as três leis de uma pequena revolução celeste

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POR JUNIOR BELLÉ | política | 22 FOTO: AFP PHOTO/PABLO PORCIUNCULA / GETTYIMAGES

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Em menos de um ano, o Uruguai aprovou três po-lêmicas leis que levaram o país ao protagonismo entre os gover-nos progressistas em todo o mun-do: casamento entre pessoas do

mesmo sexo, despenalização do aborto e regulação da maconha. Estas são as res-ponsáveis pelas extensas matérias e suas respectivas manchetes gritantes em jornais como Th e New York Times, Th e Guardian, Le Monde, El País, Corriere della Sera, O Globo e Folha de S.Paulo. Aquele pequeno país da América do Sul estava colocan-do as manguinhas de fora mais uma vez.

Em agosto de 2013, o primeiro casa-mento entre homoafetivos foi realizado no Uruguai, utilizando o artigo primei-ro da nova lei de casamento igualitário, que diz: “O matrimônio civil é a união permanente, com arranjo legal, de duas pessoas de sexo diferente ou igual”. Além de Brasil e Argentina, poucos países no mundo possuem legislação semelhante: Suécia, Noruega, França, Espanha, Is-

lândia, Inglaterra, País de Gales, Bélgica, Luxemburgo, Holanda, Dinamarca, Por-tugal, Canadá e África do Sul. Três me-ses depois da aprovação da lei, na capital Montevidéu, que abriga metade da popu-lação do país, passaram pelo registro civil 62 casais de homens e 19 de mulheres.

No fi nal de 2012, nosso vizinho apro-vou outra lei, desta vez permitindo a inter-rupção voluntária da gravidez, cujo artigo segundo pontua: “A interrupção volun-tária não será penalizada (…) durante as primeiras 12 semanas de gravidez”. Essa lei já havia sido aprovada cinco anos atrás, mas foi vetada integralmente pelo então presidente, e médico oncologista, Tabaré Vázquez, do Frente Amplio, coalizão po-lítica de centro-esquerda. Os dados extraí-dos um ano após a promulgação da lei são de tal forma surpreendentes que ainda se estuda como trabalhar com eles. Foram realizados 5 mil procedimentos abortivos, quase todos farmacológicos, sem nenhu-ma morte reportada. Só durante a crise de 2002, por exemplo, houve uma estimativa de 33 mil abortos clandestinos. Ainda não se sabe se a notícia é boa demais, se há al-gum erro de cálculo ou se o sistema ainda não está funcionando como deveria, o que significaria que as clínicas clandestinas

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NA DIANTEIRA DE TODOS OS PAÍSES DA AMÉRICA DO SUL, O URUGUAI DISPARA NA CORRIDA DA APROVAÇÃO DE REGULAMENTAÇÕES QUE CULMINARAM EM DIVERSAS MUDANÇAS NA NAÇÃO – COMO AS REFERENTES AO CONSUMO DA MACONHA, AO CASAMENTO ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO E À DESPENALIZAÇÃO DO ABORTO –, DEIXANDO PARA TRÁS UM RASTRO DE PROFUNDAS LUTAS EM SUA HISTÓRIA

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seguem fazendo um alto número de pro-cedimentos irregulares.

Já o projeto de lei de regulação da ma-conha foi aprovado no dia 10 de dezem-bro passado e dita: “O Estado assumirá o controle e a regulação das atividades de importação, exportação, plantação, culti-vo, colheita, produção, aquisição, armaze-namento, comercialização e distribuição da cannabis e seus derivados”. Há, eviden-temente, um espaço legal de seis plantas para quem deseja cultivar a erva em casa, e também para clubes de cultivadores. O Uruguai é o primeiro país no mundo a le-galizar e praticamente estatizar a maconha e toda sua cadeia produtiva.

TRÊS HISTÓRIAS DE LUTADe acordo com a pesquisa de Felipe

Arocena e Sebastián Aguiar intitulada Abriendo camino. Tres leyes de vanguardia, de onde procedem os dados acima, há, no Uruguai, uma conjuntura econômica fa-vorável para a aprovação de leis tão subs-tanciais. Mas, acima de tudo, há um histó-rico de lutas que envolve cada uma delas.

O matrimônio igualitário: como em grande parte da América do Sul, a luta pelo direito à igualdade e ao respeito aos homossexuais data dos anos 1980. Mas é apenas em 2007 que a união concubinária entre pessoas do mesmo sexo é aprovada, assim como a adoção de crianças, mudan-ça de nomes e permissão de ingresso nas Forças Armadas. Em 2009, nas prévias eleitorais, a pauta do casamento igualitário entra em discussão e já no ano seguinte a mais importante ONG da causa, chamada Ovejas Negras, abraça a campanha. Nes-se mesmo 2010, de acordo com pesquisa da Sempol, 50,4% da população apoiava a iniciativa.

Assim, em 2011, começam os nove spots publicitários em prol da causa gay, que desencadeou o posicionamento unâni-me do Frente Amplio em torno da aprova-ção da lei e um racha impressionante na opo-sição, que trazia consigo setores da Igreja.

Em Montevidéu, no ano de 2012, du-rante a Marcha da Diversidade – equiva-lente à Marcha do Orgulho Gay – mais de 30 mil pessoas se aglomeram para pressio-

nar os legisladores. “Isso foi em setembro”, contam Arocena e Aguiar, “em outubro, foi convocada a Marcha pelos Valores, em oposição ao tema, e, ainda que pese aqui certa repercussão midiática, não conse-guiu convocar nem cem pessoas”. O co-rolário é que, em 11 de dezembro daquele ano, com 81 dos 87 votos a favor, a nova lei foi aprovada na Câmara de Deputados. Em 2 de abril do ano seguinte, com 23 dos 31 votantes, o projeto passa no Senado.

Interrupção voluntária da gravidez: este é, possivelmente, o tema mais discu-tido entre as três leis aprovadas. Desde a década de 1970, quando o Uruguai vivia sob um regime ditatorial, já começavam a militar pela causa grupos feministas como o Mujeres de Uruguay e o Cotidiano Mujer. Mas apenas em 1998 começa-se a discutir verdadeiramente o tema, que en-tra em pauta na eleição de 1999: “As pes-quisas de opinião mostravam um apoio majoritário pela despenalização do abor-to, que se mantém entre 50% e 60% entre 2000 e 2012”, escrevem Arocena e Aguiar.

Em 2002, acontece a primeira gran-de derrota. Aprovado por 47 a 40 na Câ-mara, o projeto é rechaçado no Senado. Mas, quando o Frente Amplio vence no-vamente, o sucessor de Vázquez e atual presidente, José Mujica, dá uma declara-ção comprometendo-se a não vetar a lei, caso ela passe novamente pelas instâncias democráticas. Mesmo após a aprovação, opositores seguiram na militância para derrubá-la. Foi assim que, em 2013, a opo-sição, somada a setores conservadores e apoiada pelo clero, conseguiu levar o tema até um plebiscito. À época, as pesquisas de opinião mostravam um país dividido. Mas, em um contexto de voto não obriga-tório, apenas 8% dos uruguaios saíram de casa para votar pela revogação da nova lei.

De acordo com Arocena e Aguiar, há dois argumentos centrais nesta aprovação: “Em primeiro lugar, está o direito de a mu-lher decidir sobre sua gravidez e, em se-gundo, está a necessidade de acabar com a rede de clínicas clandestinas que vendiam abortos e colocavam em risco a vida das que possuíam menos recursos para pagar procedimentos de melhor qualidade”.

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DON PEPE Y EL PEPE: A IMPORTÂNCIA DA HISTÓRIA

No começo do século 20, o Uruguai passava por um período de bonança que o aproxi-mou maravilhosamente de um estado de bem-estar social. a economia da época ia muito bem. Note a semelhança: em 1907, o Uruguai proibiu a pena de morte; em 1913, aceitou o divórcio pela vontade da mulher; em 1915, formalizou as oito horas de trabalho; e, finalmen-te, em 1927, aprovou o sufrágio feminino. Revolucionárias para a época, a aprovação dessas quatro leis tinha como protagonista o então presidente José batlle y ordóñez (1856-1929), ou Don Pepe, um sujeito de caminhar rápido e ideias explosivas, cuja proximidade com o socialismo trazia friagens às espinhas de seus correligionários, que se uniram para freá-lo.

mujica, assim como batlle, personifica uma revolução em tom legalista e melodia demo-crática. ao mesmo tempo, el Pepe recorre à história de Don Pepe para evocar as tradições vanguardistas de seu país, de seu povo e de seus legisladores. Conformando-se às neces-sidades de seu tempo, mujica construiu uma imagem carismática. afinal de contas, nem todo presidente é ex-guerrilheiro, proprietário de um fusca, morador convicto de um sítio, flo-ricultor e “mais filósofo que estadista”, como o descrevem arocena e aguiar.

ambos se valeram de um momento econô-mico favorável para botar em pauta o avanço de direitos. mesmo as críticas que ambos os Pepes receberam são parecidas. o senador alfredo solari discursou sobre a regulação da maconha, em 10 de dezembro de 2013, afir-mando que “nem este governo nem o resto do mundo deveria fazer experiências com os uru-guaios, com as crianças e adolescentes, sem garantias apropriadas”.

No começo do século 20, o senador ale-jandro gallynal atacou a nova lei laboral de ba-tlle com argumentos cuja semelhança guarda uma importância história: “Promulgar uma jor-nada de trabalho de oito horas igual para todos ‘é querer converter o país em um grande labo-ratório social, onde periodicamente, e por vias de ensaio, vão se incorporando ao corpo de suas leis disposições que nem os países mais adiantados haviam se atrevido a incorporar’”.

Regulação da maconha: já faz tem-po que fumar maconha não é delito no Uruguai, mas note aqui uma distorção flagrante, pois produção, plantio e comer-cialização, sim, eram crimes. E graves. Em 2000, o então presidente Jorge Batlle dei-xou clara sua posição a favor de “legalizar todas as drogas”, mas Tabaré Vázquez, que o sucedeu, não tinha a mesma ideia e am-plificou o combate ao comércio ilegal de entorpecentes. Só em 2010, após a conso-lidação de um movimento social específi-co para o tema é que se passa a considerar seriamente a legalização através do Debate Nacional de Drogas, com participação de diversos órgãos estatais.

Mas, antes mesmo que a discussão se prolongasse, um novo projeto entra em pauta. Ele propõe a estatização da produ-ção, distribuição e venda da maconha. A ideia foi metralhada de todos os lados por conta de sua flagrante inviabilidade técni-ca. Mas o fato é que, no começo de 2013, forma-se uma comissão parlamentar para afinar o texto e torná-lo factível. “Paralela-mente, um grupo de organizações sociais conformam uma plataforma de campa-nha para operar no desfavorável terreno da opinião pública, com apoio econômico internacional. Neste marco, se agregarmos as numerosas repercussões internacionais, a tônica do primeiro semestre de 2013 de-riva em um concerto polifônico de grande incerteza, contradições e lacunas. No fim do mês de julho, o projeto de lei é aprova-do pelos deputados, com 45 votos oficialis-tas e o apoio de legisladores da oposição a alguns artigos, e em 11 de dezembro, por 16 votos a 13, é sancionado no Senado”, re-gistram Arocena e Aguiar.

Para eles, o governo apostou alto com uma regulação profundamente estatizan-te, mesmo sabendo que as consequências podem ser devastadoras, “neste caso, o governo assegurou que voltaria atrás. Mas pode ser também que o narcotráfico acuse o golpe e então será o momento de pensar na expansão desta lei”.

Guillermo Garat, autor do livro Ma-rihuana y otras yerbas – Prohibición, re-gulación y uso de drogas en Uruguay, viu com bons olhos a dedicação dos gover-

nantes. “É um processo que ainda tem muito para melhorar, mas jamais o debate em torno de uma lei foi tão grande e in-clusivo, jamais teve tamanha participação dos órgãos democráticos.”

Apesar de boa, a tentativa de regu-lação, na opinião de Garat, fracassará: “É o mais provável e, então será preciso ajustar a lei. A princípio, temos que ver como funcionam os clubes de cultiva-dores e as farmácias para então ter mais claro o quê ajustar”. Para ele, o consumo

de drogas está diretamente relaciona-do à pobreza, o que significa que medi-das de distribuição de renda são mais efetivas no combate ao narcotráfico. “A pasta base, por exemplo, é bastante con-sumida na periferia montevideana. Há diferentes drogas para diferentes regiões do país e da capital”, discorre o autor.

Mas a mudança de posicionamento do governo e a mera tentativa de legislar so-bre o que até então era um terreno ilegal, começa a dar resultado entre a opinião

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pública: “Antes, cerca de 65% da popula-ção se dizia contra a regulação do mercado de maconha; agora, 51% já estão dispostos a esperar e ver que frutos dará a nova lei. Essa é uma mudança das mais importantes”.

UM MUNDO A AVANÇAR“As novas leis são um grande avanço,

mas elas também têm aspectos conser-vadores, elas exacerbam os fortes traços conservadores da nossa sociedade”, opina Martín Collazo, 27 anos, membro do gru-po Pro-derechos, que esteve no fronte pela aprovação das leis principais mencionadas nesta reportagem. Não é apenas a visão de um estado extremamente paternalista que é sintomática. A burocracia que envolve a aplicação das novas regulamentações tam-bém evidencia o quão desgastante foram as negociações nos campos social e político.

“Há muita coisa para mudar. Na lei do aborto, por exemplo, assim que a mulher dá entrada no processo hospitalar, ela precisa esperar cinco dias até ver o mé-dico, é um tempo para pensar, e só então tem uma entrevista com psicólogos, assis-tentes sociais, uma equipe ampla. É bom que haja essa equipe multidisciplinar, é bom que haja um amparo para um mo-mento difícil como este, o ruim é obrigar as mulheres a passar por ela. Não deveria ser uma obrigação.”

Na lei que regulamenta a maconha, há ainda muitos pontos a repensar, “somente o Pro-derechos listou mais de 20”, conta Martín. O mais problemático é o tópico do registro. O governo uruguaio exige que todos os consumidores e cultivado-res estejam registrados, ou seja, fichados em uma lista que, ao menos teoricamente, é confidencial. Pesa que hoje o governo uruguaio é progressista, mas ninguém sabe como será amanhã.

Por outro lado, no Uruguai, se vivem ideias e ideais diferentes, por vezes diver-gentes, e os avanços sociais são fruto de uma negociação entre os diversos setores da sociedade, cada qual com seus sonhos e preconceitos. “Houve muitas outras leis e avanços no Uruguai, mas essas três leis, especificamente, foram debatidas publica-mente, seja nas sessões da Câmara, seja na rua, nas manifestações pró e contra”, explica Martín.

Há um motivo central para tanto: as mudanças no Uruguai não se dão apenas no plano da distribuição material das ri-quezas, mas também da transformação cultural. Para ele, as transformações da úl-tima década, acentuadas no governo Mu-jica, se intensificarão ainda mais, “e farão com que a próxima geração de uruguaios seja muito mais tolerante. As crianças vão crescer vendo dois homens ou duas mulheres com as mãos dadas, trocando carinhos. Os pais conversarão mais so-bre maconha, e tomara que sobre álcool também. Mulheres não precisarão mais abortar no banheiro. Além dos mais, mui-tas crianças crescerão indo à Marcha da Diversidade como eu cresci indo à Marcha do Silêncio, contra os crimes da ditadura. Eles vão entender coisas que ainda custam muito para a minha geração entender”. c

LEI DE SERVIÇOS DE COMUNICAÇÃO AUDIOVISUALUma quarta lei ainda pode ser incluída nesta breve revolução celeste antes do fim do

ano: a lsCa, ou simplesmente lei dos meios. Inspirada no modelo argentino, a nova legis-lação busca conter e desatar os monopólios da mídia, decretando este como um setor de interesse público. Dessa maneira, ele poderá ser regulamentado pelo executivo. a medida, encaminhada diretamente pelo presidente mujica, já foi aprovada na Câmara e está em negociação entre os senadores.

o texto que defende a lei classifica os serviços de Comunicação audiovisual como “econômicos, culturais e estratégicos para o desenvolvimento nacional”, e assegura que a regulamentação busca “construir um sistema audiovisual harmonioso com uma competição equilibrada e justa entre os operadores”. a princípio, o presidente mujica acelerou a entrada do tema nos tópicos em debate, a fim de aprovar a nova lei antes da eleição. mas as nego-ciações no senado estão difíceis, o que levou o senador artiguista enrique Rubio, falando em nome da bancada do frente amplio, a anunciar, em 14 de julho, a postergação das tra-tativas para depois do pleito presidencial. De acordo com o anúncio, havia oito votos a favor e sete contra, o que significa que o governo ainda terá muito para barganhar.  

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