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Entremeios: revista de estudos do discurso. v.10, jan.- jun./2015 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br >

ASPECTOS DA DIVERSIDADE LINGUÍSTICA E SOCIAL

NO BRASIL

ANTONIA ALVES PEREIRA1

Instituto de Estudos da Linguagem

Universidade Estadual de Campinas

Rua Sérgio Buarque de Holanda, 571

13083-859 – Campinas-SP – Brasil

[email protected]

Resumo. Neste artigo, fazemos uma reflexão sobre as relações entre

língua, sociedade e cultura. Partimos da ideia de que essas relações são

preponderantes para as transformações linguísticas. Procuramos refletir

também sobre as contribuições que as línguas indígenas dão ao português

do Brasil, bem como sobre a sua importância para o conhecimento das

variedades linguísticas e sua relevância para os estudos tipológicos e o

estabelecimento de universais linguísticos. Ao longo do trabalho, fica

evidenciado que a multiplicidade de línguas no Brasil convivem

pacificamente, tendo apenas uma língua oficial: a portuguesa, mas

assegurada, através da nossa constituição, a educação formal em língua

materna aos povos indígenas.

Palavras-chave. Variedade. Língua. Sociedade. Cultura. Povos indígenas.

Abstract. In this article we reflect on the relations between language,

society, and culture. We begin with the idea that these relations are a

preponderant factor in language change. We also reflect on the

contributions that indigenous languages have made to Brazilian

Portuguese, the importance of these languages for the knowledge of

language varieties, and their relevance the study of typology and language

universals. We show that the multiplicity of languages in Brazil live

together peacefully. Although there is only one official language

(Portuguese), formal education in the first languages of the indigenous

people is guaranteed by the Brazilian constitution.

Keywords. Linguistic variety. Language. Society. Culture. Indigenous

peoples.

1 Realiza pós-doutorado no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, na área de concentração Linguística

Textual em interface com a Linguística Aplicada, sob a supervisão da Profa. Dra. Ingedore G. V. Koch.

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1. Introdução

Este trabalho tem como objetivo refletir sobre aspectos da diversidade linguística

no Brasil. Para isso, buscamos compreender como se relacionam língua, sociedade e

cultura, partindo-se do fato de que esses três aspectos estão inter-relacionados. Sabe-se

que a língua é algo social, como já apregoava Saussure, e resultante da cultura de um

povo. Sendo assim, é imprescindível sua compreensão em trabalhos de cunho linguístico

dentro de uma abordagem funcional, que é a pretendida para esse trabalho.

É a partir da segunda metade do século XX que ganham impulso os estudos

linguísticos com enfoque na relação entre língua, sociedade e cultura, culminando com o

aparecimento da Sociolinguística, de contribuição ímpar para a explicação de certos

fenômenos linguísticos, como a variação e a mudança nas línguas.

Para a realização desse trabalho buscamos apoio em obras de autores como Labov

(1972), Sapir (1971), Rodrigues (1993, 1986), Seki (1993, 199), Câmara Jr (1979), Melo

(1981).

O trabalho está dividido em três partes. Na primeira, refletimos sobre aspectos da

relação entre língua, sociedade e cultura; na segunda, discutimos sobre a contribuição das

línguas indígenas brasileiras para a diversidade linguística no Brasil e para a tipologia

linguística. Por fim, apresentamos nossas considerações finais.

2. Breve nota sobre língua, sociedade e cultura

Não constitui novidade afirmar-se que língua e cultura se influenciam

mutuamente. A questão vem sendo estudada há muito tempo e ganhou especial

notoriedade com os estudos de Sapir. Nosso interesse, no entanto, é verificar aspectos da

relação língua, sociedade e cultura no Brasil, partindo da relação entre o português e o

indígena, e suas respectivas línguas2.

Em Monteiro (2000, p. 13), encontra-se a ideia de que “A língua e a sociedade

são duas realidades que se inter-relacionam de tal modo, que é impossível conceber-se a

existência de uma sem a outra”. Ainda, conforme esse autor, sendo a finalidade básica de

uma língua a de servir como meio de comunicação, ela costuma ser interpretada como

produto e expressão da cultura de que faz parte.

Nossa meta, nesse trabalho é demonstrar como se influenciam3 língua e cultura

portuguesas e as línguas e culturas indígenas, bem como os fundamentos dessa influência.

2 Ao lado das línguas e culturas indígenas, também foram de grande importância para a formação da nossa cultura e do

português brasileiro, a língua e cultura africanas, tão presentes nos costumes e hábitos dos negros, além de outras

culturas de menor expoente, como a italiana, a japonesa e tantas outras. Por questão didática, fazemos um recorte, dada

a extensão do assunto. Assim, vamos restringir nosso objeto, abordando a diversidade linguística e cultural apenas a

partir das influências das línguas e culturas indígenas na língua portuguesa, mas deixando claro que reconhecemos a

importância de outros povos para a formação do português brasileiro e para a cultura do nosso povo. 3 Utilizamos o verbo no presente, pois não vemos esse processo como estático, mas ao contrário, como dinâmico, algo

que continua acontecendo.

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Saussure (1916), ao delimitar a língua como objeto dos estudos linguísticos,

definiu-a como um fato social, embora naquele momento tenha excluído das tarefas da

linguística a preocupação com os elementos de ordem social e pressuposto a

homogeneidade como um requisito básico para a descrição linguística, é sem dúvida um

passo importante rumo ao desenvolvimento da linguística e, consequentemente, à

concepção de língua que se tem hoje. O princípio da homogeneidade linguística foi tão

intenso que influenciou várias gerações, foi seguido pelo Estruturalismo, intensificado

pelos adeptos da Glossemática e pelos gerativistas. Como sabemos, a teoria gerativista

apregoava que com a fala de um único indivíduo, o pesquisador poderia estudar dado

fenômeno da linguagem: analisar uma língua, por exemplo.

Bloomfield (1933), ao delimitar o campo de interesse da linguística,

desconsiderou diversos aspectos da linguagem, tais como a natureza semântica do signo

e sua função social. Os estudos das ideias de estruturalistas ortodoxos evidenciavam que

os aspectos linguísticos, cujos limites fugissem a abstrações formais não seriam

interessantes para os estudos linguísticos.

É de particular interesse os universais linguísticos propostos pelos gerativistas,

aqui representados por seu expoente maior Chomsky. É indubitável a contribuição desses

universais para com os estudos linguísticos.

Com o advento do Funcionalismo ganhando terreno cada vez mais no campo das

ideias linguísticas, a partir da década de 1960, chegou-se à conclusão de que a análise de

uma língua não podia pautar-se apenas na forma. O estudo de uma língua que não leve

em consideração seus usuários é tão controverso quanto um estudo sociológico que não

leve em conta a sociedade.

A partir dos trabalhos, desenvolvidos por Labov (1972), ganhou impulso a ideia

de heterogeneidade linguística e a preocupação em procurar entender a língua, a partir

não somente de sua estrutura, mas, também, através da sociedade na qual estão inseridos

seus usuários. Para Labov, todo enfoque linguístico teria que necessariamente ser social,

em virtude da natureza da linguagem. Dessa forma, para ele, o termo sociolinguística era

redundante, uma vez que não se podia conceber uma linguística que não fosse social.

Com o avanço no campo de estudos da sociolinguística, muita coisa passou a ser

tema de investigações desse ramo de estudo. Baylon (1991) arrola, entre outros, os

seguintes assuntos: as funções e usos da linguagem na sociedade, a análise do discurso, o

domínio da linguística, as atitudes e julgamentos das comunidades de fala acerca de sua(s)

língua(s). Hoje, a concepção predominante nos estudos linguísticos é aquela em que um

estudo sobre a linguagem não pode deixar de levar em conta seus usuários e,

consequentemente, o fator sociocultural, já que estes usuários vivem em sociedade e estão

inseridos numa cultura. Assim, passam a predominar as ideias de que língua, sociedade e

culturas constituem um verdadeiro tripé rumo a explicações sobre o funcionamento desse

tão fabuloso mundo da linguagem.

Através da língua, as pessoas interagem e mantém vínculos diversos. Em

Monteiro (2000, p. 16), encontramos a ideia de que “a função da língua de estabelecer

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contatos sociais e o papel social, por ela desempenhado, de transmitir informações sobre

o falante constituem uma prova cabal de que existe uma íntima relação entre língua e

sociedade”. Ou seja, através de um indivíduo, temos oportunidades de conhecer diversos

aspectos de sua realidade.

Além disso, para Labov (1972), a língua acompanha a evolução da sociedade e

reflete os padrões de comportamento tanto em função do tempo quanto do espaço. Essa

é uma explicação cientificamente aceita para o surgimento dos fenômenos de diversidade

e de mudança linguísticas. E, inversamente, conforme esse autor, pode-se supor que certas

atitudes sociais sejam influenciadas pelas características que a língua da comunidade

apresenta.

Com o desenvolvimento dos estudos sobre as relações entre língua e sociedade,

chegou-se a ponto de linguistas formularem a hipótese do determinismo linguístico, isto

é, “nossa visão de mundo é condicionada por nossa língua” (MALMBERG, 1979).

Apesar de ter seus adeptos, essa hipótese não é totalmente aceita entre os linguistas.

Grande parte desses profissionais credita que existe uma estreita relação entre língua e

sociedade, mas não em determinismo linguístico.

Trudgill e outros autores (1979 apud MONTEIRO, 2000) apresentam vários

exemplos que evidenciam os efeitos da sociedade sobre a língua e da maneira sobre a

qual o mundo exterior nela se reflete. Um desses aspectos diz respeito ao ambiente físico

que são refletidos nos sistemas linguísticos, normalmente na organização do léxico. O

autor cita como exemplo o fato de o português ter apenas uma palavra para neve, enquanto

o esquimó tem várias. As razões para esse fato são, conforme Monteiro, são óbvias: é

necessário para o esquimó saber discernir eficientemente entre os diferentes tipos de neve.

Já, em português, tais distinções são irrelevantes, apesar disso a língua dispõe de vários

recursos para fazer distinções análogas: neve fina, neve seca, neve macia e outras tantas,

mas para o esquimó esse tipo de distinção é lexicalizada.

O tabu é outro aspecto interessante que nos leva a refletir sobre a influência que

os valores sociais exercem sobre a língua. À época de nossos avós, e ainda hoje em

comunidade mais longínquas, é comum se ouvir expressões do tipo: “Ele morreu de

doença feia”, “Ele está com aquela doença”, para se referir a doenças como câncer ou

lepra. O temor vinha da crença de que ao pronunciar o nome da doença, traziam-na para

próximo deles. Na cultura asurini do Xingu, quando uma pessoa da família morre, alguns

membros dessa família trocam o nome (PEREIRA, 2008; 2009). Nessa mesma sociedade,

alguns membros não podem pronunciar o nome de outros. Porém, esses tabus são distintos

entre as línguas, ou seja, certo aspecto que é visto como proibido numa língua, pode ser

normal em outras. De forma que a explicação mais plausível é aquela que postula que a

sociedade pode condicionar a língua.

Para Labov (1972), as variações nas línguas são provenientes de pressões sociais,

que podem ser observadas e descritas. Partindo desses pensamentos labovianos, podemos

facilmente observar nas sociedades de classe, fatores que reforçam as ideias desse autor.

Na nossa sociedade, por exemplo, é comum observarmos que as pessoas quando acedem

socialmente ou mesmo quando adquirem nível cultural mais elevado mudam a forma de

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falar, isto é, passam a fazer uso de uma variedade linguística dita de prestígio, em

detrimento daquela que usavam quando pertenciam a um outro grupo social distinto.

Em 2000, fizemos uma pesquisa sobre a variação na fala de pescadores migrantes

do município de Bragança, estado do Pará. A pesquisa consistia em comparar o falar de

pesquisadores migrantes que haviam se mudado das comunidades pesqueiras para a

cidade de Bragança, a mais de cinco anos, seja porque tinham se aposentado, seja porque

tinham melhorado suas condições econômicas. A pesquisa verificava a mudança no

vocabulário. Ao final, verificamos que os pescadores migrantes apresentaram profundas

mudanças no léxico, comprovando, assim, mais uma vez, a teoria de Labov de que os

indivíduos que mudam de classe social alteram o comportamento linguístico.

Depreendemos disso que a forma como as línguas se organizam dizem muito a

respeito da organização social de seus usuários. E mais do que isso, dentro de uma mesma

classe social se refletem padrões linguísticos distintos, resultantes de estratificações

socioculturais.

3. As línguas indígenas brasileiras e sua contribuição para a diversidade

linguística no Brasil

Segundo Rodrigues (1993), o tempo decorrido entre o início do povoamento da

América do Sul e a chegada dos primeiros europeus, no fim do século XV, ainda não é

conhecido. No presente estudo, por falta de dados precisos, tomamos como ponto de

referência 1500.

Quando os europeus aqui adentraram, conforme nos conta a história, encontraram

vários povos indígenas e nesses contatos, europeus e indígenas influenciaram e foram

influenciados. É certo que o indígena, principalmente, o povo tupi, influenciou

acentuadamente os recém-chegados. Essa influência foi tão acentuada que até o século

XIX, conta-nos Melo (1981) que o Tupi era mais falado que a língua Portuguesa:

Transplantada para cá, sofreu a língua [portuguesa] forte concorrência de uma

importante rival, o tupi, que se ouvia em quase toda a costa e que, com o tempo

e por circunstâncias várias, se tornou língua geral (destaque do autor), do

Brasil-Colônia. Nos primeiros tempos, e até o século XVIII em alguns lugares

falou-se mais tupi que português, sendo esta a língua oficial, a das cidades

maiores, a língua da administração ou do comércio, e tupi a língua caseira,

transmitida principalmente de mães a filhos, instrumento de comunicação do

cotidiano. (MELO, 1981, p. 89)

Mas, como bem acentua Foucault, língua é poder, isto é, a língua funciona como

reflexo de políticas sociais, e posto que na história vence o mais forte política e

economicamente, acabou por ser reduzida a influência indígena sobre a língua

portuguesa. Temendo, os rumos que ganhavam o Tupi, no século XVIII, o rei de Portugal,

Marquês de Pombal, baixou um decreto proibindo o uso do Tupi.

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Porém não se pode dizer que a língua e a cultura europeias, aqui no Brasil, não

tenham sofrido influências profundas, afinal, mais de 200 anos afastaram esse decreto do

uso real do Tupi, como língua predominante. Uma análise superficial já revela o quão são

diferentes língua e cultura portuguesas europeias das língua e cultura portuguesas do

Brasil. É certo que o lapso de tempo e a distância espacial por si só já seriam suficientes

para revelarem transformações entre o português falado no Brasil e português falado em

Portugal, pois como se sabe, quando uma mesma variedade de língua se distancia no

espaço, a tendência é que com o tempo se torne duas variedades distintas em virtude das

diferentes influências que sofrem seus falantes. Um exemplo bastante esclarecedor entre

nós é o caso das línguas asurini do Xingu e Asurini do Tocantins. Inicialmente, eram uma

única língua, mas, hoje, conforme Rodrigues (1986), são línguas distintas, estando

inclusive em grupos distintos. Mas, para além dos fatores tempo e espaço, as influências

das línguas indígenas brasileiras foram preponderantes para configurar tantas distinções

entre o português, falado no Brasil e aquele falado em Portugal.

Em virtude da escassez de estudos sobre as línguas faladas no Brasil antes de

1500, é difícil saber sobre o número aproximado de línguas que aqui existiam antes de

1500. Conforme Rodrigues (1993), não se pode saber quantas línguas entraram

sucessivamente neste continente, mas é certo que aqui elas tiveram muito tempo para

diferenciarem-se das línguas da América do Norte e das dos demais continentes, seja pela

alteração ou perda de propriedades antes comuns; seja pelo desenvolvimento de novas

propriedades; seja, ainda, por não coparticiparem de inovações ocorridas mais

recentemente naquelas. Por outra parte, foram diferenciando-se entre si e multiplicando-

se em consequência do crescimento demográfico e da dispersão das populações.

Segundo Seki (1999), embora não haja dados totalmente precisos, atualmente os

estudiosos das línguas indígenas concordam com a estimativa de que no Brasil são faladas

cerca de 180 línguas indígenas. Estima-se que esse número represente apenas 25% das

línguas faladas no século XVI, havendo, assim, uma perda de cerca de 1.000 mil línguas,

o que representa 85% das línguas faladas desde a chegada dos portugueses no território

brasileiro. Ainda segundo a autora:

As línguas remanescentes são todas minoritárias, calculando-se em

aproximadamente 155.000 o número total de falantes. É muito variável o

número de falantes por língua, havendo apenas uma, o Ticuna, com cerca de

20.000. Três línguas – o Makuxi, o Terena e o Kaingang – contam com 10.000

falantes; vinte têm entre 1.000 e 10.000 falantes, e as outras 156 têm menos de

1.000, sendo que dentre elas, 40 são faladas por menos de cem pessoas,

havendo casos de línguas com menos de 20 falantes. (SEKI, 1999, p. 258-259)

Rodrigues (1993) nos mostra que no século XVI já se delineavam, através das

descrições de Anchieta, as primeiras contribuições do Tupi para a Linguística Geral.

Conforme o autor, na descrição do Tupinambá no século XVI, Anchieta foi um dos

primeiros gramáticos a expor claramente a distinção entre pronomes inclusivos e

exclusivos, a expressão de tempo em nomes, as consequências sintáticas da topicalização

de sintagmas adverbiais, a incorporação de objetos nos verbos transitivos, as mudanças

de valência verbal por causativização, por reflexivização e por incorporação do objeto.

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Atualmente, as pesquisas linguísticas com as línguas indígenas brasileiras têm

revelado fenômenos novos ou raros tanto na gramática quanto na fonologia de línguas

brasileiras, alguns dos quais sugerem a necessidade de revisão em certas concepções

teóricas, segundo Rodrigues (1993). No âmbito da gramática, alguns exemplos são a

existência de língua, cuja ordem oracional básica tem o objeto em posição inicial (OVS

e OSV). Esse recurso sintático não foi atestado nos universais linguísticos propostos por

Greeberg (1966). Além disso, com o avanço dos estudos com as línguas indígenas, novas

propriedades vêm se revelando. Algumas propriedades morfossintáticas são: a ocorrência

de incorporação de posposições e de incorporação recursiva de nomes no sintagma verbal,

a expressão da negação pela ausência de marca de afirmação, ou a alternância entre

construções sintáticas ergativas e acusativas (RODRIGUES, ibid.).

Dentre os fenômenos fonológicos descobertos em línguas brasileiras estão,

conforme Rodrigues (ibid.), três novas fontes de nasalidade: a compactação vocálica, o

silêncio (e, por extensão, a fronteira de palavra) e uma terceira, ainda não esclarecida

quanto à sua fisiologia, que produz nasalidade em contato com glides, não só o oclusivo

e o fricativo glotais (glides II de Chomsky e Halle), como já se havia descoberto também

no sueste da Ásia, mas igualmente os glides vocálicos w e y (glides I de Chomsky e

Halle), também a ocorrência de segmentos fonológicos complexos, com até três fases de

realização fonética, tanto consonantais como vocálicos ou ainda a margem inicial da

sílaba para a colocação do acento.

No Atlas Mundial das estruturas linguísticas (WALS), Comrie reforça o que

Rodrigues (1993) colocava sobre o fato de certas propriedades morfológicas, sintáticas e

fonológicas serem raras em outras línguas do mundo, sendo que algumas dessas

propriedades ocorrem essencialmente nas línguas indígenas brasileiras, por exemplo, as

ordens de constituintes OSV e OVS apesar de correr em outras línguas, são mais

recorrentes nas línguas indígenas brasileiras. Fenômenos como a conjugação de

adposições quase não são encontradas em línguas europeias, mas podem ser encontradas

em línguas indígenas brasileiras, como na língua Wari. Outro traço pouco ocorrente nas

línguas do mundo é ausência de fonemas nasais, entretanto, pode ser encontrado em

línguas indígenas brasileiras, a saber: Piharã e Maxakali.

Assim, pode-se afirmar que a contribuição das línguas indígenas brasileiras é

muito relevante para o conhecimento da diversidade linguística, haja vista que há

fenômenos linguísticos encontrados apenas nessas línguas e outros raros em outras

línguas. Daí a relevância da documentação e descrição dessas línguas, sendo de extrema

importância para a preservação do patrimônio cultural da humanidade.

Como já colocava Câmara Jr. (1979), e autores como Rodrigues (1993) e Seki

(1999), as línguas indígenas foram objeto de poucos estudos até a primeira metade do

século XX. É a partir da segunda metade desse referido século, que as pesquisas com

essas línguas ganham mais volume, podendo ainda hoje serem consideradas tímidas.

Nos últimos anos, a importância da diversidade linguística tem sido abordada no

contexto da diversidade em geral, enfatizando-se a compreensão das línguas como parte

intrínseca da cultura, da sociedade e visão de mundo dos falantes, bem como o fato de

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que a perda de línguas tem como consequência o desaparecimento dos sistemas de

conhecimentos que elas refletem e expressam, já que, como vimos, é consensual a

aceitação de que língua, sociedade e cultura estão intrinsecamente relacionadas.

Além disso, como se pode depreender do que foi dito acima, as línguas indígenas

têm-se revelado uma importante fonte nos estudos tipológicos e comparativos. Assim, a

sua extinção compromete um conhecimento mais profundo sobre a estrutura e o

funcionamento de línguas naturais.

A situação de comunicação em que as línguas indígenas brasileiras se

encontram é variável de grupo para grupo, apesar poucos estudos nessa área,

Seki (1993) afirma que: “As cerca de 180 línguas ainda existentes convivem

com a situação sociolingüística das línguas brasileiras que hoje está

configurada , em termos gerais, da seguinte forma:

- monolinguismo na língua indígena do grupo;

-bilinguismo envolvendo a língua do grupo e outra língua indígena;

- bilinguismo envolvendo a língua do grupo e o Português;

-plurilinguismo envolvendo línguas indígenas;

-plurilinguismo envolvendo línguas indígenas e o Português”.

(SEKI, 1993, p. 259)

Reconhecendo a multiplicidade de línguas no Brasil, o Governo brasileiro, na

Constituição Federal de 1988, garante a Educação formal dos povos indígenas nas suas

respectivas línguas e a Lei 9394/96 trouxe a regulamentação para a Educação dos povos

indígenas, assegurando o que colocara a referida constituição.

4. Considerações finais

Neste trabalho, refletimos sobre as relações entre língua, sociedade e cultura.

Mostramos que a sociedade é fator preponderante para a organização linguística de um

grupo, além disso, mostramos também o predomínio de uma língua sobre outras. O

predomínio da língua portuguesa sobre a língua Geral ou Tupi está mais relacionado a

fatores políticos que a outros de ordem linguística. A cultura nos mostra um sistema de

crença e de valores que se refletem na língua. Um aspecto que se revela fundamental é o

da organização do léxico, isto é, a seleção lexical que seus usuários fazem a partir de

recortes de sua realidade.

Na sequência, mostramos aspectos da contribuição das línguas indígenas para a

diversidade linguística no Brasil e sua relevância para os estudos tipológicos e

comparativos.

Por fim, a liberdade de os povos indígenas usarem em suas comunicações internas,

bem como na educação formal suas respectivas línguas, junto às políticas linguísticas que

vem proporcionando o governo brasileiro, embora de forma ainda lenta, mostra-nos que

os povos indígenas caminham para o reconhecimento de seu valor histórico e cultual para

a formação do povo e da cultura brasileira.

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