aspectos da ideia de deus em platão

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Revista Portuguesa de Filosofia Aspectos da ideia de Deus em Platão Author(s): ANTÓNIO FREIRE Source: Revista Portuguesa de Filosofia, T. 23, Fasc. 2 (Apr.-Jun. 1967), pp. 135-160 Published by: Revista Portuguesa de Filosofia Stable URL: http://www.jstor.org/stable/27860106 . Accessed: 11/05/2014 11:45 Your use of the JSTOR archive indicates your acceptance of the Terms & Conditions of Use, available at . http://www.jstor.org/page/info/about/policies/terms.jsp . JSTOR is a not-for-profit service that helps scholars, researchers, and students discover, use, and build upon a wide range of content in a trusted digital archive. We use information technology and tools to increase productivity and facilitate new forms of scholarship. For more information about JSTOR, please contact [email protected]. . Revista Portuguesa de Filosofia is collaborating with JSTOR to digitize, preserve and extend access to Revista Portuguesa de Filosofia. http://www.jstor.org This content downloaded from 85.179.89.158 on Sun, 11 May 2014 11:45:58 AM All use subject to JSTOR Terms and Conditions

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Page 1: Aspectos da ideia de Deus em Platão

Revista Portuguesa de Filosofia

Aspectos da ideia de Deus em PlatãoAuthor(s): ANTÓNIO FREIRESource: Revista Portuguesa de Filosofia, T. 23, Fasc. 2 (Apr.-Jun. 1967), pp. 135-160Published by: Revista Portuguesa de FilosofiaStable URL: http://www.jstor.org/stable/27860106 .

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Page 2: Aspectos da ideia de Deus em Platão

Aspectos da ideia de Deus

em Plat?o

A ideia de Deus, em ?ntima conex?o com a c?lebre Teoria das

Ideias ou das Formas1 que constitu? o ?mago da metaf?sica

de Plat?o, ?, sem d?vida, pelas suas impliea??es filos?ficas e reli

giosas, um dos temas mais profundamente versados por Plat?o e mais entusi?sticamente comentados por alguns dos mais abali

zados platon?logos antigos e modernos.

a) A tradig?o teologica dos Gregos

Embora respeitador escrupuloso das cren?as dos antepassados, Plat?o n?o se limitou a reedit?-las, mas refundiu-as e insuflou-lhes

o espirito din?mico da sua no?tica pessoal, rasgando-lhes rumos

novos e introduzindo-lhes altera??es de vasto alcance especulativo. R. Jolivet p?de escrever: ?Materialmente, Plat?o nada inventa:

mas transformou tudo? 2.

Se bem que a religi?o hom?rica, com os seus deuses humani

zados e com os seus her?is divinizados, exercera poderosa e, em

parte, ben?fica influ?ncia na paideia hel?nica, a mentalidade dos

fil?sofos pr?-socr?ticos e do pr?prio Plat?o foi-lhe, em certo sen

tido, adversa. Xen?fanes condenara Homero e Hes?odo como res

1 O voc?bulo grego iSea, bem como o seu sin?nimo eldo;, com que Plat?o

designa essas realidades supremas, denominadas ?Ideias?, significa mais pr?

priamente ?Forma?. Isto mesmo faz notar G. M. A. Grube (Plato's Thought,

London, 1935, p. 1) : it is well known, but cannot be too often repeated, that the word Idea in this connexion is a very misleading transliteration, and in no

way a translation, of the Greek word which, with its synonym eiSo; Plato

frequently aplies to these supreme realities. The nearest translation is

?form? or ?appearence?, that is, the ?look? of a person or a thing?. 2

R?gis jolivet, in Revue Apolog?tique, T. XLVIII, 1929, p. 55.

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Page 3: Aspectos da ideia de Deus em Platão

136 REVISTA PORTUGUESA DE FILOSOFIA

pons?veis pelas vergonhas imputadas aos deuses. Heraelito, numa

frase concisa, sentenciara lapidarmente : ?Homero devia ser banido dos concursos e a?oitado? 3. Plat?o renovar?a tais invectivas, exe

crando as inf?mias abomin?veis, que Homero e os poetas atri bu?am aos deuses 4. At? o pr?prio Eur?pides, disc?pulo de Anax?

goras e amigo de S?crates, se insurgira contra as f?bulas ridiculas da cren?a popular. Na trag?dia H?racl?s Furioso assim se pro nunciara o ?fil?sofo do teatro? : ?Nao, nunca acreditei, nem acre

ditare! jamais, que os deuses, se entreguem a amores imp?dicos, ou carreguem seu pai de cadeias, ou que um deles se torne senhor

do outro. Que necessidade tem um deus, se ? verdadeiramente

Deus, de outro deus? Isto n?o passa de tristes f?bulas inventadas

pelos poetas? 5.

Como o de S?crates, tamb?m o seu nome foi alvo da s?tira mordaz de Arist?fanes, defensor esturrado da tradi?ao. ?as R?s, o fundibul?rio das N?vens desfecha-lhe, ? queima-roupa, o inju rioso insulto de ?inimigo dos deuses: $e ^ ?6.

A posteridade, contudo, fez-lhe justi?a. J? no seu tempo, o

or?culo de Delfos o declarou menos s?bio que S?crates, mas mais

s?bio que S?focles. S. Clemente Alexandrino viu nas suas obras ?um pressentimento da nova f?, no seio do paganismo? 7.

O advento da democracia na Gr?cia havia de vibrar golpe definitivo na religi?o nacional. Os sofistas, com a preocupa?ao de

valorizar o h?rnern, concebendo-o como a ?medida de todas as

coisas? ( a a ; ), na frase de Prot?goras, n?o s? levaram mais longe a cr?tica aos deuses tradicionais, mas cairam no cepticismo e no ateismo. Para Cricias, os deuses eram inven

??es humanas; para Pr?dico, ?a origem dos deuses estava relacio

nada com o emprego metonimico dos seus nomes para as coisas

3 Cit. por A. J. Festugi?re, O. P., L'Id?al religieux des Grecs et l'Evangile, 2.a ed., Paris, 1932, p. 173.

4 Plat?o, Rep?bL, 379-380.

8 Eur?pides, H?racl. Fur., 1345-1346. Merecem ser transcritos os dois

?ltimos versos: SeWai y?p ? ?e?;, eiTzep ? '

; ?eo?, ov?ev?s' a olSe .

9 Arist?fanes, R?s, 963.

1 M. Patin, ?tudes sur les tragiques grecs, 6.a ed., Paris, 1828, p. 58.

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Page 4: Aspectos da ideia de Deus em Platão

ANT?NIO FREIRE ?A IDEIA DE DEUS EM PLAT?O 137

de que o h?rnern mais necessita: o vinho seria Dioniso, o p?o Dem?ter, a agua Pos?don, o fogo Hefesto? s.

Se S?focles e Esquilo foram fervorosos crentes, se Zeus tinha

para Esquilo evidente preemin?neia, o mesmo nao se poder? dizer

de Eur?pides, o quai, como vimos, sem ser ateu, descria no entanto

dos deuses da cren?a popular. Tuc?dides partilhava a mesma ati

tude. Para o historiador da Guerra do Peloponeso, o divino nada

contava na vida do h?rnern. M. Legido L?pez chega, at?, a suspei tar que o cepticismo de Tuc?dides ante a cren?a popular traduz

verdadeiro ate?smo, nao muito distante do de alguns ateus, a a a , do c?rculo de Cin?sias ou do jovem, a quem S?cra

tes tentou convencer da exist?ncia de Deus ?as Memorias de Xeno

fonte, ou daqueles com os quais se enf rentou Plat?o ?as Leis 9.

O povo, por?m, simples e tradicionalista, continuava aferrado

?s suas cren?as e supersti??es e a prestar culto aos deuses maiores

e menores, sobretudo a Ascl?pio, deus da medicina, cujo culto irra

diado de Epidauro passou a ser o centro da religiosidade hel?nica 10.

S?crates, crente convicto, possuia conceito mais apurado da

divindade, sem contudo fazer disso alarde espectacular que

pudesse, sequer de longe, justificar a mal?vola conspira??o que lhe

urdiram seus inimigos. Como os sofistas, reconheceu que o culto tradicional prestado

aos deuses era artificial e, em parte, falso. Mas, ao contrario deles, soube ver que por detr?s de Ascl?pio e dos demais deuses do

pante?o nacional, se encontrava um Deus justo e providente que

governava os homens. ?S?crates ? diz M. Legido L?pez ? inau

gurou urna atitude religiosa nova?. E foi esta nova atitude reli

giosa, que herdou Plat?o, e ? sua luz se deve procurar a explica??o da sua teologia e religiosidade.

b) O problema de Deus em Plat?o

Plat?o, fil?sofo por temperamento e por profiss?o, n?o se

contentou, corno dissemos, com ser eco da reac??o que despertava nos esp?ritos inconformistas da ?poca; mas, confrontando teor?as,

8 Marcelino iLegido Lopez, El problema de Dios en Plat?n, Salamanca, 1963, p. 182.

9 Id., ibid., p. 183.

19 Cfr. M. NiLSSON, Geschichte der griechischen Religion, M?nchen, 1951, pp. 691-793.

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Page 5: Aspectos da ideia de Deus em Platão

138 REVISTA PORTUGUESA DE FILOSOFIA

discutindo afirma??es e remodelando audaciosamente os quadros da no?tica tradicional, debuxou ?as p?ginas dos seus di?logos mais

profundos, apocal?pticas teofanias, entrevistas em visoes de g?nio. N?o lhe faltaram, ? certo, as dificuldades inerentes ? impo

t?ncia da linguagem humana, que mal sabe balbuciar, quando se

aventura a esquadrinhar os arcanos da divindade.

Esta luta pela express?o sens?vel e transparente dum pensa

mento, nem sempre di?fano, travou-a Plat?o com denodo, mas

sem pleno ?xito, como sinceramente confessa em v?rios dos seus

di?logos

1. A existencia de Deus em Plat?o

O problema da exist?ncia e da natureza de Deus preocupou

sempre o fil?sofo do Timeu. Expressoes corno estas ? ?com o

auxilio de Deus?, ?com Deus?, ?se Deus quiser? ?

que lhe acodem

frequentemente ao bico da pena, n?o s?o formulas ba??is, vazias

de sentido, mas como muito bem nota J. Souilh?, ?testemunham

a f? profunda do fil?sofo na ac??o continua de Deus no mundo, ?as sociedades e nos individuos? 12.

Plat?o fundava na cren?a em Deus os principios b?sicos do

recto procedimento moral do individuo. ?Ningu?m h? ? escreve

?as Leis ? que acreditando na exist?ncia dos deuses, tenha pra

ticado volunt?riamente ( ) algum crime, proferindo palavras licenciosas? 13.

A f? inquebrant?vel na exist?ncia de Deus anima-lhe este

protesto en?rgico: ?Quem poder? sofrer, sem indigna??o, ver-se

reduzido ? necessidade de provar que h? deuses?? 14.

N?o obstante, Plat?o empreendeu decididamente a demons

tra??o racional da exist?ncia de Deus.

Antes de entrar em assunto t?o grave, implora o auxilio

divino: ?Se alguma vez ? diz ? ? preciso invocar a Deus, agora o devemos fazer. Invoquemo-lo, pois, com todo o ardor ( - a ), a fim de podermos demonstrar a sua exist?ncia. Agarra

11 Cfr. Timeu, 28 c; Cridas, 107 b. 13 J. SouiLH?, S. J., em Archives de Philosophie, IV, 1926, p. 568. 13

Leis, X, 884 b. 14

Leis, X, 887 c.

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Page 6: Aspectos da ideia de Deus em Platão

ANT?NIO FREIRE ? A IDEIA DE DEUS EM PLAT?O 139

dos a esta poderosa ?ncora, podemos lan?ar-nos ao estudo da

quest?o? 15.

Notemos, desde j?, com um cr?tico autorizado, que ?na Gr?cia, a quest?o de saber se h? um Deus, ou se h? v?rios, n?o tem, por assim dizer, importancia. Que o poder divino se conceba como

unidade ou como pluralidade, ? coisa que nenhum interesse oferece, em comparag?o com o problema de saber como se h?-de compreen der a sua natureza e as suas rela?oes com o mundo? 16.

Contudo, atrav?s do polite?smo nominal que domina os poemas

hom?ricos, a trag?dia e, at?, os di?logos de Plat?o, f?cilmente se

depreende certa tend?ncia a atribuir a Zeus a preemin?ncia sobre

as restantes divindades17.

Do pensamento henoteistico de Pindaro, diz A. Croiset: ?Les

dieux de Pindare ne sont que les noms d'une divinit? unique? 18.

2. A unicidade de Deus na escola ele?tica

Anax?goras parece ter-se aproximado bastante do mono

te?smo. Num fragmento de Xen?fanes julgar?amos, ? primeira vista, ver formulada quase perfeitamente a cren?a henote?stica:

?Existe ? diz o te?logo da escola ele?tica ? um s? Deus, supremo entre todos os deuses e homens?. Esta asser??o, por?m, escora em

alicerces falsos. Os fil?sofos da escola ele?tica, partindo da nega

??o do movimento e concebendo as mudan?as da natureza como

puro fenomenalismo e ilus?o dos sentidos, ca?ram num monismo

estritamente racional?stico : o ser ? uno, ?nico e imut?vel. Deus

identifica-se, portanto, com o mundo. S? a teoria aristot?lica da

pot?ncia e acto solucionar?a o problema e evitar?a t?o funestos

equ?vocos. Com S?crates ?justamente considerado o fundador do mono

te?smo filos?fico? 19, as d?vidas dir-se-iam dissipadas.

Plat?o, d?cil aos ensinamentos do mestre, venerador da

tradi??o, enfileiraria, quando menos, ao lado dos partid?rios do

dogma henoteistico. Hontheim afirma-o categ?ricamente: ?Quanto

19 Lets, X, 893 b.

19 Ed. Mayer, Geschichte des Altertumes, I, 46. 17

Cfr. L. Robin, La Pens?e grecque, Paris, p. 84. 18

A. Croiset, Hist, de la Litt?rat. Grecque, t. II, 3.a ed., Paris, p. 526. 19

Mgr. A. Farges, Vid?e de Dieu, 5.a ed., Paris, 1908, p. 235.

m

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140 REVISTA PORTUGUESA DE FILOSOFIA

ao n?mero, Plat?o reconhece um s? Deus supremo e verdadeiro,

que ? o Bern? 20.

A quest?o, por?m, ? mais complexa e enervante do que tal

asser??o poderia f azer supor. A perplexidade assalta-nos, mal nos

apostamos a deslindar o enredado labirinto de ideias que se asso

ciam em torno do pensamento nuclear do problema.

3. O polite?smo em Plat?o

Desconcertam-nos, primeiramente, expressoes eivadas de res

saibos aparentemente pante?sticos: ?Tudo est? cheio de deuses?

( Sew -

a a ), escreve Plat?o ?as Lets \

Ora nos fala de Deus no singular (a ), ora no plural ( Scoi). No Timeu faz refer?ncias a v?rios deuses: ao Demiurgo, aos

deuses inferiores que dele descendem e a ele servem, aos deuses

dos Astros fixos (40 a-b), ? Terra, aos planetas (38 a 39 d) e,

finalmente, aos deuses da mitologia popular (40 d-e), aos quais alude, n?o sem pontinha de ironia22.

Quais as rela?oes que unem entre si todas estas divindades?

Faland? aos deuses inferiores, seus ministros, assim se exprime o Demiurgo: ?Deuses, filhos de deuses, cujo autor eu sou, e de

cujas obras sou pai: nascestes de mim e sois incorrupt?veis,

enquanto eu n?o quiser desfazer-vos... N?o sois imortais nem

totalmente incorrupt?veis, mas n?o ser?is dissolvidos, nem tereis

destino mortal, visto que a minha vontad? ? para v?s lago mais

forte e mais poderoso do que aqueles a que vos ligastes ao

nascer? 23.

Como se v?, tais divindades n?o passam de deuses secun

d?rios, servos do Demiurgo. N?o sao, mesmo, necess?riamente

puros espirites24. 20

J. Hontheim, S. J., Institutiones Theodiceae, Friburgo, 1893, p. 97. 21

Lets, 899 b. 22

Cfr. A. Rivaud, Platon, Oeuvres Compl?tes (B. L.), T. X, Tim?e

-Critias, Paris, 1925, pp. 36-37. Nao falta em Plat?o profundo respeito e

devo?ao aos deuses tradicionais: no final do Fedro (279 b-c) l?-se inspirada ora??o a P?; nalguns di?logos h? fervorosas invoca??es: Cridas, 108 d, Fedro, 257 a, Timeu% 27 c, Leis, 712 b, Timeu, 40 d-41 a.

29 Timeu, 41 ab.

24 O Banquete (202 e, 203 a) encerra curiosa descri??o dos a . Sao estes seres sobrenaturais, intermedi?rios entre Deus e os homens ( a

a ? a ? ?eoO a ). A sua miss?o ? levarem a Deus as

ora??es dos homens e trazerem a estes as graeas dos deuses. ? por interm?dio

deles que Deus fala ao h?rnern.

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ANT?NIO FREIRE ?A IDEIA DE DEUS EM PLAT?O 141

Que motivo ter? induzido Plat?o a consentir que figurassem na sua teodiceia os vultos gastos do polite?smo tradicional? Por

condescend?ncia com a tradi??o? Por pairarem ainda no seu espi rito n?voas que n?o conseguiu dissipar? Tal vez por tudo isto.

Recordemos, em todo o caso, que Anax?goras fora exilado por n?o acatar os deuses da religi?o popular. O tribunal dos Heliastas, ao condenar S?crates ? morte, acusava-o de introduzir divindades novas e de n?o acreditar nos deuses nacionais 25.

Tr?s coisas h? que fixar cuidadosamente na teodiceia plat? nica. Em primeiro lugar, Plat?o insurge-se, como o haviam feito

os esp?ritos mais cultos da ?poca, contra os mitos divulgados pelos

poetas, em que aos deuses eram imputadas ac??es ign?beis,

indignas de simples mortais.

Em segundo lugar, cumpre saber que Plat?o admit?a os velhos

deuses nacionais, subordinados a um Deus superior, procurando

justificar-lhes a existencia com base cient?fica nos conhecimentos

astrol?gicos adquiridos durante as suas viagens ao sul da It?lia

e no seu contacto com Arquitas e com a astrologia oriental. Ao

divinizar os astros2?, aplicando-lhes os nomes dos deuses tradicio

nais27, Plat?o procurava salvar, em parte, a velha religi?o nacio

nal, segundo urna tend?ncia j? existente na Gr?cia. Bouche

-Leclercq fala-nos de urna esp?cie de intromiss?o da astrologia na

teologia grega, que teve o seu aperfei?oamento em Plat?o 28.

Foi Festugi?re quem primeiro pos em relevo este aspecto

geralmente silenciado na teodiceia plat?nica. O terceiro aspecto a ter em conta na teologia de Plat?o, ?

a convic??o com que propugna a exist?ncia de um Deus supremo, transcendente e bom, quer se reconhe?a como tal a Ideia de Bem,

quer o Demiurgo, quer, como nos parece mais prov?vel, a identi

fica??o de ambos.

? este intrincado problema que vamos tentar deslindar.

28 Xenofonte, Mem., I, 1: S?crates foi tanib?m acusado de corromper

a juventude. 2< Plat?o, Timen, 39 c; Leis, 822 a.

27 Tamb?m Arist?teles (Metaf. XII, 1073 b 31-5) chama a Mercurio .?estrela de Hermes?, a V?nus ?estrela de Afrodite?, a J?piter ?estrela de

Zeus? e a Saturno ?estrela de Crono?. 28

Cfr. Marcelino L. Lopez, ob. cit., p. 190.

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Page 9: Aspectos da ideia de Deus em Platão

142 REVISTA PORTUGUESA DE FILOSOFIA

4. A Ideia de Bem e Deus

O ponto cruciante do problema est? na possibilidade de iden

tifiea?ao do Ser supremo, Deus, com a diarquia de principios apa rentemente irredut?veis : a Ideia de Bem ( a?a io?a ), que habita no mundo intelig?vel Qv

- ), e o Demiurgo

( ), primeira causa activa, em contacto com a realidade

do mundo sens?vel.

Que representava para Plat?o a Ideia de Bem? O fil?sofo

concebia-a corno a mais elevada de todas as Ideias 29 ; como causa

de todo o conhecimento e de toda a verdade 30. Transcendente ao

mundo sens?vel, a Ideia de Bem confere a ess?ncia e a exis

t?ncia aos objectos visiveis, que del? recebem a inteligibilidade

(r? yiyv?aK &2rai) e o ser (t? fvai) S1.

A Ideia de Bem est? para al?m da realidade ( e a

ova?ac) de todas as Ideias, excedendo-as em dignidade e poder32. Plat?o sintetiza nestas palavras a concep??o da Ideia de Bem:

?Nos ?ltimos confins do mundo intelig?vel, encontra-se a Ideia de

Bem, Ideia que com dificuldade se apreende, mas que n?o pode

perceber-se, sem se concluir ser eia a causa de tudo o que h? de

belo e bom no universo? 33.

Ser? l?cito identificar Deus com a Ideia de Bem? A propens?o natural do nosso espirito a isso nos inclina. Mas a obscuridade

que vela as palavras de Plat?o, n?o permite formular ju?zo defi

nitivo e d? margem a controv?rsia e diverg?ncia de opinioes.

Assim, Trendelenburg subordina a Ideia de Bem a Deus; Orges,

pelo contr?rio, subordina Deus ? Ideia de Bem; Hermann opta

pela exist?ncia paralela e independente de ambos34; Zeller

decide-se francamente pela identifica??o 3 .

29 E. Zeller, Die Philosophie der Griechen, zweiter Teil, erste Abtei

lung, f?nfte Auflage, Leipzig, 1922, p. 707: ?Die h?chste aller Ideen ist die Idee des Guten?.

39 Rep., VI, 508 e.

81 Rep., VI, 509 b.

31 Rep., VI, 509 b.

,3 Rep., VII, 517 b.

84 Cfr. F. Klimke, S. J., Institutiones Hist?ri?? Philosophiae, Roma,

1923,1, p. 38. 38

E. Zeller, o. c, p. 930: ?Gott is das Gute?; item p. 717. Cfr. etiam

Victor Cousin, Du Vrai, du Beau et du Bien, 5.a ed., Paris, 1855, p. 75.

[81

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ANT?NIO FREIRE ? A IDEI A DE DEUS EM PLAT?O 143

Pronunciam-se tamb?m pela identifica??o de Deus com a

Ideia de Bem cr?ticos not?veis, como: Apelt, Wilamowitz, Jowett,

Adam, Friedl?nder, Natorp, Lodge, Ritter, Edwar, Doherty, Di?s,

Festugi?re, Hardie, Robin, Jaeger, Frank, Manno, de la Fuente.

Propugnam a n?o-identifica?ao de Deus com a Ideia de Bem:

Burnet, Taylor, More, Grube, Shorey, Raeder, Bovet, Cornford,

Solmsen, Gilson, Ross, Cherniss, Rutenber, Soleri.

A Ideia de Bem ocupa em Plat?o o cume do mundo ideal e ?

del? que dimana a norma e o modelo para toda e cada urna das

formas de vida, que nela encontram o seu la?o de uni?o 36. L. Robin

chega a afirmar que o Bem ? a ?nica realidade verdaderamente

transcendente, urna como que s?ntese de todo o pensamento pla t?nico 37.

Alguns textos plat?nicos sobre a Ideia de Bern comprovar?o a asser??o do douto platon?logo franc?s. ?A Ideia de Bem ? o

objecto principal do conhecimento? 38 ; ?ocupa lugar nos confins

do mundo intelig?vel? 39

; ?? a causa universal de tudo o que ? bom e belo?40; ?? a fonte da justi?a e da utilidade? 41

; ?sem a posse do Bem, nenhum conhecimento nem coisa alguma aproveitam? 42.

?? a Ideia de Bem que comunica a verdade aos objectos inteligi veis e ao espirito a faculdade de conhecer; ? a causa da ci?ncia

e da verdade, enquanto conhecida; mas ? distinta do conhecimento

e da verdade, por belos que estes sejam, e transcende-os em

beleza? 43. ?No mundo intelig?vel ? eia que dispensa a verdade e

86 F. SoLMSEN (Plato's Theology, . Y., 1942, pp. 67-68) assinala esta

fun?ao ? Ideia de Bem: ?In Plato's Philosophy and in particular in his

Republic all spheres of life are integrated, the Idea of Good providing the norm and the standard for each and at the same time the bond which unites

them all?. 8T

L. Robin, Platon, Paris, 1935, p. 169. 88

R&p., VI, 505 a: a a a a a* 89

Rep., VII, 517 b, 519 c: ?v rekevrala a a a. 40

Rep., VII, 517 c: a a re a\ a a a. 41

Rep., VII, 505 a: ? a a a\ a a ^ a a a\ a

e a . 42

Rep., VII, 505 b: avev Se a et a a a a a ? a, '

? '

? , ? ovS'ei ? ? a avev a a .

Rep., VII, 508 e: To'jto a ? a a ~

,

a\ /covTt a a a a a a elvai' air lav '

a a a ? a;, ; /xevr?; ? a '^ ; ? a , a

e ? a a ? a ^ a a a / ? ; a ; ? .

[9]

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144 REVISTA PORTUGUESA DE FILOSOFIA

a intelig?ncia? 44. Finalmente, ?a Ideia de Bern n?o s? confere aos

objectos inteligiveis a faculdade de serem conhecidos, mas tam

b?m a ess?ncia e a exist?ncia, embora n?o seja eia urna ess?ncia, mas antes esteja para al?m da ess?ncia ( e a a ), supe rando-a em majestade e poder? 45.

N?o se pode negar que, atrav?s de t?o grandiosa concep??o da Ideia de Bem, se vislumbra a exist?ncia de um Ser supremo com predicados equipolentes aos que em verdadeira teodiceia se

atribuem a Deus. Plat?o, como dissemos, n?o chegou a emitir um

ju?zo expl?cito e definitivo sobre a identifica??o de Deus com a

Ideia de Bem.

Mas compreende-se, em parte, a raz?o de tal reserva. Se, corno filosofo, teve intui??es que superavam de longe a teologia tradicional, como crente n?o quer?a romper abruptamente com as

concep?oes ancestrais da religi?o grega. A afirma??o perempt?ria de um ?nico Deus, com atributos como os que nimbam a Ideia

de Bem, seria incompreens?vel aos olhos dos contempor?neos. Na realidade, p r?m, a Ideia de Bem, que possui a plenitude

do ser ( a ? ov) 4?, que ? causa exemplar, eficiente e final47, de pouco mais carece para se identificar com o verdadeiro Deus

da teologia natural. Se Plat?o n?o formulou a sua identifica??o,

foi, como dissemos, porque isso lhe era pr?ticamente pouco menos

que imposs?vel: o conceito de Deus, tal como o exprime a prop? sito da Ideia de Bern, era n?o s? desconhecido da mentalidade

popular, mas at? dos pr?prios fil?sofos gregos anteriores ou eoe

44 Rep., VII, 517 c: ?v a a a e a a\ a a e .

45 Rep.y VII, 509 b: Ka\ 7.; ̂ ^ e ; e a

a a a a a e. a , a a a eivat e /ca? a 'e e a ;

a , a; ; a a0 ; a '

e e e a , a; e ?e a a\ a e

e e ;. 49 Sobre esta express?o do Sofista (249 a), divergerci as interpreta?oes:

lutoslawski afirma que a e ; se refere ?s almas, incluindo as almas

humanas e, em concreto, a alma individual. Para Dies, a e designar?a ?a soma de todas as formas do ser? (Sophiste, B. L., 1925, p. 289). Segundo

Cornelia e J. de Vogel a express?o a e ; visar?a o Intelig?vel. Outros

autores, como Jowett, preferem a tradu??o de ?Ser absoluto? ?Ser perfetto?. De la Fuente, concorda com esta interpreta??o e refere-a, como n?s, ?

Ideia de Bem. 47 Cfr. a. de la Fuente, Acci?n y Contemplaci?n seg?n Plat?n, Madrid,

1965, pp. 94-95.

[10]

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Page 12: Aspectos da ideia de Deus em Platão

ANT?NIO FEE IRE ? A IDEIA DE DEUS EM PLAT?O 145

t??eos de Plat?o. Note-se que nem Aristoteles ehamou Deus ao

?motor im?vel?, no quai os comentaristas v?em geralmente a

afirma??o do verdadeiro Deus!

5. O Demiurgo em Plat?o

Ao lado da Ideia de Bem, deparamos na filosofia plat?nica com outro principio supremo: o Demiurgo ( ). Deus

dos deuses. Quai a sua natureza? Etimol?gicamente, o seu nome

( , do povo, p?blico + Spyov, obra) significa ?o que tra

balha para o p?blico?. Nos escritores gregos, como em Xenofonte,

aparece como ?criador do mundo? 48. Na filosofia neo-plat?nica, ? descrito como ?ordenador do mundo?. No . T. significa ?cria

dor do imi verso? 49.

Em Plat?o figura, no Timeu, como causa eficiente, activa.

A sua causalidade, por?m, n?o ?, como pretendem alguns autores, o poder criador. O Demiurgo n?o cria formas novas ; adapta, numa

combina??o harm?nica, elementos preexistentes. Com o olhar f ixo

num modelo anterior, procura imit?-lo, comunicando ordern e

beleza aos elementos informes. ? ele que ?fixa o destino das esp? cies mortais, que regula a propor??o das ess?ncias, cuja mistura

constituir? as almas e os corpos. Mas nada cria, a n?o ser a ordern

e a beleza, segundo um modelo que copia? 50.

Qual ser? esse modelo? ? o Ser Vivo em si (a ), no

qual se encerram as formas ou ess?ncias eternas de todos os

viventes. Rege-o a lei do Bem. O modelo do Demiurgo ?, pois, a

Ideia do Ser Vivo, ? o proprio Deus, a cuja imagem e semelhan?a se forma o universo. Corresponder? tal modelo ao mundo das

Ideias? N?o o podemos afirmar com certeza.

Intelig?ncia suprema, artista divino, o Demiurgo ?, por assim

dizer, o meio termo que permite ? mat?ria bruta participar da

beleza do mundo ideal.

6. O Demiurgo e a Ideia de Bem

Ser? o Demiurgo distinto da Ideia de Bem? Tornar-se-? poss? vel a identifica?ao destes dois principios, ambos supremos, ambos

divinos?

48 Xenofonte, Mem., 1, 4, 9.

49 Hebr., 11,10.

M A. Eivaud, o. c, p. 36.

5 [U]

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Page 13: Aspectos da ideia de Deus em Platão

146 REVISTA PORTUGUESA DE FILOSOFIA

Se h? cr?ticos, como Brochard, Piat e outros, que negam tal

identifica??o, n?o faltam platon?logos eminentes que a sustentam.

Pode mesmo dizer-se que a maior parte dos int?rpretes se inclina

para a identifica??o do Demiurgo com a Ideia de Bem 51.

Zeller propugna-a calorosamente 52. Hoffmann, em ap?ndice ? obra de Zeller ?Die Philosophie der Griechen?, atribu? ? Ideia

de Bem fun??o id?ntica ? do Demiurgo 53.

Em geral, pode dizer-se que a escola alem? e francesa, com

Zeller e Di?s na vanguarda, se pronuncia pela identifica??o do

Demiurgo com a Ideia de Bem. Seguem tamb?m nesta corrente de

ideias: T. Gomperz, K. Stumpf, Lutoslawski, Wilamowitz, Fes

tugi?re, Robin, Goldschmidt, Loenen, Manno, Frutiger, etc.

Pelo contr?rio, a escola inglesa, dirigida por Burnet e Taylor, envereda pelo caminho da nao-identifica?ao. Alinham nesta teoria:

Reale, Soleri, L. L?pez, e outros. Para Mugnier, Deus ? urna sin

tese da Ideia de Bern, da Alma do Mundo e do Demiurgo. De

modo semelhante opina Moreau.

A an?lise do pensamento plat?nico inclina-nos, naturalmente, a crer que Demiurgo e Ideia de Bem coincidem ou tendem a coin

cidir, na mente de Plat?o. A correspond?ncia destes dois princi

pios est? na sequ?ncia l?gica das suas afirma??es, e torna-se

imprescind?vel na unifica??o do sistema.

Contudo, note-se bem, Plat?o n?o chegou a formular expres samente a identifica??o do Demiurgo com a Ideia de Bem. A pro

p?sito, escreveu A. Bremond: ?Le mouvement naturel de notre

pens?e est d'identifier le bien et le D?miurge. Platon n'est pas all?

jusque-l?, mais il y tendait? ?4.

81 Podem ler-se, entre outros, os estudos do R. P. Lagrange, O. P.,

Platon Th?ologien, em Revue Thomiste, Maio-Junho 1926, pp. 188-218; e de A. Dies Autour de Platon, II, Paris, 1927 ; e, sobretudo, o excelente traballio

de M. Legido L?pez, El Problema de Dios en Platon, Salamanca, 1963. 53

E. Zeller, o. c, p. 711: dann wird aber auch ?Vi ? (o Demiurgo)

mit der h?chsten Idee zusammenfallen, 83 Ernst Hoffmann, in ?Anhang? a Die Philosophie der Griechen de

E. Zeller, p. 1103: ?War also in Guten die sch?pferische a a gefunden, so ist

es unausbleiblich, da? ihr Wesen ?poietischer? Art ist... Das Gute ist also

;,, im allgemeinsten Sinne des Wortes?. 84 A. Bremond, De VArne et de Dieu dans la Philosophie de Platon, in

Archives de Philosophie, II, 1924, Cah. III, p. 56.

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Page 14: Aspectos da ideia de Deus em Platão

ANT NIO FREIRE ?A IDEIA DE DEUS EM PLAT?O 147

7. A Alma do Mundo

Al?m da Ideia de Bern e do Demiurgo, surge ainda a Alma

do Mundo ( - ), cuja identifica??o com Deus e com o Demiurgo ? tamb?m objecto de profundas diverg?ncias entre os cr?ticos.

Que vem a ser a Alma do Mundo? Antes de mais, cumpre saber o que era o mundo para Plat?o. fi um Ser vivo, dotado de

corpo e alma intelectual: ? , ? ? .

A forma??o do corpo deste Ser vivo, que ? o mundo, des

creve-a Plat?o m?ticamente no Timeu. Nada se torna vis?vel sem

o fogo, nem tang?vel sem a terra. Deus tomou o fogo e a ?gua, o

ar e a terra, de modo a n?o deixar fora nenhuma quantidade, nem qualidade alguma. Assim, ficaria o Vivente um Ser ?nico

e perfeito, indestrut?vel e inacess?vel ? velhice e ? doen?a, porque tais achaques s?o produto de subst?ncias exteriores, como o fri?, o calor e outras.

Para que este Ser vivo pudesse conter todos os demais

viventes, o divino Art?fice deu-lhe a forma esf?rica e circular, que ? tamb?m a mais perfeita e semelhante a si mesmo 56. Por ser

esf?rico e perfeito, nada mais pode existir fora dele. N?o precisa de olhos, nem de ouvidos, nem de atmosfera, para respirar, nem

de alimento externo. Todo o seu metabolismo e actividade se

realiza no seu interior. N?o precisa de rnaos, nem de p?s. ? auto

-suficiente, porque assim o entendeu o divino Construtor, resol

vendo antes que fosse aut?rcico, do que carecesse de outras

coisas57.

O seu corpo ? homog?neo e liso por todos os lados58.

A propriedade mais perfeita que lhe foi outorgada por Deus, foi o mover-se a si pr?prio, girando em c?rculo, que ? o movi

mento mais perfeito, correspondente ? intelig?ncia e ? reflex?o59.

? tamb?m no Timeu que, ap?s a forma??o do corpo, se narra

a forma??o da Alma do Mundo: ?Deus fez a alma anterior e

85 Timeu, 30 b.

M Timeu, 33 b.

5? Timeu, 33 d.

58 Timeu, 34 a-b.

88 Timeu, 34 a. Cfr. A. Legido Lopez, o. c, p. 169.

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Page 15: Aspectos da ideia de Deus em Platão

148 REVISTA PORTUGUESA DE FILOSOFIA

superior ao corpo em idade e em virtude (yev?aei a a ? -

a a ? ? a ), porque devia mandar nele como senhora 60.

A Alma do mundo ? formada de tr?s subst?ncias: a ess?ncia

do ?indivisivel e invari?vel?, a ess?ncia do ?divisivel e corp?reo?, a urna terceira ess?ncia que participa das anteriores 61.

A dificuldade da interpretag?o desta passagem resulta n?o

s? da propria descri?ao, mas do desacord? que reinou ja na Aca

demia de Xen?fanes e Crantor sobre o valor destes elementos

constitutivos da alma62. N?o parece, p r?m, haver d?vida de que nesta concep??o se reflecte a ideia da a a pitag?rica, concebida

como ; (mistura) do agudo e do grave. Do mesmo modo que tamb?m em medicina a sa?de era tida como o equilibrio harm?nico

dos diversos elementos corporais. J? no F?don Plat?o faz dizer a

Equ?crates que a alma ? ?harmon?a? 63. A. Olerud, na sua tese

doutoral apresentada em Uppsala, perfilha a opini?o de Taylor, relacionando a Alma do Mundo com a m?nada pitag?rica.

Quai a rela??o vigente entre a Alma do Mundo, o Demiurgo e Deus? Se h? autores como Ritter, Litsenburg e Mugnier que identificam o Demiurgo com a Alma do Mundo, pode dizer-se que a maioria dos platonistas propugnam a nao-identifica?ao. Assim:

Hackforth, Solmsen, Taylor, Festugi?re, A. Legido L?pez, etc.

Este ?ltimo autor ? quem mais se insurge contra a identifica??o da Alma c?smica com o Demiurgo. O A. baseia o seu estudo na

an?lise do Timeu e das Leis conjuntamente, ao passo que Taylor e Festugi?re se apoiam principalmente no Timeu, e Solmsen

nas Leis.

No Timeu aparece pela primeira vez a Alma do Mundo, cha

mada pelo seu nome e descrita com os elementos constitutivos.

O testemunho das Leis ? indispens?vel para o contrapor ? narra

?ao m?tica do Timeu.

A prova de que a Alma do Mundo se distingue do Demiurgo, est? em que eia se lhe subordina. Com efeito, a Alma c?smica ?

formada pela Intelig?ncia divina, com a qual se identifica o

Demiurgo.

* Timeu, 34 c.

61 Timeu, 35 a.

* Cfr. A. Legido Lopez, o. c, p. 170.

* F?don, 88 c: a / /a ... elva? . Cfr. A. Legido Lopez,

o. c, p. 170.

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Page 16: Aspectos da ideia de Deus em Platão

ANT?NIO FREIRE ? A IDEIA DE DEUS EM PLAT?O 149

Outra prova reside na condig?o da Alma do Mundo que foi

gerada, ao passo que o Demiurgo se situa na eternidade esseneial.

Como derradeiro argumento, pode apontar-se o facto de o

Demiurgo ser transcendente ao mundo, ao passo que a Alma cos

mica ? im?nente ao mesmo mundo64.

8. O Demiurgo e Deus

Identificar-se-? o Demiurgo com Deus?

Cremos que sim, embora Plat?o, como nos demais principios

di?rquicos mencionados, continue a ser reticente.

Esta identifica??o defendem-na, entre outros, Wilamowitz,

Di?s, Schaerer, Verdenius, Litsenburg, Manno, Fraile, L?pez. O argumento principal deduz-se deste texto do Filebo, a que

alguns comentadores atribuem importancia teol?gica excepcional: ?N?o pode haver sabedoria nem intelig?ncia, sem alma. Portante,

for?oso ? afirmar que na natureza de Deus existe urna alma real

e urna intelig?ncia real? 65.

O Deus de Plat?o possui, pois, intelig?ncia e alma. Ora o

Demiurgo, que encarna a Intelig?ncia divina, encarna tamb?m a

Alma, pois, como bem observa Loenen, n?o existe urna intelig?ncia

separada ( ), visto que a Intelig?ncia ( ) ? proprie dade da alma.

O sil?ncio de Plat?o sobre o henote?smo pode explicar-se, como atr?s salient?mos, pela aeomoda??o ?s tradi?oes teol?gicas nacionais: o conceito de um Deus ?nico era incompreens?vel para a mentalidade hel?nica; s? a espirites privilegiados se poderia

propor. O proprio Plat?o confessou a impossibilidade de explicar o Deus supremo a toda a gente: eie - a a a a Xeyeiv 66. Por

isso, no Timeu, que ? urna obra esot?rica (escrita s? para a escola)

figura apenas um Deus, o Demiurgo. Nas Leis, por?m, que s?o

obra exot?rica (escrita para o p?blico) j? figur?m as diversas divindades tradicionais.

Impressiona a insist?ncia com que Plat?o vinca, no Timeu, a bondade divina do Demiurgo: ?O Demiurgo

? diz ? era bom 64

Cfr. A. Legido Lopez, o. c.t pp. 174-176. 65

Filebo, 30 c-d: . a a\ ; a e a ? ? ^ .

y?p . . ?v e , Atos ?pe~.s ? ?a e , ?a oh

?yyiyveaOai... 66

Timeu, 28 o.

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Page 17: Aspectos da ideia de Deus em Platão

150 REVISTA PORTUGUESA DE FILOSOFIA

(a a m) e como tal, quis que todas as coisas fossem boas

(a a^a ? a - a a). Por isso determinou que tudo fosse o mais

possivel semelhante a si ( a a a a a a ) 67.

N?o poder?amos reconhecer no Demiurgo, dotado de bondade

e de intelig?ncia (tal como a Ideia de Bem), a manifesta??o sen

s?vel de Deus identificado com a Ideia de Bem, que um dia resolve

descer do mundo ideal ao mundo da realidade, para organizar harm?nicamente o Cosmo? Plat?o em nenhuma refer?ncia alude

?s rela?oes do Demiurgo com o mundo ideal. S? urna vez declara

que o Demiurgo, depois de formar a Alma do Mundo e de dar as

suas instru??es aos deuses subalternos, volta ao seu repouso costu

mado: ?Deus ? diz Plat?o ? tendo ordenado tudo isto, perma neceu no seu estado habitual (eV ?a a a f?ei)? ?8.

Qual seja este estado habitual, Plat?o n?o o diz.

Estas reservas talvez justifiquem, em parte, a atitude com

bativa de E. Gilson contra certos helenistas demasiado fac?is em

atribuir ao platonismo urn conceito de Deus pr?ticamente indife

ren?avel do Deus do Cristianismo 69.

Mas se a ideia de Deus n?o consegue romper completamente a neblina do pensamento plat?nico e brilhar com o fulgor meri

diano da teologia crista, imp?e-se, ao menos, pelo espiritualismo vibrante e sincero, que lhe confere, por vezes, lampejos de per

fei??o, digna do verdadeiro e ?nico Deus do Cristianismo.

O Deus de Plat?o ? santo (?ytov) 70 e sumamente justo71 ;

nunca a mentira poluiu os seus labios divinos 72. Sapientissimo ( ? a a ), nada ignora

73 ; imut?vel74, simples

75 e

eterno7?, constitu? objecto de contempla??o da alma, ? quai se

comunica, sem nada adquirir nem perder. ?? este ? diz Plat?o ?

o Ser perp?tuo ( ?e? ), que n?o nasce nem morre, n?o cresce nem

? Timeu, 29 e-30 a.

68 Timeu, 42 e.

69 Etienne Gilson, UEsprit de la philosophie m?di?vale, I, Paris, 1932, pp. 47-48, 51-52, 2:29.

70 Sofista, 249 a.

71 Teeteto, 176 be.

72 #ep., II, 382 e.

73 Lets, X, 901 d, 902 e.

74 Sofista, 249 a; ?ep., II, 381 b.

75 II, 381 e.

79 rimew, 37 d.

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Page 18: Aspectos da ideia de Deus em Platão

ANTONIO FREIRE ? A IDEIA DE DEUS EM PLAT?O 151

diminu? n?o ? belo numa parte e f eio noutra, belo num tempo e feio

noutro, belo sob certo aspecto e sob outro n?o, belo para uns e

feio para outros... Esta beleza n?o reside em ser diferente d?la, num animal por exemplo, ou na terra, ou no c?u, ou em qualquer outra coisa, mas existe eternamente, absolutamente em si e por si77. D?la participam todas as outras belezas, sem que o seu nas

cimento ou a sua destrui??o lhe cause a menor diminui??o, ou

o menor acr?scimo, nem a modifique em coisa alguma? 78.

Deus ? para Plat?o o principio, o meio e o fim de todas as

coisas 79. ? verdadeiramente a medida de tudo : ? ? - a ? 80.

9. A Provid?ncia de Deus em Plat?o

Mas, acima de tudo, o Deus de Plat?o, ? providente. N?o h?, na teologia plat?nica, dogma proposto com mais clareza, nem

defendido com maior convic??o. Nos Di?logos, a cada passo se

colhem af irma??es da Provid?ncia divina81.

Deus ? l?-se nas Leis ? ?toma cuidado de todas as coisas e

tudo dispos para a conserva??o e perfei??o do conjunto? 82. O ep? teto caracter?stico do Demiurgo ? o de ?omniprovidente? (? - a ? ;).

Entre as compara?oes, a que Plat?o recorre para expressar a provid?ncia divina, sobressaem a do ?m?dico? e a do ?piloto?.

Mas, particularmente, apela para a Intelig?ncia que, entre os

astros, dirige os seres: re r?ye/iova ?v a 8S.

Embora n?o tenha sabido encontrar solu??o satisfat?ria para o problema do mal, Plat?o aplicou todas as energ?as da sua dial?c

tica a demonstrar que Deus n?o ? nem pode ser causa do mal, mas s? do bem: ?Deus ? escreve Plat?o ? ? realmente bom e

assim o devemos proclamar. Ora, nada do que ? bom se torna

" Banquete, 221 a.

78 Banquete, 211 ab. Nesta passagem, refere-se Plat?o ao Belo em si

mesmo, identificado por alguns autores com a Ideia de Bem e com Deus. N?o

falta, p r?m, quem ponha em d?vida tal identifica??o. Plat?o ? reticente. 79

Leis, IV, 716 a. 89

Leis, IV, 716 c. 81

Leis, X, 905 d, 906 a, 907 a; F?don, 62 b. 81

Leis? 903 b: a e a a a ?

a ' e e a a.

83 Leisy 967 d; cfr. ibid., 966 e.

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Page 19: Aspectos da ideia de Deus em Platão

152 REVISTA PORTUGUESA DE FILOSOFIA

prejudicial; o que n?o ? prejudicial, n?o faz mal a ningu?m; o que nenhum mal faz, n?o pode ser causa de nenhum mal. Portanto, o que ? bom ? ?til ( a a ) e, consequentemente, ? causa de felicidade (ahiov e?w a a ). O bem ?, pois, causa n?o de

todas as coisas, mas s? das boas e nunca das m?s.

?Deus, que ? bom, s? pode ser causa de urna parte das coisas

que nos sucedem, visto que os nossos bens s?o ?nfimos, em rela??o aos nossos males. ?Concluindo: so a Deus se deve atribuir a causa

do bem; para o mal, ? preciso buscar outra causa, mas que n?o se ja Deus (a ) ?eoV) 84.

10. O problema do mal em Plat?o

Qual ser?, na mente de Plat?o a causa do mal?

Carece de fundamento a afirma??o de Heinze, de que Plat?o

teria sido o primeiro a abordar eonsidera??es sobre a origem do

mal no mundo. O problema do mal preocupara j? Zoroastro que, a acreditar no testemunho de Eud?xio, transmitido por Plinio, teria vivido seis mil anos antes de Plat?o85. Al?m disso, ?as

p?ginas mais antigas da Biblia e na pr?pria mitologia grega tam b?m se deparam alus?es ao mal e sua origem.

Cremos ser inexacta a opini?o corrente que, atribuindo a

Plat?o o dualismo esp?rito-mat?ria, faz depender desta, enquanto rebelde a Deus, o principio do mal.

Muito menos parece de admitir o dualismo de duas almas, urna boa e outra m? para explicar a origem do mal. ? certo que

Plat?o, ?as suas viagens ao Egipto e ? Fenicia recebeu influ?ncia

oriental, como concludentemente demonstram Jaeger, Reitzens

tein, H. Schaerer, J. Geffcken, E. des Places e, mais que todos, J. Bidez, o quai na sua obra Eos ou Platon et VOrient, publicada em Bruxelas em 1945, estudou os tr?s caminhos de influ?ncia

oriental: o pitagorismo da Grande Gr?cia, as viagens ao Egipto e

? Fenicia, e as suas rela??es com Eudoxo de Cnido, familiar da

84 Rep., , 379 be. 8? Plinio, Nat. Hist., XXX, 3: ?sine dubio illic orta in Perside a

Zoroastre, ut inter auetores convenit, sed unus hic fuerit an postea et alius

non satis constat. Eudoxus, qui inter sapientiae sectas clarissimam utilissi

mamque earn intellegi voluit, Zoroastren hunc sex milibus annorum ante

Platonis mortem fuisse prodiit?.

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Page 20: Aspectos da ideia de Deus em Platão

ANT?NIO FREIRE ?A IDEIA DE DEUS EM PLAT?O 153

Academia a partir de 370-368, atrav?s do qual Plat?o teria eonhe

cido o dualismo orientai. A dificuldade maior origina-se de urna passagem das Leis

sobre as duas almas, que reza assim: ?Nao admitamos menos de

duas almas: a que s? ? suscept?vel de fazer bem e a que ? capaz de fazer o contr?rio? 88. Por?m, como comenta Festugi?re, um

dos platon?logos mais equilibrados e mais doutos, Plat?o ?longe de afirmar a coexistencia de duas Almas, urna boa e outra m?, limita-se a propor urna alternativa? 87. J. Kerschensteiner, a res

peito deste texto crucial das Leis, conclu?: ?A alma m?, a que se

alude puramente em hip?tese, n?o se pode comparar de modo

algum com o principio iranico mau, o Deus ou dem?nio mau em

luta com o Deus bom? 88. E. M. Legido L?pez ? ainda mais cate

gorico: ?Es err?neo presentar la cosmologia Plat?nica corno

campo de batalha entre dos principios uno bueno y divino, el otro

malo y sat?nico. El mundo ni recibe de la divinidad dos impulsos

contrarios, ni es puesto alternativamente en movimiento por dos

divinidades de opiniones opuestas? 89.

Nem existe, pois, urna alma m?, como origem do mal, nem

t?o pouco a mat?ria, como principio aut?nomo e independente de

Deus, origina o mal. Plat?o diz expl?citamente que a mat?ria est?

subordinada a Deus 90.

11. A mat?ria em Plat?o

Vejamos, por?m, em que consist?a a mat?ria, segundo o

pensamento plat?nico. Os partid?rios do dualismo de Plat?o

costumam apresentar a mat?ria como causa do mal91.

Para alguns autores, a chamada ?mat?ria? plat?nica ? um

s?mbolo, ?puro n?o-ser?; n?o possui realidade nem substanciali

dade. S?o desta opini?o: Zeller, C. Baeumker, Taylor, P. Frutiger e Rivaud.

M Leis, 896 e: / ye eXarrov e , , re cvepy?ri?oi a

a a a a e e a e a . 87

festugi?re, Platon et l'Orient, in Revue de Philologie, XXI, 1947, p. 89. 88 J. Kerschensteiner, Platon und der Orient, Stuttgart, 1945, p. 76.

89 M. Legido Lopez, o. e., pp. 166-167.

M Politico, 273 b.

91 Cfr. Simone P?trement, Le dualisme chez Platon, Paris, 1947, p. 22.

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Page 21: Aspectos da ideia de Deus em Platão

154 REVISTA PORTUGUESA DE FILOSOFIA

Outros, contudo, concebem a mat?ria plat?nica como real.

Assim: C. Deichmann, para quem o sistema plat?nico ? um ?r?gido dualismo de realidades?, identifica-a com a Necessidade (

* A a )

e a ?causa errante? ( a a a)* Para Cornford, a mat?ria

plat?nica ? o elemento que se op?e ? obra ordenadora da Raz?o

divina. O caos do Timen ? urna imagem da mat?ria desordenada

preexistente, que passou ? ordern por obra do Demiurgo. Robin

atribu? ao caos pr?-c?smico do Timen materialidade n?o apenas

l?gica, mas ontol?gica. Baudry, que toma a mat?ria como elemento

passivo, real, afirma: ?O fil?sofo renunciou ao caos dos poetas, sem chegar ? no??o abstracta de mat?ria, tal como a elaboraram

os metaf?sicos? 92. Festugi?re concebe a a-mat?ria do Timen

como um principio aut?nomo de desordem, que n?o s? limita a

causalidade do Bem, mas se op?e a eia. A esta opini?o adere

A. Legido L?pez, que emite a seguinte conclus?o: ?Assim fica

descrita a mat?ria, causa instrumental, din?mica e irracional, que em s?ntese com a causalidade divina, racional e eficiente, gera o cosmo? 93.

A mat?ria ? descrita por Plat?o como recept?culo universal

( a ? ? - a ), que recebe toda a esp?cie de corpos

ir? a a ? 4 a a)) ? pura receptividade ( a ? ?e) ? mas possui for?a pr?pria ( r?s a a ? ) e urna aspira??o

cong?nita ( ? a) : no seu seio agitam-se for?as desi

guais ( *

a ? ? ) 44.

Antes da forma??o do mundo, reinava o caos: tudo estava

disposto sem raz?o nem medida (-n-p? - a a a ? ?

a ; a a ? ;). Quando Demiurgo come?ou a ordenar o

Todo ( a a ), os elementos fogo, terra, ar e ?gua encontravam-se no estado em que est?o as coisas quando Deus

se encontra ausente.

12. O conceito de cria?ao em Plat?o

Do que acabamos de dizer se infere que, se tomarmos a lin

guagem de Plat?o como soa, o fil?sofo do Timen n?o admit?a a

93 J. Baudey, Le probl?me de VOrigine et de l'?ternit? du monde, Paris, 1931, p. 65.

93 M. Legido Lopez, o. c.f p. 156.

94 Timeu, 52 e.

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Page 22: Aspectos da ideia de Deus em Platão

ANTONIO FREIRE ?A IDEIA DE DEUS EM PLAT?O 155

cria??o ex n?h?lo no sentido da teologia crista. Ali?s, como observa M. Legido L?pez, ?o pensamento antigo n?o conheceu a ideia de

?cria??o, porque desconheceu a ideia de 'nada'? 9 .

Os Gregos chegaram a pensar ?no que nao existe ( )?, no que est? em pot?ncia para receber a forma ( el?og ) 96. Mas o

nada absoluto, como vazio total do ser, era para eles impen s?vel97.

O conceito de cria??o ex n?h?lo recebemo-lo da Biblia 98 e foi

estimulados por eia, que os fil?sofos crist?os, judeus e mu?ulmanos

puderam aprofundar a no?ao de cria??o pr?priamente dita. A ac??o ordenadora de Deus ? descrita por Plat?o nos termos

seguintes: ?Quis Deus que todas as coisas fossem boas: excluiu,

enquanto foi poss?vel, toda a imperiei??o; e, assim tomando toda a massa visivel, que n?o tinha repouso, mas se movia sem medida nem ordern ( ? a a a a ;), trouxe-a da desordem ?

ordern ( ek a avr? riyayev a a a ), por julgar que a ordern

vale infinitamente mais do que a desordem ( a ? - a a ? )? ". Adiante, o fil?sofo repisa esta ideia: ?Como se

disse ao principio, encontrando-se todas as coisas em desordem, Deus pos simetr?a em cada urna, com respeito a si mesma e ?s

outras, de modo que fossem, na medida do poss?vel, proporcio nadas e sim?tricas? 10?.

Como ? patente, a ac??o de Deus consistiu essencialmente em ordenar: onde havia desordem ( a a a ), p?s ordern ( a ) ; e

onde n?o havia adorno ( a ), p?s adorno ( ). E tudo isto

foi obra da Provid?ncia divina. ?O mundo, que ? verdadeiramente

88 M. Legido Lopez, o. c, p. 160.

8? Sofista, 256 segs.; cfr. Arist?teles, Metaf., XII, 1069 b.

97 Cfr. M. Legido L?pez, o. c. p. 160.

88 No Gen., I, 1, l?-se ?no principio criou (bara1) Deus o c?u e a terra?.

Estritamente faland?, a express?o hebraic? (bara1) nao equivale ao nosso

(criar), tirar do nada. Mas o contexto supoe tratar-se de cria?ao pr?pria mente dita, visto que o hagi?grafo supoe que antes da ac?ao criadora de Deus, nao existia nada. A formula??o expressa do conceito de cria?ao s? aparece no

s?c. II a. C. A m?e dos Macabeus diz ao seu filho que vai morrer: ?Pe?o-te, meu filho, que olhes para o c?u e para a terra, e que compreendas que do nada {e ) tudo fez Deus? (Mac., VII, 29).

99 Timeu, 30 a.

109 Timeu, 69 b:

" e y?p o?v a a * a a e , a ? a a a

? ?v e a e a ; a a ; a a e a; e e e , a; e a

a a a a a\ e a e a .

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156 REVISTA PORTUGUESA DE FILOSOFIA

um ser vivo, pr?vido de alma e de intelig?ncia, nasceu por obra da Provid?ncia de Deus? 101.

Mas a ac??o providente de Deus ? nota M. Legido L?pez ?

consistiu em fazer passar o mundo do nao-ser ao ser; n?o do nao -ser no sentido de nada, mas no sentido de nao-ser-cosmo... O caos

pr?-c?smico adquiriu, gra?as ? ac??o eficiente de Deus, um novo ser e tornou-se mundo 102.

? neste sentido que deve entender-se a frase do Sofista: ?? criadora (mais rigorosamente ?produtora?) toda a for?a que se torna causa da exist?ncia daquilo que antes n?o existia? 103.

N?o se trata, como dissemos, da cria?ao pr?priamente dita,

porque a ac??o de Deus foi essencialmente ordenadora do que estava em desordem e agita??o.

Poder-se-? inferir daqui, que Plat?o conceb?a o mundo ou,

mesmo, a mat?ria como eternos? N?o. Do mundo, expressamente declara o fil?sofo que ?foi feito? (yeyove) 104. Plat?o diz-nos ainda,

que antes de o mundo existir, existiam tr?s coisas : ?o ser absoluto, o lugar em que nasce o ser relativo e a gera??o: tr?s termos que existem de tr?s modos diferentes e que existiam antes de ser feito o c?u? 105. No Sofista l?-se que todos os seres s?o obra de Deus: 0 o?> yevv- a a

- a a ? a a ?wetpyaap?va a a 106.

No Pol?tico corrobora-se o pensamento de que ?o mundo n?o se move a si mesmo eternamente ? : ? a a a

? a ae? 107.

Cremos, portanto, que o m?nimo que se poder? afirmar ? o

que prudentemente prop?e M. Legido L?pez : ?Todos estos motivos nos han llevado a pensar en la posibilidad de que Plat?n creyera en el origen temporal del mundo? 108.

101 Timeu, 30 c: Sei e e > ? e re a e a

a 0eoJ e a a . loa . Legido Lopez, . c, p. 163.

? 103 Sofista, 265 b : ... a a e a e e a a a a a a

e ^ e e a . m

Timeu, 27 c. 105

TimeUt 52 d : e a a a\ e e e a , a ( a a

e a . 106

Sofista? 266 b. 107

Politico, 269 e. 108

M. Legido Lopez, o. c, p. 164.

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ANT?NIO FREIRE ?A IDEIA DE DEUS EM PLAT?O 157

O mundo, tal como o concebe Plat?o, n?o s? n?o ? eterno, mas

depende de Deus: foi Ele que lhe deu origem ( a a ? a ) e ordenou desde o principio (etc a a a a 1

a a ), como se l? no Pol?tico109.

13. A fatalidade em Plat?o

Se mundo e mat?ria dependem de Deus, se a origem do mal

se n?o pode imputar ? mat?ria como principio aut?nomo e inde

pendente de Deus, ser? a fatalidade, como pretendem alguns, a

causa do mal no mundo? N?o.

Em Plat?o, providencialista cem por cento, a Necessidade

{ a- ), como se depreende da linguagem m?tica dos Di?logos n?o ? mais do que express?o da vontad? de Deus: a Intelig?ncia divina exerce sobre eia persuas?o e dominio, para a conduzir pelos caminhos do bem110.

Plat?o revela, sob este aspecto, como sob tantos outros, enorme avan?o sobre as concep?oes dos seus contempor?neos. Os Gregos do seu tempo, cansados de guerras e de injusti?as,

supersticiosos at? ? medula, atreitos a ver ?as adversidades a

garra sinistra da Mo7pa9 da ou da , encontravam em

Plat?o, como j? em Esquilo, em S?focles e em Eur?pides, um

mestre que lhes ensinava a identifica??o pr?tica da fatalidade com

Deus; que do mal sabia Deus tirar o bem111 ; que a mat?ria desor

denada passara ? ordern por obra da Intelig?ncia divina; que a

Fortuna ( ) depende de Deus, como se demonstra ?as Leis, obra exot?rica, dirigida precisamente ao p?blico. Reza assim a

famosa passagem das Leis, onde vem exarada esta eloquente dou

trina: ?Ao ver tudo isto (guerras, pobreza, doen?as, anarqu?a),

qualquer dir?a que o h?rnern nada legisla, e que todas as coisas

humanas s?o obra da Fortuna ( a ?'eivai 86 a a a a -

a).*. Mas que ? verdade ? a afirma??o seguinte, a saber,

que ? Deus, com a fortuna e a ocasi?o, quem governa todas as

109 Pol?tico, 269 d,

ue Timeu, 48 a: a a / e e e . ?? Timeu, 56 c;

a a ; e a e e a e .

Timeu, 46 c: a a a a ? uw??t?W 0e?; / ? , a

a a a a ?oe'av a ? .

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158 REVISTA PORTUGUESA DE FILOSOFIA

coisas humanas sem excep?ao : 0e?? ? - a a, a ? a ?

a a ; a a a ?? ^ a a 112?

Deste belo texto diz E. des Places, que devia figurar ?as

Antolog?as113.

14, O Deus de Platao e o Deus do Cristianismo

Embora G. E. Mueller opine que, sem Platao, o Evangelho de S. Jo?o nao seria o que ? na sua concep?ao da Trindade e no

conceito de Deus a um tempo transcendente e im?nente ao

mundo 114, a verdade ? que Platao precisar?a de aclarar e purificar nao poucas manchas ideol?gicas, para fundir o seu pensamento

teologico ?as ideias cristalinas da teologia crista 115.

A ideia de Deus em Platao, conquanto seja de um alcance

excepcional e marque um passo audacioso, quase dir?amos revolu

cionario, para a mentalidade hel?nica do seu tempo, enferma ainda

de lament?veis aporias, devido ? suspens?o em que deixa o cru

ciante problema da identifiea?ao de Deus com a Ideia de Bem e

de ambos com o Demiurgo, pela falta de clareza sobre a natureza

dos deuses inferiores e pela obscuridade que envolve o problema da cria?ao, da mat?ria e do mal. Por causa da ambiguidade de

express?o, nao t?m faltado autores que consideram Platao pan te?sta 116 e polite?sta117.

fi falsa, porque anti-hist?rica e anti-filos?fica, a asser?ao de

G. E. Mueller, de que ?sem Plat?o e o neoplatonismo, nem Cristo

51* Leis, 709 a-b.

118 Edouard des Places, S. J., Platon, Les Lois ( . L.), TU, VI, Paris, 1951, p. 55.

114 G. E. Mueller, Plato, The Founder of Philosophy as Dialectic, N. Y., 1965, p. 49: ?without Platonic logic, the Gospel of John would not be what it is in its conception of the Trinity, that God is both the transcendent world ground as well as its immanent pr?sence?.

118 Cfr. Koland-Gosseun, cit. por A. Lemonnyer, 0. P., em Le Christ,

Paris, 1932, pp. 14-15. 11#

G. E. Mueller, o. c, p. 162 : ?Plato is a polyteist?. 117

Fundamentam a asser?ao na frase de Plat?o (Leis, 899 b) : ?tudo

. est? cheio de denses? ? ? elvai a a. A frase vem de Tales con

servada por Arist?teles (De Anima, A, 5, 411 a 7) e refere-se, em Plat?o, s?mente ?s divindades inferiores.

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ANT?NIO FREIRE ? A IDEIA DE DEUS EM PLAT?O 159

nem o Cristianismo se teriam desenvolvido, como se desenvol

ver?n!, no s?culo II? 118.

?, at?, um ilogismo pretender que um fil?sofo considerado

por Mueller como ?politeista?, pudesse dar aso ? concep?ao teol?

gica de S. Joao, em que a unidade e unicidade de Deus constitu? um dos dogmas mais repetidas vezes afirmado 119.

Contudo, se ? verdade que o Deus de Platao se distancia, em

muitos pontos, do Deus do Cristianismo, uno e trino, criador na

acep?ao rigorosa do termo, transcendente ao mundo, mas omnipre sente nele e f?sicamente presente na alma dos justos, aos quais confere jus a serem chamados e a serem de facto filhos de Deus e

herdeiros do reino dos C?us, um Deus humanado e Redentor, n?o

cabe d?vida que supera tamb?m, em nao poucos aspectos, o Deus de Arist?teles.

Por mais provas que aduzam alguns comentaristas120, nao

logram desfazer-nos a convic?ao de que o pensamento providen cialista do Estagirita ? gravemente comprometido pela obscuri

dade e imprecis?o, com que alude ? Provid?ncia divina.

O deus aristot?lico, quer se conceba como motor im?vel, quer como pensamento puro ( ? ), arrastar? sempre o ferrete

que a pena do Estagirita, tao avesso aos ?mpetos audaciosos do

esplritualismo plat?nico, lhe insculpiu, um dia, na fronte im?vel e fr?a: ?Deus sublunaria non curat?, como reza a vers?o latina da

suposta afirma?ao original. A asser?ao de que a ordern universal

? obra de um poder divino ( ? a Sw?ueaK epyov) n?o se entende

necess?riamente do motor im?vel, mas dos deuses subalternos e populares.

? sabido que Arist?teles, depois de ter descoberto, numa das

mais felizes e sublimes ascens?es dial?cticas do seu espirito, o

acto puro, o motor im?vel (Deus), acabou por perder-se numa

nuvem de c?lculos astron?micos e concluiu que, ?al?m do primeiro motor, deviam existir 49 e at? 55 motores, todos separados,

118 G. E. Mueller, o. c, p. 169: ?Without Plato and Neoplatonism, no

Christ and no Christianity would have developed as it did in the second Century?.

ue Jo. XIV, 9, 10, 11, 20; XVI, 14; XVII, 11, 21. 320

Franz Brentano (Arist?teles, trad. esp. do alem?o por M. S?nchez

Barrado, 1930, pp. 118-130) tenta reabilitar Arist?teles, sobretudo nos pontos mais contestados pela cr?tica tradicional: omnisciencia, criag?o e ^providencia de Deus.

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160 REVISTA PORTUGUESA DE FILOSOFIA

eternos e im?veis? 121. No seu testamento dispos o Estagirita, que se erigissem duas est?tuas de 4 c?vados de altura: urna a Zeus e

outra a Atena!113

O pensamento teol?gico de Plat?o, j? quando salienta a per

fei??o e Provid?ncia divinas, j? quando desfere espiritualizado voo

em demanda do Bem e do Belo em si mesmos, cuja contempla??o fixa a meta suprema das aspira?oes da alma, ? ineg?velmente mais

claro, mais ampio e mais perfeito, do que as reservadas e, por isso mesmo, confusas exposi??es da teono?tica de Arist?teles.

Depois de Plat?o, entre os fil?sofos gregos pag?os, foi Plotino

quem mais alto se remontou em elueubra??es teol?gicas. ? dele

esta frase que, na sua concis?o lapidar, sintetiza a grandiosidade da sua concep??o teol?gica: Deus ? ?a for?a de tudo: se Eie n?o

existiese, nada existir?a? 123.

O deus dos estoicos, identificado com o mundo, havia fatal

mente de carregar com as imperfei?oes materials do mesmo

mundo.

O deus do epicurismo distancia-se ainda mais, at? dos pr?

prios deuses hom?ricos: n?o passa de um ?deus de pens?o?. Se Plat?o tivesse tido a ventura de viver no Cristianismo,

estamos em crer que teria sido para o mundo hel?nico, o que S. Agostinho foi para o mundo latino-crist?o.

ANTONIO FREIRE

121 A. Mosca de Carvalho, Haver? urna filosofia cristal m Brot?ria,

XXI, 1935, p. 94. m

Id., ibid., p. 94. m

plotino, III En., S, 10 : a ; a ' ii ?v?* a a a a.

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