores que facilitam o referido

estudo, os aspectos apontados pelo autor como: Filtra os estímulos e “embala-os”, em um

grau de ordem por valores de relevância; Modula a intensidade do estímulo de acordo com

a necessidade do mediado; Intervém na capacidade do mediado para planejar e responder

com eficiência, inibindo a ação por impulsividade; Estabelece relações temporais e

espaciais sobre o plano concreto; Promove a interpretação do mundo através do raciocínio

intuitivo e /ou lógico, relacionando-os com as necessidades mais imediatas e Extrapola o

dia-a-dia, o aqui e agora da situação imediata, transcendendo relações e produzindo

“verdades” junto ao mediado.

No que se refere ao estudo dos Doze Passos, os coordenadores brasileiros, em sua

totalidade, destacam o valor do estudo em grupo em detrimento do estudo individual. A

esse estudo em grupo associam a importância dele para o aprendizado, os depoimentos dos

demais do grupo e a troca de experiências. Destacamos alguns depoimentos dos

entrevistados brasileiros contidos nas entrevistas sobre o referido tema.

“Em grupo o estudo traz mais compreensão pela

identificação com o outro”. “Individualmente não

funciona. Em grupo com a experiência viva de cada um a

mudança é afetiva”. “Em grupo há o enriquecimento do

conteúdo da literatura”. “As duas são muito importantes,

mas em grupo é mais profundo”. “O estudo é individual,

mas sendo ele feito em grupo, é melhor pela troca de

experiências”.

Quando perguntado sobre o uso da literatura e qual deles destacam como valioso

para o seu processo de aprendizagem, 90% deles afirmam ler regularmente e 90% deles

destacam os livros Alcoólicos Anônimos e Viver Sóbrio, como material didático que mais

contribuiu para o seu processo de aprendizagem. Perguntados sobre qual pré-requisito

85

consideravam importante para compreender o referido estudo quase que a totalidade deles

afirmam ser ter mente aberta e boa vontade.

Perguntados sobre os fatores que facilitam o entendimento do estudo, 60%

associa ao fato de ser ele disponibilizado a todos de forma gratuita e em ser replicado por

um igual, um alcoólatra em recuperação. Ainda destacam o fato do roteiro de estudo ser

prático, simples e cotidiano. Vejamos alguns depoimentos:

“Ser gratuito, ser realizado por alcoólatras e aplicação do

12º Passo”. ‘O fato de dar de graça o que recebeu de graça

e a pratica dos Doze passos”. “Eu acho que é o fator de

ouvir e passar adiante. Dar de graça o que recebeu de

graça”. “Ser ele um programa de vida com princípios

espirituais para a prática cotidiana”.

Fazendo uma análise comparativa do quadro referente ao estudo dos Doze Passos,

dos entrevistados portugueses e brasileiros, foi possível observar que há uma grande

similaridade em quase todos os questionamentos. 100% deles concordam em que o estudo

em grupo tem mais valia, e que isso se dá em virtude da possibilidade de ter depoimentos

de experiências compartilhadas. O mesmo quando se referem a prática da leitura regular. E

algo em especial nos chamou a atenção: o fato de todos os entrevistados destacarem

exatamente os mesmos dois livros como material didático de maior valia para o processo de

aprendizagem.

O livro Alcoólicos Anônimos é o livro básico e primeiro a ser escrito, onde há

nele os depoimentos dos fundadores da irmandade, bem como a criação e aplicabilidade do

programa de estudo que se construiu a partir de ensaio e erro em um processo extremante

empírico. O livro Viver Sóbrio traz um roteiro de perguntas e respostas de situações

cotidianas a serem enfrentadas de forma prática e simples. É possível observar na própria

literatura eleita pelos membros, o perfil de programa de estudo que funciona: Ser simples,

fácil de compreender por ser cotidiano e com partilha de experiência. Não há

distanciamento no programa de estudo seja ele em sala ou na própria literatura.

No que se refere aos pré-requisitos para a compreensão do estudo não se vê em

nenhuma das respostas, quer dos portugueses ou dos brasileiros, menção sobre formação

86

escolar. Todas dizem respeito a experiência e disposição de aprender. Novamente a

experiência como situação Sine Qua Non de facilitação do processo de aprendizagem, nos

levando a Dewey (1959), quando destaca o espírito aberto como uma das atitudes

facilitadoras ao processo de aprendizagem.

Quadro 4- Sobre o grupo das salas de AA

CATEGORIA SUB-CATEGORIAS INDICADORES/ MÉDIA

Sobre o grupo das

salas de AA

- Contribuição do grupo

para o aprendizado

Entrevistado Português Entrevistado Brasileiro

- 100% de contribuição com

fatores distintos, entre eles,

sentimento de confiança,

aceitação,

responsabilidade...

- 100% de contribuição com os

depoimentos de experiências de

vida.

- Fatores de êxito para o

estudo.

- 100% apresentaram fatores

distintos, entre eles, ser um

programa simples e

cotidiano, a constância e ser

dirigido por um alcoólatra.

- 100% apresentaram fatores

distintos, entre eles, a unidade

do grupo, o apadrinhamento,

aprofundamento de

conhecimentos...

- Aspectos importantes na

dinâmica das salas de AA.

- 70% o fato de todos

poderem falar.

-30% outros

- 70% o fato de todos poderem

falar. 30% outros

No que se refere ao grupo das salas de AA, os coordenadores portugueses, em sua

totalidade, destacam as contribuições do grupo para a sua aprendizagem e elencam

contribuições diversas e significativos aspectos como o sentimento de confiança, aceitação

e noção de responsabilidade que o grupo aciona dentro deles. Chamam a atenção para as

dinâmicas do processo de construção do conhecimento dentro das salas. Destacamos alguns

depoimentos dos entrevistados portugueses contidos nas entrevistas sobre o referido tema:

“O grupo me dá o sentido de integração e aceitação”. “Me

faz sentir que eu tenho um lugar para chamar de meu e isso

me deixa à vontade para eu me desenvolver”. “A noção de

87

responsabilidade, humildade e confiança. Isso me ajuda no

meu aprendizado”. “Ele me trouxe um conjunto de

vivências importantes que eu não teria sozinho”. “Me

contribui muito quando me mostra a necessidade do

respeito a fala do outro. Noção de honestidade e

responsabilidade”.

Dewey (1959) já preconizava a esse respeito quando afirmava que as partilhas das

experiências só se dão em um ambiente democrático, exatamente o que se observa nas salas

de AA. Outro fator importante diz respeito ao valor atribuído ao clima nas salas que

permite um sentimento de pertença, integração e confiança, nos leva a Freire (1987),

quando traz a atenção para que a escola seja um ambiente de prazer e alegria, um lugar

onde se cultiva a esperança. Makarenko e a sua atenção voltada para o coletivo repercute-se

nas salas de AA.

Quando perguntado sobre os fatores que poderiam elencar para que se justificasse

o êxito durante tanto tempo do referido grupo, vários são os fatores apontados, dentre eles,

aspectos como o fato do programa de estudo ser simples e cotidiano, haver constância e ser

conduzido por um alcoólatra. Segue-se alguns depoimentos acerca do tema:

“Por ser um programa de vida simples e aplicado para o

dia de hoje e pelo respeito e o espírito de grupo”. “O êxito

está relacionado com o fato de que só um alcoólatra

compreende outro alcoólatra e também a questão da

partilha”. “A constância, o exercício dos passos e cumprir

o programa”.

Perguntados sobre os aspectos que consideram importantes na dinâmica nas salas

de AA, 70% deles destacam o valor de poderem se expressar livremente, sem crítica ou

censuras. Vejamos alguns depoimentos sobre os referidos aspectos valiosos da dinâmica

nas salas de AA.

“O fato de não haver obrigatoriedade e todos poderem

falar”. “Que todos podem e são estimulados a falar”. “Ter a

partilha, a ordem das falas, a continuidade, a repetição e a

constância. Pode ser um lugar onde todos podem falar sem

88

ser criticado”. “A ordem das falas, o respeito aos

depoimentos de cada um e o aprender a ouvir”.

Importante notar que mesmo havendo um ambiente livre e democrático como

preconiza Dewey (1959), que facilita o processo de aprendizagem, traz juntamente o olhar

de ordem como preconiza Makarenko (1975), quando da criação da assembleia de turma,

mas, junto com ela, a elaboração de regaras básicas de convivência no grupo, inclusive com

sanções preestabelecidas e decididas pelos professores e alunos.

Nas salas de AA, é sugerido que ninguém entre em confronto com a opinião do

outro. Cada um tem a sua opinião e lugar para expressa-la. Também é de acordo que um

membro que comparece ao grupo embriagado é convidado a se retirar para voltar quando

estiver pleno nas suas faculdades de raciocínios para participar da reunião. Todas essas

ações são acordadas previamente, facilitando assim que quando a situação surge todos

podem dizer que já a conhecem e que estão de acordo com o procedimento.

No que se refere ao grupo das salas de AA, os coordenadores brasileiros em sua

totalidade destacam as contribuições do grupo para a sua aprendizagem e atribuem essa

contribuição às partilhas das experiências dos membros do grupo. Quando perguntados

sobre os fatores que contribuem para o êxito do estudo, destacam a questão da unidade do

grupo, o apadrinhamento e o aprofundamento de conhecimentos. Segue alguns

depoimentos sobre o tema:

“ O êxito do grupo e a contribuição para minha

aprendizagem, se deve ao fato do aprofundamento dos

conhecimentos sobre a programação através da discussão

em grupo dos Doze Passos”. “ A unidade do grupo e o

desejo de superar seu alcoolismo”.

Quando perguntados sobre os aspectos que consideram importantes na dinâmica

das salas de estudo do AA, 70% afirma que dizem respeito ao fato de poderem se expressar

livremente. Novamente a partilha da experiência e a livre expressão são elementos

fundamentais que estão presentes nas salas de AA. Conseguimos identificar, na dinâmica

89

das salas de AA, a Experiência de Educação Mediada – EAM, preconizada por Feuestein,

em especial a mediação de intencionalidade e reciprocidade.

Fazendo uma análise comparativa do quadro referente ao grupo nas salas de AA,

dos entrevistados portugueses e brasileiros, foi possível observar, embora tenham elevados

aspectos distintos, a totalidade deles concorda em que o estudo em grupo tem mais valia, e

que isso se dá em virtude da possibilidade de ter depoimentos de experiências

compartilhadas. Do mesmo modo, ou seja, com fatores distintos os entrevistados

portugueses e brasileiros elencam vários fatores, mas todos sinalizam para um local de

partilha e de afetividade, quando trazem a questão do apadrinhamento e de ser um

programa conduzido por um igual.

Há uma perfeita sintonia de compreensão e entendimento sobre os aspectos

importantes da dinâmica nas salas de AA e todas elas apontam para o fato de que todos

podem falar.

Identificamos novamente o valor de ser ouvido como um grande indicio da carência

nas salas de aula desse valioso elemento em qualquer continente.

90

SÍNTESE GERAL

Com o objetivo de identificar os aspectos educativos do estudo da filosofia dos

Doze Passos, nos grupos de Alcóolicos Anônimos, resolvemos nos debruçar sobre as

experiências de coordenadores do referido estudo nas salas de AA em Portugal e no Brasil.

Para tal fim decidimos empreender uma pesquisa qualitativa, tendo a entrevista com

perguntas semiabertas o instrumento a ser usado. A mesma foi aplicada a dez

coordenadores do estudo sistematizado dos Doze Passos nas salas de AA, sendo cinco de

Portugal e cinco do Brasil.

Antes da aplicação das entrevistas, considerámos relevantes contatar com alguns

informantes chave para a pesquisa, como o médico e professor Dr. Domingos Neto,

psiquiatra responsável pela implantação da filosofia dos Doze Passos no Centro de

Alcoologia de Lisboa, a professora e doutora em antropologia Catarina Frois, que

pesquisou e escreveu sobre os grupos anônimos e os Doze Passos, e três membros de AA,

sendo um de Portugal, outro do Brasil e um outro de Angola.

Após colher algumas valiosas impressões sobre o tema da nossa dissertação,

incluída a análise da literatura relevante, construímos o nosso guião de entrevistas que foi

dividido em três blocos de perguntas, estando o seu foco centrado no perfil dos

coordenadores, como cada um sente, entende e percebe a sua função, a questão do estudo

dos Doze Passos, a que importância e especificidades os mesmos atribuem ao estudo e ao

grupo.

Foi nossa intenção levantar as impressões dos coordenadores do estudo em grupo,

sistematizado dos Doze Passos, sobre os aspectos educativos que ocorrem nas dinâmicas

das salas de AA, e a partir da referida investigação identificar teóricos da educação que

corroboram com a referida prática, bem como que métodos são utilizados. Colhemos

informações significativas que nos ofereceram um valioso roteiro que em muito

corroboraram com os nossos pressupostos teóricos a respeito do modo de conduzir o

referido estudo. Por isso entendemos ser de grande valia construir um modelo de trabalho

baseado no programa de estudos dos Doze Passos que possa vir a contribuir em outros

cenários pedagógicos. Por esse motivo e a fim de oferecer contribuições acerca dos

91

resultados apresentados neste estudo empírico, apresentamos as nossas conclusões e

recomendações a respeito do tema.

92

CAPÍTULO 4 - CONCLUSÃO E RECOMENDAÇÕES

A investigação em curso levantou os aspectos educativos existente nos grupos de

Alcoólicos Anônimos como estratégia de educação em saúde para o controle da

dependência química, em especial o alcoolismo, a partir do olhar dos atores intimamente

relacionados com a referida prática. – Os coordenadores de estudo sistematizado da

filosofia dos Doze Passos.

Contando atualmente com 81 anos de existência, os grupos de Alcóolicos

Anônimos estão espalhados em mais de 170 países e contam com cerca de dois milhões de

alcóolicos em recuperação. Tal feito tem se desenvolvido a partir de estratégias educativas

e terapêuticas e tendo como guia o roteiro do referido programa de estudos da filosofia dos

Doze Passos. O referido roteiro é considerado um programa de recuperação e

reformulação de conceitos de vida, conhecido também como um grupo de princípios

espirituais na sua natureza, que se praticados como modo de vida podem contribuir para

afastar a compulsão pela bebida de forma a tornar, como os próprios membros designam, o

indivíduo íntegro, feliz e útil.

A referida investigação nos levou da atenção voltada para a educação em saúde

para a educação do sujeito, o que evidenciou a patente fragilidade no nosso cenário

educativo convencional. No estudo empírico, foi possível levantar, na perspectiva dos

coordenadores de estudo da filosofia dos Doze Passos nas salas de Alcóolicos Anônimos

do Brasil e de Portugal, as impressões e compreensão a respeito dos aspectos educativos e

sua dimensão prática na vida dos que se apropriam e fazem uso do mesmo. Os resultados

apontaram na sua grande maioria para questões relacionadas a compreensão de mundo e a

forma de se mover nele, bem como o modo como os conteúdos são tratados e trazidos à

tona.

Foi possível observar que os teóricos apresentados por nós, como Feuerstein

(1994), com a educação mediada, Freire (1996), com a educação crítica e para autonomia,

Dewey (1959), com a atenção voltada para a liberdade, democracia e a prática em sala de

aula, juntamente com Makarenko (1975), e seu olhar para o coletivo, tiveram significativa

93

relação com as práticas educativas nas salas de Alcóolicos Anônimos, quer seja no Brasil

ou em Portugal.

Embora os membros dos Alcóolicos Anônimos não pretendessem apresentar

teorias que justifiquem o modo como estudam e como conduzem os grupos de estudo, e

que por sua vez tem tanto êxito e alcance por tanto tempo em detrimento de muitas outras

estratégias, o fato é que quando apontaram para o que é relevante, inevitavelmente nos

mostra o que não é.

E isso se faz quando destacam o valor de um modelo onde todos podem se colocar

de forma democrática e livre como preconiza Dewey (1959), e onde a hierarquia vertical,

tão conhecida por nós educadores, está fadada ao fracasso. E se muitos de nós ainda não

entenderam isso, não demorará muito para entender, mesmo que a duras penas. Talvez o

modelo hierárquico vertical, rígido e depositário, tão bem apontado por Freire (1996),

quando sua crítica a educação de depósito de informações ou Educação Bancária, tenha

acarretado dificuldades que só quando o indivíduo se sente capaz de optar por novos

lugares de aprendizagem, o faz, diferente de onde esteve.

O fato é que não há saída, a necessidade de uma reflexão crítica hoje se apresenta

forçosamente à nossa volta, quer queiramos ou não. A pedagogia de Freire (1996), sobre a

criticidade e a autonomia é um imperativo que não tem volta e por isso a associação

anônima de Doze Passos dos Alcóolicos Anônimos tem cumprido de forma tão eficaz o

seu papel.

O conceito de irmandade e não protagonismo por parte dos que a priori detêm o

saber, foi apresentado de forma ostensiva pelos coordenadores de grupo de estudo,

lançando o olhar para o conteúdo a ser trabalhado e não a personalidade ou o personalismo

de quem o conduz. Uma crítica ao distanciamento entre o professor e o aluno. Uma

aprendizagem que nós professores precisamos de fato estar investidos se quisermos ir além

da borda que nos cerca.

A autoridade para mediar o processo de aprendizagem, dentro das salas de AA,

está relacionada com a experiência, ela é a grande mestra que é capaz de contribuir para

94

uma aprendizagem significativa. O professor nesse momento está ao serviço do saber e,

como diz Silva (2007), ele é “o arquiteto de pontes entre os saberes e as pessoas” (p.119).

Durante toda a pesquisa, quer seja bibliográfica ou o estudo empírico, foi possível

observar a educação muito mais como uma questão social do que puramente pedagógica; a

partir dela é que os outros saberes são capazes de se fazerem entender. A tenção para o

indivíduo que irá ou não fazer uso desse conteúdo é que é de grande valia. Afinal de nada

vale o conhecimento encerrado, sem aplicabilidade, sem uso prático e cotidiano, se ele não

exerce uma função na vida de quem o detém. E o mesmo ter consciência disso. A

aplicabilidade prática dos conteúdos é que o torna poderoso e o valida para novas

situações.

Nessa perspectiva tencionávamos construir um modelo a partir das estratégias

utilizadas nos grupos de Alcóolicos Anônimos, baseado na filosofia dos Doze Passos, que

viesse a ser aplicado mesmo que eventualmente em algum contexto escolar. Foi possível a

partir do estudo empírico identificar como aspecto mais relevante a liberdade de expressão.

Nela a construção de narrativas, que funcionam como grande mola propulsora para a

construção do conhecimento de si e do outro, nos levou a reflexões filosóficas sobre a

natureza das narrativas como processo de reflexão pedagógica e como processo de

formação de Ricoeur (2010). A história de vida e formação cumprindo seu papel e

trazendo a atenção para que todos, indistintamente, têm contribuições significativas para a

construção do seu próprio saber; afinal ninguém é uma folha em branco.

Outro destaque dado pelos coordenadores diz respeito à existência de uma

estrutura hierárquica horizontal, auto-gestão, exercício da prática, ambiente que facilita a

criação de vínculos e sentimento de pertença, corroborando com os teóricos por nós

apontados, que vieram a oferecer mesmo que de forma empírica, contribuições ao estudo

da filosofia dos Doze Passos.

O que identificamos diante do referido quadro apresentado pelos coordenadores

dos grupos de estudo do programa de Doze Passos em questão é que o que está em cheque

é, na verdade, a aquisição de competências.

95

Portanto, foi possível observar que, em seu cerne, o trabalho com a educação

desenvolvido nos grupos de AA, está relacionado a «aprender a aprender» e a «aprender a

ser». Não só fomentar a aquisição de saberes mas também a aquisição de competências e

novas atitudes, comportamentos e modo de vida comum, simples e cotidiano, o que faz

dele ser uma aprendizagem significativa. Afinal se o saber não está ao serviço de quem

dele se apropria de nada há valia e significado.

É importante, então, estarmos atentos ao que orienta e o que não orienta a ação e

para isso precisamos estar vigilantes às necessidades dos alunos, seu contexto e modo de se

mover no mundo. Muito mais do que o que vai ser tratado em sala, ressalta o como vai ser

tratado e porquê vai ser tratado. A educação nesta perspectiva vem dar suporte à

fragilidade que se apresenta hoje em um contexto marcado pela desvinculação, pela

fragmentação, desigualdades sociais e grandes incertezas, características da nossa pós-

modernidade ou modernidade liquida como salienta Bauman (2003).

Tencionávamos criar uma equação com as especificidades encontradas nas

práticas educativas nas salas de AA, seguindo o roteiro similar ao que acontece nas

mesmas; no entanto, constatamos a dificuldade em mesurar o que é trabalhado nas

referidas salas, em virtude do trabalho estar intimamente relacionado ao modo de conduzir

e tratar o conteúdo. O que acontece nessas salas se relaciona a um processo contínuo de

aprende a aprender, e aprender a ser, em uma relação carregada de subjetividade e que

naturalmente pede a contribuição dos chamados “aprendentes” dentro do referido processo.

O que podemos assinalar e recomendar, como fator imprescindível para que toda a

construção do conhecimento se faça em outros cenários de aprendizagem, diz respeito à

possibilidade de se poder expressar livremente, sem censuras ou amaras. A escola precisa

estar preparada para acolher e instigar a construção de alunos autônomos e críticos

inclusive com a sua prática, e para isso é necessário ter um educador pronto para tal

experiência.

Sabemos que esta pesquisa não esgota todas as possibilidades da mesma, até

porque as especificidades educativas, apontadas pelos coordenadores de grupo de estudo

sistematizado dos Doze Passos nas salas de AA, não representam algo novo. Os teóricos

por nós sugeridos já traziam as suas contribuições e teorias que discorriam sobre o valor

96

das especificidades apontadas pelos mesmos. No entanto entendemos que ter podido lançar

luz sobre um modelo de educação em saúde, existente há 81 anos, com resultados antes

não alcançados por nenhuma escola ou corrente pedagógica, possui grande significado e é

de grande valia para os nossos cenários educativos ainda tão frágeis e inseguros a fim de

que possam se inspirar.

É preciso pensar a vida e transcender para fora dos muros da escola. Deve ser

esse o papel das ciências da educação, e para isso ela deve estar a serviço e aberta.

97

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