as vÁrias faces do sertÃo mÍtico em guimarÃes...

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Augustus – Rio de Janeiro – Vol. 07 – N. 15 – Jul./Dez. – 2002 – Semestral AS VÁRIAS FACES DO SERTÃO MÍTICO EM GUIMARÃES ROSA Carlos Theobaldo * RESUMO: Grande sertão: veredas, obra-prima de João Guimarães Rosa, é uma nar- rativa extremamente multifacetada – as várias vertentes do homem se apresentam nos ca- minhos e descaminhos da personagem principal, Riobaldo e seu(sua) companheiro(a) Diadorim, nessa busca. A toponímia, onde notamos a influência portuguesa, africana e in- dígena nos vocábulos. A força dos nomes Riobaldo e Diadorim, e os dois juntos, contrastes e semelhanças. Os números na narrativa. O tempo, observado sob o ponto de vista entre Luz (o Divino) e sombras (o mal, em todas as suas acepções). A união do tempo conceitual (absoluto) com o tempo psicológico (relativo). O tempo como consciência cósmica. ABSTRACT: Grande sertão: veredas, João Guimarães Rosa’s masterpiece is a complex narrative that offers the reader many different points of view of life. Right and wrong paths of the main character, Riobaldo, and his friend Diadorim present the various ways of man. We can see Portuguese, African and Indian influences in various toponymies. A detailed analysis of Riobaldo and Diadorim’s names describes analogies and oppositions that show their strength. Numbers are also studied side a side in the narrative. Time is observed between Light – the Divine – and shadows – the evil and its variations. The union of conceptual time (absolute) with psychological time (relative) reviews time as cosmic conscience. Palavras-chave: Guimarães Rosa – romance – iniciação – tempo. Key words: Guimarães Rosa – novel – initiation – time. Segundo o siciliano Górgias, em Górgias de Platão, um retórico cheio de si, orgulhoso de seu ensino, toda obra humana é filha da palavra. Gra- ças à palavra, constroem-se cidades, abrem-se portos, dirigem-se exércitos e governa-se o esta- do. Sob a condição, observa Sócrates, de que a empresa seja justa e não um simulacro de justiça. Na força das palavras está contida toda uma sabedoria, que o poeta põe em prática, seja em prosa ou verso, tentando dizer o indizível, o in- decifrável, mostrando um novo aspecto e uso pa- ra aquela palavra... reinventando a verdade. A fic- ção, sem o compromisso de mostrar a verdade, é mais real que o relato puro – pois mostra a reflexão do acontecido. Vimos, assim, um novo modo de observar o mundo – essa redescoberta do viver. Mas, como disse Sócrates, em Górgias, a alma não pode passar da ignorância à ciência senão quando, tendo antes animado corpos diferentes, ela encontra, novamente, a lembrança de suas ex- periências anteriores. Assim como uma iniciação, o homem é um eterno aprendiz de maravilhas... E chegamos à personagem Riobaldo, em Grande sertão: veredas, pensando: já que a alma tem de animar vários corpos, e sendo Riobaldo vários em ––––––––– * Carlos Theobaldo é doutorando em Literatura Brasileira na USP, professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira. Co-autor do livro Duas visões: Guimarães Rosa e Clarice Lispector (Rio de Janeiro: Ágora da Ilha, 2000). 13

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  • Augustus Rio de Janeiro Vol. 07 N. 15 Jul./Dez. 2002 Semestral

    AS VRIAS FACES DO SERTO MTICO EM GUIMARES ROSA

    Carlos Theobaldo* RESUMO: Grande serto: veredas, obra-prima de Joo Guimares Rosa, uma nar-

    rativa extremamente multifacetada as vrias vertentes do homem se apresentam nos ca-minhos e descaminhos da personagem principal, Riobaldo e seu(sua) companheiro(a) Diadorim, nessa busca. A toponmia, onde notamos a influncia portuguesa, africana e in-dgena nos vocbulos. A fora dos nomes Riobaldo e Diadorim, e os dois juntos, contrastes e semelhanas. Os nmeros na narrativa. O tempo, observado sob o ponto de vista entre Luz (o Divino) e sombras (o mal, em todas as suas acepes). A unio do tempo conceitual (absoluto) com o tempo psicolgico (relativo). O tempo como conscincia csmica.

    ABSTRACT: Grande serto: veredas, Joo Guimares Rosas masterpiece is a complex

    narrative that offers the reader many different points of view of life. Right and wrong paths of the main character, Riobaldo, and his friend Diadorim present the various ways of man. We can see Portuguese, African and Indian influences in various toponymies. A detailed analysis of Riobaldo and Diadorims names describes analogies and oppositions that show their strength. Numbers are also studied side a side in the narrative. Time is observed between Light the Divine and shadows the evil and its variations. The union of conceptual time (absolute) with psychological time (relative) reviews time as cosmic conscience.

    Palavras-chave: Guimares Rosa romance iniciao tempo.

    Key words: Guimares Rosa novel initiation time.

    Segundo o siciliano Grgias, em Grgias dePlato, um retrico cheio de si, orgulhoso de seuensino, toda obra humana filha da palavra. Gra-as palavra, constroem-se cidades, abrem-seportos, dirigem-se exrcitos e governa-se o esta-do. Sob a condio, observa Scrates, de que aempresa seja justa e no um simulacro de justia.

    Na fora das palavras est contida toda umasabedoria, que o poeta pe em prtica, seja emprosa ou verso, tentando dizer o indizvel, o in-decifrvel, mostrando um novo aspecto e uso pa-ra aquela palavra... reinventando a verdade. A fic-o, sem o compromisso de mostrar a verdade,

    mais real que o relato puro pois mostra areflexo do acontecido. Vimos, assim, um novomodo de observar o mundo essa redescobertado viver.

    Mas, como disse Scrates, em Grgias, a almano pode passar da ignorncia cincia senoquando, tendo antes animado corpos diferentes,ela encontra, novamente, a lembrana de suas ex-perincias anteriores. Assim como uma iniciao,o homem um eterno aprendiz de maravilhas... Echegamos personagem Riobaldo, em Grandeserto: veredas, pensando: j que a alma tem deanimar vrios corpos, e sendo Riobaldo vrios em

    *Carlos Theobaldo doutorando em Literatura Brasileira na USP, professor de Lngua Portuguesa e Literatura Brasileira. Co-autor do livro Duas vises: Guimares Rosa e Clarice Lispector (Rio de Janeiro: gora da Ilha, 2000).

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    Augustus Rio de Janeiro Vol. 07 N. 15 Jul./Dez. 2002 Semestral

    Augustus Rio de Janeiro Vol. 07 N. 15 Jul./Dez. 2002 Semestral

    AS VRIAS FACES DO SERTO MTICO EM GUIMARES ROSA

    Carlos Theobaldo*

    RESUMO:Grande serto: veredas, obra-prima de Joo Guimares Rosa, uma narrativa extremamente multifacetada as vrias vertentes do homem se apresentam nos caminhos e descaminhos da personagem principal, Riobaldo e seu(sua) companheiro(a) Diadorim, nessa busca. A toponmia, onde notamos a influncia portuguesa, africana e indgena nos vocbulos. A fora dos nomes Riobaldo e Diadorim, e os dois juntos, contrastes e semelhanas. Os nmeros na narrativa. O tempo, observado sob o ponto de vista entre Luz (o Divino) e sombras (o mal, em todas as suas acepes). A unio do tempo conceitual (absoluto) com o tempo psicolgico (relativo). O tempo como conscincia csmica.

    Abstract:Grande serto: veredas, Joo Guimares Rosas masterpiece is a complex narrative that offers the reader many different points of view of life. Right and wrong paths of the main character, Riobaldo, and his friend Diadorim present the various ways of man. We can see Portuguese, African and Indian influences in various toponymies. A detailed analysis of Riobaldo and Diadorims names describes analogies and oppositions that show their strength. Numbers are also studied side a side in the narrative. Time is observed between Light the Divine and shadows the evil and its variations. The union of conceptual time (absolute) with psychological time (relative) reviews time as cosmic conscience.

    Palavras-chave: Guimares Rosa romance iniciao tempo.

    Key words: Guimares Rosa novel initiation time.

    Segundo o siciliano Grgias, em Grgias de Plato, um retrico cheio de si, orgulhoso de seu ensino, toda obra humana filha da palavra. Graas palavra, constroem-se cidades, abrem-se portos, dirigem-se exrcitos e governa-se o estado. Sob a condio, observa Scrates, de que a empresa seja justa e no um simulacro de justia.

    Na fora das palavras est contida toda uma sabedoria, que o poeta pe em prtica, seja em prosa ou verso, tentando dizer o indizvel, o in-decifrvel, mostrando um novo aspecto e uso pa-ra aquela palavra... reinventando a verdade. A fic-o, sem o compromisso de mostrar a verdade,

    mais real que o relato puro pois mostra a reflexo do acontecido. Vimos, assim, um novo modo de observar o mundo essa redescoberta do viver.

    Mas, como disse Scrates, em Grgias, a alma no pode passar da ignorncia cincia seno quando, tendo antes animado corpos diferentes, ela encontra, novamente, a lembrana de suas experincias anteriores. Assim como uma iniciao, o homem um eterno aprendiz de maravilhas... E chegamos personagem Riobaldo, em Grande serto: veredas, pensando: j que a alma tem de animar vrios corpos, e sendo Riobaldo vrios em

    um, sua alma evoluiu de forma rica, plena. Ou, como disse Guimares Rosa: Imortal o que do sofrido; tudo abaixo da, pstumo(1). Riobaldo era todos e nenhum deles... um outro.

    Esse outro que nos ensina a apreciar o mundo, ora como menino, ora como professor, ora como jaguno, ora como Tatarana, ora como Urutu-Branco As veredas so diversas. O homem, na sua eterna busca pelo momento da Salvao, atravessa caminhos to dspares quanto a sua prpria existncia. O homem humano se v nesse mundo, desaparelhado, como um recm-nascido que aprende e apreende informaes no decorrer da vida. Nesse estado, a experincia pessoal mostra que o protagonista, Riobaldo, fez sua evoluo por todos os gneros, que o autor utiliza e opera como forma de mostrar o lado humano, o viver. O homem mltiplo. E em seus caminhos, vemos todos os estados.

    pico, lrico e com tonalidades dramticas, Grande serto: veredas uma obra essencialmente potica. Como nos explica Henriqueta Lisboa:

    pica, na objetividade do seu motivo central (o serto do tamanho do mundo), obra lrica pela transposio da objetividade primeira para a completa objetividade que domina o tema (o serto onde o pensamento mais forte do que o poder do lugar), pela essncia do teor humano (o serto dentro da gente), pela intensa participao da natureza e pela contemplao da prpria vida ntima, a originalidade de Grande serto: veredas consiste em ser uma epopia do homem interior(2).

    Essa grande epopia, que nos leva ao serto que Guimares Rosa idealizou e que Riobaldo nos narra, reativando as fontes primitivas de vida mais pura. Em um tempo em que havia o respeito, no apenas como figura de retrica, em um tempo mgico. Na travessia do Liso do Sussuaro (observe-se o nome), fica definitivamente marcada como seu tour de force. Sombras protetoras surgem para acolher os riobaldos, sem que a luz do sol que queima incida sobre o bando, deixando claro quem estava com a fora para o combate com os verdadeiros pactrios. Esse episdio tem seu paralelo nas novelas de cavalaria.

    A busca do homem, essa verdade inolvidvel de cada ser, que atravessa os tempos, fazendo perene essa descoberta o homem sempre se descobre, a si e ao mundo. Uma obra com paralelo no romance de cavalaria, sendo uma iniciao do viver. Encontramos pontos em comum no Livro de Jos de Arimatia(3), na Demanda do Santo Graal(4), no Horto do Esposo(5), nos cantares de gesta, como no Cantar do Mio Cid(6), em La Chanson de Roland(7). Esse serto-mundo, folclrico, em que Riobaldo narra no s sua histria, mas nos desvela toda a alma sertaneja.

    Em A Demanda do Santo Graal so igualmente encontradas travessias perigosas, em que o cavaleiro vence ou derrotado de acordo com as suas virtudes de lealdade, bravura e castidade. Portanto, o autor se utiliza dessas narrativas para criar uma narrativa maior, que englobe a iniciao do viver. Ao final, Riobaldo j outro, mas a dvida persiste. Acreditamos que Guimares Rosa, elevando o romance moderno brasileiro altura de epopia, criou a nossa epopia moderna. Todas as caractersticas desta esto presentes. A virtude das personagens e a busca de uma resposta ao viver, Deus e o diabo, o pacto de castidade entre Riobaldo e Diadorim etc.

    A relao com o demo vem de longa data. Os pactrios so muitos, a histria medieval est repleta deles. S que, em Grande serto: veredas, a figura do demo no se faz presente. So os elementos da Natureza que interagem com o homem, demarcando quando os acontecimentos tomam um rumo desfavorvel.

    Tambm poderamos falar da toponmia. Rico em nomes de cidades, rios, aldeias, pontes, fazen-das, retiros, montes. Para exemplificar, destacamos alguns nomes que so citados na narrativa, at a p. 17 (conforme edio da Abril Cultural):

    Urucia, Corinto, Curvelo, Vereda-de-Vaca-Man-sa-de-Santa-Rita, Andrequic, Rio do Chico, Cachoeira-dos-Bois, Campo-Redondo, Jiju, vereda do Bu-riti Pardo, Passo do Pubo, da-Areia, Curralinho. O Limozinho, Vau-Vau, Sete-Lagoas, Serra-Nova, Rio-Pardo, Traadal. (GSV, p. 9-17)(8).

    Ao longo da narrativa, podemos perceber o lirismo dos nomes, a criatividade, a influncia portuguesa, africana e indgena nos vocbulos. Esse amlgama que faz com que o folclrico, o popular, se una ao experimentalismo culto da lngua e a suas razes, e a fazendo-nos conhecer, entre os nomes dos lugares, um pouco desse mtico serto.

    Nomes

    Guimares Rosa, em sua prosa corrida(9), semelhante ao francs Louis-Ferdinand Cline e ao americano beatnik(10) Jack Kerouac, faz destacar algumas pausas na narrativa, como uma espcie de staccato(11). Reticncias, cortes, pargrafos, tudo concorre para que essa pausa seja uma ponte para que o ouvinte/leitor possa fazer sua reflexo. uma pausa para a vida (pensar viver).

    Outrossim, alguns nomes de personagens se destacam, pois, alm de sua participao na nar-rativa, so como pequenas esfinges a serem de-cifradas. Destacamos o nome de Riobaldo e Diadorim para uma breve anlise.

    Riobaldo

    O nome Riobaldo suscita vrias interpretaes. A princpio, iremos dividi-lo em dois segmentos, como quando analisado por Manuel Cavalcanti Proena e por Luiz Costa Lima(12):

    Rio-baldo

    Como nos explica Mansur Gurios, o nome Rio um sobrenome portugus geogrfico El-rei D. Sebastio, ano de 1560, as deu [as armas] a Diogo de Castro do Rio por grandes servios que fez a esta coroa(13).Assim, vemos que a origem do nome Rio provm de um guerreiro, um combatente. Mas a palavra rio tambm significa curso de gua natural, que se desloca de um nvel mais elevado para outro mais baixo, aumentando progressivamente o seu volume at desaguar no mar, num lago, ou noutro rio, e cujas caractersticas dependem do relevo, do regime das guas etc(14), como escla-rece Aurlio Buarque de Holanda. O rio como metfora potica da vida, em que cada vida assume seu prprio curso.

    O nome Baldo, segundo Mansur Gurios, vem do italiano Ubaldo, por influncia germnica, que por sua vez vem do alemo Hugbald: audacioso (bald) no pensar (hug, huge)(15). Aqui j vemos uma das caractersticas de Riobaldo afigurada. J Aurlio Buarque de Holanda nos esclarece que a palavra baldo pode ser Barragem ou parede para represar as guas de um aude ou falto, falho, carecido, carente baldado no carteado, diz-se de quem no tem determinado naipe(16).

    Portanto, diante dessas explicaes, acreditamos ser Riobaldo tudo isso:

    Ambicioso no pensar (nos seus questiona-mentos):

    Carente (pensa no amor de Otaclia, nas artes de Nhorinh, sempre ao lado de Diadorim, estimando-a);

    Baldado (frustrado, malogrado por no saber se o diabo existe, se pactrio, se, enfim, tudo acabou);

    Est fora da rodada no jogo (no havia lu-gar para ele no jogo de Hermgenes e Diadorim);

    Mas forte como uma barragem que represa as guas (contm a vida).

    Riobaldo, aps suas aventuras como jaguno, ter o grande encontro. No com o diabo, mas com a Verdade. Descobrir, atravs de sua iniciao pelo serto, que a vida um eterno recomeo, um ciclo vital em que o homem, em constante aprendizagem, mesmo aps suas experincias, no sabe nada. Volta ao incio, pois, como est nonada, sabe que certezas no h, exceto que o diabo no h, existe o homem humano.

    Apenas compreende, aps todas as travessias, que existe a nossa humanidade, em que bem e mal se fundem, fazendo-nos figuras humanas, com nossas qualidades e nossos defeitos, nessa travessia que o viver. E muito perigoso.

    Diadorim

    Para anlise do nome de Diadorim, utilizaremos o mesmo processo que utilizamos no nome de Riobaldo, j utilizado por Augusto de Campos e Costa Lima(17), dividindo-o em duas partes:

    Dia-dorim

    Sendo Dia, como nos ensina Mansur Gurios, um sobrenome portugus:

    No sculo XVI: Diaz, forma correta de Didacus, ver Ddaco. Em documento do sculo XVI: Diez, patronmico de Diego Segundo o historiador Gonalo Argote Molina, o nome provm do espanhol dis (diez), e foi ganho por Pedro Fidalgo que de noite, luz dum facho, conquistou valentemente o castelo de Fiscar, matando diez(10) mouros nesse ato. E nas armas dessa famlia havia em campo azul ha estrella de oiro de dez raios. A etimologia fantasiosa(18).

    Da podemos concluir que, ao menos no nome, a origem da personagem Diadorim guerreira, combatente, uma valentia tpica dos cavaleiros medievais. No nos esquecendo que dia a luz, o dia em si, o espao de tempo que o demarca. Mas, tambm essa luz, que separa os homens, que atravessa a vida. Segundo Aurlio Buarque de Holanda, dia do grego di, prefixo que significa separao, atravs; diacustico, diacro-nia, diurese(19). Podemos, dessa forma, dizer que Diadorim possui todas essas caractersticas, criando o mito dessa herona sertaneja.

    Dorim acreditamos ser a corruptela do nome Dora, que por sua vez a abreviatura de nomes como Teodora etc. Como afirma Mansur Gurios, Teodoro-a, do grego thedoros: presente (doros) de Deus (Theo)(20). Entretanto, Aurlio Buarque de Holanda nos esclarece que o sufixo nominal -dora equivalente de -dor e ocorre em vo-cbulos formados no latim (abjurador), ou no vernculo, a partir do radical verbal com as noes de ofcio, profisso, que ou aquele que pratica determinada ao (definida pelo radical verbal), agente, instrumento de ao(21). Assim, presumimos que Diadorim era a luz de Riobaldo, e por isso o guiou por essas veredas, p-rm, era tambm o seu anjo da guarda, que, como presente de Deus (Teodora), o auxiliaria e protegeria nas mais inspitas empresas, porque esse era seu ofcio, sua profisso. Ela era o agente, o instrumento da ao, portanto, s ela poderia acabar com o mal (matando Hermgenes), pois era o instrumento de Deus.

    Como os antigos cavaleiros, que se vingam, por honra, com sangue (no esqueamos que foi Hermgenes que assassinou pelas costas seu pai, Joca Ramiro). Essa a herona medieval, mesclada com os mitos religiosos, como uma Joana dArc (a donzela guerreira) do serto, mantendo sua fora pela castidade, onde a honra, a justia e o dever falam mais alto.

    Riobaldo e Diadorim

    A relao de Riobaldo com Diadorim no passa somente pela amizade. Ela comea nos nomes. Existe um paralelismo no prprio nmero de slabas dos nomes dos protagonistas, que se dividem em dois segmentos:

    Rio-baldo

    Dia-dorim

    O primeiro segmento de ambos os nomes so disslabos de trs letras com hiato em que a primeira vogal a letra i e o que significa o i? a vogal do meio: a-e-i-o-u, quer dizer: o equilbrio. O meio sempre ser o equilbrio.

    O segundo segmento -baldo/ -dorim, de ambos, so compostos por cinco letras. Divididos em duas slabas, em que se alternam os nmeros de letras, o nome dele comea com trs letras na primeira slaba e duas na segunda:

    bal-do

    O dela, ao contrrio:

    do-rim

    A ltima slaba do segundo segmento do nome dele a slaba inicial do segundo segmento do nome dela (do), e possuem o mesmo som: /d/. o elemento comum entre os nomes deles. E o que significa esse /d/ isoladamente? Pode ser uma corruptela da palavra dor. Comea pelo nome dela e termina pelo nome dele:

    Dia-do-rim

    Rio-bal-do

    a dor do amor impossvel, o amor irrealizado. Eles se amaram, mas no se conheceram como homem e mulher ento no concretizaram esse amor. Essa a origem da dor. Essa lembrana constante: O Menino me deu a mo: e o que a mo a mo diz o curto; s vezes pode ser o mais adivinhado e contedo; isto tambm. E ele como sorriu. Digo ao senhor: at hoje para mim est sorrindo. Digo. (GSV, p. 101).

    O nome to importante quanto a personagem, pois atravs do nome desvelamos a sua alma. Porm, para que o nosso estudo no se alon-gue em demasia, teceremos uma ltima considerao. No decorrer da narrativa, os bandos e seus integrantes so chamados pelo nome de seu chefe, portanto, seus seguidores: os ramiros, os medeiros-vazes, os hermgenes, os z-bebelos, os riobaldos.

    O nome do chefe do bando deixou de ser um substantivo prprio e passou a designar um substantivo comum.

    Nmeros

    Observamos que, durante a narrativa, os nmeros so amplamente utilizados. Mas, numa obra como a de Guimares Rosa, os nmeros tm um poder especial, mgico, simbolgico. Sob essa tica, analisaremos os nmeros, como nos ensinam Jean Chevalier e Alain Gheerbrant:

    Os nmeros, que aparentemente servem apenas para contar, forneceram, desde os tempos antigos, uma base de escolha para as elaboraes simblicas. Exprimem no apenas quantidades, mas idias e foras... o nmero das coisas ou dos fatos reveste-se em si mesmo de uma grande importncia e at permite s vezes, por si s, que se alcance uma verdadeira compreenso dos seres e dos acontecimentos... cada nmero tem sua personalidade prpria(22).

    Dos nmeros que mais se destacaram, durante a narrativa, o nmero 3 o que se sobressai. Porm, devido sua importncia, analisaremos o nmero 7 e o 8. Em verdade, o nmero 8 ser apenas estudado no modo como se apresenta ao final do texto, sob forma simblica: deitado.

    O nmero 3

    Segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, o trs polariza vrias culturas em seu universalismo:

    O trs um nmero fundamental universalmente. Exprime uma ordem intelectual e espiritual, em Deus, no cosmo ou no homem. Sintetiza a triunidade do ser vivo ou resulta da conjuno de 1 e de 2, produzido, neste caso, da Unio do Cu e da Terra(23).

    O nmero 3 foi utilizado de maneira variada, at como artifcio para chamar a ateno do leitor como recurso enftico (comeo, meio e fim, como nos ensina Pitgoras?)(24): coisas que vi, vi, vi (GSV, p. 51), Floriano, foi, foi, foi (GSV, p. 140), Urut Branco!... Urut Branco!... Urut Branco!... Cujo era eu mesmo (GSV, p. 392), ... cavalo so desdenha de dormir, o senhor sabe: bicho que s come, come, come (GSV, p. 403), Aqui a estria se acabou. Aqui, a estria acabada. Aqui a estria acaba (GSV, p. 424).

    Observando-se atentamente, podemos notar que o nmero 3 citado na narrativa 136 vezes. Isso nos conduz ao seguinte raciocnio:

    136 = 1 + 3 + 6 = 10 = 1 + 0 = 1.

    O nmero 1 o local simblico do ser, fonte e fim de todas as coisas. Como nos explicam Jean Chevalier e Alain Gheerbrant:

    Smbolo do homem em p: nico ser vivo que usufrui essa faculdade, a ponto de certos antroplogos fazerem da verticalidade um sinal distintivo do homem, ainda mais radical do que a razo... O um tambm o Princpio... o centro mstico, de onde irradia o esprito como um sol(25).

    Ou, como afirma Marie Louise Lacy: O nmero 1 representa liderana pessoas independentes, ousadas... esto sempre em atividade. Esta uma energia masculina ligada ao princpio divino(26).

    O nmero 7

    O nmero 7 outro nmero que nos chama a ateno na narrativa. Como esclarecem Jean Chevalier e Alain Gheerbrant: O 7 corresponde aos sete dias da semana, aos sete planetas, aos sete graus da perfeio... O sete indica o sentido de uma mudana depois de um ciclo concludo e de uma renovao positiva(27). Portanto, a mudana de Riobaldo tinha de se efetivar sob a gide do nmero 7, citado desde o incio do livro at quase seu fim.

    Porm, observemos que o nmero 7 citado 29 vezes na narrativa, o que nos conduz ao seguinte raciocnio: 29 = 2 + 9 = 11 = 1 + 1 = 2. Seria, portanto, a dualidade das passagens na vida de Riobaldo: o bem e o mal, amor e dio, evoluo e involuo. Ou, como nos explicam Jean Chevalier e Alain Gheerbrant:

    Smbolo de oposio, de conflito, de reflexo, esse nmero indica o equilbrio realizado ou ameaas latentes... O nmero 2 simboliza o dualismo sobre o qual repousa toda dialtica, todo esforo, todo combate, todo movimento, todo progresso... O 2 exprime, ento, um antagonismo que latente se torna manifesto... Tanto pode ser de dio quanto de amor...(28).

    Riobaldo tinha de passar por esse serto-mundo, essa mquina de fazer homens e feras, esse renovar a cada instante, que no volta.

    O nmero 8

    Em verdade, o nmero 8 aparece no texto no sob a forma de algarismo, mas sim sob a forma de signo, deitado, sendo assim o smbolo matemtico do infinito. O oito o equilbrio csmico, ou como nos ensinam Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, a lmina oito do tar de Marselha representa A Justia, smbolo da completude totalizante e do equilbrio...(29).

    O plano conceitual

    Tentaremos analisar a questo do tempo sob uma nova tica. Para Sir Isaac Newton, com sua Mecnica Clssica, o tempo foi introduzido de modo absoluto (quer dizer, o tempo existe por si mesmo, independente das circunstncias exteriores e decorrendo uniformemente para todos os observadores). Porm, esse conceito de tempo absoluto levou ao impasse a Fsica do sculo XIX, pois implicava a existncia de velocidade infinita e propagao instantnea dos sinais distncia. Assim como o comprimento e a massa tambm aparecem como grandezas absolutas.

    S mais tarde, j no sculo XX, com a teoria da Relatividade, criada por Albert Einstein, seria solucionado esse impasse. Na Mecnica Relativista no s o tempo, mas o espao e a massa dos corpos apareciam como grandezas relativas. O mesmo intervalo pode ser diferente para diferentes observadores.

    O tempo conceitual (medida externa da durao por meio do movimento, tal como hora, dia, ms, ano) comumente contrastado ao tempo psicolgico ou de percepo (a relao temporal entre objeto e sujeito). Para alguns autores, o tempo do relgio no tem significado algum para a imaginao, sendo apenas uma conveno artificial e arbitrria, desenvolvida com o objetivo de ser utilidade social, para regular e coordenar as aes que envolvam as pessoas. Em outras palavras, por ele sabemos a hora de partirmos do escritrio, de jantarmos, de dormirmos. o tempo do relgio que regula a nossa vida. Mas pensamentos, experincias e emoes transitam em uma ordem diferenciada e pessoal, esse nosso tempo pessoal, por assim dizer, no caberia em medidas do tempo do relgio.

    Portanto, utilizaremos como medida para a anlise da narrativa o sol, de forma que o tempo conceitual e o tempo psicolgico se fundam, guardados os seus devidos valores. E chamaremos o Tempo Absoluto de Newton de Eternidade, e o Tempo Relativo de Einstein de percepo (da memria) de Riobaldo.

    O tema

    No serto, o tempo marcadamente forte. Com a prpria fora da natureza, marcaremos esse tempo com a passagem do sol, fragmentado em horas. Em trs horas distintas, bem delineadas isso no significa que o texto tenha de ser propriamente dividido assim. Como ele uma plu-ralidade de textos dentro do seu corpo principal, e as relaes se interligam, ele liga passado-presente-futuro como uma s coisa. Mas, para efeito de anlise, dividiremos assim o texto: seis horas, quinze horas, dezoito horas e trinta minutos. Para tal, utilizaremos o instrumento de medida da passagem do sol: o relgio de sol. O sol do serto, com toda a sua luminosidade, ser o nosso guia, representando a vontade divina. Contudo, a narrativa fala do homem, sua conscincia primitiva, a busca da verdade, a luta do bem com o mal, condies inerentes conscincia humana. Utilizaremos o smbolo flico para representao desse relgio (imaginemos um relgio de sol cuja haste que marca a passagem da luz seja o smbolo flico). Pois, como deus-criador-criatura, o homem tambm um criador, sendo criatura pensante. E esses pensamentos, que so o ques-tionamento da condio humana, so representados pelo que gera a vida, em primeira instncia, o phallu (referimo-nos ao phallu no como representao esotrica nem ertica; ele significa simplesmente a potncia geradora, que sob essa forma, venerada em diversas religies). Quanto sua relao com o sol, citamos aqui um trecho do mito de Aten. Esclarece-nos Junito de Souza Brando:

    Seu nascimento foi um jorro de luz sobre o cosmo, aurora de um mundo novo, atmosfera luminosa, semelhante hierofania de uma divindade emergindo de uma montanha sagrada. Sua apario marca um transtorno na histria do mundo e da humanidade. Uma chuva de neve de ouro caiu sobre Atenas, quando de seu nascimento: neve e ouro, pureza e riqueza, tombando do cu com a dupla funo de fecundar, como a chuva, e de iluminar, como o sol. E , por isso mesmo, que em certas festas de Aten se ofereciam bolos em forma de serpente e de falo, smbolos da fertilidade e de fecundidade(30).

    Disse La Bruyre: fazer livro ofcio, como fabricar relgio: preciso mais do que esprito para ser autor(31). Assim a escritura em Grande serto: veredas: tudo se encaixa e funciona como um relgio, mesmo quando aparentemente h o caos, uma lgica (ordem) instaurada, remetendo-nos a outros acontecimentos, e conseguinte a outros pensamentos. Como nos improvisos de jazz, em que o inesperado em verdade fruto de uma ordenao, essa lgica desesperadora na cabea de um homem cuja vivncia larga e a reflexo, serena, faz a descoberta de um novo mun-do, riobaldianamente, nesse serto-vida. Para no perdermos mais tempo em digresses e anlises, vamos ao trecho em que pela primeira vez na narrativa surge a figura de Diadorim.

    Conforme pensei em Diadorim. S pensava era ne-le. Um joo-congo cantou. Eu queria morrer pensando em meu amigo Diadorim, mano-oh-mo, que estava na Serra do Pau-dArco, quase na divisa baiana, com nossa outra metade dos s-candelrios... Com meu amigo Diadorim me abraava, sentimento meu ia -voava reto para ele... A arre, mas: que esta minha boca no tem ordem nenhuma. Estou contando fora, coisas divagadas. (GSV, p. 18).

    Aqui entra o onrico, demonstrando o quanto ele gostava de Diadorim. Essa citao, em que seu sentimento aflora de maneira intensa, logo no incio da narrativa, delimitaremos como seis horas, ou o raiar do dia.

    Mais adiante, temos o momento delimitador da tarde:

    Ao menos outro deles, dos hermgenes, quero ver se resgato de abater, at vir o sereno do anoitecido eu meditei. No deu. No pude. O que houve, o conseguinte, foi que Z Bebelo pegou em meu ombro. Ele mudou de lugar, e ps a cara no meio da luz. A, est ouvindo Tatarana Riobaldo, est ouvindo? ele disse, com um sorriso de grandes brilhos, que no era de ruindade e nem de bondade. Aquilo foi num dia, devia de estar sendo por volta de umas trs da tarde, pelo rumo do sol. Ouvi! (GSV, p. 252-253).

    Conforme se apresenta, aqui demarcamos o meio da tarde, esse grande dia, essa grande narrativa solar. Como o prprio Riobaldo afirma, deveriam ser umas trs da tarde, assim, o meio dessa saga.

    E, aps a morte de Diadorim, e de ordenar para enterr-la separada dos outros, num aliso de vereda, adonde ningum ache, nunca se saiba... (GSV, p. 424), Riobaldo explica: E aquela era a hora do mais tarde. O cu vem abaixando. Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez at ache mais do que eu, a minha verdade. Fim que foi. Aqui a estria se acabou. Aqui, a estria acabada. Aqui a estria acaba. (GSV, p. 424). Aqui, denominamos a hora do ocaso do sol, que marcaria as dezoito horas e trinta minutos, o fim do sol e o incio da noite, essa grande noite que acompanhar Riobaldo. O que nos chama a ateno o modo como Riobaldo anuncia que a estria chegou ao fim. Com o tempo verbal no passado, no particpio-passado e no presente, nos faz pensar nas trs caractersticas que nos ensina Mestre Buddha:

    Todas as formaes so passageiras/Todas as formaes so sujeitas dor/Todas as formaes so sem substncia real/Aquele que se compenetra bem dessa verdade fica livre da dor. o caminho da purificao(32).

    Riobaldo no um mero joguete na mo de Deus. Ele um homem predestinado, o heri e o anti-heri. Ele no deixa os acontecimentos influrem na sua vida, ele os faz. Cria situaes-limite, em que sua volio a maior fonte de riqueza. Desde criana, no encontro com o Menino (Diadorim), j havia um trao de diferena em seu carter. Os fatos o levaram para o seio dos acontecimentos. Quando j compreendia os seus desgnios, tomou a atitude de sair. De mestre Lucas para Z Bebelo, para Joca Ramiro, para a jagunagem, para a vida de fazendeiro. Veredas. Com seus questionamentos de tonalidades e carter existencialista, Riobaldo chega ao humanismo no final de sua estria, onde tudo termina. O ato de reflexo atravs da revivncia da memria, ao cantar a sua saga, cria essa mgica vontade de descobrirmos a beleza potica da vida, atravs de suas palavras. Quase um monlogo, sua volta ao passado em dilogo com o homem culto da cidade, um questionamento de valores, dos reais valores, mostrando-nos um mundo em que no h solues maravilhosas, cheio de problemas sociais, polticos, que vimos atravessar por duas guerras mundiais (numa das quais, na Segunda, o autor tomou parte). Um mundo que se estagnou, sem veredas.

    Nessa travessia, Riobaldo nos ensina o valor da ddiva da vida e seu completo aprender, constante, com a natureza, unio fsica, psquica e moral, nessa f renovadora de que o Bem e o Mal no h, h homem humano. Acabamos nonada, outra vez. Cabe ao leitor comear o seu ciclo, a sua eterna renovao. E assim, infinitamente, pois a vida eterna. Ns que passamos por ela. S o Amor fica. O Amor, que tudo. Amor pela vida. Esse Amor...

    Riobaldo teve uma iniciao mstica. Mas, a verdadeira iniciao a vida, seus valores morais e espirituais. Mesmo as religies mais tradicionalmente castas e puras no podem expressar a grandeza desse aprender, sendo os caminhos, as veredas que levam a Deus, apenas parte do apren-dizado(33). O homem tem de fazer essa caminhada, que comea nonada e termina na travessia, essa ltima fronteira que nos leva ao infinito, ao estado dalma mais singelo, mtico e fsico. O homem tem de se descobrir, na sua solido diria, a solido dele prprio e dos outros. E a literatura ajuda a compreendermo-nos melhor (a boa literatura). Em Riobaldo encontramos todas as paixes humanas, o mtico e o real, o sonho e a verdade, nessa busca incessante que o homem. Esse ser magnfico e ao mesmo tempo to insignificante perante a sua complexidade. Esse corao latente, na jaula do viver. Por isso viver muito perigoso, e no temos como fugir dele. Essa a travessia, que nunca tem fim, pois enquanto existir o homem, existir sempre esse caminhar para frente, em um eterno crculo vicioso, conjugando o aprender com o viver e o sentir. O homem feito de sensaes, desde o bero. E seu aprendizado lento. E nesse ritmo o Grande serto: veredas lento como a brisa, esse vento que varre as folhas secas, mas d vida ao p. Esse vento que o sopro inicial, a centelha da vida, iluminando o viver. Esse aprender eterno, como o sol, como sua luz: quente, vivo, seco.

    O serto o mundo, e o sol, no serto, fala mais alto. Sol e serto j se conhecem, de muito tempo. Grande serto: veredas um pouco dessa luz, prpria, que o serto nos oferta, e o aprender nos conduz, durante a leitura dessa saga. A saga do saber viver. Na luz, infinitamente.

    Riobaldo seria um Ado dos tempos modernos que vai ter o conhecimento atravs de Diadorim, da atrao que sente por ela, de saber as coisas da vida, coisas do esprito. Por ele, o Menino, que um dia lhe ensinou a coragem, pura e simples, no rio (metfora da vida). Diadorim, que, como homem, demonstra que essa Eva moderna o prprio Homem(34). No h mais diferena. O homem, de um modo geral (homens e mulheres), est, para o conhecimento, privado de sua segurana, pois h um preo a pagar pela sabedoria, o seu fruto (a rvore da sabedoria)(35).

    Em Diadorim, temos o mito da donzela guerreira (e virgem), como Joana dArc, a virgem de Orleans (pucelle dOrleans), que, por sua vez, lutou sob inspirao divina. Diadorim tinha de vingar a morte do pai, Joca Ramiro, como nos romances de cavalaria olho por olho, dente por dente herana da Idade Mdia, que por sua vez foi buscar nas fontes bblicas a inspirao para as lutas, as batalhas. a eterna luta do bem contra o mal.

    Diadorim sacrifica-se, conscientemente, ao final no h a figura do Deus ex-machina, mas sim a atuao de Deus machina fatalis(46) como Jesus, que se deixa levar para o suplcio (via crucis) e morte. O drama est no cerne da narrativa. Riobaldo questiona, aprende e presencia a luta de Diadorim com Hermgenes, a luta do bem contra o mal. Seu amor por Diadorim no pode ser consumado (amor fsico) e a poesia a tnica dessa verdadeira saga do viver, moderna, porm to pesada e profundamente triste, pois o homem continua o mesmo. Aps toda a literatura, todos os livros escritos, o homem parece no aprender que a vida isso. Travessia. E que o homem, humano, aprender a viver. Riobaldo quer o perdo da memria, e o pede indiretamente para o seu interlocutor, sob forma de pergunta: ... que o Diabo no existe. Pois no? (GSV, p. 429). Ele quer a confirmao de que no mais pactrio e de que no tem mais que se remoer de culpa pela morte de Diadorim. Hoje, restou apenas o homem humano (que mescla o bem e o mal para viver), e, ao final, afirma: Nonada. O diabo no h!... Travessia (GSV, p. 429), como um convite para retornarmos a esse tempo ednico, como em O paraso perdido, de John Milton. Como no tempo de nossos primeiros pais. Basta o homem querer mudar. Mas o homem, humano, se no mudar, ficar eternamente assim, preso ao seu pecado.

    O radicalismo interpolar da obra consiste no fato de ela no possuir fim. Em verdade, o que vale o meio o presente, o viver(37). O momento o que interessa, nesse jogo de acontecimentos. Esse momento presente, que pensado e representado pelo jaguno Riobaldo, pelo professor Riobaldo, pelo menino Riobaldo(38). At che-garmos ao Homem Riobaldo, pronto e ausente(39), que se manifesta como tal, no Hoje. Pois, amanh, infinito. O resto, travessia do viver.

    Portanto, o questionamento de Riobaldo no um medo improdutivo, e sim um medo produtivo. O medo de Riobaldo no um medo amorfo, mrbido, sem vida, um medo com nsias, um me-do mais prximo do pavor. O medo de Riobaldo um medo capaz de gerar idias e correlacion-las antes de agir, fazendo-o refletir ao invs de agir. o medo do zelo, da segurana, mas tambm o medo do pensar. Porque, ser audaz ser pecador, e ser temeroso (perante as foras de Deus e do diabo) regressar s fontes, ao genuno ideal cristo. A alma deve conhecer o Cristo tal como a esposa ao seu esposo (isto , haver essa integrao), assim sendo fonte de uma verdadeira sabedoria, como podemos observar na doutrina pauli-na, atravs das Sagradas Escrituras, na contemplao e na vida solitria(40).

    Por essa razo, Riobaldo, o nosso heri medieval, age dessa forma. Sua solido e contemplao encontram voz nas palavras de So Paulo, e que trazem, atravs de uma narrativa moderna, esses eternos questionamentos do homem e da existncia, revelando o belo, a harmonia, o equilbrio, sua integrao com a Natureza e com os homens, o mal e suas conseqncias, a misria do homem, as instncias finais de sua conscincia.

    Riobaldo no viu o diabo. Mas, v-se Deus? Deus em sua plenitude, estaria por trs de tudo... esse amor vida, s idias. Deus no precisa provar sua existncia... Ele o faz atravs dos seus atos. Ns que, no cotidiano da vida, no percebemos isso. Seria uma necessidade do viver, esses eternos questionamentos.

    A obra cria o serto-movncia de Guimares Rosa, uma campoviso, porque bipolar, como o Grande serto: veredas, Deus e o demnio. A biparticipao dos dois no embate do bem contra o mal. Existir diferena? Qual assemelhar em Guimares Rosa a essa realidade? A poesia a resposta.

    NOTAS

    01.ROSA, J. G. In: ANDRADE, C. D. de. (1968), p. 82.

    02.LISBOA, H. Apud: SOUZA, R. de M. e (1978), p. 55.

    03 -HISTRIA e antologia da literatura portuguesa: sculos XIII-XIV (08/10/97), p. 40.

    04.A DEMANDA do Santo Graal: manuscritos do sculo XIII (1988), p. 50-51.

    05.HISTRIA e antologia da literatura portuguesa: sculos XIII-XIV (08/10/97), p. 61.

    06.La despedida de Cardea, v. 235-241. In: PEDRAZA JIMNEZ, F.; RODRGUEZ CCERES, M. (1991), p. 17-18.

    07.La Chanson de Rolland. In: LAGARDE, A., MICHARD, L. (1970), p. 7.

    08.Daqui por diante, usaremos as iniciais GSV, seguida do(s) nmero(s) da(s) pgina(s), sempre que citarmos a obra Grande serto: veredas.

    09.O termo prosa corrida empregado aqui no sentido de uma prosa solta, com pargrafos que ocupam, s vezes, duas pginas, longos perodos.

    10.Bomios dos anos cinqenta, nos EUA, que influenciaram uma gerao, com seu modo de ser, perante a sociedade, o que mais tarde abriu caminho para o surgi-mento do movimento hippie, nos anos sessenta.

    11.Stacatto recurso utilizado na msica. Serve para indicar que trecho deve ser executado, destacando-se nitidamente cada nota. Ou, como nos explica Aurlio Buarque de Holanda: Na tcnica dos instrumentos musicais, sinal de intensidade representado por um pontinho ou uma espcie de acento agudo sobre as notas ou sob elas, e que indica que o som deve ser interrompido mediante um toque seco e breve....

    FERREIRA, A. B. H. (1999), p. 666.

    12.PROENA, M. C. (1958), p. 14.

    LIMA, L. C. (1966), p. 73.

    13.GURIOS, R. F. M. (1973), p. 187.

    14.FERREIRA, A. B. H. (1999), p. 1770.

    15.GURIOS, R. F. M. (1973), p. 209.

    16.FERREIRA, A. B. H. (1999), p. 259.

    17.CAMPOS, A. de. In: COUTINHO, E.F. (1991), p. 338-339.

    LIMA, L. C. (1966), p. 73.

    18 GURIOS, R .F. M. (1973), p. 91-92.

    19 FERREIRA, A. B. H. (1999), p. 674.

    20.GURIOS, R. F. M. (1973), p. 205.

    21.FERREIRA, A. B. H. (1999), p. 704.

    22.CHEVALIER, J., GHEERBRANT, A. (1999), p. 646.

    23.Ibidem.

    24.BULFINCH, T. (1965), p. 236.

    25.CHEVALIER, J., GHEERBRANT, A. (1999), p. 918.

    26.LACY, M. L. (1991), p. 96.

    27.CHEVALIER, J., GHEERBRANT, A. (1999), p. 826.

    28.Ibidem, p. 346.

    29.Ibidem, p. 653.

    30.BRANDO, J. de S. (1998), p. 31.

    31.LA BRUYRE (MCMLXV), p. 33.

    32.BUDDHA (s. d.), p. 63.

    33.Cada pessoa vai trilhar seu prprio caminho, e sob esse aspecto, cada um ir descobrir a sua realidade, o seu modo nico e mpar de aprender e apreender com o mundo.

    34.Do rio, foram para a mata, como num estado ednico... At surgir o negro, que o Menino enfrenta, com sua faca, com toda a coragem demonstrando a Riobaldo o conhecer da vida: a mata, o rio, a coragem... Ali o incio... (como no incio, um homem e uma mulher e o mundo serto-mundo).

    35. de saber que a serpente era o mais astuto de todos os animais da terra, que Deus tinha feito: e ela disse mulher: Por que vos mandou Deus que no comsseis do fruto de todas as rvores do paraso? Respondeu-lhe a mulher: Ns comemos dos frutos das rvores, que h no paraso. Mas do fruto da rvore, que est no meio do paraso, Deus mandou que no comssemos, nem a tocssemos, sob pena de morrermos. Mas a serpente disse mulher: Bem podeis estar seguros de que no haveis de morrer: porque Deus sabe que tanto vs comerdes desse fruto, se abriro vossos olhos; e vs sereis como uns deuses conhecendo o bem e o mal. A mulher, pois, vendo que o fruto daquela rvore era bom para se comer, e era formoso, e agradvel vista, tomou dele, e comeu, e deu a seu marido, que comeu do mesmo fruto com ela. No mesmo ponto se lhes abriram os olhos, e ambos conheceram que estavam nus, e tendo cosido umas com outras, umas folhas de figueira, fizeram delas umas cintas. E Ado, e sua mulher, como se tivessem ouvido a voz do Senhor Deus, que andava pelo paraso, ao tempo que se levantava a virao depois do meio-dia, se esconderam da face do senhor Deus entre as rvores do paraso. E o Senhor Deus chamou por Ado: Como ouvi a tua voz no paraso, e estava nu, tive medo e escondi-me. Disse-lhe Deus: Donde soubeste tu que estavas nu, se no porque comeste do fruto da rvore, de que tinha ordenado que no comesses? Respondeu Ado: A mulher que tu me deste por com-panheira, deu-me desse fruto, e eu comi dele. E o Senhor Deus disse para a mulher: Por que fizeste tu isto? Respondeu ela: A serpente me enganou e eu comi.

    BBLIA Sagrada (1975) Gnesis, 3, 1-13.

    Quer dizer, o conhecimento do bem e do mal, essa questo filosfica, que atravessa os tempos, uma questo de vida ou morte: se comessem ou tocassem o fruto proibido, morreriam. Morrer para renascer o preo do conhecimento, dessa busca pelo proibido, dessas foras indomveis da natureza, a morte. Muda-se a conscincia, tem-se a verdadeira noo das coisas.

    Esse o pecado do homem, mas s assim, ele seria homem humano. Por isso, para viver, temos de aprender. E para aprender, temos de conhecer. E, ao conhecermos e refletirmos, mudamos nosso modo de ver e pensar o mundo, sua essncia e isso o princpio dessa iniciao. O mundo nunca mais ser o mesmo. E, nesse instante, no momen-to dessa conscincia, a conscincia desse pensar, inolvidvel instante, morremos. No seremos mais os mesmos, pois conhecemos (e, conseqentemente, conhecemo-nos). E essa pureza de estado dal-ma, essa virgindade espiritual, se foi. Assim, distin-guiremos bem e mal. Assim viveremos. Assim aprendemos, assim morremos.

    36. o ut moreat, a arte de comover o leitor, o ineludvel em Grande serto: veredas.

    37.Acreditamos que, quando o narrador retorna atravs dos desvos da memria, no tempo, ele revive suas experincias, portanto, as suas emoes. Elas so esse presente, o viver porque o viver, em nosso entender, no apenas composto do presente momento vivido, mas antes e principalmente das sensaes e impresses que esse momento vivido causa. Pois, essas impresses no vm do fato, mas da estimativa que fazemos dele. E, por isso, possumos o poder de revogar essa estimativa. Porm, no a sua lembrana, que poder vagar pelo inconsciente. Como no adgio popular recordar viver.

    38.Essa enumerao a volta no tempo.

    39.Pronto e ausente, pois um homem iniciado no viver (pronto), porm ausente (ele foi todos os riobaldos e agora no nenhum deles, um outro Riobaldo, que interiorizou a vivncia dos anteriores. Contudo, ele continua sendo o Riobaldo que questiona. Portanto, ainda o livre-pensador de antes, que atravessou todos os riobaldos e trouxe essa caracterstica na sua personalidade). Ele um, que so todos, no sendo nenhum deles.

    40.Solido, para entendermos as coisas divinas, solido como um processo mental de cada pessoa, como Riobaldo, que est no grupo, mas possui seu modo prprio de pensar (conforme nos explicam as Epstolas de So Paulo, no Novo Testamento).

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    *Carlos Theobaldo doutorando em Literatura Brasileira na USP, professor de Lngua Portuguesa e Literatura Brasileira. Co-autor do livro Duas vises: Guimares Rosa e Clarice Lispector (Rio de Janeiro: gora da Ilha, 2000).

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    Carlos TheobaldoCarlos.doc

  • Augustus Rio de Janeiro Vol. 07 N. 15 Jul./Dez. 2002 Semestral

    um, sua alma evoluiu de forma rica, plena. Ou, como disse Guimares Rosa: Imortal o que do sofrido; tudo abaixo da, pstumo(1). Rio-baldo era todos e nenhum deles... um outro.

    A busca do homem, essa verdade inolvidvel de cada ser, que atravessa os tempos, fazendo perene essa descoberta o homem sempre se descobre, a

    si e ao mundo. Uma obra com paralelo no romance de cavalaria, sendo uma iniciao do viver. Encon-tramos pontos em comum no Livro de Jos de Arimatia(3), na Demanda do Santo Graal(4), no Horto do Esposo(5), nos cantares de gesta, como no Cantar do Mio Cid(6), em La Chanson de Ro-land(7). Esse serto-mundo, folclrico, em que Riobaldo narra no s sua histria, mas nos desve-la toda a alma sertaneja.

    Esse outro que nos ensina a apreciar o mundo, ora como menino, ora como professor, ora como jaguno, ora como Tatarana, ora como Urutu-Branco As veredas so diversas. O homem, na sua eterna busca pelo momento da Salvao, atravessa caminhos to dspares quanto a sua prpria existncia. O homem humano se v nesse mundo, desaparelhado, como um recm-nascido que aprende e apreende informaes no decorrer da vida. Nesse estado, a experincia pessoal mos-tra que o protagonista, Riobaldo, fez sua evoluo por todos os gneros, que o autor utiliza e opera como forma de mostrar o lado humano, o viver. O homem mltiplo. E em seus caminhos, vemos todos os estados.

    pico, lrico e com tonalidades dramticas, Grande serto: veredas uma obra essencial-mente potica. Como nos explica Henriqueta Lisboa:

    pica, na objetividade do seu motivo central (o ser-to do tamanho do mundo), obra lrica pela trans-posio da objetividade primeira para a completa objetividade que domina o tema (o serto onde o pensamento mais forte do que o poder do lugar), pe-la essncia do teor humano (o serto dentro da gente), pela intensa participao da natureza e pela contemplao da prpria vida ntima, a originalidade de Grande serto: veredas consiste em ser uma epo-pia do homem interior(2).

    Essa grande epopia, que nos leva ao serto que

    Guimares Rosa idealizou e que Riobaldo nos nar-ra, reativando as fontes primitivas de vida mais pura. Em um tempo em que havia o respeito, no apenas como figura de retrica, em um tempo mgico. Na travessia do Liso do Sussuaro (observe-se o nome), fica definitivamente marcada como seu tour de force. Sombras protetoras sur-gem para acolher os riobaldos, sem que a luz do sol que queima incida sobre o bando, deixando claro quem estava com a fora para o combate com os verdadeiros pactrios. Esse episdio tem seu paralelo nas novelas de cavalaria.

    Em A Demanda do Santo Graal so igualmen-te encontradas travessias perigosas, em que o ca-valeiro vence ou derrotado de acordo com as suas virtudes de lealdade, bravura e castidade. Portanto, o autor se utiliza dessas narrativas para criar uma narrativa maior, que englobe a iniciao do viver. Ao final, Riobaldo j outro, mas a d-vida persiste. Acreditamos que Guimares Rosa, elevando o romance moderno brasileiro altura de epopia, criou a nossa epopia moderna. Todas as caractersticas desta esto presentes. A virtude das personagens e a busca de uma resposta ao vi-ver, Deus e o diabo, o pacto de castidade entre Riobaldo e Diadorim etc.

    A relao com o demo vem de longa data. Os pactrios so muitos, a histria medieval est repleta deles. S que, em Grande serto: vere-das, a figura do demo no se faz presente. So os elementos da Natureza que interagem com o homem, demarcando quando os acontecimentos tomam um rumo desfavorvel.

    Tambm poderamos falar da toponmia. Rico em nomes de cidades, rios, aldeias, pontes, fazen- das, retiros, montes. Para exemplificar, destaca-mos alguns nomes que so citados na narrativa, at a p. 17 (conforme edio da Abril Cultural):

    Urucia, Corinto, Curvelo, Vereda-de-Vaca-Man-sa- de-Santa-Rita, Andrequic, Rio do Chico, Cachoeira-dos-Bois, Campo-Redondo, Jiju, vereda do Bu- riti Pardo, Passo do Pubo, da-Areia, Curralinho. O Limozinho, Vau-Vau, Sete-Lagoas, Serra-Nova, Rio-Pardo, Traadal. (GSV, p. 9-17)(8).

    Ao longo da narrativa, podemos perceber o li-rismo dos nomes, a criatividade, a influncia por-tuguesa, africana e indgena nos vocbulos. Esse amlgama que faz com que o folclrico, o popu-lar, se una ao experimentalismo culto da lngua e a suas razes, e a fazendo-nos conhecer, entre os nomes dos lugares, um pouco desse mtico serto.

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    NOMES Guimares Rosa, em sua prosa corrida(9),

    semelhante ao francs Louis-Ferdinand Cline e ao americano beatnik(10) Jack Kerouac, faz destacar algumas pausas na narrativa, como uma espcie de staccato(11). Reticncias, cor-tes, pargrafos, tudo concorre para que essa pausa seja uma ponte para que o ouvinte/leitor possa fazer sua reflexo. uma pausa para a vida (pensar viver).

    Outrossim, alguns nomes de personagens se destacam, pois, alm de sua participao na nar- rativa, so como pequenas esfinges a serem de- cifradas. Destacamos o nome de Riobaldo e Dia-dorim para uma breve anlise.

    Riobaldo

    O nome Riobaldo suscita vrias interpretaes. A princpio, iremos dividi-lo em dois segmentos, como quando analisado por Manuel Cavalcanti Proena e por Luiz Costa Lima(12):

    Rio-baldo Como nos explica Mansur Gurios, o nome

    Rio um sobrenome portugus geogrfico El-rei D. Sebastio, ano de 1560, as deu [as ar-mas] a Diogo de Castro do Rio por grandes ser-vios que fez a esta coroa(13).Assim, vemos que a origem do nome Rio provm de um guer-reiro, um combatente. Mas a palavra rio tam-bm significa curso de gua natural, que se desloca de um nvel mais elevado para outro mais baixo, aumentando progressivamente o seu volume at desaguar no mar, num lago, ou nou-tro rio, e cujas caractersticas dependem do rele-vo, do regime das guas etc(14), como escla-rece Aurlio Buarque de Holanda. O rio como metfora potica da vida, em que cada vida as-sume seu prprio curso.

    O nome Baldo, segundo Mansur Gurios, vem do italiano Ubaldo, por influncia germnica, que por sua vez vem do alemo Hugbald: audacioso (bald) no pensar (hug, huge)(15). Aqui j vemos uma das caractersticas de Riobaldo afigurada. J Aurlio Buarque de Holanda nos esclarece que a palavra baldo pode ser Barragem ou parede para

    represar as guas de um aude ou falto, falho, carecido, carente baldado no carteado, diz-se de quem no tem determinado naipe(16).

    Portanto, diante dessas explicaes, acredita-mos ser Riobaldo tudo isso:

    Ambicioso no pensar (nos seus questiona- mentos):

    Carente (pensa no amor de Otaclia, nas ar-tes de Nhorinh, sempre ao lado de Diado-rim, estimando-a);

    Baldado (frustrado, malogrado por no saber se o diabo existe, se pactrio, se, enfim, tu-do acabou);

    Est fora da rodada no jogo (no havia lu- gar para ele no jogo de Hermgenes e Diadorim);

    Mas forte como uma barragem que represa as guas (contm a vida).

    Riobaldo, aps suas aventuras como jaguno, ter o grande encontro. No com o diabo, mas com a Verdade. Descobrir, atravs de sua inicia-o pelo serto, que a vida um eterno recomeo, um ciclo vital em que o homem, em constante aprendizagem, mesmo aps suas experincias, no sabe nada. Volta ao incio, pois, como est nona-da, sabe que certezas no h, exceto que o diabo no h, existe o homem humano.

    Apenas compreende, aps todas as travessias, que existe a nossa humanidade, em que bem e mal se fundem, fazendo-nos figuras humanas, com nossas qualidades e nossos defeitos, nessa travessia que o viver. E muito perigoso.

    Diadorim Para anlise do nome de Diadorim, utilizare-

    mos o mesmo processo que utilizamos no nome de Riobaldo, j utilizado por Augusto de Campos e Costa Lima(17), dividindo-o em duas partes:

    Dia-dorim Sendo Dia, como nos ensina Mansur Gu-

    rios, um sobrenome portugus:

    No sculo XVI: Diaz, forma correta de Didacus, ver Ddaco. Em documento do sculo XVI: Diez, patro-nmico de Diego Segundo o historiador Gonalo Argote Molina, o nome provm do espanhol dis (diez), e foi ganho por Pedro Fidalgo que de noite, luz dum facho, conquistou valentemente o castelo de

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    Fiscar, matando diez(10) mouros nesse ato. E nas ar-mas dessa famlia havia em campo azul ha estrella de oiro de dez raios. A etimologia fantasiosa(18).

    Da podemos concluir que, ao menos no nome, a origem da personagem Diadorim guerreira, combatente, uma valentia tpica dos cavaleiros medievais. No nos esquecendo que dia a luz, o dia em si, o espao de tempo que o demarca. Mas, tambm essa luz, que separa os homens, que atravessa a vida. Segundo Aurlio Buarque de Holanda, dia do grego di, prefixo que sig-nifica separao, atravs; diacustico, diacro- nia, diurese(19). Podemos, dessa forma, dizer que Diadorim possui todas essas caractersticas, criando o mito dessa herona sertaneja.

    Dorim acreditamos ser a corruptela do nome Dora, que por sua vez a abreviatura de nomes como Teodora etc. Como afirma Mansur Gurios, Teodoro-a, do grego thedoros: presente (doros) de Deus (Theo)(20). Entretanto, Aurlio Buar-que de Holanda nos esclarece que o sufixo nomi-nal -dora equivalente de -dor e ocorre em vo- cbulos formados no latim (abjurador), ou no vernculo, a partir do radical verbal com as no-es de ofcio, profisso, que ou aquele que pratica determinada ao (definida pelo radical verbal), agente, instrumento de ao(21). As-sim, presumimos que Diadorim era a luz de Rio-baldo, e por isso o guiou por essas veredas, p- rm, era tambm o seu anjo da guarda, que, como presente de Deus (Teodora), o auxiliaria e prote-geria nas mais inspitas empresas, porque esse era seu ofcio, sua profisso. Ela era o agente, o instrumento da ao, portanto, s ela poderia aca-bar com o mal (matando Hermgenes), pois era o instrumento de Deus.

    Como os antigos cavaleiros, que se vingam, por honra, com sangue (no esqueamos que foi Hermgenes que assassinou pelas costas seu pai, Joca Ramiro). Essa a herona medieval, mescla-da com os mitos religiosos, como uma Joana dArc (a donzela guerreira) do serto, mantendo sua fora pela castidade, onde a honra, a justia e o dever falam mais alto.

    Riobaldo e Diadorim A relao de Riobaldo com Diadorim no pas-

    sa somente pela amizade. Ela comea nos nomes.

    Existe um paralelismo no prprio nmero de sla-bas dos nomes dos protagonistas, que se dividem em dois segmentos:

    Rio-baldo Dia-dorim O primeiro segmento de ambos os nomes so

    disslabos de trs letras com hiato em que a pri-meira vogal a letra i e o que significa o i? a vogal do meio: a-e-i-o-u, quer dizer: o equil-brio. O meio sempre ser o equilbrio.

    O segundo segmento -baldo/ -dorim, de am-bos, so compostos por cinco letras. Divididos em duas slabas, em que se alternam os nmeros de letras, o nome dele comea com trs letras na primeira slaba e duas na segunda:

    bal-do O dela, ao contrrio: do-rim A ltima slaba do segundo segmento do nome

    dele a slaba inicial do segundo segmento do nome dela (do), e possuem o mesmo som: /d/. o elemento comum entre os nomes deles. E o que significa esse /d/ isoladamente? Pode ser uma corruptela da palavra dor. Comea pelo nome de-la e termina pelo nome dele:

    Dia-do-rim Rio-bal-do a dor do amor impossvel, o amor irreali-

    zado. Eles se amaram, mas no se conheceram como homem e mulher ento no concretizaram esse amor. Essa a origem da dor. Essa lembran-a constante: O Menino me deu a mo: e o que a mo a mo diz o curto; s vezes pode ser o mais adivinhado e contedo; isto tambm. E ele como sorriu. Digo ao senhor: at hoje para mim est sorrindo. Digo. (GSV, p. 101).

    O nome to importante quanto a persona-gem, pois atravs do nome desvelamos a sua al-ma. Porm, para que o nosso estudo no se alon-gue em demasia, teceremos uma ltima conside-rao. No decorrer da narrativa, os bandos e seus integrantes so chamados pelo nome de seu che-fe, portanto, seus seguidores: os ramiros, os me-

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    deiros-vazes, os hermgenes, os z-bebelos, os riobaldos.

    O nome do chefe do bando deixou de ser um substantivo prprio e passou a designar um subs-tantivo comum.

    NMEROS

    Observamos que, durante a narrativa, os nme-

    ros so amplamente utilizados. Mas, numa obra como a de Guimares Rosa, os nmeros tm um poder especial, mgico, simbolgico. Sob essa tica, analisaremos os nmeros, como nos ensi-nam Jean Chevalier e Alain Gheerbrant:

    Os nmeros, que aparentemente servem apenas para contar, forneceram, desde os tempos antigos, uma base de escolha para as elaboraes simblicas. Ex-primem no apenas quantidades, mas idias e for-as... o nmero das coisas ou dos fatos reveste-se em si mesmo de uma grande importncia e at permite s vezes, por si s, que se alcance uma verdadeira compreenso dos seres e dos acontecimentos... cada nmero tem sua personalidade prpria(22).

    Dos nmeros que mais se destacaram, durante

    a narrativa, o nmero 3 o que se sobressai. Porm, devido sua importncia, analisaremos o nmero 7 e o 8. Em verdade, o nmero 8 ser apenas estudado no modo como se apresenta ao final do texto, sob forma simblica: deitado.

    O nmero 3 Segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant,

    o trs polariza vrias culturas em seu universa-lismo:

    O trs um nmero fundamental universalmente. Exprime uma ordem intelectual e espiritual, em Deus, no cosmo ou no homem. Sintetiza a triunidade do ser vivo ou resulta da conjuno de 1 e de 2, pro-duzido, neste caso, da Unio do Cu e da Terra(23).

    O nmero 3 foi utilizado de maneira variada,

    at como artifcio para chamar a ateno do leitor como recurso enftico (comeo, meio e fim, co-mo nos ensina Pitgoras?)(24): coisas que vi, vi, vi (GSV, p. 51), Floriano, foi, foi, foi (GSV, p. 140), Urut Branco!... Urut Branco!... Urut Branco!... Cujo era eu mesmo (GSV, p. 392), ... cavalo so desdenha de dormir, o senhor sabe: bi-

    cho que s come, come, come (GSV, p. 403), Aqui a estria se acabou. Aqui, a estria acaba-da. Aqui a estria acaba (GSV, p. 424).

    Observando-se atentamente, podemos notar que o nmero 3 citado na narrativa 136 vezes. Isso nos conduz ao seguinte raciocnio:

    136 = 1 + 3 + 6 = 10 = 1 + 0 = 1. O nmero 1 o local simblico do ser, fonte e

    fim de todas as coisas. Como nos explicam Jean Chevalier e Alain Gheerbrant:

    Smbolo do homem em p: nico ser vivo que usu-frui essa faculdade, a ponto de certos antroplogos fazerem da verticalidade um sinal distintivo do ho-mem, ainda mais radical do que a razo... O um tambm o Princpio... o centro mstico, de onde irra-dia o esprito como um sol(25).

    Ou, como afirma Marie Louise Lacy: O n-

    mero 1 representa liderana pessoas indepen-dentes, ousadas... esto sempre em atividade. Esta uma energia masculina ligada ao princpio divi-no(26).

    O nmero 7 O nmero 7 outro nmero que nos chama

    a ateno na narrativa. Como esclarecem Jean Chevalier e Alain Gheerbrant: O 7 corresponde aos sete dias da semana, aos sete planetas, aos se-te graus da perfeio... O sete indica o sentido de uma mudana depois de um ciclo concludo e de uma renovao positiva(27). Portanto, a mudan-a de Riobaldo tinha de se efetivar sob a gide do nmero 7, citado desde o incio do livro at quase seu fim.

    Porm, observemos que o nmero 7 citado 29 vezes na narrativa, o que nos conduz ao se-guinte raciocnio: 29 = 2 + 9 = 11 = 1 + 1 = 2. Se-ria, portanto, a dualidade das passagens na vida de Riobaldo: o bem e o mal, amor e dio, evolu-o e involuo. Ou, como nos explicam Jean Chevalier e Alain Gheerbrant:

    Smbolo de oposio, de conflito, de reflexo, esse nmero indica o equilbrio realizado ou ameaas la-tentes... O nmero 2 simboliza o dualismo sobre o qual repousa toda dialtica, todo esforo, todo comba-te, todo movimento, todo progresso... O 2 exprime,

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    ento, um antagonismo que latente se torna manifes-to... Tanto pode ser de dio quanto de amor...(28).

    Riobaldo tinha de passar por esse serto-

    mundo, essa mquina de fazer homens e feras, es-se renovar a cada instante, que no volta.

    O nmero 8 Em verdade, o nmero 8 aparece no texto no

    sob a forma de algarismo, mas sim sob a forma de signo, deitado, sendo assim o smbolo mate-mtico do infinito. O oito o equilbrio csmico, ou como nos ensinam Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, a lmina oito do tar de Marselha representa A Justia, smbolo da completude tota-lizante e do equilbrio...(29).

    O plano conceitual Tentaremos analisar a questo do tempo sob

    uma nova tica. Para Sir Isaac Newton, com sua Mecnica Clssica, o tempo foi introduzido de modo absoluto (quer dizer, o tempo existe por si mesmo, independente das circunstncias exterio-res e decorrendo uniformemente para todos os observadores). Porm, esse conceito de tempo ab-soluto levou ao impasse a Fsica do sculo XIX, pois implicava a existncia de velocidade infinita e propagao instantnea dos sinais distncia. Assim como o comprimento e a massa tambm aparecem como grandezas absolutas.

    S mais tarde, j no sculo XX, com a teoria da Relatividade, criada por Albert Einstein, seria solucionado esse impasse. Na Mecnica Relati-vista no s o tempo, mas o espao e a massa dos corpos apareciam como grandezas relativas. O mesmo intervalo pode ser diferente para diferen-tes observadores.

    O tempo conceitual (medida externa da dura-o por meio do movimento, tal como hora, dia, ms, ano) comumente contrastado ao tempo psicolgico ou de percepo (a relao temporal entre objeto e sujeito). Para alguns autores, o tempo do relgio no tem significado algum para a imaginao, sendo apenas uma conveno arti-ficial e arbitrria, desenvolvida com o objetivo de ser utilidade social, para regular e coordenar as aes que envolvam as pessoas. Em outras pala-vras, por ele sabemos a hora de partirmos do es-

    critrio, de jantarmos, de dormirmos. o tempo do relgio que regula a nossa vida. Mas pensa-mentos, experincias e emoes transitam em uma ordem diferenciada e pessoal, esse nosso tempo pessoal, por assim dizer, no caberia em medidas do tempo do relgio.

    Portanto, utilizaremos como medida para a anlise da narrativa o sol, de forma que o tempo conceitual e o tempo psicolgico se fundam, guardados os seus devidos valores. E chamare-mos o Tempo Absoluto de Newton de Eternidade, e o Tempo Relativo de Einstein de percepo (da memria) de Riobaldo.

    O tema

    No serto, o tempo marcadamente forte. Com a prpria fora da natureza, marcaremos es-se tempo com a passagem do sol, fragmentado em horas. Em trs horas distintas, bem delineadas isso no significa que o texto tenha de ser pro-priamente dividido assim. Como ele uma plu-ralidade de textos dentro do seu corpo principal, e as relaes se interligam, ele liga passado-presente-futuro como uma s coisa. Mas, para efeito de anlise, dividiremos assim o texto: seis horas, quinze horas, dezoito horas e trinta minu-tos. Para tal, utilizaremos o instrumento de medi-da da passagem do sol: o relgio de sol. O sol do serto, com toda a sua luminosidade, ser o nosso guia, representando a vontade divina. Contudo, a narrativa fala do homem, sua conscincia primiti-va, a busca da verdade, a luta do bem com o mal, condies inerentes conscincia humana. Utili-zaremos o smbolo flico para representao des-se relgio (imaginemos um relgio de sol cuja haste que marca a passagem da luz seja o smbolo flico). Pois, como deus-criador-criatura, o homem tambm um criador, sendo criatura pensante. E esses pensamentos, que so o ques- tionamento da condio humana, so representa-dos pelo que gera a vida, em primeira instncia, o phallu (referimo-nos ao phallu no como repre-sentao esotrica nem ertica; ele significa sim-plesmente a potncia geradora, que sob essa forma, venerada em diversas religies). Quanto sua relao com o sol, citamos aqui um trecho do mito de Aten. Esclarece-nos Junito de Souza Brando:

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    Seu nascimento foi um jorro de luz sobre o cosmo, aurora de um mundo novo, atmosfera luminosa, se-melhante hierofania de uma divindade emergindo de uma montanha sagrada. Sua apario marca um transtorno na histria do mundo e da humanidade. Uma chuva de neve de ouro caiu sobre Atenas, quando de seu nascimento: neve e ouro, pureza e ri-queza, tombando do cu com a dupla funo de fe-cundar, como a chuva, e de iluminar, como o sol. E , por isso mesmo, que em certas festas de Aten se ofereciam bolos em forma de serpente e de falo, smbolos da fertilidade e de fecundidade(30).

    Disse La Bruyre: fazer livro ofcio, como

    fabricar relgio: preciso mais do que esprito para ser autor(31). Assim a escritura em Gran-de serto: veredas: tudo se encaixa e funciona como um relgio, mesmo quando aparentemente h o caos, uma lgica (ordem) instaurada, reme-tendo-nos a outros acontecimentos, e conseguinte a outros pensamentos. Como nos improvisos de jazz, em que o inesperado em verdade fruto de uma ordenao, essa lgica desesperadora na ca-bea de um homem cuja vivncia larga e a re-flexo, serena, faz a descoberta de um novo mun- do, riobaldianamente, nesse serto-vida. Para no perdermos mais tempo em digresses e anlises, vamos ao trecho em que pela primeira vez na nar-rativa surge a figura de Diadorim.

    Conforme pensei em Diadorim. S pensava era ne- le. Um joo-congo cantou. Eu queria morrer pen-sando em meu amigo Diadorim, mano-oh-mo, que estava na Serra do Pau-dArco, quase na divisa bai-ana, com nossa outra metade dos s-candelrios... Com meu amigo Diadorim me abraava, sentimento meu ia -voava reto para ele... A arre, mas: que esta minha boca no tem ordem nenhuma. Estou contan-do fora, coisas divagadas. (GSV, p. 18).

    Aqui entra o onrico, demonstrando o quanto

    ele gostava de Diadorim. Essa citao, em que seu sentimento aflora de maneira intensa, logo no incio da narrativa, delimitaremos como seis horas, ou o raiar do dia.

    Mais adiante, temos o momento delimitador da tarde:

    Ao menos outro deles, dos hermgenes, quero ver se

    resgato de abater, at vir o sereno do anoitecido eu me-ditei. No deu. No pude. O que houve, o conseguinte, foi que Z Bebelo pegou em meu ombro. Ele mudou de lugar, e ps a cara no meio da luz. A, est ouvindo Tatarana Rio-baldo, est ouvindo? ele disse, com um sorriso de grandes

    brilhos, que no era de ruindade e nem de bondade. Aquilo foi num dia, devia de estar sendo por volta de umas trs da tarde, pelo rumo do sol. Ouvi! (GSV, p. 252-253).

    Conforme se apresenta, aqui demarcamos o

    meio da tarde, esse grande dia, essa grande narra-tiva solar. Como o prprio Riobaldo afirma, deve-riam ser umas trs da tarde, assim, o meio dessa saga.

    E, aps a morte de Diadorim, e de ordenar para enterr-la separada dos outros, num aliso de vere-da, adonde ningum ache, nunca se saiba... (GSV, p. 424), Riobaldo explica: E aquela era a hora do mais tarde. O cu vem abaixando. Narrei ao se-nhor. No que narrei, o senhor talvez at ache mais do que eu, a minha verdade. Fim que foi. Aqui a estria se acabou. Aqui, a estria acabada. Aqui a estria acaba. (GSV, p. 424). Aqui, denominamos a hora do ocaso do sol, que marcaria as dezoito ho-ras e trinta minutos, o fim do sol e o incio da noi-te, essa grande noite que acompanhar Riobaldo. O que nos chama a ateno o modo como Rio-baldo anuncia que a estria chegou ao fim. Com o tempo verbal no passado, no particpio-passado e no presente, nos faz pensar nas trs caractersticas que nos ensina Mestre Buddha:

    Todas as formaes so passageiras/Todas as formaes so sujeitas dor/Todas as formaes so sem substncia real/Aquele que se compenetra bem dessa verdade fica livre da dor. o caminho da purificao(32).

    Riobaldo no um mero joguete na mo de

    Deus. Ele um homem predestinado, o heri e o anti-heri. Ele no deixa os acontecimentos in-flurem na sua vida, ele os faz. Cria situaes-limite, em que sua volio a maior fonte de ri-queza. Desde criana, no encontro com o Meni-no (Diadorim), j havia um trao de diferena em seu carter. Os fatos o levaram para o seio dos acontecimentos. Quando j compreendia os seus desgnios, tomou a atitude de sair. De mestre Lu-cas para Z Bebelo, para Joca Ramiro, para a ja-gunagem, para a vida de fazendeiro. Veredas. Com seus questionamentos de tonalidades e car-ter existencialista, Riobaldo chega ao humanismo no final de sua estria, onde tudo termina. O ato de reflexo atravs da revivncia da memria, ao cantar a sua saga, cria essa mgica vontade de descobrirmos a beleza potica da vida, atravs de suas palavras. Quase um monlogo, sua volta ao

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    passado em dilogo com o homem culto da ci-dade, um questionamento de valores, dos reais valores, mostrando-nos um mundo em que no h solues maravilhosas, cheio de problemas soci-ais, polticos, que vimos atravessar por duas guer-ras mundiais (numa das quais, na Segunda, o autor tomou parte). Um mundo que se estagnou, sem veredas.

    Nessa travessia, Riobaldo nos ensina o valor da ddiva da vida e seu completo aprender, cons-tante, com a natureza, unio fsica, psquica e mo-ral, nessa f renovadora de que o Bem e o Mal no h, h homem humano. Acabamos nonada, outra vez. Cabe ao leitor comear o seu ciclo, a sua eterna renovao. E assim, infinitamente, pois a vida eterna. Ns que passamos por ela. S o Amor fica. O Amor, que tudo. Amor pela vida. Esse Amor...

    Riobaldo teve uma iniciao mstica. Mas, a verdadeira iniciao a vida, seus valores morais e espirituais. Mesmo as religies mais tradicio-nalmente castas e puras no podem expressar a grandeza desse aprender, sendo os caminhos, as veredas que levam a Deus, apenas parte do apren- dizado(33). O homem tem de fazer essa caminha-da, que comea nonada e termina na travessia, essa ltima fronteira que nos leva ao infinito, ao estado dalma mais singelo, mtico e fsico. O homem tem de se descobrir, na sua solido diria, a solido dele prprio e dos outros. E a literatura ajuda a compreendermo-nos melhor (a boa litera-tura). Em Riobaldo encontramos todas as paixes humanas, o mtico e o real, o sonho e a verdade, nessa busca incessante que o homem. Esse ser magnfico e ao mesmo tempo to insignificante perante a sua complexidade. Esse corao latente, na jaula do viver. Por isso viver muito perigo-so, e no temos como fugir dele. Essa a traves-sia, que nunca tem fim, pois enquanto existir o homem, existir sempre esse caminhar para fren-te, em um eterno crculo vicioso, conjugando o aprender com o viver e o sentir. O homem feito de sensaes, desde o bero. E seu aprendizado lento. E nesse ritmo o Grande serto: veredas lento como a brisa, esse vento que varre as fo-lhas secas, mas d vida ao p. Esse vento que o sopro inicial, a centelha da vida, iluminando o vi-ver. Esse aprender eterno, como o sol, como sua luz: quente, vivo, seco.

    O serto o mundo, e o sol, no serto, fala mais alto. Sol e serto j se conhecem, de muito tempo. Grande serto: veredas um pouco dessa luz, prpria, que o serto nos oferta, e o aprender nos conduz, durante a leitura dessa saga. A saga do saber viver. Na luz, infinitamente.

    Riobaldo seria um Ado dos tempos modernos que vai ter o conhecimento atravs de Diadorim, da atrao que sente por ela, de saber as coisas da vida, coisas do esprito. Por ele, o Menino, que um dia lhe ensinou a coragem, pura e sim-ples, no rio (metfora da vida). Diadorim, que, como homem, demonstra que essa Eva moderna o prprio Homem(34). No h mais diferena. O homem, de um modo geral (homens e mulheres), est, para o conhecimento, privado de sua segu-rana, pois h um preo a pagar pela sabedoria, o seu fruto (a rvore da sabedoria)(35).

    Em Diadorim, temos o mito da donzela guer-reira (e virgem), como Joana dArc, a virgem de Orleans (pucelle dOrleans), que, por sua vez, lutou sob inspirao divina. Diadorim tinha de vingar a morte do pai, Joca Ramiro, como nos romances de cavalaria olho por olho, dente por dente herana da Idade Mdia, que por sua vez foi buscar nas fontes bblicas a inspirao para as lutas, as batalhas. a eterna luta do bem contra o mal.

    Diadorim sacrifica-se, conscientemente, ao fi-nal no h a figura do Deus ex-machina, mas sim a atuao de Deus machina fatalis(46) como Je-sus, que se deixa levar para o suplcio (via crucis) e morte. O drama est no cerne da narrativa. Rio-baldo questiona, aprende e presencia a luta de Di-adorim com Hermgenes, a luta do bem contra o mal. Seu amor por Diadorim no pode ser consu-mado (amor fsico) e a poesia a tnica dessa ver-dadeira saga do viver, moderna, porm to pesada e profundamente triste, pois o homem continua o mesmo. Aps toda a literatura, todos os livros es-critos, o homem parece no aprender que a vida isso. Travessia. E que o homem, humano, apren-der a viver. Riobaldo quer o perdo da memria, e o pede indiretamente para o seu interlocutor, sob forma de pergunta: ... que o Diabo no existe. Pois no? (GSV, p. 429). Ele quer a confirmao de que no mais pactrio e de que no tem mais que se remoer de culpa pela morte de Diadorim. Hoje, restou apenas o homem humano (que mescla

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    o bem e o mal para viver), e, ao final, afirma: No-nada. O diabo no h!... Travessia (GSV, p. 429), como um convite para retornarmos a esse tempo ednico, como em O paraso perdido, de John Milton. Como no tempo de nossos primeiros pais. Basta o homem querer mudar. Mas o homem, humano, se no mudar, ficar eternamente assim, preso ao seu pecado.

    O radicalismo interpolar da obra consiste no fato de ela no possuir fim. Em verdade, o que vale o meio o presente, o viver(37). O mo-mento o que interessa, nesse jogo de aconteci-mentos. Esse momento presente, que pensado e representado pelo jaguno Riobaldo, pelo profes-sor Riobaldo, pelo menino Riobaldo(38). At che- garmos ao Homem Riobaldo, pronto e ausen-te(39), que se manifesta como tal, no Hoje. Pois, amanh, infinito. O resto, travessia do viver.

    Portanto, o questionamento de Riobaldo no um medo improdutivo, e sim um medo produtivo. O medo de Riobaldo no um medo amorfo, mrbido, sem vida, um medo com nsias, um me-do mais prximo do pavor. O medo de Riobaldo um medo capaz de gerar idias e correlacion-las antes de agir, fazendo-o refletir ao invs de agir. o medo do zelo, da segurana, mas tambm o medo do pensar. Porque, ser audaz ser pecador, e ser temeroso (perante as foras de Deus e do di-abo) regressar s fontes, ao genuno ideal cris-

    to. A alma deve conhecer o Cristo tal como a esposa ao seu esposo (isto , haver essa integra-o), assim sendo fonte de uma verdadeira sabe-doria, como podemos observar na doutrina pauli- na, atravs das Sagradas Escrituras, na contem-plao e na vida solitria(40).

    Por essa razo, Riobaldo, o nosso heri medi-eval, age dessa forma. Sua solido e contempla-o encontram voz nas palavras de So Paulo, e que trazem, atravs de uma narrativa moderna, esses eternos questionamentos do homem e da e-xistncia, revelando o belo, a harmonia, o equil-brio, sua integrao com a Natureza e com os homens, o mal e suas conseqncias, a misria do homem, as instncias finais de sua conscincia.

    Riobaldo no viu o diabo. Mas, v-se Deus? Deus em sua plenitude, estaria por trs de tudo... esse amor vida, s idias. Deus no precisa pro-var sua existncia... Ele o faz atravs dos seus atos. Ns que, no cotidiano da vida, no perce-bemos isso. Seria uma necessidade do viver, es-ses eternos questionamentos.

    A obra cria o serto-movncia de Guimares Rosa, uma campoviso, porque bipolar, como o Grande serto: veredas, Deus e o demnio. A biparticipao dos dois no embate do bem contra o mal. Existir diferena? Qual assemelhar em Guimares Rosa a essa realidade? A poesia a resposta.

    NOTAS

    01. ROSA, J. G. In: ANDRADE, C. D. de. (1968), p. 82. 02. LISBOA, H. Apud: SOUZA, R. de M. e (1978), p. 55. 03 -HISTRIA e antologia da literatura portuguesa: sculos

    XIII-XIV (08/10/97), p. 40. 04. A DEMANDA do Santo Graal: manuscritos do sculo

    XIII (1988), p. 50-51. 05. HISTRIA e antologia da literatura portuguesa: s-

    culos XIII-XIV (08/10/97), p. 61. 06. La despedida de Cardea, v. 235-241. In: PEDRAZA

    JIMNEZ, F.; RODRGUEZ CCERES, M. (1991), p. 17-18.

    07. La Chanson de Rolland. In: LAGARDE, A., MI-CHARD, L. (1970), p. 7.

    08. Daqui por diante, usaremos as iniciais GSV, seguida do(s) nmero(s) da(s) pgina(s), sempre que citarmos a obra Grande serto: veredas.

    09. O termo prosa corrida empregado aqui no sentido de uma prosa solta, com pargrafos que ocupam, s vezes, duas pginas, longos perodos.

    10. Bomios dos anos cinqenta, nos EUA, que influencia-ram uma gerao, com seu modo de ser, perante a soci-edade, o que mais tarde abriu caminho para o surgi- mento do movimento hippie, nos anos sessenta.

    11. Stacatto recurso utilizado na msica. Serve para indi-car que trecho deve ser executado, destacando-se niti-damente cada nota. Ou, como nos explica Aurlio Buarque de Holanda: Na tcnica dos instrumentos mu-sicais, sinal de intensidade representado por um ponti-nho ou uma espcie de acento agudo sobre as notas ou sob elas, e que indica que o som deve ser interrompido mediante um toque seco e breve.... FERREIRA, A. B. H. (1999), p. 666.

    12. PROENA, M. C. (1958), p. 14. LIMA, L. C. (1966), p. 73.

    13. GURIOS, R. F. M. (1973), p. 187. 14. FERREIRA, A. B. H. (1999), p. 1770. 15. GURIOS, R. F. M. (1973), p. 209. 16. FERREIRA, A. B. H. (1999), p. 259.

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    17. CAMPOS, A. de. In: COUTINHO, E.F. (1991), p. 338-339. LIMA, L. C. (1966), p. 73.

    18 GURIOS, R .F. M. (1973), p. 91-92. 19 FERREIRA, A. B. H. (1999), p. 674. 20. GURIOS, R. F. M. (1973), p. 205. 21. FERREIRA, A. B. H. (1999), p. 704. 22. CHEVALIER, J., GHEERBRANT, A. (1999), p. 646. 23. Ibidem. 24. BULFINCH, T. (1965), p. 236. 25. CHEVALIER, J., GHEERBRANT, A. (1999), p. 918. 26. LACY, M. L. (1991), p. 96. 27. CHEVALIER, J., GHEERBRANT, A. (1999), p. 826. 28. Ibidem, p. 346. 29. Ibidem, p. 653. 30. BRANDO, J. de S. (1998), p. 31. 31. LA BRUYRE (MCMLXV), p. 33. 32. BUDDHA (s. d.), p. 63. 33. Cada pessoa vai trilhar seu prprio caminho, e sob esse

    aspecto, cada um ir descobrir a sua realidade, o seu modo nico e mpar de aprender e apreender com o mundo.

    34. Do rio, foram para a mata, como num estado ednico... At surgir o negro, que o Menino enfrenta, com sua faca, com toda a coragem demonstrando a Riobaldo o conhecer da vida: a mata, o rio, a coragem... Ali o in-cio... (como no incio, um homem e uma mulher e o mundo serto-mundo).

    35. de saber que a serpente era o mais astuto de to-dos os animais da terra, que Deus tinha feito: e ela disse mulher: Por que vos mandou Deus que no comsseis do fruto de todas as rvores do paraso? Respondeu-lhe a mulher: Ns comemos dos frutos das rvores, que h no paraso. Mas do fruto da r-vore, que est no meio do paraso, Deus mandou que no comssemos, nem a tocssemos, sob pena de morrermos. Mas a serpente disse mulher: Bem po-deis estar seguros de que no haveis de morrer: por-que Deus sabe que tanto vs comerdes desse fruto, se abriro vossos olhos; e vs sereis como uns deu-ses conhecendo o bem e o mal. A mulher, pois, ven-do que o fruto daquela rvore era bom para se comer, e era formoso, e agradvel vista, tomou de-le, e comeu, e deu a seu marido, que comeu do mesmo fruto com ela. No mesmo ponto se lhes abri-ram os olhos, e ambos conheceram que estavam nus, e tendo cosido umas com outras, umas folhas de fi-gueira, fizeram delas umas cintas. E Ado, e sua mulher, como se tivessem ouvido a voz do Senhor Deus, que andava pelo paraso, ao tempo que se le-vantava a virao depois do meio-dia, se esconde-ram da face do senhor Deus entre as rvores do paraso. E o Senhor Deus chamou por Ado: Como ouvi a tua voz no paraso, e estava nu, tive medo e

    escondi-me. Disse-lhe Deus: Donde soubeste tu que estavas nu, se no porque comeste do fruto da rvo-re, de que tinha ordenado que no comesses? Res-pondeu Ado: A mulher que tu me deste por com- panheira, deu-me desse fruto, e eu comi dele. E o Senhor Deus disse para a mulher: Por que fizeste tu isto? Respondeu ela: A serpente me enganou e eu comi.

    BBLIA Sagrada (1975) Gnesis, 3, 1-13. Quer dizer, o conhecimento do bem e do mal, es-

    sa questo filosfica, que atravessa os tempos, uma questo de vida ou morte: se comessem ou to-cassem o fruto proibido, morreriam. Morrer para re-nascer o preo do conhecimento, dessa busca pelo proibido, dessas foras indomveis da natureza, a morte. Muda-se a conscincia, tem-se a verdadeira noo das coisas.

    Esse o pecado do homem, mas s assim, ele seria homem humano. Por isso, para viver, temos de aprender. E para aprender, temos de conhecer. E, ao conhecermos e refletirmos, mudamos nosso modo de ver e pensar o mundo, sua essncia e is-so o princpio dessa iniciao. O mundo nunca mais ser o mesmo. E, nesse instante, no momen- to dessa conscincia, a conscincia desse pensar, inolvidvel instante, morremos. No seremos mais os mesmos, pois conhecemos (e, conseqentemen-te, conhecemo-nos). E essa pureza de estado dal-ma, essa virgindade espiritual, se foi. Assim, distin-guiremos bem e mal. Assim viveremos. Assim apren-demos, assim morremos.

    36. o ut moreat, a arte de comover o leitor, o ineludvel em Grande serto: veredas.

    37. Acreditamos que, quando o narrador retorna atravs dos desvos da memria, no tempo, ele revive suas experi-ncias, portanto, as suas emoes. Elas so esse presen-te, o viver porque o viver, em nosso entender, no apenas composto do presente momento vivido, mas an-tes e principalmente das sensaes e impresses que es-se momento vivido causa. Pois, essas impresses no vm do fato, mas da estimativa que fazemos dele. E, por isso, possumos o poder de revogar essa estimativa. Po-rm, no a sua lembrana, que poder vagar pelo in-consciente. Como no adgio popular recordar viver.

    38. Essa enumerao a volta no tempo. 39. Pronto e ausente, pois um homem iniciado no viver

    (pronto), porm ausente (ele foi todos os riobaldos e ago-ra no nenhum deles, um outro Riobaldo, que interio-rizou a vivncia dos anteriores. Contudo, ele continua sendo o Riobaldo que questiona. Portanto, ainda o livre-pensador de antes, que atravessou todos os riobaldos e trouxe essa caracterstica na sua personalidade). Ele um, que so todos, no sendo nenhum deles.

    40. Solido, para entendermos as coisas divinas, solido como um processo mental de cada pessoa, como Rio-baldo, que est no grupo, mas possui seu modo prprio de pensar (conforme nos explicam as Epstolas de So Paulo, no Novo Testamento).

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    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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