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Aspectos da constituição urbana de Foz do Iguaçu: experiência dos moradores
do bairro Vila C (1976-2006)
Rodrigo Paulo de Jesus
*
Introdução
Este trabalho está vinculado à linha de pesquisa Trabalho e Movimentos Sociais
ofertada pelo Programa de Pós-Graduação em História da Unioeste/Mal. C. Rondon – que
tem a perspectiva de investigar os aspectos relacionados à constituição urbana de Foz do
Iguaçu, a partir da experiência vivida e narrada pelos moradores do bairro operário Vila C
entre 1978 a 1994.
Busca-se através dessa pesquisa entender os aspectos de constituição da cidade a
partir da experiência de atores sociais não contemplados em outras pesquisas, visando
destacar a sua participação nesse processo. Nesse caso especial os moradores do bairro,
grande parte deles ex-operários da construção de Itaipu. O que se procura perceber e
evidenciar, o significado da moradia em suas vidas, problematizando a constituição e a
permanência do bairro dentro dos limites da cidade de Foz identificando as diversas
estratégias de luta realizadas pelos moradores no processo que envolveu a venda das casas.
Desse modo, a preocupação fundamental consiste em entender a experiência
conforme a concepção de E. P. Thompson, dos moradores a partir de suas percepções,
tendo primordialmente a noção de que a ação humana é o elemento principal do processo
histórico, na qual concebemos ser uma forma concreta para refletir sobre as
particularidades e diversidades de experiências, expectativas, dificuldades, enfrentadas por
estes trabalhadores a partir do momento em que foram dispensados, encarando-os como
sujeitos que participaram e participam ativamente da história.
Ao ter noção sobre esse aspecto, não se propõe colocá-los como vítimas, ou heróis
do processo, atribuindo juízo de valor, elaborando uma retórica apologética dessas
experiências de luta dos moradores, invertendo o papel da memória oficial difundida pelas
classes dominantes de determinada época, como a história da cidade, elaborada pela
Prefeitura que se resume na vida de alguns pioneiros considerados importantes ao marco
inicial da cidade geralmente pessoas que foram políticos locais, e principalmente pela
* Mestrando em História pela Unioeste/Mal. Cândido Rondon. End. eletrônico: [email protected]
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historia dos ciclos e dos surtos econômicos 1 a qual é repassada para a população.
Principalmente nas escolas de 1º a 4ª das séries iniciais, que conscientes ou não,
contribuíram na construção de uma história política e econômica que representa e legitima
os interesses das respectivas classes dirigentes.
Ao propor investigar os processos de constituição urbana de Foz do Iguaçu, a partir
dessa perspectiva acreditamos que estaremos ampliando o leque de interpretações sobre a
cidade, contrapondo com a produção historiográfica e as obras memorialísticas sobre a
mesma. Tomando o cuidado para não reluzi-la às idéias, instituições, ou em uma narrativa
conjuntural de sucesso e vitórias. Entendendo suas experiências, dentro de um ambiente de
conflito, resistência, estratégias de luta diversas, onde experimentam uma diversidade de
situações postas na dinâmica social na qual estão inseridos.
Nesse sentido, acreditamos que ao tentarmos perceber os processos de constituição
da cidade pela percepção dos sujeitos que se inserem e buscam uma nova dimensão de vida
e de perspectiva, estaremos fazendo um distanciamento critico das interpretações criadas
pelos veículos de comunicação e reproduzidas pela academia, onde apontam para as
estruturas macroeconômicas que reeditou um novo perfil para cidade após a década de
1970, submetendo-a ao rigor de mais um ciclo que remodelou a rotina do município e
consequentemente o cotidiano dos próprios sujeitos sociais de forma mecanicista.
Portanto o objetivo principal é entender entre vários aspectos como os moradores
através de suas práticas e relações estabelecidas em um cenário constituído de expensas
contradições, onde foram capazes de reivindicarem o direito a moradia e contribuindo para
as transformações operadas na estrutura urbana de Foz do Iguaçu nos últimos anos.
Contextualização e inserção do tema na historiografia regional
Para melhor compreender a constituição desse tema, uma breve contextualização se
faz necessária a partir da inserção do bairro operário no cenário urbano de Foz. O bairro
Vila C é um dos três conjuntos habitacionais criados pela Itaipu Binacional, dentro da área
prioritária da usina entre 1975 e 1978, na margem brasileira, para abrigar funcionários
tanto da Itaipu como das empreiteiras, que esta localizada na zona norte de Foz do Iguaçu.
1 ALENCAR, F. Foz do Iguaçu – Retratos Foz do Iguaçu, Campana & Alencar Ltda, 1997 – Foz do Iguaçu: Terra das Cataratas: Suplemento do Município. Renata Campos Tesin (org). História e Geografia, 2001. E memorialistas ligados aos pioneiros da cidade, e políticos: SCHIMMELFENG, Ottília. Retrospectos Iguaçuenses. Foz do Iguaçu, Editora Tezza, 1991. LIMA, Perci. Foz do Iguaçu e sua História. Foz do Iguaçu, Impressão Serzegraf, 2001.
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No total, Itaipu criou várias vilas residenciais com cerca de nove mil moradias, das quais
4.125 no lado brasileiro que era ocupada de acordo com o cargo exercido: a Vila B para
engenheiros; a Vila A para funcionários com cargos técnicos e administrativos; a Vila C
para trabalhadores como serventes, carpinteiros, pedreiros, etc 2.
De acordo com o projeto de moradia de Itaipu 3, o conjunto C deveria ser a vila
mais próxima do canteiro de obras, multifamiliares, destinada também a casados,
geralmente serventes, carpinteiros, pedreiros, ou seja, trabalhadores ligados à construção
de civil. E claro que durante a intensidade da construção, funcionários da empresas ligados
a outros ramos como administrativo, por exemplo, também ocuparam as casas. As casas
eram de construções mais simples, em blocos de concreto, que deveriam ter apenas a
duração da obra, devendo ser desmontada quando concluídas o projeto final de Itaipu.
Pela distribuição do lugar das Vilas, junto também com estética das casas e da
infra-estrutura geradas a elas, a Vila C tinha um caráter mais rudimentar, com os materiais
com vida útil reduzida de 10 anos, além disso, estava muito próxima da Usina –
prioritária4. Enquanto nas outras vilas A e B, possuíam clubes esportivos e de lazer, a Vila
C tinha apenas um centro comunitário. Havia duas escolas no total, sendo que uma ficava
na Vila C para os filhos dos peões, e a outra na Vila A, para os filhos dos outros
funcionários que residiam nos dois bairros. Na Vila C, só as ruas principais que tinham
asfalto, as demais eram de cascalho, já nas Vilas A e B eram todas ruas asfaltadas 5.
As casas eram basicamente de dois diferentes modelos. Havia um compartimento
que formava quatro residências separadas, feitas em alvenaria (blocos de concreto) e
armação de ferro, com cobertura de zinco. O conjunto habitacional tinha um ambulatório
médico, e um agrupamento comunitário próprio, centros comerciais, com varias áreas de
lazer, com campos de futebol de areia, quadra de vôlei, gramados, e “parquinhos” de
diversão para crianças, conhecida como Vila C Velha, alguns bosques com iluminação.
Para manutenção do bairro, havia um órgão chamado popularmente de “prefeitura” 6 que
fiscalizava o estado perfeito das casas, em relação a estrutura física, ao encanamento, 2 Revista Construção Pesada, Editora Técnica, ano 7, nº 82, novembro de 1977. p. 04 3 Idem, Ibid, p. 04. 4 Prioritária no sentido da proximidade que a Vila tinha do canteiro de obras, sendo que ultima parte do bairro construído depois que localizado na parte norte, conhecida como Vila Nova, fica próxima ao lago de Itaipu e do Refugio Biológico Bela Vista. 5 CATTA, Pena. Cotidiano de uma Fronteira a perversidade da modernidade. Cascavel, 1º edição, Edunioeste, 2003. 6 “Prefeituras” era o nome popular do departamento que tinha a responsabilidade pela manutenção do caráter da vila, água, energia elétrica, reformas nas casas, áreas de lazer etc.
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instalação elétrica, etc. Os moradores não tinham nenhuma possibilidade de alterar
qualquer parte da instalação, pois, todo o tipo de manutenção das casas era feito por esse
órgão. Qualquer necessidade de reforma da casa, ou troca de chuveiro, problemas no era
levado pelo morador a esse departamento, que então fazia a manutenção. O mesmo
departamento fazia reuniões periódicas com os moradores, para tratar de assuntos
pertinentes à educação, segurança, lazer, administração ou no caso de alguma reclamação
na falta de alguns desses itens.
Outro elemento essencial era um rígido Sistema de Segurança que, dia e noite,
zelava pela ordem nesses espaços 7. Havia ronda noturna que patrulhava freqüentemente
pelas ruas, controlando ate mesmo o horário de permanência das pessoas na Rua, ou caso
de festa ou situações do gênero, fiscalizando o horário do recolhimento das famílias. A vila
era isolada com cercas de arame farpado e muros, onde na entrada da vila havia uma
cancela com segurança vinte quatro horas, para controle de entrada e saída, que
permaneceu até por volta de 1986.
De acordo com o projeto de moradia da Itaipu, a Vila C deveria ter a duração da
obra, isto é, um conjunto habitacional provisório, pois, a construção da barragem seria feita
em etapas de frentes de trabalho (escavação, concretagem, montagem.), sendo que no
término das obras a vila deveria ser desmontada. Apesar de toda a infra-estrutura montada
de um bairro regular, com escola, comércios, creches, áreas de lazer o objetivo era acabar
com a vila operária após a construção, também com a justificativa de que parte da Vila
seria prejudicada pela passagem das torres que conduzem energia ate a subestação de
Furnas .
Até 1990 os operários que moravam na vila conviviam com a inquietação no
canteiro de obras diante da perspectiva do desemprego e da possibilidade de perder as
casas, pois nesse período a política administrativa majoritária da empresa era de contenção
de gastos e principalmente de desmobilização de parte da infra-estrutura. Regularmente
segundo as regras da empresa, quando os trabalhadores eram demitidos tinham que sair e
desocupar a casa e deixar a vila imediatamente. Em muitos casos, nesse período a
resistências tomava parte dos moradores que se recusavam a deixar as casas, por muitos
deles não tinham onde morar, fazendo com que a Itaipu em varias situações recorresse a
7 Op. Cit. Catta, Pena. In. A Vida em Itaipu. Cotidiano de uma Fronteira a perversidade da modernidade. pp. 103.
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mandatos judiciais com ordem de despejo, pois a maior alegação da empresa era que
faltava moradia para entrada de novos funcionários.
Apesar dessa justificativa, segundo o Jornal Nosso Tempo, em 1990 o Sindicato
dos Trabalhadores da Construção Civil de Foz do Iguaçu, constatou após alguns
levantamentos e colhimentos de dados, que no Conjunto Habitacional C, havia cerca de
400 residências desocupadas, apesar da insistência por parte da empresa em despejar os
trabalhadores demitidos 8.
Nesse período, final da década de 1980, a cidade, passava por um sério problema de
déficit habitacional. Sendo assim, alguns jornais de circulação local davam destaque ao
déficit habitacional e a necessidade de efetivar o processo de venda das casas da Vila C.
Nessa época, também foi possível perceber algumas figuras influentes ligadas à política da
região insistindo pela permanência do bairro, onde buscavam intermediar a questão com a
diretoria da Itaipu para demandar a permanência das casas e sua inclusão ao perímetro
urbano da cidade. O político Sergio Spada do PSDB, por exemplo, que foi Deputado
Estadual da região em diversas ocasiões e concorrente em varias eleições pelo cargo de
prefeito da cidade, em uma entrevista ao Jornal Nosso Tempo da época coloca que: a
demolição das residências é injusta e contraproducente, ainda mais numa época em que o
país atravessa fase de extremas dificuldades para as classes menos favorecidas, e com o
país convivendo com grave déficit habitacional, ou seja, tentando justificar a permanência
do bairro, a um problema vivido conjunturalmente em escala nacional pelos trabalhadores
menos favorecidos.9 Seria um pouco arriscado no momento tecer criticas maiores
referentes à intencionalidade do Deputado em se colocar como um suposto defensor da
causa dos trabalhadores.
Embora, a decisão da diretoria em vender as casas no ano de 1990 à situação do
bairro permaneceu indefinida. A empresa não queria assumir diretamente os
procedimentos da venda sob alegação de desvio de seus objetivos, e, sobretudo sob a 8 Jornal Nosso Tempo 28/09 a 04/10/1990, p. 29. Segundo o depoimento de Dolores Nicoletti, atribuindo sua versão aos fatos, esse foi um dos fatores para a permanência das moradias: “Depois conforme foi terminando o serviço, eles não tinha como voltar para a cidade de origem porque já não sabia se ia ter o mesmo emprego de antes, começaram a ficar nas casa, e a Itaipu, ou a Unicom dava um tempo de permanecerem de 30, 60 ou até 90 dias ou no máximo 120, até eles se ajeitarem e voltarem para a cidade de origem. Quando começo a complica e muitos deles já tinham gastado todo o dinhero, e não tinha mais como volta começo então a idéia de preserva as casas. Quando acontecem as primeiras noticias que as casas iriam permanecer para serem vendidas, a Itaipu começa então a lançar investimentos com a para melhorar as condições das casas pra a venda, em questões de saneamento básico, jardinagem, lazer, instalação elétrica. Depoimento colhido por Rodrigo Paulo de Jesus, em setembro de 2005”. 9 Jornal Nosso Tempo, de 06 a 12/07/1990, p. 03.
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alegação de “preservação de sua imagem”, com a perspectiva de repassar ao Sistema
Nacional de Habitação, a fim de encampar a burocracia da regularização das moradias.10
Apesar desses contratempos, em dezembro de 1990, o Conselho da Diretoria Geral
de Itaipu, anuncia que dará abertura ao processo de venda, dando prioridade aos
funcionários da Usina e das empreiteiras que ainda moravam na vila. Em Resolução da
Diretoria Geral Brasileira percebe a preocupação da mesma em acelerar o processo de
venda das casas, onde ficou expressada nitidamente em uma de suas reuniões, se
preocupando diretamente com os casos de ocupação de residências:
a uma necessidade de ser operacionalizada a alienação das unidades habitacionais do Conjunto C, margem esquerda e considerando: (...) Que é conveniente à contratação da COHAFRONTEIRA, como forma de agilizar a alienação das casas, pela existência do referido financiamento e que ficará ela responsável pela execução de todo, o projeto, fiscalizado pela Caixa Econômica Federal; Que a urgência nas definições para evitar as invasões das unidades habitacionais que tem sido freqüente. 12
No final de 1991 é regularizada a venda das casas depois de um contrato firmado de
comum acordo entre a Itaipu Binacional, como agente vendedora, a Cooperativa de
Habitação da Fronteira – COAHFRONTEIRA como agente devedora, e a Caixa
Econômica Federal como agente credora. 13 Nesse contrato ficaram especificado os
compromissos de cada agente para regularização das vendas e também facultar formas de
financiamento que também seria feito via FGTS. Havia também em uma das clausulas do
contrato o compromisso da agente devedora COAHFRONTEIRA, em contratar o serviço
de empreiteiras para refazer boa parte da infra-estrutura do bairro, pois as casas haviam
sido construídas com materiais de vida útil reduzida de 10 anos, portanto, era necessário
fazer alguns ajustes nas, como no forro, fossas individuais, pois as fossas eram
compartilhadas, parede corta fogo, para dividir literalmente as casas, e pavimentação
asfáltica. 10 Resolução da Diretoria Executiva - Itaipu Binacional - RDE – 109/90 – 407º Reunião Ordinária – 29/11/1990. Assim como destaca o Jornal O Estado do Paraná: “O diretor geral brasileiro de Itaipu disse que as mais de três mil casas da Vila C serão repassadas aos futuros proprietários no início do próximo ano, quando cada um terá que passar a arcar com as despesas de limpeza, manutenção água, entre outras mordomias pagas pela binacional. O fornecimento de água, por exemplo, passará aser feito e cobrado pela Sanepar. O colégio, e por sinal enorme, será administrado já a partir do próximo ano letivo pelo município. É a construção de Itaipu chegando ao fim”. 12 Resolução da Diretoria Executiva – Itaipu Binacional - RDE – 097/91 – 426º Reunião Ordinária – 29/08/1991. 13 Contrato de Empréstimo e outros pactos, através do Programa de Moradias Populares, para a construção do Empreendimento denominado, “Conjunto Vila C de Itaipu. Contrato: Nº 4090/91”
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A escolha pelo tema e a discussão com a historiografia local
A escolha pelo tema e o recorte tanto espacial como temporal esta ligada a dois
fatores fundamentais. Primeiro relacionado à minha experiência de vida como morador do
bairro. Embora meus pais não tiveram a experiência de ter trabalhado na Usina de Itaipu,
pois a chegada de minha família foi por outros motivos de trabalho e não pela construção
da barragem, em meados de 1993, algumas curiosidades me despertavam em procurar
saber o passado do bairro ainda quando pertencia a Itaipu, até mesmo de como as pessoas
se lembravam daquele outro momento. Em meio à convivência com muitos filhos de ex-
funcionários da hidrelétrica na infância, percebia sempre em suas falas uma forte
recordação do bairro, seja como estudante do Colégio Anglo americano, como também na
descrição de como era disposto o espaço da convivência, do lazer, das brincadeiras e dos
jogos de futebol antes da venda das casas.
Foi assim nesse ambiente que muitas curiosidades despertavam mesmo na infância
e adolescência de talvez um possível historiador. Nessa época também lembro de meu pai
sair diversas vezes para as reuniões da Associação de Bairro, quando na pauta se discutia o
escândalo da venda das casas pela COAHFRONTEIRA, e as medidas a serem tomadas
pelos moradores dali em diante, referente à situação indefinida da venda das casas.
A segunda motivação esta relacionada ao amadurecimento de algumas questões que
se colocaram já nos tempos de graduação na Uniamérica, junto com um interesse de
pesquisar um tema para o Trabalho de Conclusão de Curso. A disciplina optativa de
História e Memória ministrada pela Professora Aparecida Darc de Souza, que tivemos no
segundo ano da graduação permitiu especular em uma pré-tentativa de articular as
discussões teóricas com o universo prático da pesquisa ligada a uma preocupação política
muito forte de trazer elementos alternativos a historia oficial da cidade a partir da
experiência e das memórias dos trabalhadores no seu viver na cidade.
Foi então, no último ano da graduação, que o primeiro mapeamento da pesquisa se
concretizou quando tivemos acesso ao arquivo da Usina de Itaipu e a partir de daí realizar a
primeira experiência de pesquisar um tema mais enfocado ao bairro. Foi nesse primeiro
contato que tivemos um acesso maior com parte da historiografia regional preocupada em
atribuir interpretações relacionadas ao desenvolvimento urbano na qual passou a cidade
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nos últimos trinta anos. Principalmente em muitas delas buscar explicar de diversas formas
os problemas ligados à vida dos trabalhadores e o seu viver na cidade.
Nesse sentido foi possível perceber como essas versões, quase em sua totalidade
atestavam como foco principal de analise a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu
como um controvertido elemento de desenvolvimento econômico, progresso tecnológico e,
ao mesmo tempo, de desagregação social, geradoras de problemas como: exclusão,
marginalização, pobreza e violência. E unânime nessas explicações a importância da
construção da barragem, como uma espécie de marco divisor na história da cidade, onde
dela partiu o crescimento e o progresso e junto a face perversa e os graves problemas
sociais “de uma cidade pacata, tranqüila e “esquecida” do interior do interior do Brasil,
para uma nervosa, neurótica, “moderna” do interior do país 14.
E evidente que não dava para se afastar desse processo, negando esses fatos, pois
seria talvez anacrônico não relevarmos os impactos gerados na cidade após a construção de
Itaipu, pois os dados estatísticos revelam em grande medida a violência desse impacto.
Entre a década de 1970 à 2000 à cidade aumentou na quantia de 800% (cerca de 30 mil
habitantes em 1970 a 250 mil habitantes em 2000)15. Também pelo fato, que a Usina de
Itaipu teve importância considerável na configuração de toda uma infra-estrutura urbana na
cidade. Estradas de via dupla ligando as cidades à obra, amplas avenidas de acesso aos
conjuntos residenciais e em toda a sua área de abrangência; canalização de córregos,
iluminação em certas áreas; segurança nas proximidades dos três conjuntos construídos
pela empresa, num total de 4.750 casas no lado brasileiro para abrigar seus funcionários e
das empreiteiras.
No entanto, por mais que esse esforço analítico em buscar compreender os dilemas
enfrentados pelos trabalhadores no presente o perfil dessas abordagens quase sempre
apontavam como a implantação do mega empreendimento redesenhou a estrutura e os
hábitos da cidade que atingiu diretamente toda a população, em ambos os lados da
fronteira, reflexo imediato de uma conjuntura imposta pelos militares do cone sul durante
os anos 1960 e 19 70 16.
Por mais que essas abordagens se constituem dentro de um quadro de importância
ao um pensar alternativo a respeito da historia oficial da cidade, as opções por esses temas
14 CATTA Pena, op. cit. p. 12. 15 Censo IBGE 2000. Foz do Iguaçu/Pr. 16 CATTA Pena, op. cit. p. 16.
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em alguma corroboravam, em legitimar uma historia de dominação sobre os trabalhadores,
que não mais do que resistir e se adaptar aos projetos dominantes de organização do
espaço.
Assim alguns trabalhos buscando discutir e relevar os problemas da fronteira, uma
serie de trabalhos acadêmicos, postula como a fronteira se constituiu como palco natural de
transito de trabalhadores a partir de processos migratórios, atraídos pela promessa de
melhores condições de vida garantidos pelas benesses do progresso dinamizado pela
construção da barragem.
O que foi possível constatar na diferença dessas abordagens e o que garantia o seu
status de um trabalho eminentemente crítico e que esse desenvolvimento foi descontínuo e
desigual, pois poucos foram os que desfrutaram de suas realizações. Ainda, foi
determinante para estancar os antigos laços tradicionais de vida, inventando um novo
cotidiano pautado por outros valores desconhecidos a uma cidade considerada de interior.
Onde os resultados do forte impacto trazido pela construção da barragem, enaltecido pelo
discurso de desenvolvimento regional foram determinantes para atrair milhares de pessoas
que chegaram à fronteira com sonhos e aspirações tendo que depois amargar o
desemprego, submetidos à realidade da fronteira.
Com o esforço de reconstituir o cotidiano da fronteira e possível perceber a
utilização da fala dos trabalhadores para legitimar a idéia de serem vítimas diretas desse
processo. Enfocando por exemplo, a distribuição e a desigualdade de infra de estrutura das
vilas construídas para abrigar os trabalhadores, retratando também as condições precárias
de vida, do transporte dos operários ao canteiro de obras, das condições de trabalho etc.
Apesar da importância desses trabalhos na desmitificação da imagem oficial que
narra de forma “positiva” os impactos trazidos pela dinamização do empreendimento, na
maior parte das vezes o que percebemos são análises diversas que narram de forma
indistintas diferentes aspectos e trajetórias de um mesmo processo que nada teve de
homogêneo e principalmente por não ser capaz de revelar o conjunto da experiência social
de muitos trabalhadores e o seu viver na cidade.
Defendemos que essa forma de abordagem constitui uma tentativa desautorizada,
por parte destes autores, de interpretar de maneira reduzida um complexo universo social,
onde as diversas experiências, vivências, memórias, sentimentos, emoções, alegrias e
tristezas destes milhares de trabalhadores acabam sendo simplesmente ignorados em nome
10
da “leitura crítica” sobre tal processo.
Reiteramos que não queremos nos afastar dessa realidade, romantizando a
experiência dos trabalhadores sem submetê-las a análise crítica. O que procuramos
contestar e que, essa leitura de alguma forma estruturalista, acabou englobando parte das
experiências dos trabalhadores a questões relacionadas a fatores como: planejamentos mal
elaborados; políticas públicas inconsistentes; negligencia dos poderes públicos, que estaria
ligado conseqüentemente ao fator perverso das próprias contradições clássicas do
capitalismo.
Portanto, a dimensão aberta por esse tipo de análise de alguma forma não revelava
de alguma forma, a importância da luta e da resistência cotidiana dos trabalhadores em seu
viver na cidade contra as imposições dos megas projetos de ordenação do espaço. Nesse
sentido, acreditamos que a própria noção de sujeito social e até mesmo da contemplação do
universo urbano a partir da luta de classe, que e uma das características desse trabalho, é
esvaziada para dar lugar ao esmagamento definitivo imposto pela realidade cruel e
definitiva das políticas de desenvolvimento regional.
A leitura oferecida, apesar de crítica, cometia perigosas e deformadas
generalizações sobre estes trabalhadores, porque construía uma explicação na qual
predominava uma noção de causa e efeito: o fato de muito destes trabalhadores, terem
amargado a viver em um espaço inferior aos demais, sugere que necessariamente esses
indivíduos tenham se conformado a viver em condições precárias de moradia.
Apesar de fornecer esclarecimentos diferentes das imagens difundidas pelos
organismos oficiais em que o progresso econômico escamoteia os efeitos negativos dos
impactos sociais causados pela construção da barragem de Itaipu, a maior parte das vezes
acabava narrando de forma generalizada um mesmo processo que nada teve de
homogêneo. Segundo González, historiador local, indo na mesma direção que essa
postulação critica apontando as características dessas abordagens, afirma que:
existe uma historiografia oficial ou acadêmica que em via de regra, narra o contexto das transformações estruturais como foco central da leitura historiográfica. Esse tipo de leitura consiste em narrar a trajetória da cidade a partir das mudanças operadas em sua estrutura social e econômica, especialmente aquelas desencadeadas após 1970. Suas principais referências são o inicio da construção da barragem de Itaipu (1973) e o início dos ciclos comerciais (turismo e comércio)
11
após os anos de 1980. 17
Desse modo, o autor 18, que foi de extrema importância e inspiração para
constituição dessa pesquisa, a partir dessa temática e desses questionamentos, procurou por
um outro viés problematizar aspectos do crescimento urbano de Foz do Iguaçu, sobretudo a
partir dos anos 1990, tomando como ponto de partida às experiências de moradores que
vivem ou viveram em áreas de ocupação urbana constituída na ultima década em áreas
periféricas da cidade. Buscando dialogar com certa historiografia vigente, o autor aponta
para a diversidade de experiências de novos sujeitos que surgem em meio a uma outra
temporalidade, em detrimento dos marcos memorialísticos estabelecidos pela memória
oficial.
Para este autor, embora pretensiosamente crítica a historiografia existente na
cidade, reproduziu as mesmas imagens e representações produzidas pela imprensa local e
pela memória oficial, que pouco esclarecia a respeito do cotidiano da periferia de Foz do
Iguaçu. Muitas vezes com conclusões perigosamente apressadas, seria para justificar ações
repressivas de organismo policiais, como produzindo uma espécie de apartheid social,
dividindo a cidade entre aquela ideal e harmônica, limpa, e aquela marginal, perigosa, suja
e desorganizada, e que deveria passar por um processo de limpeza. 19
O autor chama atenção ao um tipo de análise mecanicista que e a memória oficial e
a historiografia reservou como um argumento para explicar a realidade das periferias,
estabelecendo, e, sobretudo enquadrando as diversas temporalidades aos rígidos marcos
estabelecidos pela memória oficial. Na qual esse tipo de leitura consistiu em narrar a
trajetória da cidade a partir das mudanças operadas em sua estrutura social e econômica,
especialmente aquelas desencadeadas após os anos 1970. Suas referências principais são o
início da construção da barragem de Itaipu (1973) e o início dos ciclos comerciais (turismo
e comércio) após os anos 1980.
Em um dado momento parece que a cidade, segundo os marcos da memória oficial,
vive em função da construção de Itaipu, quando acaba a construção, a cidade entra em um
novo ciclo, a do comércio com o Paraguai, e da exploração do turismo. Dessa forma existe
17 González Emilio. Memórias que narram a Cidade: experiências sociais na constituição urbana de Foz do Iguaçu. Dissertação (Mestrado) em História. São Paulo, PUC, 2005. 18 González Emilio. Op. cit. p.p. 1. 19 Idem, ibid,.p. 03.
12
um tipo de enquadramento de outras trajetórias, de experiências vividas na cidade, que não
possui relação com os marcos pré-estabelecidos.
Nesse sentido, segundo o autor, ao reconhecer outras narrativas, com novas
temporalidades, estamos abrindo caminho, para perceber a atuação de novos sujeitos,
reconhecendo a historicidade de cada modo particular. Perceber nessa diversidade
vestígios dos processos que transformaram Foz do Iguaçu nos últimos anos implica utilizar
procedimentos e caminhos não trilhados por pesquisas anteriores, e que têm sido
ignorados, de forma intencional ou não, implicando posições que infelizmente não se
resumem apenas a questões meramente historiográficas, mas que operam diretamente no
processo de divisão social dessa cidade. 20
Pressupostos teóricos metodológicos
Para chegarmos ao conjunto desses questionamentos também é bastante
significativo destacar a importância e a influência que o debate político trazido pela nova
esquerda inglesa no decorrer da década de 1960 a respeito da experiência da classe
trabalhadora e da formação da sua consciência de classe, provocou para a ampliacao dos
limites proposto pela pesquisa a respeito de estender um olhar diferenciado a cidade.
Notadamente nomes como E. P. Thompson, Eric Hobsbawn, que trazia no conjunto
de suas obras a busca pela reconstituição da experiência dos trabalhadores ingleses antes e
durante a Revolução Industrial que desconstruia em grande medida as interpretações
tradicionais a respeito da formação da classe trabalhadora na Inglaterra. Sem duvida essa
leitura serviu de forte inspiração para trazer elementos históricos alternativos para a
constituição de um projeto de pesquisa que enfocava os modos de viver dos trabalhadores e
o significado em especial que o morar e o trabalhar adquire em suas vidas.
O debate firmado, por exemplo, com Althusser e os estruturalistas marxistas no seu
livro “A miséria da teoria”, de E. P. Thompson no qual faz reflexões teóricas na produção
historiográfica, que impulsionaram pesquisadores a quebrar ortodoxias, explorando as
experiências vivenciadas através do constante diálogo com as fontes21. Somem-se a isso as
20 Ibid. idem.. p. 06. 21 FENELON, Déa Ribeiro. Diálogos com E. P. Thompson. Projeto História: Revista do Programa de Pós-Graduação em História e do Departamento de História da PUC/SP. São Paulo,1995, p. 79.
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reflexões em torno das experiências da classe operária no século XVIII 22 foram bases
inspiradoras para muitas pesquisas dedicadas a reconstrução das vidas e ações das classes
trabalhadoras e dos oprimidos.
A contribuição de E. P. Thompson a respeito da formação da classe operaria inglesa
no processo de Revolução Industrial foi fundamental, onde grande parte das analises que
tematizavam esse aspecto direcionava seus estudos, enfocando como as maquinas e o
progresso tecnológico tinha “produzido” não só o capitalismo industrial, como: a miséria, a
exclusão, a pobreza, a marginalidade e a própria classe operaria, vinculada a esses termos,
Thompson (1987) por outro lado, caminha em direção ao “fazer” da classe trabalhadora.
O fazer-se da classe operária é um fato tanto da história política e cultural quanto da econômica. Ela não foi gerada espontaneamente pelo sistema fabril. Nem devemos imaginar alguma força exterior – “a revolução industrial” – atuando sobre algum material bruto, indiferenciado e indefinível de humanidade, transformando-o em seu outro extremo, uma “vigorosa raça de seres”. As mutáveis relações de produção e as condições de trabalho mutável da Revolução Industrial não foram impostas sobre um material bruto, mas sobre ingleses livres. Eles foram objetos de doutrinação religiosa maciça e criadores de tradições políticas. A classe operária formou a si própria tanto quanto foi formada.
Os impactos trazidos por essas obras são de extrema relevância em termos políticos
para a compreensão das lutas cotidianas constituídas pelos trabalhadores na configuração
do capitalismo industrial no decorrer do século XX, a partir de seus modos de viver, de
trabalhar e morar, em uma época de crise dos Partidos Comunistas com o fim do stalinismo
na URSS. Período esse marcado de indefinição de grande parte dos militantes do partido
frustrado com os rumos do socialismo real, onde nessa atmosfera de crise dos referenciais
de luta dos trabalhadores que o conceito de experiência vai sendo modelado na perspectiva
de entender de forma histórica o processo de formação da classe trabalhadora e da sua
consciência fora das instituições tradicionais como nos sindicatos, nos partidos, nos
movimentos sociais organizados e das grandes estruturas mecanicista.
homens e mulheres também retornam como sujeitos, dentro deste termo, não como sujeitos autônomos, “indivíduos livres”, mas como pessoas que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses e como antagonismo, e em seguida “tratam” essa experiência em sua consciência e cultura (...) das mais complexas maneiras (...) (THOMPSON, 1987, p. 12).
22 THOMPSON, E.P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987; ver também THOMPSON, E.P. Costumes em Comum – estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo, Cia das Letras, 1998.
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Portanto, é iniciada uma nova fase da história social do trabalho não limitada aos
trabalhadores organizados, suas organizações e lideres, mas voltada, ao contrário, para a
experiência das classes trabalhadoras. Com isso foi possível escapar das ordenações
cronológicas e da história narrativa dos movimentos operários.
Esse deslocamento analítico influenciou uma forte geração de historiadores a
ampliar o leque de investigação de seus estudos para além das fronteiras tradicionais da
historia social. No Brasil, por exemplo, o impacto dessas obras ocorreu basicamente no
final e durante a década de 1980, quando algumas dessas obras passam a serem traduzidas
e a serem incorporadas nas analises referentes ao movimento operário, e principalmente
aos modos de viver dos trabalhadores no universo urbano.
O peso desse deslocamento às analises referentes ao entendimento da cidade no
processo de expansão capitalista no Brasil também foi ressentido. Enquanto que nas
décadas do “milagre econômico brasileiro”, mais precisamente durante a década de 1970,
os estudos urbanos davam notoriedade mediante ao processo crescente de industrialização
no Brasil e o conseqüente processo de marginalidade e exclusão que uma cidade de
terceiro mundo produzia a prioridade agora incluía ouvir dos próprios sujeitos narrando a
sua experiência e o seu viver na cidade. Basicamente o que esses estudos destacavam eram
os processos macroestruturais que incidiam na formação das cidades, evidenciando a face
perversa do capitalismo conferindo um determinado papel do Estado na direção do
crescimento, ao mesmo tempo em que dava margem ao aumento da desigualdade, pobreza
e segregação (KOWARICK, 2000).
Assim, durante a década de 1980, os estudos sobre a cidade no Brasil começam a se
direcionar buscando abranger as condições subjetivas dos atores e as produções simbólicas
dos agentes que se representam e significam a vivência da exclusão. Como apontado por
Rosangela Petuba, em seu trabalho sobre o processo de ocupação de lotes na cidade de
Uberlândia pelos trabalhadores na década de 1990.
Se não se pode cair nas armadilhas das análises macro-estruturais, que diluem sujeitos históricos, projetos de vida e disputas políticas, que se dão no calor da hora, obedecendo a ritmos nem sempre inscrito a priori na teia das condições materiais objetivas; também não se pode ignorar o fato de que os processos de urbanização no Brasil, na América Latina e mesmo nos países de Terceiro Mundo estão inseridos dentro de uma lógica de desenvolvimento e expansão do capitalismo, principalmente se atentar para o fato de que esta é uma época em que a movimentação do capital desconhece regulamentações e fronteiras, em que alguns centros de poder orquestram políticas que mexem com a vida de milhares de
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trabalhadores no mundo inteiro, estejam eles no campo ou na cidade (PETUBA, 2001, p. 29).
O contexto da década de 1980, evidentemente foi muito propicio para o
desenvolvimento da temática nesta direção, pois, a diversificação das reivindicações junto
com a intensa politização da classe trabalhadora foi de extrema importância para aflorar
diversos tipos de movimentos populares, configurando “novos” movimentos sociais, antes
“ignorados” por outros paradigmas que identificava os conflitos sociais urbanos a partir da
ótica fabrica e sindicato. Desse modo, é possível perceber um avanço teórico no sentido de
pluralizar o olhar estendido a reivindicações populares, por exemplo, na organização dos
clubes de mães de São Paulo, Movimento Feminista, Movimento de luta pela moradia,
Movimentos sociais no campo etc.
A obra de Eder Sader, Quando novos personagens entram em cena, é talvez um dos
maiores retratos e um forte exemplo a ser destacado pela importância que teve para mapear
um conjunto de Movimentos Sociais Populares em São Paulo que emergiram no contexto
social e político brasileiro com uma fantástica capacidade criativa, organizativa e
mobilizadora, principalmente na década de 1980, sendo responsáveis por expressivas
conquistas que garantiram melhorias na qualidade de vida de amplos setores sociais.
Podemos trazer outro exemplo à composição dos eixos temáticos no Programa de
Pós-graduação em História da PUC/SP a partir de 199028. A criação do núcleo de pesquisa
de Estudos em Cultura, Trabalho e Cidade, mais precisamente em 1996, encabeçado pelas
Professoras Heloisa Faria Cruz, Dea Fenelon, Yara Khoury, mostrou ser possível
estabelecer no interior da Historia Social um deslocamento dos grandes modelos de que
colocavam em destaque as variáveis estruturais dos processos históricos para a experiência
social e os modos de viver e trabalhar dos sujeitos históricos.29 Sintetizando esse percurso,
poder-se-ia resumir emblematicamente que se oscilou do destaque das contradições
estruturais para o das experiências, tendo como principal referência empírico-analítica a
cidade, vista agora como processo imbricado de relações sociais de luta entre as classes
sociais. Tratava de deslocar:
Do trabalho como categoria abstrata para os trabalhadores, tematizando a experiência sociais de homens e mulheres, jovens migrantes negros em diferentes
28 CRUZ, Heloísa de Faria. “Cultura, Trabalhadores e Viver Urbano.” In: Revista Projeto História. São Paulo: PUC, n.º 18, maio/1999, 301 - 307. 29 CRUZ, Heloísa de Faria. Op. cit. p. 302
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momentos e situações históricas; dos estudos sobre o processo de urbanização para sobre a cidade e o viver urbano; da industrialização e formação do mercado de trabalho para os modos de trabalhar e sobreviver dos trabalhadores bem como das populações empobrecidas em geral. 30
Nesse sentido, as cidades passaram a ser problematizadas, a partir das relações
sociais nela desenvolvidas, tomando as múltiplas experiências dos trabalhadores e dos que
enfretam cotidianamente o ritmo dessas transformações, como um dos pontos centrais de
análise a cidade. Nesse sentido, a pertinência desses estudos se estende a um conjunto de
questões referentes aos desdobramentos que podem ser articulados:
Aos desafios emanados do mundo do trabalho contemporâneo que destacam a desindustrialização, a reestruturação dos processos de trabalho e a redefinição dos ofícios e profissões e em que a pobreza a exclusão e a informalidade e a precariedade dos vínculos trabalhistas assumem, ao invés de emprego e do trabalho a frente do cenário. 31
Essa abertura provocada em buscar contemplar as diversas temporalidades que
compõe o universo da cidade contemporânea permitiu relevar na mesma direção da autora
enfocar o estudo da experiência dos trabalhadores que desenvolvem suas atividades nos
espaços públicos e o embate mais direto com as instituições colocou em evidencia a cidade
dos trabalhadores 32.
Assim como na expressão de Fenelon, das relações sociais entre os moradores da
cidade, dos modos de viver, lutar e trabalhar, se divertir, desenhar e impregnar e
constituir, com suas ações a cultura urbana, 33 ou seja, abrindo a possibilidade de dar
atenção aos diversos tipos de práticas sociais, capazes de revelar a cidade sob uma forma
mais humana e contraditória permeada de disputas e não só dominação, mas de resistências
as tentativas de implantação de projetos dominantes que procuram ordenar o espaço da
cidade partir de uma ótica burguesa, limpa e ordeira.
Ou até mesmo, no sentido de “concessão” que determinadas exigências e lutas dos
trabalhadores, se transformam em um meio das elites políticas dominantes se legitimarem
oficializando as reivindicações dos trabalhadores, estendendo a dominação não só nos atos
propriamente dito, mas uma tentativa de construir outros marcos de memória, que venha
30 Idem, ibid. p. 302. 31 Idem, ibid. p. 302. 32 Idem, ibid. p. 303. 33 FENELON, Déa Ribeiro. Patrimônio Histórico-Cultural e Referencias Culturais. In Revista Projeto História. Espaço e Cultura. São Paulo, Educ, maio-1999, p. 290.
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ocultar outras memórias consideradas subversivas ou irrelevantes, retirando a
potencialidade da ação, da luta e intervenção humana no processo histórico·.
Ao abrir a possibilidade de rescontituição temática nesta direção, enfocando os
desdobramentos dos aspectos de constituição urbana de Foz do Iguaçu, sob a luz da
experiência dos moradores no processo de venda das casas, estamos coniventes dentro do
ponto de vista teórico, em deslocar olhar a cidade a partir da abertura das “questões
materiais” para os “sujeitos sociais”.
Assim agindo esses moradores deixam registrados ou vão imprimindo suas marcas, no decorrer do tempo histórico, alterando, transformando ou conservando não apenas a estrutura física de suas cidade, mas também como se relacionam e constituíram os seus modos de vida nesse cotidiano urbano”.34
Portanto Historicizar a experiência desses trabalhadores para a compreensão do
bairro a partir de suas próprias visões e de fundamental importância para compreensão da
cidade não só da perspectiva da formação e expansão propriamente dita, mas também
capacidade de revelar os significados que essas novas temporalidades têm em desvendar a
transformação e a constituição de modos de viver dos trabalhadores no universo urbano e o
significado que o trabalho e moradia têm em suas vidas: “tendo a compreensão de que são
as relações sociais entre os moradores da cidade que, em ultima analise, acabam por definir
e delinear contornos e paisagens urbanas, criando referencias culturais que nos permitem
perceber as imagens de uma cidade”.35
Nesse sentido, entender os aspectos da constituição urbana de Foz a partir da
perspectiva dos moradores da Vila C, a partir de uma outra lógica, ou seja, a partir de suas
próprias narrativas construídas sobre as experiências vividas na cidade defronta-se com
alguns problemas de ordem metodológica, relacionado às fontes históricas. Os moradores
do bairro não deixaram registros escritos sobre si mesmos. As fontes escritas disponíveis
que podem revelar de forma mais clara, por exemplo, a questão da venda das moradias, são
os processos judiciais movidos pelos moradores contra os agentes vendedores, que estão
arquivados no Fórum de Justiça de Foz do Iguaçu.
Outro material a ser consultado a respeito das casas, e do projeto de moradia de
Itaipu, que esta localizada no arquivo central da Usina, onde o acesso só e permitido
mediante autorização direta do Diretor Geral Brasileiro. Mesmo assim, o acesso e bastante 34 FENELON, Déa Ribeiro. Op. cit. 290. 35 Idem, ibid. p. 289.
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restrito. Dessa forma, a utilização de depoimentos orais nesta pesquisa se institui como
principal recurso metodológico às fontes orais, tomadas com o intuito de investigar as
experiências dos trabalhadores que no curso de suas vidas tiveram poucas ou quase
nenhuma oportunidade de registrar suas reivindicações, sua luta, seu trabalho, por meio da
palavra impressa.
Sendo assim, em termos metodológicos o que se pretende discutir a formação do
bairro a partir de suas experiências dos moradores, que moraram ou moram no conjunto
habitacional desde 1978, isto e, a partir de suas memórias. Utilizaremos as reflexões
propostas por Michel Pollack,36 sobre o trabalho de enquadramento da memória para
precisar o significado e o sentido da noção – memória coletiva, ou seja, o trabalho de
enquadramento da memória que constitui num processo de homogeneização,
uniformização das diferenças, excluídas e silenciadas por não corroborarem com os
elementos da identificação do grupo.
Se a análise do trabalho de enquadramento de seus agentes e seus traços materiais é uma chave para estudar, de cima para baixo, como as memórias coletivas são construídas, desconstruídas e reconstruídas, o procedimento inverso, aquele que, com os instrumentos da história oral, parte das memórias individuais, faz aparecerem os limites desse trabalho de enquadramento e, ao mesmo tempo, revela um trabalho psicológico do indivíduo que tende a controlar as feridas, as tensões e contradições entre a imagem oficial do passado e suas lembranças pessoais.37
Ao privilegiar a análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias,
chegaremos até as memórias de grupos não hegemônicos, que estão subordinados à
memória oficial, mas entendemos que de alguma forma mantém suas lembranças e
tradições. De acordo com Pollack, a história oral “ressaltou a importância de memórias
subterrâneas que, como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõe à
memória oficial, acentua o caráter destruidor, uniformizador e opressor da memória
nacional 38”.
Ao trabalhar com depoimentos dos moradores do bairro Vila C que experienciaram
o processo de venda, proporcionarão fatos que não encontramos em fontes escritas oficiais.
Como saber o que esses trabalhadores sentiam em relação ao viver no bairro antes e depois
36 POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento e silêncio”. In Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, Vol. 02, n.3, 1989, p. 3-15. 37 Op.cit, p. 12. 38 POLLACK, Michel, op.cit. p. 04.
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de Itaipu; como sabiam do caráter provisório da vila; como se sentiam em relação ao
trabalhar na usina e morar nas casas concedidas pela empresa; que tipos de laços que havia
entre os moradores; de que forma alguns moradores sentiram o golpe de perder o dinheiro
utilizado para pagar as casas para COHAFRONTEIRA sem receber a garantia de posse
legal da casas; como os outros moradores que não tinham efetuado o pagamento a essa
agência perceberam esse processo?
Desta forma, ao optar pelas fontes orais, entende-se que poderemos produzir um
outro tipo de história. Isto é, podemos produzir uma interpretação histórica na qual será
inserido o trabalhador, sendo uma ferramenta necessária e que não pode ser deixada de
lado nas pesquisas em geral, uma vez que possibilita incorporar não apenas indivíduos à
construção do discurso do historiador, mas permite conhecer e compreender situações
insuficientemente estudadas até agora.
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