aspectos da história da língua

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ANTONIO JOSÉ DE PINHO ASPECTOS DA HISTÓRIA DA LÍNGUA: Um estudo diacrônico e sincrônico dos pronomes oblíquos tônicos FLORIANÓPOLIS 2012

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Dissertação

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  • ANTONIO JOS DE PINHO

    ASPECTOS DA HISTRIA DA LNGUA:

    Um estudo diacrnico e sincrnico dos pronomes oblquos tnicos

    FLORIANPOLIS 2012

  • ANTONIO JOS DE PINHO

    ASPECTOS DA HISTRIA DA LNGUA:

    Um estudo diacrnico e sincrnico dos pronomes oblquos tnicos

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Lingustica como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Lingustica. Orientador: Prof. Dr. Felcio Wessling Margotti.

    FLORIANPOLIS 2012

  • Para Nosso Senhor Jesus Cristo, o Verbo feito carne, Aquele por meio do qual todas as coisas foram feitas.

  • A linguagem foi instituda para produzir vida. Rosenstock-Huessy. A origem da Linguagem, p. 115.

  • RESUMO No presente estudo busca-se efetuar um estudo histrico do sistema pronominal do portugus, mais especificamente da evoluo dos pronomes oblquos tnicos precedidos pela preposio com. Apresenta-se a evoluo dos pronomes pessoais do latim clssico ao portugus atual, passando pelos estgios intermedirios do latim vulgar e portugus arcaico. Este estudo d especial ateno aos pronomes oblquos tnicos diante da preposio com, sobre os quais so apresentados dados quantitativos do corpus do Atlas Lingustico do Brasil (ALiB), analisados sob a metodologia da dialetologia pluridimensional. Como a mudana no ocorre isoladamente, analisam-se tambm algumas mudanas fonticas, morfolgicas e sintticas que influenciaram direta ou indiretamente na reestruturao dos pronomes oblquos tnicos. De forma geral, defende-se que a perda do sistema latino de casos devido ao apagamento de consoantes finais e pelo aumento no uso de preposies provocou uma drstica mudana da ordem sinttica da ordem SOV para a ordem romnica SVO , e esta alterao na ordem dos constituintes interferiu na reestruturao dos pronomes oblquos. Esses processos de mudana que atingiram a gramtica do latim, gerando a gramtica do portugus, so tambm explicados do ponto de vista de mudanas tipolgicas. Trata-se, portanto, de um estudo que procura unir, na anlise, a teoria da variao e mudana (dialetologia e sociolingustica) teoria dos universais lingusticos (mudana tipolgica). Palavras-chave: Variao pronominal. Variao lingustica.

    Dialetologia. Lingustica histrica.

  • ABSTRACT In this study we seek to make a historical study of the pronominal system of Portuguese, more specifically the evolution of oblique pronouns tonics preceded by the preposition com (with). It presents the evolution of personal pronouns of classical Latin to Portuguese, through

    the intermediate stages of vulgar Latin and archaic Portuguese. This study gives particular attention to oblique pronouns tonics on the preposition com, about which are presented quantitative data of the corpus of Altas Lingustico do Brasil (ALiB), analysed under the methodology of pluridimensional dialectology. As the change does not occur in isolation, are analyzed also some phonetic, morphological and syntactic changes that have influenced directly or indirectly in the restructuring of oblique pronouns tonics. In general, argues that the loss of the Latin case system because of the deletion of final consonants and by an increase in the use of prepositions caused a drastic change of syntactic order SOV order to the SVO romanic order , and this change in the order of constituents intervened in the restructuring of oblique pronouns. These processes of change that have reached the Latin grammar, generating the grammar of Portuguese, are also

    explained from the point of view of typological changes. Therefore, it is a study that seeks to unite, in the analysis, the theory of variation and change (dialectology and sociolinguistics) to universal linguistic theory (typological change).

    Key-words: Historical linguistics. Linguistic variation. Dialectology. Pronominal variation.

  • LISTA DE QUADROS

    Quadro 1 Esquema de H. Thun........................................................67 Quadro 2 Esquema da estrutura silbica........................................76 Quadro 3 Esquema do esforo muscular e da curva da fora silbica...................................................................................................78 Quadro 4 Principais variantes do /s/ posvoclico em portugus e espanhol.................................................................................................98 Quadro 5 Neutralizao entre acusativo singular e plural na primeira e segunda declinao.......................................................................................113 Quadro 6 Sistema consonantal do latim clssico..........................157 Quadro 7 Sistema consonantal do portugus atual......................157 Quadro 8 Parmetros lingusticos quanto estrutura silbica...188 Quadro 9 Pronomes pessoais (caso nominativo) do latim clssico.................................................................................................208 Quadro 10 Sistema pronominal do latim vulgar..........................213 Quadro 11 Sistema pronominal de 3 pessoa no latim vulgar.....218 Quadro 12 Traos morfo-semnticos de gnero, nmero e pessoa de gente e a gente...................................................................................................229 Quadro 13 Exemplo do paradigma verbal e pronominal em trs fases histricas da lngua: latim, portugus clssico e portugus brasileiro atual....................................................................................237 Quadro 14 Perfil dos informantes das capitais.............................263

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 O /s/ posvoclico no espanhol panamenho.......................99 Tabela 2 A variao do posvoclico em relao ao estilo no espanhol colombiano..........................................................................101 Tabela 3 Marcao de plural de acordo com a posio do vocbulo no SN....................................................................................................106 Tabela 4 Artigos definidos e indefinidos do espanhol..................107 Tabela 5 Frequncia de apagamento de /s/ em determinantes....108 Tabela 6 Frequncia de apagamento de /s/ em substantivos.......108 Tabela 7 Evoluo dos grupos consonantais pl-, cl- e fl-..............121 Tabela 8 Apagamento do R no Rio de Janeiro em dois perodos de pempo, contrastando verbos e no-verbos.......................................136 Tabela 9 Distribuio do /r/ posvoclico [+ anterior] por faixa etria em regies do norte e noroeste do estado do Rio de Janeiro.................................................................................................137 Tabela 10 Variao das formas de tratamento ao rei..................224 Tabela 11 Porcentagens na variao entre as formas conosco, com ns e com a gente nos trs estados do sul do Brasil em regies rurais................................................................................................... 259 Tabela 12 A relao entre a ordem sinttica e a ocorrncia de preposio ou posposio...................................................................287

  • LISTA DE GRFICOS

    Grfico 1 Sentido da mudana [l] [] [lw] [w] considerando a faixa etria........................................................................................129 Grfico 2 Realizao do R em posio interna e externa no dialeto carioca na dcada de 70 do sculo.....................................................134 Grfico 3 Realizao do R em posio interna e externa no dialeto carioca na dcada de 90 do sculo.....................................................135 Grfico 4 Comportamento do /r/ posvoclico em posio interna................................................................................................. 189 Grfico 5 Comportamento do /r/ posvoclico em posio final...................................................................................190 Grfico 6 Variao/mudana nos oblquos tnicos do sculo XIII ao sculo XV entre formas no preposicionadas (- prep.) migo, tigo, sigo, nosco, vosco e as formas preposicionadas (+ prep.) comigo, contigo, consigo, conosco, convosco.....................................255 Grfico 7 Variao entre conosco, com ns e com a gente em regies urbanas de Santa Catarina.............................................261 Grfico 8 Variao entre conosco, com ns e com a gente nas capitais com base no ALiB.................................................................265 Grfico 9 Variao entre conosco, com ns e com a gente por regio, com base em dados do ALiB.................................................268 Grfico 10 Variao entre conosco, com ns e com a gente segundo a escolarizao....................................................................................271 Grfico 11 Variao entre conosco, com ns e com a gente segundo a faixa etria, com base no ALiB......................................................273

  • Grfico 12 Variao entre conosco, com ns e com a gente segundo o sexo, com base no ALiB...................................................................275

  • LISTA DE MAPAS

    Mapa 1 Distribuio das denominaes de galo no sudoeste da Frana..........................................................................61 Mapa 2 Zona em branco = jument, traos verticais = caballa, traos horizontais = equa, traos.........................................................63

  • ABREVIATURAS

    ALiB Atlas Lingustico do Brasil ALERS Atlas Lingustico-Etnogrfico da Regio Sul do Brasil C consoante It. italiano

    Port. portugus

    P.r. peso relativo

    SN sintagma nominal SP sintagma preposicional SV sintagma verbal V vogal

    WLH (WEINREICH, LABOV, HERZOG, 2006 [1968])

  • SUMRIO

    INTRODUO....................................................................................29

    CAPTULO 1- FUNDAMENTAO TERICA............................39 1.1 SINCRONIA E DIACRONIA.........................................................39 1.2 O DESENVOLVIMENTO DA LINGUSTICA HISTRICA.......41 1.2.1 A lingustica histrica da lngua portuguesa.............................42 1.2.2 A teoria da mudana lingustica e a volta a lingustica histrica............................................................................44 1.2.3 Dos neogramticos a sociolingustica.........................................46 1.3 PARA UMA TEORIA DA VARIAO E MUDANA LINGUSTICA.......................................................................................49 1.4 A VARIAO DA LNGUA PELO ESPAO GEOGRFICO....52 1.4.1 Um breve histrico dos estudos dialetolgicos..........................53 1.4.1.1 A dialetologia tradicional...........................................................53 1.4.1.2 As pesquisas de Wenker.............................................................56 1.4.1.3 Atlas Lingustico da Frana (ALF).............................................59 1.4.2 As dimenses da variao lingustica.........................................64 1.4.2.1 Variao diatpica......................................................................64 1.4.2.2 Variao diastrtica....................................................................65 1.4.2.3 Variao diafsica......................................................................67 1.4.3 A dialetologia no Brasil...............................................................68 1.4.3.1 Atlas Lingustico do Brasil (ALiB)............................................68

    CAPTULO 2 A MUDANA FONOLGICA..............................73

  • 2.1 INTRODUO................................................................................73 2.2 A ESTRUTURA DA SLABA........................................................74 2.3 O APAGAMENTO DA NASAL POSVOCLICA........................82 2.4 A PERDA DAS OCLUSIVAS EM FINAL DE SLABA...............93 2.5 A EVOLUO DO /S/ POSVOCLICO.......................................95 2.5.1 Variao do /s/ em coda no portugus e espanhol....................98 2.5.2 Variao do /s/ em coda em outras lnguas romnicas..........112 2.6 A VOCALIZAO E APAGAMENTO DA LATERAL ALVEOLAR /L/...................................................................................117

    2.6.1 A evoluo geral da lateral /l/ do latim ao portugus.............117 2.6.2 A vocalizao e queda da lateral /l/ em posio de coda........121 2.7 O APAGAMENTO DO /R/ EM FINAL DE PALAVRA..............131

    2.7.1 O problema da avaliao do apagamento do /r/ posvoclico.......................................................................................... 140 2.8 A REESTRUTURAO DA SLABA PORTUGUESA.............142 2.9 MOTIVAES DAS MUDANAS FONTICO-FONOLGICAS................................................................................. 146 2.9.1 Leis versus tendncias fonticas...............................................146 2.9.2 Aspectos gerais da mudana fontica......................................149 2.9.3 Crtica causalidade na mudana lingustica.........................166 2.9.4 Graus de intensidade e apcope...............................................171 2.9.5 Tipologias lingusticas...............................................................174 2.9.5.1 Tipologias lingusticas e mudana fonolgica.........................177 2.9.6 Interao entre mudana fonolgica e mudana morfossinttica....................................................................................191

  • CAPTULO 3 MUDANAS MORFOSSINTTICAS................197 3.1 A PERDA DA CATEGORIA DE CASO......................................197 CAPTULO 4 O NASCIMENTO DE NOVOS PRONOMES....207 4.1 O SISTEMA DE PRONOMES PESSOAIS LATINOS E SUA EVOLUO........................................................................................207 4.2 UMA NOVA REESTRUTURAO DO PARADIGMA PRONOMINAL...................................................................................220

    4.2.1 Introduo..................................................................................220 4.2.2 O desenvolvimento dos pronomes voc/vocs.........................221 4.2.3 A gramaticalizao de a gente..................................................228 4.2.3.1 Fatores internos e externos da variao ns/a gente................233 4.3 A NOVA MORFOLOGIA VERBAL............................................236 4.4 A DIACRONIA DOS OBLQUOS TNICOS.............................238 4.4.1 A evoluo das formas pronominais oblquas tnicas............246 4.4.2 Anlise dos dados diacrnicos..................................................252 4.4.2.1 Metodologia.............................................................................252 4.4.2.2 O corpus da anlise..................................................................253 4.4.2.3 Discusso dos dados.................................................................254 4.4.3 Anlise sincrnica......................................................................257 4.4.3.1 A variao no sul do Brasil......................................................258 4.4.4 A variao nas capitais: dados do ALiB..................................262 4.4.4.1 Geral.........................................................................................265 4.4.4.2 Variao diatpica....................................................................267 4.4.4.3 Escolaridade.............................................................................271 4.4.4.4 Faixa etria...............................................................................272 4.4.4.5 Sexo..........................................................................................275

  • CAPTULO 5 AS CAUSAS INTERNAS DA MUDANA.........277 5.1 TIPOLOGIAS LINGUSTICAS....................................................277 5.2 A MUDANA SINTTICA.........................................................299 5.2.1 O exemplo da Vulgata de So Jernimo..................................301 5.2.2 Mudanas em cadeia.................................................................305 5.3 A TENDNCIA A REGULARIZAO DAS FORMAS............307 5.3.1 A evoluo dos oblquos tnicos em outras lnguas................312 5.4 A MUDANA NA SINTAXE DO ADJUNTO ADVERBIAL....315 5.5 A MUDANA NA ATRIBUIO DE CASO.............................317

    CONSIDERAES FINAIS.............................................................321

    REFERNCIAS.................................................................................328

    Anexo 1 Mapa da vocalizao da lateral /l/ ps-voclica no sul do Brasil....................................................................................................345 Anexo 2 Caminho dos tropeiros (sculos XVIII e XIX)...............346 Anexo 3 Mapa da variao do pronome conosco em regies rurais do sul do Brasil....................................................................................347 Anexo 4 Anexo 4 Mapa da variao do /r/ em coda silbida no sul do Brasil.........................................................................................348 Anexo 5 Mapa do apagamento do arquifonema /N/ no final da palavra homem no sul do Brasil........................................................349 Anexo 6 Mapa do apagamento do fonema /r/ no final da palavra revlver no sul do Brasil.....................................................................350

  • Anexo 7 Mapa do apagamento do fonema /r/ no final da palavra calor no sul do Brasil..........................................................................351

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    INTRODUO

    No presente estudo busca-se compreender como uma mudana lingustica tem repercusses sobre outros pontos da gramtica. Partindo de um estudo histrico da lngua portuguesa, com foco na evoluo dos pronomes oblquos tnicos, especialmente o conosco, procura-se ver at que ponto outras mudanas estariam, em diferentes graus, vinculadas reestruturao do paradigma dos oblquos tnicos desde sua origem no latim. O intuito ter uma viso no atomstica, mas global, relacionando mudanas ocorridas desde o nvel fonolgico at o nvel sinttico. Dessa forma, as mudanas dos oblquos tnicos formam um ncleo a partir do qual so buscadas relaes com mudanas de outros nveis da gramtica, de modo a realizar uma pesquisa que no envolva somente esse tpico de morfologia histrica. Assim, partindo desse tema bem especfico pretende-se traar relaes entre outras mudanas no percurso histrico da lngua, buscando uma viso mais global da evoluo da lngua portuguesa.

    Os pronomes oblquos tnicos portugueses comigo, contigo, consigo, conosco e convosco passaram por drsticas mudanas, principalmente na transio entre o portugus arcaico e o portugus

    clssico. Nesse perodo vemos a reintroduo da preposio com diante dos pronomes, nos quais j havia a mesma preposio latina (cum). Os oblquos do portugus arcaico (migo, tigo, sigo, nosco e vosco) vieram dos pronomes pessoais latinos no caso ablativo mais a partcula cum (me + cum > mecum > migo). Nas gramticas histricas da lngua portuguesa (COUTINHO, 1976[1938]; NUNES, 1975; WILLIAMS, 2001[1938])

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    no est, entretanto, suficientemente explicada esta reintroduo da preposio com s formas do paradigma pronominal.

    Nasce, ento, o problema central a ser investigado: que fatores internos ou externos podem ter causado essa reintroduo da preposio com diante de migo, tigo, nosco, sigo e vosco?

    Outra questo logo suscitada foi como teria sido o percurso desses pronomes do latim ao portugus. E ainda quais variantes existiriam para esses pronomes no portugus brasileiro atual, mais especificamente do conosco? Centramo-nos na variao do conosco no Brasil atual em virtude da disponibilidade de dados do ALERS e, principalmente, do ALiB referentes a essa forma pronominal.

    Uma terceira questo era quais outras mudanas, em outros nveis gramaticais, estariam relacionadas reestruturao do paradigma pronominal de conosco?

    Evidenciou-se a relao entre a mudana da ordem sinttica SOV do latim para a ordem SVO do portugus como um dos fatores internos. Tal mudana envolve questes de universais lingusticos, mais especificamente, envolve universais implicacionais. De acordo com esses universais lingusticos, sobre os quais se tratar mais detalhadamente no captulo 5, a estrutura sinttica SOV possibilitava a existncia de posposies, como de fato existiam em latim. Em noscum, por exemplo, a partcula cum posposta ao pronome que rege, nos. Por outro lado, a estrutura SVO, como na sintaxe portuguesa e na sintaxe das lnguas neolatinas em geral , exige a preposio das partculas. Por isso, a mudana sinttica, operada na ordem bsica da orao do latim

  • 31

    ao portugus, configurou-se como uma fora interna a impulsionar a

    reestruturao dos oblquos tnicos. A alterao na ordem bsica da orao, na qual o objeto direto

    descola-se da esquerda para a direita do verbo, est relacionada com a perda de morfologia de caso do latim. E esse processo est envolvido, por sua vez, com alteraes fonolgicas a perda dos fonemas de final de palavra que constituem parte da morfologia de caso , alm de um incremento no uso de preposies.

    Para refazer essa intrincada rede de mudanas, na primeira parte desse estudo apresentamos a diacronia das consoantes em coda silbica no final de palavra, recorrendo a dados desde o latim at o portugus brasileiro atual. Isso ser efetuado para que se possa tornar evidente certos padres mais amplos da mudana fonolgica.

    Aps isso apresentada a transformao da slaba latina at o portugus atual. Vemos, por exemplo, que h uma tendncia cada vez maior de se formarem slabas abertas1 no portugus do Brasil, e essa tendncia j existia no latim vulgar. Isso causa alteraes na morfologia, visto que as flexes encontram-se no final das palavras, constituindo-se muitas vezes como codas de slabas finais, como o /m/ que no latim marca o acusativo.

    Aps tais incurses em pontos da fonologia histrica do portugus, analisaremos a gradativa perda do rico sistema latino de flexes de caso do latim, e suas relaes com mudanas fonolgicas. Na verdade veremos que mudanas fonolgicas como a perda do /m/ final

    1 Slabas abertas so aquelas que no possuem consoantes ao seu final, como as

    duas slabas da palavra casa (CV.CV).

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    marcador de acusativo desencadearam neutralizaes nas flexes de caso

    2.

    Essa perda de morfologia nominal de caso desencadeia, por sua vez, a alterao na ordem bsica das palavras na orao, com a passagem de SOV para SVO, como ser visto com mais detalhes no captulo sobre as causas internas da mudana, na segunda parte. Essa mudana sinttica leva a um novo uso de com diante dos pronomes oblquos.

    Ser esse percurso de mudanas gerando outras mudanas que veremos ao longo dos captulos, primeiramente observando as mudanas fonolgicas, posteriormente, as morfossintticas, as causas internas da mudana e, por fim, dados do portugus atual, para identificar possveis rumos da mudana, ou melhor, ver como o sistema de oblquos tnicos tem se reestruturado no conjunto de mudanas no uso dos outros pronomes pessoais.

    Vemos, portanto, que uma mudana lingustica desencadeada por mudanas anteriores e, igualmente, por um contexto que a favorea. Toda mudana lingustica acaba tendo reflexes em outros componentes da gramtica. O que no poderia deixar de ser diferente, pois a lngua um complexo sistema cujas partes esto intimamente interligadas. Uma mudana acaba afetando outros elementos, gerando mudanas em cadeia, na qual uma causa de outra, continuamente. Tarefa difcil ver que fatores internos estariam em jogo nessa relao de causa e efeito.

    2 claro que no apenas mudanas fonolgicas levaram a perda do sistema de

    caso do latim. Outros fatores serviram de incremento para o uso de preposies, as quais assumiram novas funes e acabaram por dispensar o uso de desinncias de caso para a expresso das relaes sintticas.

  • 33

    Isso justifica a metodologia que adotamos nesta pesquisa, partindo de um ponto especfico da gramtica no presente caso, os oblquos tnicos e ir tecendo redes de mudanas, nas quais mudanas num nvel da gramtica, como o nvel fonolgico, podem ter repercusses em outros nveis da gramtica, inclusive na sintaxe.

    A ideia inicial dessa pesquisa veio da necessidade que senti em dar continuidade a pesquisa que iniciei ainda na graduao, que resultou na monografia intitulada Um estudo diacrnico do pronome conosco (PINHO, 2009)3. Nessa pesquisa foi possvel logo se constatar que no se detecta uma motivao interna da mudana to facilmente. Uma mudana na sintaxe, por exemplo, pode ter srias consequncias na reestruturao do paradigma pronominal. Geralmente os estudos apontam o contrrio, que a mudana pronominal gera mudanas sintticas, como a incluso dos pronomes voc(s) e a gente motivando um maior preenchimento da posio de sujeito. Isso pode ser verdade4, mas no se v que o contrrio tambm pode ocorrer: a mudana sinttica sendo causa de mudanas pronominais. Aqui reside a inovao da presente pesquisa.

    Foi isto que pude contatar em pesquisa ainda como estudante de graduao. Defendi em Pinho (2009) que a mudana na ordem clssica do latim sujeito-objeto-verbo (SOV) para a sintaxe romnica sujeito-verbo-objeto (SVO) foi a causa para a reestruturao profunda do

    3 Esta pesquisa resultou em um artigo intitulado Consideraes sobre a histria

    do pronome conosco (2010), publicado em co-autoria com Bruno Cardoso, na revista Working Papers em Lingustica. 4 Naro et Scherre (2007) contestam que h uma relao direta entre a criao de

    novos pronomes e o maior preenchimento do sujeito pronominal, o que discutvel. A questo, entretendo, parece estar em aberto.

  • 34

    paradigma nobiscum, vobiscum, mecum, etc. Pela teoria dos universais lingusticos sabemos que as lnguas de tipo SOV tendem a ter posposies. No caso do citado paradigma pronominal latino, vemos que a preposio cum posposta ao pronome que rege o caso ablativo justamente por causa da ordem sinttica. J em lnguas com a sintaxe SVO, como o portugus, temos o predomnio da anteposio da partcula com/cum. Por isso em portugus dizemos com voc, o no voc com, como seria em latim.5

    A mudana na sintaxe latina (SOV > SVO) provocada por mudanas anteriores de natureza fonolgica, bem como no uso de preposies , portando, desencadearia uma reestruturao nesses pronomes, nos quais a proposio cum que os rege colocada sua esquerda, e no mais direita, como ocorria no latim.

    Mas voltado questo central, um dos principais objetivos deste estudo analisar a variao ns e a gente na posio sinttica de adjunto adverbial de companhia (ex: Eu vi o Paulo com a gente/conosco). Atualmente h vrios estudos sobre essa variao na posio de sujeito (LOPES, 1993, 1998, 1999, 2007). Contudo, a posio de adjunto adverbial no foi objeto de aprofundados estudos. O interessante nessa posio sinttica que temos trs variantes para o pronome. H em variao no Brasil a forma padro conosco, vinda diretamente do portugus clssico, com ns e com a gente.

    (1) Eles observaram Paulo conosco.

    5 Os universais lingusticos e sua importncia para a compreenso da relao

    entre mudanas sintticas e pronominais sero abordados mais profundamente no captulo 5.

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    (2) Eles observaram Paulo com ns. (3) Eles observaram Paulo com a gente.

    No caso (1) temos o portugus padro, no qual o pronome conosco constitui-se como um resqucio de caso ablativo na morfologia. J em (2) e (3) temos a perda desse resqucio de caso no pronome, por substituio de formas que esto no caso de sujeito. Trata-se de uma continuao de um longo processo de mudana que tem apagado os resqucios de caso acusativo, dativo e ablativo no sistema pronominal do portugus, para a manuteno somente da forma nominativa, ou do caso reto, como dizem as gramticas tradicionais. Este processo pode ser visto nos seguintes exemplos:

    (3) Os policiais nos viram > Os policiais viram ns/a gente (4) Os policiais me viram > Os policiais viram eu. (5) Os policiais o viram > Os policiais viram ele (6) Os policiais lhe/nos/me deram uma multa > Os policiais deram uma multa pra voc/ns/a gente/mim/eu

    Dos exemplos (3) a (5) observamos como o caso oblquo (nos, me, o) tem sido sistematicamente abandonado no uso, sendo substitudo pelas formas do caso reto (ns/a gente, eu, ele/ela, voc(s)). Tal como no latim com relao aos nomes, a perda da marcao de caso no portugus obriga a colocao do pronome ao fim. Troca-se, neste caso, a ordem sinttica SOV pela SVO, como j ocorreu desde o surgimento do proto-romance, o qual deu origem s lnguas neolatinas. Em (6), o

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    mesmo processo de perda dos casos visto na funo de objeto indireto (dativo), onde os pronomes tonos me, lhe e nos so tambm substitudos por pronomes do caso reto. Vemos, portanto, um generalizado processo evolutivo de regularizao das formas, em que a forma sobrevivente a do caso nominativo, em grande parte.

    Para efetuar uma anlise quantitativa dessa variao, feito o uso do corpus do Atlas Lingustico do Brasil (ALIB), mais especificamente dos dados de todas as capitais brasileiras. Dentro do quadro terico da dialetologia plutidimensional (THUN, 2005), possvel ver como se processa a atual variao entre essas trs formas

    (conosco, com ns e com a gente) nos diferentes grupos sociais. possvel observar, alm da variao diatpica (o principal objetivo da dialetologia), a variao diastrtica, diafsica, diagenrica e diageracional6. Dessa forma, h a possibilidade de seefetuar uma anlise da variao tanto na dimenso horizontal (a variao diatpica) quanto na dimenso vertical, entre os estratos sociais. Como temos dados sincrnicos de duas faixas etrias diferentes, poderemos acompanhar uma possvel mudana em tempo aparente.

    Como a mudana lingustica , obviamente, um processo complexo. E por esse motivo que ser buscado incluir deferentes elementos tericos para tentar explicar satisfatoriamente as alteraes da lngua. Procurar-se- explicar, como dito anteriormente, quais as causas internas da mudana de nobiscum para com ns/com a gente. Essa procura faz revelar uma intrincada rede de mudanas, e passvel de

    6 A significao de cada um destes termos ser abordada na fundamentao

    terica.

  • 37

    crer que no se poder compreender essa mudana adequadamente se no for feito um esforo de se rastrear quais as principais mudanas que levaram a essa alterao pronominal. O que leva a percorrer diferentes nveis gramaticais, justificando a estrutura desse texto: primeiro a mudana fonolgica, depois morfologia e, por ltimo, sintaxe.

    Contrariamente a esta postura, de buscar ver a relao de mtua influncia das mudanas em diferentes partes da gramtica, v-se que as gramticas histricas que existem hoje (que, na verdade, foram escritas na primeira metade do sculo XX) ainda seguem a metodologia neogramtica, e apresentam uma lista de leis fonticas e morfolgicas. Quer dizer, listam as mudanas, mas no vem que fatores internos ou externos as motivaram, muito menos que outras mudanas as desencadearam.

    Faz-se necessrio mais do que nunca, pois, aplicar a teoria da variao e mudana lingustica (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 1968 [2006]) aos estudos diacrnicos, tarefa iniciada parcialmente por Tarallo (1990b), como tambm dos universais lingusticos, numa tentativa de se reinterpretar, na medida do possvel, a histria da lngua portuguesa luz dos mais recentes avanos da cincia da linguagem. O que uma tarefa rdua e longa.

    Ser muito proveitosa uma possvel integrao entre a teoria da variao e mudana com a teoria dos universais lingusticos. Nesta teoria podemos ver que a histria de uma lngua pode ser descrita em termos de mudana de uma configurao tipolgica a outra. J a teoria da variao e mudana impede que se cometa o mesmo erro dos neogramticos ou gerativistas, ao encarar a mudana como algo

  • 38

    mecnico, como se a lngua evolusse aos saltos de uma gerao a outra. Por meio da sociolingustica laboviana (LABOV, 1972 [2008]) vemos que a mudana gradual e socialmente motivada, e pela observao das tipologias vemos para qual tipologia a lngua est caminhando, nos possibilitando, com indcios empricos de variao, antever futuros estados da lngua. Por isso importante conjugar a anlise social da mudana (que elementos da histria social interferem) com as condies estruturais que entram em jogo (as estrutura interna e as tipologias universais).

    Esta dissertao constitui-se como a continuao de uma instigante pesquisa que iniciei ainda durante a graduao, fazendo parte de um projeto bem maior, que, creio, durar muitos anos ainda para ser concludo, no qual pretendo contribuir para a atualizao, ou melhor, para uma re-interpretao dos dados diacrnicos do portugus, em seus vrios nveis gramaticais. Isso s poder ser possvel numa unificao entre a teoria da variao e mudana lingustica teoria dos universais, como tambm teoria da gramaticalizao. Faz-se necessrio, portanto, que a nova gerao de linguistas procure unir a tradio dos estudos filolgicos (predominantes at os anos 50 do sculo XX) aos mais atuais avanos da teoria lingustica, sem qualquer tipo de dogmatismo cientfico (pensar que uma teoria melhor que outra), que s faz prejudicar o progresso da cincia.

  • 39

    CAPTULO 1

    FUNDAMENTAO TERICA

    1.1 SINCRONIA E DIACRONIA

    Um fato bem assentado na lingustica que todas as lnguas so sistemas que mudam com o tempo. O estudo da linguagem pode se dividir em dois eixos: a lingustica sincrnica tem como objeto o estado da lngua num determinado perodo histrico, abstraindo o fator tempo. Ou seja, para a lingustica sincrnica importa a anlise das formas como elas se apresentam num intervalo de tempo delimitado uma dcada, um sculo etc.. Desse ponto de vista, no importa a evoluo das formas em anlise, mas apenas as relaes que estabelecem entre si, num sistema abstrato: a gramtica. Para esse tipo de estudo, portanto, importa no os estados passados da lngua, mas apenas um determinado estado, ou sincronia.

    Ao contrrio dessa perspectiva, para a lingustica diacrnica no a sincronia o estudo de apenas um perodo da lngua que importa, mas a diacronia do sistema, ou seja, o estudo dos estados sucessivos pelos quais a lngua passou. Na perspectiva diacrnica da lngua, v-se como as formas vo se alterando e sucedendo ao longo do tempo. Dentro dessa perspectiva, a varivel tempo central. Na lingustica diacrnica (ou histrica) o que importa a continuidade da lngua pelo tempo. Analisa-se o sistema em alterao constante no

  • 40

    tempo em todos os seus nveis, do fontico-fonolgico ao morfossinttico. Cabe, portanto, lingustica histrica o estudo da evoluo da lngua no tempo. Dubois et al. (1978) do uma definio bem clara da diferena entre os conceitos de diacronia e sincronia:

    A lngua pode ser considerada como um

    sistema que funciona num determinado momento do tempo (sincronia) ou ento analisada na sua evoluo (diacronia); pela diacronia, seguem-se os fatos de lngua na sua sucesso, na sua mudana

    de um momento a outro da histria: para F. DE SAUSSERE, diacronia primeiro um dos pontos de vista que o lingista pode escolher e que, de maneira fundamental, se ope a sincronia. Nessa

    perspectiva, todo estudo diacrnico uma

    explicao histrica do sistema sincrnico e os fatos diacrnicos so as mudanas sofridas pela

    lngua.

    A diacronia tambm a sucesso de sincronias que, no esprito de F. DE SAUSSURE, a nica que pode explicar de forma adequada a

    evoluo da lngua. Chama-se igualmente diacronia o carter dos fatos lingusticos

    considerados na sua evoluo atravs do tempo,

    ou ento a disciplina que se ocupa desse carter (a lingustica diacrnica) (DUBOIS et al., 1978, p. 181).

  • 41

    1.2 O DESENVOLVIMENTO DA LINGUSTICA HISTRICA

    A lingustica nasceu no sculo XIX como uma cincia fundamentalmente histrica. Com o descobrimento do snscrito pelos fillogos europeus, no final do sculo XVIII, descobriram-se certas semelhanas entre a lngua dos antigos textos sagrados do hindusmo com o latim e o grego. Logo se lanou a hiptese de um possvel parentesco entre o latim, o grego e o snscrito. Dessa forma, as

    modernas lnguas da Europa e da ndia teriam um ancestral em comum. Comeou ento um intenso trabalho da comparao entre essas lnguas na tentativa da reconstruo da lngua ancestral que teria dado origem s modernas lnguas indo-europeias. Esse ancestral foi denominado de indo-europeu, que seria uma lngua da qual no sobreviveram documentos escritos, falada em alguma regio prxima ao Mar Negro, por volta de 3000 a.C. A lingustica comparativa do sculo XIX conseguiu, em boa parte, reconstruir a estrutura gramatical do indo-europeu e traar o parentesco entre as diversas lnguas que dele descendem.

    O desenvolvimento dos mtodos da filologia alcanado nesse trabalho passou a ser aplicado no estudo histrico das prprias lnguas europeias, primeiramente. Com isso houve o nascimento de um grupo de lingistas, na segunda metade do sculo XIX, denominados de neogramticos, cujo principal nome Hermann Paul, conhecido principalmente por seu livro Princpios fundamentais da histria da lngua. Essa obra tornou-se a principal referncia terica dessa escola,

  • 42

    pois nela encontra-se a sntese dos conceitos desenvolvidos pelos neogramticos.

    1.2.1 A lingustica histrica da lngua portuguesa

    Os mtodos desenvolvidos pelos neogramticos inspiraram outros fillogos, que os aplicaram no estudo da histria de lnguas particulares. Sob inspirao neogramtica h, por exemplo, as obras de Coutinho (1976 [1938]) e Williams (2001 [1938]) sobre a diacronia do portugus.

    A dcada de 30 do sculo XX marca um perodo de significativo desenvolvimento da filologia portuguesa (ambas as gramticas histricas de Coutinho e de Williams foram publicadas em 1938). Sem contar que, em Portugal, ainda estava em plena atividade a revista Boletim de Filologia, de Leite de Vasconcelos, na qual saram os primeiros e mais aprofundados estudos filolgicos da lngua portuguesa. Podemos situar o incio dessa fase no ano de 1888-1889, no qual se publicou o primeiro volume da Revista Lusitana, tambm de Leite de Vasconcelos, que foi um significativo veculo de divulgao dos primeiros estudos histricos da lngua portuguesa, os quais possibilitariam a escritura das primeiras gramticas histricas. J. J. Nunes, por exemplo, publicou na Revista Lusitana um extenso estudo de fontica histrica do portugus, o qual depois serviu de base para a primeira parte de seu Compndio.

  • 43

    A Revista Lusitana acabou em 1943, logo aps a morte de Leite de Vasconcelos. E o Boletim de Filologia durar at o incio da dcada de 90. Mas muito antes desta dada, em uma rpida anlise dos trabalhos publicados nas ltimas dcadas do peridico portugus, vemos que o Boletim de Filologia j no era mais filolgico (no tinha mais uma preocupao histrica), e no vemos mais a publicao de significativos artigos de investigao histrica, tiradas algumas excees.

    Isso se deve ao fato de que, nos anos 70, a lingustica sincrnica toma uma posio de proeminncia, com desenvolvimento do estruturalismo, do gerativismo, da psicolingustica, da sociolingustica etc. Diante dessas novas disciplinas, que surgem dentro da lingustica, a lingustica histrica tornou-se naquele momento uma rea de estudos perifrica, sendo a situao duas ou trs dcadas antes era totalmente inversa; ou seja, antes era a lingustica histrica que dominava o cenrio dos estudos cientficos da lngua.

    Apesar da lingustica estrutural do sculo XX ter colocado nfase no estudo sincrnico da lngua, pode-se ver que, na lingustica produzida em lngua portuguesa, os estudos histricos (diacrnicos) dominaram at mais ou menos a dcada de 50 do sculo passado. Grandes nomes da lingustica (ou filologia), tais como Antenor Nascentes, Silva Neto, Coutinho, Leite de Vasconcelos, Said Ali, Maurer Jr., entre tantos outros, se debruaram a estudar a histria da evoluo do portugus desde suas origens no latim clssico. Produziram as primeiras gramticas histricas e dicionrios etimolgicos que at hoje so fontes valiosas para o estudo da histria da lngua portuguesa.

  • 44

    Apesar do crescimento da lingustica sincrnica desenvolvida dentro da perspectiva estruturalista e, depois, gerativista em detrimento dos estudos diacrnicos, possvel se observar que, dos anos 90 do sculo XX em diante, tem havido uma significativa alterao desta situao. No Brasil, por exemplo, tem se falado em um renascimento da lingustica histrica. Destaca-se a atividade da lingustica Mattos e Silva7, que tem uma rica produo de estudos sobre a histrica da lngua, como as obras O portugus arcaico e Ensaios para uma scio-histria do portugus brasileiro.

    O incio desse renascimento da lingustica no Brasil pode ser visto na obra de Tarallo que em 1990 publica Tempos lingusticos, livro em que inicia a aplicar os avanos da lingustica laboviana aos estudos diacrnicos. Infelizmente, sua morte prematura interrompe sua atividade cientifica.

    1.2.2 A teoria da mudana lingustica e a volta a lingustica histrica

    Os trabalhos de Labov, e de seu orientador Weinreich, deram origem a um novo nimo lingustica histrica com a proposta de uma teoria da mudana lingustica (WLH, 2006 [1968]). As pesquisas de Labov, feitas sobre o ingls estadunidense, so fundamentalmente sincrnicas, e visam a estabelecer as regras que determinam a variabilidade sistemtica das lnguas. sabido que se h variao lingustica pode tambm haver mudana. Desta forma, a lingustica

    7 E tambm do grupo de pesquisadores reunidos na UFBA.

  • 45

    sincrnica sociolingustica, inspirada em Labov, acabou renovando os estudos histricos. Hoje h, por exemplo, quem fale em uma sociolingustica histrica, na qual se aplicam os mtodos da sociolingustica pesquisa diacrnica.

    Labov (2008 [1972]) prope que as lnguas so sistematicamente heterogneas. Essa heterogeneidade no , portanto, algo que ocorre de forma catica, desordenada. Muito pelo contrrio, as pesquisas empricas de Labov demonstram a existncia de uma sistematicidade na variao e mudana lingustica. As variantes de uma determinada estrutura, como a concordncia de nmero dentro do sintagma nominal portugus, variam de acordo com determinadas regras, e no aleatoriamente. No caso da concordncia de nmero em portugus, a perda da concordncia se d dos vocbulos que esto mais direita para os que esto esquerda, sendo preservada a marca de plural no primeiro elemento do sintagma, que geralmente o artigo (ex.: os belos carros > os belos carro > os belo carro) (NARO, SCHERRE, 2007).

    A sistematicidade da variao proposta por WLH levam ao entendimento de que a variao no algo marginal ao sistema gramatical. Muito pelo contrrio, as formas em variao fazem parte da prpria estrutura da lngua. E o estudo da variao proposto por WLH faz uma tentativa de se pensar o estudo das mudanas tanto em relao aos fatores internos ao prprio sistema lingustico quanto aos fatores externos as questes de ordem sociais que interferem e condicionam a variao/mudana. Dessa forma, de acordo com WLH (2006 [1968], p. 114):

  • 46

    Existe uma matriz social em que a mudana est

    encaixada, tanto quanto uma matriz lingstica.

    Relaes dentro do contexto social no so menos complexas do que as relaes lingsticas [...], e tcnicas sofisticadas so exigidas para sua anlise. Mas, por diversas razes, os lingistas no

    procuraram a explicao da mudana lingustica nesta rea com a energia e a competncia

    requeridas.

    1.2.3 Dos neogramticos a sociolingustica

    Como foi visto anteriormente, os primeiros estudos diacrnicos feitos sobre o portugus, como a obra de J. J. Nunes sobre a histria do portugus, foram inspirados na teoria dos neogramticos, cujos princpios acabaram, em parte, sendo desmentidos pelas pesquisas dialetolgicas de Gilliron, feitas com base no Atlas Lingustico da Frana (ALF).

    Os neogramticos acreditavam na regularidade e mecanicidade absoluta da mudana fontica. Entretanto, os mapas do ALF acabaram demonstrando que as mudanas reais no so regulares. Elas atingem certas palavras em certas regies de um determinado espao geogrfico em que uma lngua falada, mas no o sistema por completo em todo o territrio pelo qual uma lngua se estende. Ao contrrio do que pensavam os neogramticos, que defendiam que a mudana atingia todas as palavras, em todas as regies, de forma mecnica, as mudanas

  • 47

    fonticas atingiam somente algumas palavras em certas reas geogrficas. As mudanas no eram, portanto, mecnicas. Os mapas do ALF indicam que a realidade lingustica muito mais complexa. Certos pontos isolados podem se manter conservadores, no meio de reas inovadoras, e a mudana pode nem chagar a certas reas, o que acaba gerando uma diferenciao dialetal. Pode ocorrer ainda da mudana fontica se expandir mais facilmente em certos vocbulos, ao passo que outros no so alterados.

    Dessa forma, com o desenvolvimento da dialetologia, primeiro na Alemanha e Frana, depois em outros pases da Europa e Amrica, rompe-se com o princpio neogramtico da mecanicidade da mudana. Depois, com o desenvolvimento da teoria da mudana lingustica (WLH, 1968 [2006]) e da sociolingustica laboviana (LABOV, 1972 [2008]), rompe-se com o princpio formalista, desenvolvido dentro do estruturalismo, e continuado no gerativismo, da homogeneidade lingustica. Para os formalistas, a realizao real da lngua8 algo de menor importncia. Entendem que a lngua , por princpio, estruturada, e que essa estrutura homognea. Bloomfield, por exemplo, admite que h heterogeneidade, mas ignora isso na hora da anlise, na qual abstrai uma homogeneidade.

    Uma comunidade de fala um grupo de pessoas que interagem por meio da fala. [...] Se

    8 Saussure vai chamar de fala (em oposio lngua) a essa realizao concreta, e

    Chomsky de desempenho, em oposio competncia. O foco dessas duas teorias estar, portanto, na lngua ou na competncia. Os dados fornecidos pela fala ou pelo desempenho, por sua fez, sero marginalizados.

  • 48

    observssemos bem de perto, descobriramos que

    duas pessoas ou, antes, talvez, nenhuma pessoa

    em diferentes pocas jamais falam exatamente do mesmo modo. [...] Essas diferenas desempenham um papel muito importante na histria das lnguas; o lingista forado a

    consider-las muito cuidadosamente, embora em alguma parte de seu trabalho ele seja forado provisoriamente a ignor-las. Ao fazer assim, ele

    est simplesmente empregando o mtodo da

    abstrao, um mtodo essencial para a

    investigao cientfica, mas os resultados assim obtidos tm de ser corrigidos antes que possam ser

    usados na maioria dos trabalhos ulteriores (BOOMFIELD, 1933, p. 42-45 apud WLH, 2006 [1968], p. 58).

    A sociolingustica, pelo contrrio, preocupar-se- com aquilo que justamente a lingustica formal desprezava: a fala realizada em situaes reais de interao. Trata-se de uma lingustica comprometida com os dados reais da lngua. A sociolingustica vai demonstrar, com base em slida fundamentao emprica, que a lngua naturalmente uma estrutura varivel, e que a variao faz parte de sua prpria estrutura. Ou melhor, demonstra que a variao no um processo aleatrio (ou catico), mas que regida por regras, sendo, portanto, sistemtica.

    Se a variao pode levar mudana, ento o estudo da variao pode lanar luz sobre a mudana e, portando, sobre a dinmica

  • 49

    diacrnica das lnguas. Assim, a sociolingustica deu base emprica para o desenvolvimento de uma nova teoria da mudana lingustica, no final dos anos 60 do sculo XX. O principal avano o rompimento do preceito da homogeneidade lingustica, ou melhor, que a lngua enquanto sistema uma estrutura homognea. Pelo contrrio, a sociolingustica prope que a prpria estrutura naturalmente varivel. Desta forma, concebe-se que uma mudana encaixa-se numa estrutura lingustica, como tambm numa estrutura social. Ou seja, h motivaes para a mudana que so internas estrutura da lngua, e outras que esto no campo social (questes histricas, econmicas etc). numa conjuno de fatores internos e externos que, idealmente, devemos explicar a mudana. Dizer que uma mudana se encaixa numa estrutura lingustica nos leva a ver que a mudana nunca ocorre isolada na estrutura.

    1.3 PARA UMA TEORIA DA VARIAO E MUDANA LINGUSTICA

    A sociolingustica tem mantido desde o incio uma constante preocupao em recolher uma base emprica para sustentar a teoria da variao e mudana lingustica. As lnguas variam e mudam porque so utilizadas em contextos historicamente concretos. principalmente por meio da ao de indivduos que agem na histria por meio da linguagem que se faz a histria da prpria lngua, enquanto uma estrutura verbal que evolui.

  • 50

    Dessa forma, a observao dessa variao da lngua na fala dos indivduos historicamente contextualizados fundamental para a construo de uma teoria consistente sobre a dinmica evolutiva das lnguas, e ser justamente esta a preocupao de Labov ao se iniciar na lingustica, enquanto ainda formulava seu primeiro projeto de pesquisa. Ele deixa evidente sua inteno de sair do gabinete para ver a real manifestao da lngua em uso na sociedade.

    Quando me iniciei na lingustica, como estudante, em 1961, era minha inteno coletar dados no mundo secular. Os primeiros projetos que concebi eram ensaios em lingustica experimental,

    levados a cabo em ambientes sociais corriqueiros.

    Meu objetivo era evitar a inevitvel obscuridade dos textos, inibio das elicitaes formais e o

    auto-engano da introspeco (LABOV, 2008 [1972], p. 13).

    Vemos, aqui, que Labov parece se dirigir especialmente ao formalismo quando se referir a um auto-engano da introspeco.

    O problema que Labov tenta superar o criado pelo estruturalismo de que a estrutura lingustica, para formar um sistema coeso e funcional, tem que ser homognea. Saussure, por exemplo, chegou a afirmar que o sistema, em sua natureza mais fundamental, no muda (LUCCHESI, 2004). Assim nasce um paradoxo: a lngua tem que ser homognea para ser estruturada; mas, por outro lado, se isso for verdadeiro ento como as lnguas mudam se so homogneas?

  • 51

    A soluo a este grave problema terico est no rompimento com a concepo de que a estrutura tem que ser homognea. Na verdade a heterogeneidade sistmica, parte da prpria estrutura gramatical.

    Os fatos da heterogeneidade, at agora,

    no se harmonizaram bem com a abordagem estrutural da lngua. Veremos as sementes deste

    conflito em Saussure e seu agravamento nos trabalhos dos descritivistas, que se debatem com o

    fenmeno da mudana. Pois quanto mais os

    linguistas tm ficado impressionados com a existncia da estrutura da lngua, e quanto mais

    eles tm apoiado essa observao com argumentos dedutivos sobre as vantagens funcionais da

    estrutura, mais misteriosa tem se tornado a transio de uma lngua de um estado para outro.

    Afinal, se uma lngua tem de ser estruturada, a fim de funcionar eficientemente, como que as

    pessoas continuam a falar enquanto a lngua

    muda, isto , enquanto passa por perodos de

    menor sistematicidade? Em outras palavras, se

    presses esmagadoras foram uma lngua mudana e se a comunicao menos eficiente

    neste nterim (como seria foroso deduzir da teoria), por que tais ineficincias no tm sido observadas na prtica?

    Esta nos parece ser a questo fundamental

    com que a teoria da mudana lingustica tem de lidar. A soluo, argumentaremos, se encontra no

  • 52

    rompimento da definio da estruturalidade com

    homogeneidade. A chave para uma concepo

    racional da mudana lingustica e mais, da prpria lngua a possibilidade de descrever a

    diferenciao ordenada numa lngua que serve a uma comunidade. Argumentaremos que o

    domnio de um falante nativo de estruturas heterogneas no tem a ver com multidialetalismo

    nem com o mero desempenho, mas parte da competncia lingustica monolngue. Um dos

    corolrios de nossa abordagem que numa lngua

    que serve a uma comunidade complexa (i.e., real), a ausncia de heterogeneidade estruturada que

    seria disfuncional (WLH, 1968 [2006], p. 35-6).

    Essas afirmaes propem uma soluo aos problemas tericos do formalismo: a variao no algo perifrico do campo da fala (catica), em oposio lngua (sistemtica), como diria Saussure, ou do campo do desempenho, que seria secundrio em relao competncia, para usar o termo gerativista. A variao estruturada, e sua estrutura faz parte no da fala ou desempenho, mas da prpria lngua ou da competncia lingustica do falante nativo.

    1.4 A VARIAO DA LNGUA PELO ESPAO GEOGRFICO

    Se um fato que a lngua varia ao longo do tempo, ou sincronicamente entre diferentes estratos sociais, tambm verdadeiro

  • 53

    que as lnguas variam ao longo do espao geogrfico. Tradicionalmente coube a dialetologia o estudo dessa variao horizontal da lngua, enquanto a sociolingustica centra-se na anlise da variao vertical.

    1.4.1 Um breve histrico dos estudos dialetolgicos

    1.4.1.1 A dialetologia tradicional

    Se imaginarmos uma lngua falada por uma pequena comunidade, em uma rea bem restrita, dificilmente veramos essa lngua desenvolvendo dialetos regionais. Ao contrrio disso, natural que, ao longo do tempo, uma lngua falada em uma vasta regio geogrfica sofrer variaes regionais em sua estrutura, e a essas variaes d-se o nome de dialeto. O latim, por exemplo, foi falado em uma extensa rea correspondente ao Imprio Romano do ocidente. Ele no poderia ter se mantido homogneo por muito tempo. Seria de se esperar que com o decorrer do tempo, no contato com outras lnguas, nos fluxos de colonizao, no deslocamento de populaes, se desenvolvessem mudanas na estrutura, que j naturalmente heterognea. Devido grande extenso do Imprio Romano, seria bem difcil que as mudanas geradas e propagadas a partir de pontos irradiadores chegassem a todas as reas em que era falado o latim.

    Algumas regies inovam nos usos da lngua, outras, muitas vezes isoladas dos grandes centros, so conservadoras, fatores que propiciam a fragmentao lingustica pelo espao geogrfico. Primeiro

  • 54

    nascem dialetos, que com o decorrer dos sculos mudana sobre mudana criam novas lnguas, fazendo com que o latim, no exemplo dado, se fragmentasse em uma dezena de outras lnguas de uso mais regional, sem contar outros tantos dialetos das lnguas neolatinas.

    No perodo clssico da cultura grega (sculo IV a.C.), j se percebia claramente que a lngua grega se dividia em dialetos, de acordo com a regio. Antes do Imprio Romano, a primeira grande civilizao a se desenvolver e se expandir pela Europa foram os gregos que acabaram por fundar colnias ao longo das margens do Mediterrneo. Chegaram a estabelecer cidades at na pennsula Ibrica. Novamente, a expanso da lngua possibilitou sua fragmentao nos respectivos dialetos: drico, elico, atico, grego do nordeste, arcado-cipriota, jnico e aqueu. A primeira grande diviso dialetal do latim foi a diviso entre o romnico ocidental (Frana e pennsula Ibrica) e o romnico oriental (Itlia e Romnia). Os principais traos dialetais que ocasionaram essa fragmentao do latim foram a sobrevivncia do caso nominativo na romnia oriental, ao passo que na romnia ocidental h a permanncia do caso acusativo. Outros traos lingusticos que demarcam essa diferenciao dialetal a queda do /s/ em final de palavra, e a conservao das oclusivas surdas em posio intervoclica na romnia oriental. interessante destacar que, na romnia oriental, com a queda do /s/ de posio de final de vocbulo, perde-se a marcao morfolgica do acusativo plural, criando uma incmoda neutralizao entre nominativo e acusativo, a qual desfeita com a permanncia s do nominativo.

  • 55

    Na romnia ocidental, com a permanncia do /s/, sobrevive o caso acusativo somente, que passou a ser usado (j no mais com essa funo) na posio de sujeito. A causa disso, possivelmente, deve-se ao fato que houve um crescente aumento no uso de preposies, na passagem do latim vulgar ao proto-romance. A isso se soma um processo de perda da regncia do caso ablativo pelas preposies em favor do acusativo, que no fim passava a ser o nico caso a ser regido por todas as preposies. Passamos, assim, numa fase avanada do latim vulgar, a ter somente dois casos, o nominativo e o acusativo. Como este era mais frequente que aquele, um processo que regularizao eliminou

    as formas do nominativo. Alm disso, as palavras da segunda declinao flexionadas no nominativo singular terminavam em us. Entretanto, o s desse morfema havia se tornado flexo marcadora de plural, por isso evitou-se seu uso do nominativo singular da segunda declinao, que foi substitudo pelo acusativo. O caso acusativo expandiu-se sobre todos os outros casos, eliminando, por ltimo, o nominativo no apenas da segunda declinao, mas nas trs declinaes do latim vulgar. Vemos, assim, que fatores internos estrutura lingustica somados a fatores externos, como a questo geogrfica causaram a fragmentao do latim em dialetos, que continuaram evoluindo, independentemente, at que se originaram as lnguas neolatinas. Como fatores externos, podemos citar a grande extenso da Romnia, o isolamento poltico das regies na Idade Mdia, a diminuio das comunicaes, a diminuio das atividades comerciais, a fragmentao da rede romana de estradas, a perda da unidade poltica, dentre outros

  • 56

    tantos fatores. Foram estes fatores externos, dentre tantos outros, que propiciaram a natural criao de dialetos.

    O incio da Idade Mdia marcado pela conquista do Imprio Romano do ocidente pelas tribos germnicas, muitas das quais inimigas entre si, elemento poltico que propiciou o isolamento das regies e seus respectivos dialetos. Alm do mais, aps o perodo de invases germnicas, o norte da frica deixa de fazer parte da Rmania em virtude das invases islmicas, a partir do sculo VII d.C..

    De fato, confirma-se, mais uma vez, a verdade das palavras de Saussure de que a multiplicao espacial da lngua que cria a diversidade (SAUSSURE, 1975, p. 106). Portanto, a propagao pelo espao geogrfico (movimentos populacionais) constitui-se como um fator muito importante na descrio e compreenso dos dialetos e sua origem e, de forma mais ampla, da prpria dinmica evolutiva da lngua.

    1.4.1.2 As pesquisas de Wenker

    O incio do estudo cientfico sistemtico da variao dialetal ocorre durante o sculo XIX, na Alemanha, com as pesquisas de Georg Wenker. Este linguista alemo era adepto fervoroso das doutrinas dos neogramticos e esperava, graas aos estudos de dialetologia, obter uma confirmao da tese sobre o determinismo das leis fonticas (MALMBERG, 1971, p. 83). Para tanto, ele formulou uma lista de 40 frases e as enviou aos professores do primrio da Rennia para que as traduzissem ao dialeto local. A pesquisa de Wenker foi feita por

  • 57

    correspondncia, e recebeu 44.251 respostas, formando um corpus significativo proveniente de 40.736 localidades.9 O passo inicial de Wenker representa um significativo avano na metodologia da pesquisa lingustica, visto que at ento a formulao das leis fonticas na teoria neogramtica no contava com uma criteriosa confirmao de dados empricos coletados da realidade dialetal das lnguas. A isto acresce a criao da metodologia da geografia lingustica em dialetologia, na qual os dados coletados em pesquisa de campo so dispostos em cartas geogrficas. Nelas se pode observar a distribuio das variedades lingusticas pelo espao (a variao horizontal, diatpica). Wenker foi o primeiro que teve a ideia de expor, com a ajuda das cartas geogrficas, a extenso dos fenmenos lingsticos (MALMBERG, 1971, p. 83). O objetivo de Wenker era corroborar a teoria neogramtica da regularidade absoluta da mudana fontica. Em todas as palavras e nos mesmos contextos fonolgicos, a mudana deveria ser regular. Mas no foi isso o que os dados empricos mostraram: a realidade da mudana revelou-se muito mais complexa. Wenker no viu cumprir-se sua

    expectativa, com a recolha de dados dialetais, de dar fundamentao emprica para a doutrina lingustica na qual acreditava.

    Quando, em 1881, apareceram os primeiros mapas renanos, foram aceitos com desconfiana, e

    Wenker no recebeu, para o seu trabalho, o apoio

    9 Sobre a pesquisa pioneira de Georg Wenker, consultar Malmberg (1971) e

    Cardoso (2010).

  • 58

    que merecia. Se a doutrina dos Junggrammatiker10 fosse justa, os limites de uma dada mudana fontica [...] deveriam ser os mesmos para todas as palavras que apresentassem as mesmas

    condies fonticas. No era esse o caso, absolutamente. Os mapas de Wenker, como os

    dos dialetlogos que o seguiram, mostram, ao contrrio, que cada palavra tem suas prprias

    fronteiras e, por isso mesmo tambm, sua prpria histria fontica. [...] Os mapas de Wenker refutam a concepo dos neogramticos segundo a

    qual uma mudana fontica [...] afeta todas as palavras do mesmo modo (MALMBERG, 1971, p. 83-84).

    Apesar de ter sido to significativa a obra de Wenker para a evoluo da metodologia das pesquisas dialetolgicas, poucos dados foram realmente publicados diante do grande volume de dados recolhidos na Rennia. Publicaram-se em 1881, em Estrasburgo, os primeiros resultados: um conjunto de seis cartas, duas fonticas e quatro morfolgicas [...] (CARDOSO, 2010, p. 41). Isso lhe rendeu crticas, pois houve um espao de vinte anos entre a recolha dos dados e sua divulgao, ou seja, gastou-se muito tempo recolhendo um volumoso corpus para a obteno de poucos resultados.

    Com a morte de Georg Wenker em 1911, seu discpulo, o linguista Ferdinand Wrede, d continuidade s pesquisas em dialetologia

    10 Neogramticos.

  • 59

    na Alemanha. Wrede aperfeioou os mtodos de seu mestre, em particular do ponto de vista fontico (MALMBERG, 1971, p. 85). Dessa forma, o projeto que Wenker concretizou-se 50 anos aps a publicao de suas primeiras cartas, com a concluso do Atlas lingustico alemo, em 1926.

    1.4.1.3 Atlas Lingustico da Frana (ALF)

    Um novo grande salto no aprimoramento da metodologia dos estudos dialetolgicos ter lugar na Frana. Em 1887, Jules Gilliron d incio a coleta de dados para o Atlas linguistique de la France, realizado com a ajuda do Ministre de IInstruction Publique e publicado, em Paris, de 1902 a 1910 (CARDOSO, 2010, p. 42). Uma extensa rede de pontos foi selecionada para a pesquisa; mas, ao contrrio do mtodo de Wenker, que recolheu seus dados por correspondncia, Gilliron contou com a colaborao de Edmond Edmont, que foi o homem a percorrer sozinho 639 localidades espalhadas por todo territrio francs, nos quais entrevistou os informantes in loco. Suas entrevistas eram guiadas por um questionrio que inicialmente tinha 1.400 perguntas11. Ao lado das palavras isoladas, o questionrio continha uma centena de frases que permitiram estudo, sobretudo no que se refere morfologia verbal (CARDOSO, 2010, p. 42). Edmont registrava os dados lingusticos ainda durante a entrevista, utilizando o alfabeto fontico na transio das respostas obtidas dos informantes. Do

    11 No final dos inquritos chegou a ter 1.900 perguntas.

  • 60

    corpus recolhido formularam-se 1920 mapas, nmero admirvel se comparado ao trabalho de Wenker. A grande contribuio do Atlas lingustico da Frana histria da lingustica centra-se na evoluo da metodologia, segundo nos afirma Ilari (2006). At ento, os estudos filolgicos e os estudos comparativos da lingustica histrica do sculo XIX estavam baseados em registros escritos da lngua. O problema que a escrita tende a se distanciar da linguagem corrente de seu tempo. Isso faz com que a escrita omita muitos processos de variao importantes na hora de se explicar a dinmica dos processos evolutivos da lngua. A escrita padroniza e oculta importantes fatos histricos. Com a publicao do ALF d-se, nos estudos cientficos da linguagem, um deslocamento da lngua escrita lngua falada. Gilliron d prioridade aos dados que resultam de uma pesquisa de campo. Com isso, cria-se, no domnio dos estudos romnicos, uma conscincia autenticamente geogrfica (ILARI, 2006, p. 26). interessante o enfoque que Gilliron d ao estudo da evoluo do vocabulrio, em contraposio importncia dada pelos neogramticos fontica. Esta s serve, para Gilliron, se contribuir para a ampliao do entendimento da histria de uma palavra. Dessa forma, o estudo da evoluo fontica serve para ao estudo da evoluo da palavra. Ele acreditava que as leis fonticas so uma fico (MALMBERG, 1971, p. 86). Desenvolve-se, ento, a concepo de que cada palavra tem sua prpria histria.

  • 61

    Mapa 1 Distribuio das denominaes de galo no sudoeste da Frana Fonte: (ILARI, 2006, p. 27)

    Um exemplo clssico do ALF a evoluo da palavra galo no francs (ver mapa 1). Numa regio ao sul da Frana, palavra de origem latina gallus foi substituda por outras, tais como faisan, pullus e vicaire. Este fato tem origem na fontica. Nas regies onde o vocbulo gallus foi substitudo, houve a mudana de ll para t, como indica o mapa, o que fez com que gallus se confundisse com gato. Assim nasce uma inconveniente homonmia, na qual as formas gallu e cattu se

  • 62

    confundiram numa nica palavra gat [...]. (ILARI, 2006, p. 26) No dia a dia podemos compreender que no funcional ter uma s palavra para animais to comuns. Os dialetos, em que houve esse fenmeno de mudana fontica, resolveram o problema substituindo a antiga palavra para gato por outras. Curioso que em algumas regies o vocbulo escolhido para a substituio foi vicaire (vigrio), pois o vigrio, assim como o galo, tinha a funo de acordar as pessoas pela manh, sem contar o fato de que os vigrios da poca vestiam um barrete que lembra uma crista (ILARI, p. 16-27).

    A variante de galo pullus tem tambm origem no latim, no qual significava o animal mais novo, como tambm frango. A palavra pullus teve seu significado deslocado em alguns dialetos do sul, como indica o mapa, e passou a designar a ave adulta. Cabe dizer que antes, porm, da mudana fontica que gerou esta mudana no lxico, havia a expresso gallus pullus (galo filhote). Dessa forma, tomou-se parte da expresso pelo todo, ao se criar uma nova denominao para galo (PINHO, 2009, p. 50).

    Outro exemplo relevante o mapa que nos mostra a disposio pelo espao geogrfico dos sinnimos para gua.

  • 63

    Mapa 2 Zona em branco = jument, traos verticais = caballa, traos horizontais = equa, traos oblquos = outros tipos. Fonte: Malmberg

    (1971[1962], p. 90) No mapa 2 podemos ver trs ondas de mudana no vocabulrio. A forma mais antiga equa, que vem do latim clssico, e preservou-se

  • 64

    em ilhas dialetais conservadoras. A forma caballa veio posteriormente, no latim vulgar, da qual tambm se originou a forma portuguesa cavalo. A zona em branco, correspondente a jument, tem como centro irradiador Paris. Essa variante entra na lngua numa terceira onda de mudanas que se propagaram da capital s regies mais interioranas. Vemos que as regies mais afastadas de Paris, ao sul, tenderam a conservar a forma antiga, possivelmente devido a um menor contato com o centro irradiador da mudana.

    Nesse exemplo podemos observar trs camadas sobrepostas, que representam trs perodos da histria da lngua francesa. Evidencia-se, por meio desse caso, a dinmica da mudana lingustica em seu plano horizontal. As variantes se propagam como que em ondas, que no atingem uniformemente todo o territrio em que uma lngua falada. A propagao da mudana depende de fatores como maior ou menor proximidade de uma regio, rede de comunicaes (estradas e portos, por exemplo) e grau de isolamento em relao ao centro irradiador da mudana.

    1.4.2 As dimenses da variao lingustica

    1.4.2.1 Variao diatpica

    Trata-se da variao da estrutura lingustica pelo espao geogrfico em que uma lngua falada. A tal dimenso horizontal da variabilidade da lngua d-se o nome de variao diatpica. A

  • 65

    dialetologia baseia-se na caracterizao de um dialeto, bem como na comparao entre as formas de dois mis mais dialetos de uma mesmo lngua. Segundo Rossi (1967, p. 88-89), o fato apurado num pondo geogrfico ou numa rea geogrfica s ganha luz, fora e sentido documentais na medida em que se preste ao confronto com o fato correspondente ainda que por ausncia em outro ponto ou rea. Nas palavras de Cardoso (2010, p. 45), a dialetologia busca, prioritariamente, estabelecer relaes entre modalidades de uso de uma lngua ou de vrias lnguas, seja pela identificao dos mesmos fatos, seja pelo confronto presena/ausncia de fenmenos considerados em diferentes reas.

    1.4.2.2 Variao diastrtica

    A dialetologia tradicional que se desenvolveu entrevistando geralmente apenas um informante por ponto, que deveria ser mais velho e do sexo masculino, de preferncia. O objetivo era que o informante selecionado fosse um ideal representante do falar local. Com o desenvolvimento da sociolingustica, a dialetologia acabou por absorver tambm a dimenso vertical da variao da lngua variao diastrtica , ou seja, a variao pelos grupos sociais. Dessa forma, a dialetologia denominada de pluridimensional alia varivel espao (diatopia) variveis sociais (diastrticas), como sexo, idade, escolaridade, classe social, etc (THUN, 2005).

  • 66

    Dessa forma, idade, gnero, escolaridade e caractersticas gerais de cunho sociocultural dos

    usurios das lnguas consideradas tornam-se

    elementos de investigao, convivendo com a busca de identificao de reas geograficamente

    definidas do ponto de vista dialetal (CARDOSO, 2010, p. 25).

    A dialetologia pluridimensional, portanto, passa da anlise da superfcie, constituda pela dimenso diatpica, para a anlise do espao lingustico formado pela considerao de variveis como a dimenso diastrtica, diafsica ou de outras (THUN, 2000, p. 407 apud CARDOSO, 2010, p. 12).

  • 67

    Quadro 1 Esquema de H. Thun12

    1.4.2.3 Variao diafsica

    A lngua tambm varia de acordo com o grau de formalidade da situao de interao verbal. Quanto mais formal a situao como uma aula na universidade ou uma reunio de trabalho maior a tendncia

    12 Apud Margotti (2004, p. 87).

  • 68

    ao monitoramente da fala, a qual tende a assumir contornos mais prximos ao padro lingustico de uma determinada poca. Por outro lado, quando mais informal a interao verbal conversas em casa entre familiares ou entre amigos maior tende a ser a distncia da fala em relao norma padro, porque o falante tende a no se monitorar.

    1.4.3 A dialetologia no Brasil

    1.4.3.1 Atlas Lingustico do Brasil (ALiB)

    A dialetologia no Brasil se desenvolveu inicialmente por meio de trabalhos monogrficos que se detinham a descrever as caractersticas de dialetos especficos, destacando-se obras como O Linguajar Carioca, de Antenor Nascentes, e A Lngua do Nordeste, de Mrio Marroquim. A necessidade da aplicao das tcnicas de cartografia no Brasil para o registro das variedades dialetais foi assinalada por Antenor Nascentes em Bases para a Elaborao do Atlas Lingustico do Brasil, obra publicada em dois volumes13. Aps percorrer o Brasil de norte a sul, Nascentes props uma diviso dialetal do Brasil e estabelece uma rede de pontos nos quais futuramente deveria ser feita a pesquisa de campo. Na poca o projeto da elaborao do Atlas no foi levado a cabo, em decorrncia de dificuldades, tais como falta de financiamento e pessoal preparado para a coleta dos materiais, difcil acesso a muitas localidades, etc..

    13 Em 1958 e 1961, respectivamente.

  • 69

    Antes, porm, da concretizao do Atlas Lingustico do Brasil (ALiB), sugeriu-se que primeiro fosse realizada a elaborao de atlas regionais ou estaduais, como passos iniciais para a posterior realizao de um atlas do portugus do Brasil, que cobrisse todo o territrio nacional.

    Desde os anos 60 do sculo passado, vrios atlas estaduais e um atlas regional foram sendo publicados, dos quais podemos citar, por exemplo, Atlas Prvio dos Falares Baianos, Esboo de um Atlas Lingustico de Minas Gerais, Atlas Lingustico do Sergipe, Atlas Lingustico do Paran, Atlas Lingustico-Etnogrfico da Regio Sul do Brasil, dentre outros.

    Cumpre lembrar que antes da publicao desses altas, em 1952, o governo brasileiro por meio do decreto 30.643 de 20 de maro delimita as finalidades da Comisso de Filologia da Casa Rui Barbosa. O principal objetivo dessa comisso seria:

    a elaborao do atlas lingustico do Brasil. Essa

    prioridade retomada pela Portaria 536, de 26 de maio do mesmo ano, que ao baixar instrues

    referentes regulamentao do Decreto, pe

    nfase na elaborao do atlas lingustico do Brasil (CARDOSO, 1999).

    Dada a impossibilidade na poca de sua realizao, espalharam-se pelo Brasil iniciativas de criao de atlas estaduais, em grande parte, alguns dos quais citados acima. Esses atlas foram importantes para que se ampliasse o conhecimento do portugus do Brasil, alm de contribuir

  • 70

    para o refinamento da metodologia de pesquisa e para a consolidao de uma tradio de estudos geolingusticos no cenrio brasileiro.

    Passados muitos anos desde o incio desse

    projeto de estudo dialetal do portugus do Brasil, somente em 1996, estando o Brasil em um novo contexto scio-econmico, pde se retomar a ideia de um atlas nacional. O que aconteceu

    durante o seminrio Caminhos e Perspectivas para

    a Geolingustica no Brasil, ocorrido na Bahia, no qual se formou um comit nacional encarregado

    de dar continuidade ao projeto ALiB (PINHO, 2009, p. 65-66).

    De acordo com Cardoso (1999) o ALiB tem como objetivos:

    1. Descrever a realidade lingstica do Brasil, no que tange lngua portuguesa, com enfoque

    prioritrio na identificao das diferenas diatpicas (fnicas, morfossintticas, lxico-semnticas e prosdicas) consideradas na perspectiva da Geolingstica.

    2. Oferecer aos estudiosos da lngua portuguesa (lingistas, lexiclogos, etimlogos, fillogos, etc.), aos pesquisadores de reas afins (histria, antropologia, sociologia, etc.) e aos pedagogos (gramticos, autores de livros-texto para o 1 e 2 graus, professores) subsdios para o

  • 71

    aprimoramento do ensino/aprendizagem e para

    uma melhor interpretao do carter multidialetal

    do Brasil. 3. Estabelecer isoglossas com vistas a traar a

    diviso dialetal do Brasil, tornando evidentes as diferenas regionais atravs de resultados

    cartografados em mapas lingsticos e de estudos interpretativos de fenmenos considerados.

    4. Examinar os dados coletados na perspectiva de sua interface com outros ramos do conhecimento

    histria, sociologia, antropologia, etc. de

    modo a poder contribuir para fundamentar e definir posies tericas sobre a natureza da

    implantao e desenvolvimento da lngua portuguesa no Brasil.

    5. Oferecer aos interessados nos estudos lingsticos um imenso volume de dados que

    permita aos lexicgrafos aprimorarem os

    dicionrios, ampliando o campo de informaes;

    aos gramticos atualizarem as informaes com

    base na realidade documentada pela pesquisa emprica; aos autores de livros didticos

    adequarem a sua produo realidade cultural de cada regio; aos professores aprofundar o

    conhecimento da realidade lingstica, refletindo sobre as variantes de que se reveste a lngua

    portuguesa no Brasil e, conseqentemente,

    encontrando meios de, sem desprestigiar os seus

  • 72

    dialetos de origem, levar os estudantes ao domnio

    de uma variante tida como culta.

    6. Contribuir para o entendimento da lngua portuguesa no Brasil como instrumento social de

    comunicao diversificado, possuidor de vrias normas de uso mas dotado de uma unidade

    sistmica.

    Atualmente o ALiB coordenado por Suzana Cardoso, e conta com a colaborao de pesquisadores de diversas universidades do Brasil. O ALiB visa recolher dados de fala do portugus em 250 localidades, quatro informantes nas cidades de interior e oito nas capitais. O que totaliza 1100 entrevistas. Nas cidades de interior os informantes so estratificados de acordo com sexo, idade e escolaridade, ao passo que nos cidades do interior os informantes so estratificados em sexo e idade.

  • 73

    CAPTULO 2

    A MUDANA FONOLGICA

    2.1 INTRODUO

    Uma srie de mudanas ocorridas ao longo da histria da lngua parece, em grande parte, ter origem em mudanas de ordem fontico-fonolgica. Nessas mudanas parece estar a fasca que provocou mudanas na estrutura morfolgica, as quais reorganizaram o quadro de pronomes da lngua como foi dito na introduo , por exemplo, a consequncia disso foi uma profunda mudana na sintaxe latina sujeito-objeto-verbo, a qual deu lugar ordem romnica sujeito-verbo-objeto.

    O incio da reestruturao da gramtica latina, principalmente de sua morfossintaxe, em que se gestavam as lnguas romnicas, tem seu princpio, em boa parte, na alterao do padro silbico. Ou antes, o padro silbico foi alterado em virtude do apagamento de certos fonemas, principalmente em posio de coda da slaba. Claro que juntamente com a mudana fontica no latim temos a ocorrncia de outros processos evolutivos, como a gramaticalizao de certos nomes, que passaram a categoria de pronomes pessoais, e a ampliao e modificao da funo sinttica de algumas preposies, como ad e de, sobre as quais se tratar mais detalhadamente. Essas duas preposies, ao ganharem novas funes na frase (mais precisamente ao passar a indicar o objeto indireto e o adjunto adnominal, respectivamente),

  • 74

    fizeram com que a morfologia latina dos casos nominais fosse profundamente reorganizada, simplificando-se.

    2.2 A ESTRUTURA DA SLABA

    Drsticas alteraes da estrutura fonolgica ocorridas nessa passagem do latim clssico ao latim vulgar, e deste ao portugus clssico, chegando modernidade, nos levam a questionar as causas da mudana. Sabemos que uma mudana, seja em que nvel gramatical for, pode ter tanto causas internas da prpria estrutura da lngua quanto externas de natureza scio-histrica. Devido ao nosso afastamento cronolgico dos perodos histricos em que ocorreram tais mudanas, devemos, nesse aspecto da histria da origem do portugus, recorrer a motivaes de ordem estrutural, ou seja, motivaes internas ao sistema gramatical.

    preciso encontrar um princpio geral de evoluo fonolgica da slaba portuguesa, ou seja, observa-se os vrios perodos por que a lngua passou e tenta-se depreender tendncias de sua evoluo, que so constitudas historicamente, por natureza, no sendo fruto de uma evoluo cega regida por leis fonticas, como se acreditava em certas correntes da lingustica do sculo XIX, como os neogramticos e o estruturalismo de Saussure.

    Assim como os neogramticos, Saussure tambm v as mudanas fonticas como o principal fator

  • 75

    de evoluo das lnguas. Reproduzindo a

    concepo mecanicista daqueles, Saussure

    conservar a viso das mudanas fortuitas, involuntrias e, ao mesmo tempo, regulares; como

    um conjunto de aes cegas que se perpetram de maneira ilimitada sobre a lngua (LUCCHESI, 2004, p. 71).

    Necessrio , portanto, escapar aos fatalismos das leis fonticas, ao mesmo tempo em que se busca uma explicao da mudana que se d no mbito da estrutura gramatical, compreendendo que esta se constri de modo contingente em atos de fala concretos, scio-historicamente contextualizados. Dentro dessa concepo, passemos a observar a estrutura silbica e, posteriormente, defesa de hipteses de ordem interna ao sistema numa tentativa de explicar a alterao da coda silbica. A slaba, independentemente da lngua, estrutura-se em dois nveis. No primeiro nvel temos o ataque (onset) e a rima. O ataque silbico compreendido por uma elevao no grau de sonoridade, e essa posio em geral ocupada por segmentos consonantais, mas no necessariamente. Temos o caso da fonologia do latim que admitia fonemas no consonantais no ataque silbico. H o exemplo dos

    fonemas /i/ e /u/, que evoluram para [] e [], em vocbulos como Iupter (> Jupter) e seruus (> servo).

    A sonoridade encontra seu pico na rima, que, por sua vez, ramifica-se em ncleo e coda, unidades que configuram o segundo nvel da estrutura da slaba. Ataque (onset), ncleo e coda, por sua vez,

  • 76

    tambm podem se ramificar. O que significa que mais de um fonema pode ocupar essas posies estruturais, dependendo do sistema da lngua em particular.

    Quadro 2 Esquema da estrutura silbica

    O topo de sonoridade d-se no ncleo silbico. Por esse motivo, essa posio na maior parte dos casos ocupada por fonemas voclicos. A partir do ncleo ocorre um decrscimo no nvel de sonoridade, que caracteriza a coda da slaba. Nela possvel haver consoantes ou semivogais.

  • 77

    De acordo com Hora, Pedrosa e Cardoso (2010, p. 72), a ascenso, pico e queda da sonoridade pode ser representada do seguinte modo:

    Esse fenmeno de ascenso, pico e declnio de sonoridade chamado, na literatura em portugus, de Princpio da Sonoridade, que corresponde ao termo ingls Sonority Sequencing Generalization (SSG). O termo SSG tem como pano de fundo uma postura gerativa visto que ele considerado um princpio da Gramtica Universal (GU) (MENDONA, 2003, p. 28).

    Em virtude desse declnio do grau de sonoridade, na parte final da slaba, se compreende que a coda seja a posio mais dbil da estrutura silbica (CAMARA Jr., op. cit., p. 72). Sendo assim, tal fato faz com que a coda seja a parte da slaba menos perceptvel auditivamente em relao ao ncleo e ao ataque. O que se torna ainda mais claro quando se trata de uma coda de slaba tona final. Nesse contexto a coda ainda menos perceptvel em comparao ao restante do vocbulo. Cristfaro Silva (2007) apresenta uma interessante interpretao da estrutura silbica, proposta inicialmente por Stetson (1951). A slaba explicada nesse modelo

  • 78

    em termos do mecanismo de corrente de ar

    pulmonar. Na produo do mecanismo de corrente

    de ar pulmonar o ar no expelido dos pulmes com uma presso regular e constante. De fato, os

    mecanismos de contrao e relaxamente dos msculos respiratrios expelem sucessivamente

    pequenos jatos de ar. Cada contrao e cada jato de ar expelido dos pulmes constitui a base de

    uma slaba. A slaba ento interpretada como um movimento de fora muscular que intensifica-

    se atingindo um limite mximo, aps o qual

    ocorrer a reduo progressiva desta fora (CRISTFARO SILVA, 2007, p. 76).

    Quadro 3 Esquema do esforo muscular e da curva da fora silbica. Fonte: Cagliari (1981, p. 101)

  • 79

    Com base nessa anlise fisiolgica definem-se as fronteiras da slaba e sua estruturao interna. Concebe-se que a slaba seja, em sua dimenso horizontal (linear), dividida em centro e periferia. H uma periferia esquerta (o ataque) e outra direita (a coda) do centro (o ncleo) ao redor do qual se organiza a slaba. O centro a parte principal da slaba, tanto em termos de sonoridade quanto em termos de fora muscular empregada na articulao no centro que a sonoridade e a fora muscular alcanam seu pico. Tambm fato que em todas as lnguas h a posio de ataque que uma posio ascendente em sonoridade e fora articulatria que preenchida por consoantes. Podemos, portanto, compreender a slaba tanto em seu aspecto fisiolgico (a fora empregada pelos rgos articulatrios) quanto em seu aspecto fontico (o grau de sonoridade):

    [...] resulta como um denominador comum um movimento de ascenso, ou crescente, culminando

    num pice (o centro silbico) e seguido de um movimento de decrescente, quer se trate do efeito

    auditivo, da fora expiatria ou da tenso muscular [...]. Por isso normalmente a vogal, como o som mais sonoro, de maior fora expiatria, de articulao mais aberta e de mais

    firme tenso muscular, que funciona em todas as lnguas como centro de slaba, embora algumas

    consoantes, particularmente as que chamamos de

    soantes, no estejam necessariamente excludas dessa posio (CAMARA Jr., 1970 [2008], p. 53).

  • 80

    De acordo com Mattoso Camara (1970 [2008], p. 54), a slaba pode ser simples (V) quando formada apenas por seu ncleo voclico, ou complexa (CV, CVC, VC), quando ao ncleo se adiciona uma ou mais consoantes, seja direita ou esquerda da vogal.

    Mattoso Camara ainda classifica as slabas segundo o preenchimento da coda. Nesse caso h basicamente dois tipos de slabas, aquelas que possuem uma coda foneticamente preenchida, slaba fichada (VC, CVC); e aquelas que no possuem consoantes ou semivogais sua direita, que constituem as slabas abertas (V, CV).

    Por ocorrerem aps o ncleo, que costuma ser voclico, as consoantes que se encontram na coda silbica so denominadas de ps-voclicas. No portugus h 19 consoantes14, e todas elas podem ocupar a posio de ataque, que inclusive pode ser ramificado. Nessa segunda posio do ataque ocorrem a lateral alveolar [l] e a tepe [], em certos contextos.

    Contrariamente a essa riqueza do ataque, a coda da slaba portuguesa bem mais simples, pois apenas os fonemas /S/, /l/, /r/ e /N/ ocupam essa posio (CAMARA Jr., 2008[1970], p. 52; MENDONA, 2003). Entretanto, de acordo com diversos estudos recentes15, a realidade lingustica do portugus do Brasil tende a modificar drasticamente esse quadro. Esses quatro fonemas tendem a sofrer processos fonolgicos, tais como vocalizao, velarizao e

    14 Classificao de Mattoso Camara (2008[1970], p. 50).

    15 O artigo de Hora, Pedrosa e Cardoso (2010) apresenta uma boa sntese sobre

    o problema da simplificao da coda silbica no portugus do Brasil.

  • 81

    apagamento. H, em geral, a tendncia de as slabas travadas portuguesas se tornarem abertas, principalmente quando em final de palavras e em posio tona. Isso se deve, primeiramente, a um processo de abrandamento que esses fonemas sofrem, com exceo do /S/.

    Quando observamos /r/ e /l/, em muitos dialetos brasileiros, realizam-se como certos alofones que perdem o trao articulatrio [+ anterior] que os caracterizam, e transformam-se em fonemas posteriores. O /r/, que se realiza como tepe [] no portugus europeu16, passa a alofones fricativos por causa de abrandamento, e o /l/ vocaliza-se, tambm em virtude de um processo de abrandamento. O fato que, em alguns contextos, o abrandamento leva, em seguida, ao apagamento dos fonemas. O que, consequentemente, conduz a uma reestruturao do padro silbico da lngua, implicando num maior nmero de slabas abertas.

    O fomena17 /N/ na verdade, como os autores indicam, um

    trao nasal da vogal do ncleo, ou se realiza como um ditongo [e] em certos contextos de posio de final palavra. Porm, nessa posio, na linguagem informal, comum seu apagamento em palavras como

    homem (> []), garagem (> [gaa]) e virgem (> [vi]). Tal fato largamente atestado em altas lingusticos, como o ALERS e o ALiB.

    Desde suas origens no latim, a evoluo da coda silbica do portugus e os fonemas que a constituem ser analisada mais

    16 Esse fonema tambm se realisa como tepe em certas reas do sul do Brasil,

    segundo indica o mapa 49 do ALERS (ver anexo 4). 17

    Ou arquifonema.

  • 82

    detalhadamente a seguir, para se tentar explicar a tendncia estrutura CV, ou seja, a tendncia a slabas abertas, sem coda.

    Sobre o vnculo entre mudanas fontico-fonolgicas e morfossintticas, fica a seguinte questo: que relaes existiriam entre esse percurso pela fonologia com questes de mudanas morfossintticas, que sero o foco da segunda parte desse trabalho? Pensamos que as implicaes entre as mudanas fontico-fonolgicas s mudanas morfossintticas so grandes. Primeiramente porque, como lngua indo-europeia, o portugus tem suas flexes localizadas ao fim dos vocbulos. E de forma geral so as slabas de final de palavra que sofreram maiores alteraes desde o latim, no qual muitas consoantes de coda constituam partes de flexes. Assim, a mudana fonolgica tem claramente repercusses na estrutura morfossinttica. Vejamos o exemplo dos quatro fonemas da coda portuguesa, /S/, /l/, /r/ e /N/. Destes apenas a lateral alveolar /l/18 no parte de morfemas flexionais. O /S/ marca plural nos nomes e a primeira pessoa do singular nos verbos; o /R/ a desinncia de infinitivo e o /N/ a desinncia de terceira pessoa do plural. Compreende-se, dessa forma, como o estudo da mudana fonolgica pode aprofundar o entendimento de mudanas morfossintticas.

    18 Mesmo assim