as tradiÇÕes que narram o passado · mazagão velho é um povoado localizado no sul do estado do...

15
AS TRADIÇÕES QUE NARRAM O PASSADO: trajetória, resistências, memórias e narrativas KARINA NYMARA BRITO RIBEIRO * RESUMO No Amapá, a maioria dos lugares que deram existência as vilas coloniais no passado são hoje habitadas por populações negras. Nos seus arredores se irradiaram diversas comunidades quilombolas. Desses processos históricos pouco se sabe, pois os documentos escritos que foram produzidos pelos europeus não tiveram o interesse de registrar o que veio depois da Vila Colonial. Um exemplo disso é a pequena comunidade de Mazagão Velho, habitada por uma população negra. Esse povoado é bem mais lembrado por ter sido uma Vila colonizada por portugueses, fundada no século XVIII. Acrescenta-se a isto o fato histórico de que representantes da Coroa portuguesa que habitavam essa vila foram deslocados da Fortaleza Militar de Mazagão, localizada no Marrocos. Vários autores buscaram entender como se deu tal façanha, considerada por esses estudiosos como um acontecimento “épico”. Hoje a população negra que vive nesse lugar, chamado de Mazagão Velho, realiza um grande número de festas devocionais, parte delas são lembradas pelos velhos(BOSI, 1994) como tradições antigas que acompanharam a trajetória da própria comunidade negra que se formou ao longo do século. O objetivo da pesquisa é perceber de que forma as tradições culturais narram a permanência, os deslocamentos e a resistência cultural do negro nesse território, bem como entender como os moradores desse lugar vem construindo por meio dessas festas suas identidades culturais. Palavras-chaves: festas tradicionais, Memórias, Mazagão Velho, Amapá. * Centro de Estudos e Pesquisas Arqueológicas do Amapá - CEPAP/UNIFAP, Mestre em Preservação do Patrimônio Cultural.

Upload: vandang

Post on 09-Dec-2018

222 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: AS TRADIÇÕES QUE NARRAM O PASSADO · Mazagão Velho é um povoado localizado no sul do Estado do Amapá e possui uma população de 7.598 habitantes (IBGE, 2010). Os moradores desse

AS TRADIÇÕES QUE NARRAM O PASSADO: trajetória, resistências, memórias e

narrativas

KARINA NYMARA BRITO RIBEIRO*

RESUMO

No Amapá, a maioria dos lugares que deram existência as vilas coloniais no passado são hoje

habitadas por populações negras. Nos seus arredores se irradiaram diversas comunidades

quilombolas. Desses processos históricos pouco se sabe, pois os documentos escritos que

foram produzidos pelos europeus não tiveram o interesse de registrar o que veio depois da

Vila Colonial. Um exemplo disso é a pequena comunidade de Mazagão Velho, habitada por

uma população negra. Esse povoado é bem mais lembrado por ter sido uma Vila colonizada

por portugueses, fundada no século XVIII. Acrescenta-se a isto o fato histórico de que

representantes da Coroa portuguesa que habitavam essa vila foram deslocados da Fortaleza

Militar de Mazagão, localizada no Marrocos. Vários autores buscaram entender como se deu

tal façanha, considerada por esses estudiosos como um acontecimento “épico”. Hoje a

população negra que vive nesse lugar, chamado de Mazagão Velho, realiza um grande

número de festas devocionais, parte delas são lembradas pelos “velhos” (BOSI, 1994) como

tradições antigas que acompanharam a trajetória da própria comunidade negra que se formou

ao longo do século. O objetivo da pesquisa é perceber de que forma as tradições culturais

narram a permanência, os deslocamentos e a resistência cultural do negro nesse território, bem

como entender como os moradores desse lugar vem construindo por meio dessas festas suas

identidades culturais.

Palavras-chaves: festas tradicionais, Memórias, Mazagão Velho, Amapá.

* Centro de Estudos e Pesquisas Arqueológicas do Amapá - CEPAP/UNIFAP, Mestre em Preservação do

Patrimônio Cultural.

Page 2: AS TRADIÇÕES QUE NARRAM O PASSADO · Mazagão Velho é um povoado localizado no sul do Estado do Amapá e possui uma população de 7.598 habitantes (IBGE, 2010). Os moradores desse

2

1. INTRODUÇÃO

Mazagão Velho é um povoado localizado no sul do Estado do Amapá e possui uma

população de 7.598 habitantes (IBGE, 2010). Os moradores desse lugar são chamados de

mazaganenses, anualmente, realizam um grande número de festejos religiosos dedicados aos

santos, expressões do catolicismo popular bastante comum no Brasil. Entre os festejos estão:

a Festa de Nossa Senhora da Piedade, Festa do Divino Espirito Santo, Festa de São Gonçalo,

Festa de Nossa Senhora da Luz, Festa de São Tiago e Festa de Nossa Senhora da Assunção.

Em todos é possível visualizar a presença do Mastro1, é exceto, nas duas últimas festividades

citadas. Essas duas manifestações são reconhecidas por seus fazedores como heranças da

cultura portuguesa, já as demais são reconhecidas como heranças da cultura negra. Embora,

visivelmente possamos identificar elementos da cultura indígena, na ritualística do festejo, nas

expressões linguísticas e nos alimentos tradicionalmente servidos durante os festejos.

Esse reconhecimento, com cultura negra e cultura portuguesa, é construído pelos

habitantes desse lugar, a partir da história do deslocamento dos colonos marroquinos para o

Brasil na época colonial. Esses colonos transferidos de uma colônia portuguesa no Marrocos

tiveram a missão de habitar a Vila Nova de Mazagão. Desde a fundação em 1770, essa Vila

passou por diversas transformações sociais, políticas e econômicas. Nisso foi abandonada por

grande parte dos colonos marroquinos e passou a ser habitada por uma população negra e

mestiça que se faz presente até hoje.

Embora a presença do negro africano seja marcante em Mazagão Velho, antigo lugar da

Vila Colonial, as principais bibliografias a respeito da história do lugar, se debruçaram bem

mais sobre a trajetória dos representantes da Coroa Portuguesa que atravessaram o Oceano

Atlântico e fundaram a Vila Colonial na Amazônia. Assim, as pesquisas do historiador

Laurent Vidal (2008) e da arquiteta Renata Araújo (1999), não tiveram como objetivo abordar

de forma densa e profunda a trajetória do negro que passou a habitar a vila depois de sua

decadência. Assim, Mazagão Velho mesmo sendo um lugar habitado por negros, não é

possível encontrar pesquisas extensas e profundas sobre a trajetória do negro africano e de

seus descendentes.

Ao estudar Mazagão Velho, a antropóloga Véronique Boyer (BOYER, 2008: 21) faz

uma afirmativa, no mínimo, intrigante a respeito da figura do negro, no qual afirma que: essa

“permanece secundária, particularizada para não dizer marginal, numa sociedade cujo

1 Espécie de tronco de árvore, a Jacareúba, ornamentado com as cores do santo. Simboliza o início e o fim do

festejo.

Page 3: AS TRADIÇÕES QUE NARRAM O PASSADO · Mazagão Velho é um povoado localizado no sul do Estado do Amapá e possui uma população de 7.598 habitantes (IBGE, 2010). Os moradores desse

3

referencial principal continua sendo a figura do branco português.”. Com isso, podemos

supor que a história do negro é tida como secundária enquanto a história do “branco”

colonizador é a protagonista.

Neste artigo, busco pôr em evidência as memórias dos batuqueiros que há quase 100

anos realizam a Festa de Nossa Senhora da Piedade, atrelada a uma narrativa mística de um

ser encantado que trabalha “nas Cordas dos pajés e nas Linhas da Umbanda”. Os batuqueiros

são os responsáveis por recriar as memórias da escravidão, da permanência, do deslocamento

e da resistência cultural do negro africano e seus descendentes, através das narrativas sobre a

Festa. Assim, a tradição do festejar é percebida como evento dentro de uma linearidade

temporal que vem desde os fundadores até seus descendentes.

Para alcançarmos nosso objetivo apresentaremos dados etnográficos de pesquisa de

campo e trechos de entrevistas realizadas com os batuqueiros. Parte da pesquisa que

fundamenta o artigo foi realizada durante a elaboração da dissertação2 de mestrado da autora,

entre 2013 e 2015. Já a outra parte surgiu entre os anos de 2016 e 2017 durante a execução do

projeto de pesquisa3 “Memórias festivas e identidades culturais: Mapeando e Inventariando as

memórias das festas tradicionais do Amapá”, coordenado pela autora no Centro de Estudos e

Pesquisas Arqueológicas do Amapá – CEPAP/UNIFAP.

As entrevistas apresentadas aqui foram realizadas com os idosos da comunidade. Essas

tiveram como método da história oral a modalidade história de vida e a modalidade história

temática (festas tradicionais). A pesquisa também consultou um acervo de entrevistas em

audiovisual, produzido pela Superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional no Amapá (IPHAN/AP).

2. FRAGMENTOS DO PASSADO

O nome “Mazagão” de origem bebere surgiu no Marrocos. Lá o Império Português

construiu a Fortaleza Militar de Mazagão. O Forte encravado em solo marroquino era

povoado por colonos que tinham o cotidiano marcado por conflitos militares. O último

ocorreu em 1769, quando as tropas militares do imperador Mulá Mohamed cercou as

muralhas do forte português. Perante isso, a Coroa Portuguesa ordenou que a cidade fosse

transferida para o Brasil. A população serviria ao interesse da Coroa, qual seja, a de torná-la

colonos agrícolas na Vila Nova de Mazagão e desta forma os integraria ao sistema defensivo

2 Pesquisa financiada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional dentro do Mestrado

Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural do IPHAN (PEP/MP/IPHAN) 3 O projeto visa documentar, investigar e valorizar as memórias e os patrimônios festivos de comunidades

tradicionais amapaense.

Page 4: AS TRADIÇÕES QUE NARRAM O PASSADO · Mazagão Velho é um povoado localizado no sul do Estado do Amapá e possui uma população de 7.598 habitantes (IBGE, 2010). Os moradores desse

4

do Canal Norte do Rio Amazonas, junto com outras duas Vilas Coloniais – Macapá e Vistoza

da Madre de Deus (VIDAL, 2008).

Ao abandonar a fortaleza de Mazagão, os colonos deixaram seus mortos e levaram

consigo parte dos bens materiais que compunha o patrimônio da praça-forte. O trajeto que

foram obrigados a realizar, foi: Lisboa por seis meses, Belém por anos, e Vila Nova de

Mazagão. Durante o percurso, aqueles que tinham melhores condições econômicas

permaneceram em Lisboa ou Belém. Enquanto, os demais foram obrigados a habitar a Vila

Nova de Mazagão, erguida nas margens do rio Mutuacá e cercada pela floresta úmida e

abundante da Amazônia. Os negros trazidos da África como mercadoria foram incluídos na

viagem dos marroquinos, em Belém do Pará, antes da última excursão que os levaria ao seu

destino final, a Mazagão amazônica (ARAÚJO, 1998; VIDAL, 2008).

Em solo brasileiro, a Nova Mazagão era povoada por africanos, ameríndios e lusitanos,

mas apenas os últimos gozavam de cidadania portuguesa. Apesar disso, o saber do indígena

contribuiu para que a nova população aprendesse a sobreviver na Amazônia. Entretanto, entre

o final do século XVIII e início do século XIX, a degradação econômica, social e política

propiciou a proliferação de doenças epidêmicas na vila, essa situação ocasionou a evasão de

grande parte das famílias de colonos. Com isso, a vila se reduziu as poucas famílias que,

provavelmente, eram em sua maioria de negros africanos ou descendentes desses (VIDAL,

2008).

É provável que nesse contexto de abandono de grande parte das famílias de colonos e de

permanência da maioria dos africanos negros e seus descendentes, a memória da travessia do

Oceano atlântico tenha sido recriada e ressignificada entre as gerações daqueles que

permaneceram. Nesse processo de recriação, uniram a trajetória do negro africano e do colono

marroquino, como mostra o trecho do Ladrão de Marabaixo4 chamado Marrocos de autoria de

Josué Videira e Manoel Duarte.

Viemos lá de Marrocos

Para uma vila habitar,

Revivendo nossa história

Num cantinho do Amapá.

(Refrão: bis)

Sopram os ventos africanos

Navios seguem para outro lado

Em seus porões desumanos

Vem os nossos antepassados. Saímos de Portugal

com Destino a Belém

4 O Marabaixo é uma manifestação cultural negra, uma forma pelo qual os devotos louvam suas divindades

católicas em comunidades habitadas por populações negras, urbanas e rurais, no Amapá. Esta manifestação

encontra-se em processo de patrimonialização pelo Iphan.

Page 5: AS TRADIÇÕES QUE NARRAM O PASSADO · Mazagão Velho é um povoado localizado no sul do Estado do Amapá e possui uma população de 7.598 habitantes (IBGE, 2010). Os moradores desse

5

Deixamos nossas famílias

e nossos amigos também. Sofrendo todo tipo de maus-tratos

E todo tipo de agravo

Desembarca em Mazagão

Com a condição de Escravo.

Desse modo, da representação de que africanos e portugueses vieram do Marrocos e

atravessaram juntos o Oceano Atlântico, os atuais mazaganenses estruturam suas identidades

negra e portuguesa. Reconhecem esse negro e esse português como seus ancestrais que

vieram carregando na bagagem a “cultura africana” e a “cultura portuguesa” que doou som,

cor, ritmo e matéria à cultura mazaganense. Assim ao perguntar a dona Josefá Laú a respeito

da origem das festas antigas realizadas no povoado, ela respondeu que: “Essas festas, vieram

tudo de um lugar chamado Marrocas5” [sic]. Seu Jorge também concorda com dona Josefá,

vejamos:

Isso tudo foi esse pessoal que vieram pra cá, trazendo na bagagem deles, todo esse

movimento, essas coisas que acontece por aqui. Veio de lá do Mazagão do

Marrocos. Chegaram aqui no decorrer do tempo foram apresentando essas coisas

como festa de Nossa Senhora da Piedade, semana santa. A festa de São Tiago,

chegaram aqui em 1770, mas só foram apresentar a festa de são Tiago em 1777.

(...) E as outras festas foi a mesma coisa, aqui e acolá, eles iam apresentando uma.

A festa da Nossa Senhora da Piedade é com dois tambores. A festa de São Tiago

que é com uma caixa. A festa de São Gonçalo é com uma campainha e violão. Já a

Festa de Nossa Senhora da Luz é com um tambor. E assim, vai variando, eles

trouxeram tudo isso e a gente está preservando até hoje. (Informação oral)6

Deste modo, os atuais mazaganenses se reconhecem como herdeiros da cultura negra e

cultura portuguesa, com isso eles vem construindo uma “cultura hibrida” (BOYER, 2008) que

é expressa nos festejos tidos como antigas heranças culturais. A Festa da Piedade é um desses

festejos, ela é considerada uma herança da cultura negra que veio do Marrocos. Como iremos

ver, a origem desse festejo é associado a um ser encantado.

3. O ORIXÁ NEGRO E O KARUÂNA INDÍGENA

As representações ritualísticas e performances da Festa da Piedade estão atreladas a

narrativa mítica de uma menina branca, nascida de um casal de negros, que ao tornar-se

encantada ensinou seu povo negro a realizar a Festa da Piedade. Isso teria, acontecido no

continente africano, com os ancestrais dos negros africanos que chegaram em Mazagão na

companhia dos colonos Marroquinos.

5 Informação coletada na ocasião da pesquisa de campo realizada com os idosos do povoado de Mazagão em

2013. 6 Informação consultada no acervo da Superintendência do Iphan no Amapá, pesquisa realizada em 2013.

Page 6: AS TRADIÇÕES QUE NARRAM O PASSADO · Mazagão Velho é um povoado localizado no sul do Estado do Amapá e possui uma população de 7.598 habitantes (IBGE, 2010). Os moradores desse

6

Na pesquisa de campo, no período de realização do festejo da Piedade, alguns foliões

escutavam nas margens do Rio Mutuacá um som festivo semelhante com o Batuque da

Piedade. Segundo eles, esse som que sempre escutam nessa época vem do fundo do rio, quem

canta e toca são os encantados, seres da natureza que vivem no fundo do rio Mutuacá.

Conforme Raymundo Heraldo Maués:

Os encantados, ao contrário dos santos, são seres humanos que não morreram, mas

se “encantaram”. Essa crença tem certamente origem européia, estando ligada às

concepções de príncipes ou princesas encantadas que ainda sobrevivem nas

histórias infantis de todo o mundo ocidental. Mas foi influenciada por concepções

de origem indígena, de lugares situados “no fundo”, ou abaixo da superfície

terrestre, e provavelmente também por concepções de entidades de origem africana,

como os orixás, seres que não se confundem com os espíritos dos mortos. Dois

exemplos de encantados muito populares na Amazônia servirão para ilustrar essas

crenças: Cobra Norato, popularizado nos meios intelectuais de todo o Brasil graças

ao poema famoso do gaúcho Raul Bopp, e o rei Sebastião, um encantado que habita

em várias praias de ilhas existentes ao longo do litoral entre Belém e São Luís, e

que é entidade comum aos cultos de pajelança e de origem africana tanto no Pará

como no Maranhão (MAUÉS, 2005: 262)

O episódio do ser encantado que marca a origem da Festa da Piedade é contado com

detalhes por Dona Josefa Pereira Laú (93 anos), moradora de Mazagão Velho.

Essa menina nasceu branca (bis), com olhos azuis, cabelo parece um cabelo de

milho, aí eles tudo ficaram abismado com aquilo. E aí mais quem ia ver essa

menina que nasceu de um casal preto. Eles carentes, os pais. Aí um casal de reis

foram vê a menina, chegando lá, ele achou a menina muito bonita, pediu pra ser

afilhada dele, e que ele iria tomar conta dela, que ela iria estudar e tudo. Aí iam

tomar conta dela. E assim, foi o rei ficou sendo padrinho da menina. De vez em

quando ele ia lá dava tudo por ela. Mas ela nasceu com nome na testa de sereia,

mas ela era Iemanjá, ela ia ser do mar. Quando ela estava pra completar 15 anos,

ele foi lá pra fazer [festa de aniversário] os quinze anos dela. Compadre [A mãe da

menina disse], ela queria mais que o senhor desse pra ela um luando, pra ela no

lugar dos quinze ano. [A menina fala ao padrinho]. Porque eu quero ver o mar, o

atlântico. Então ele mandou fazer um barco, que hoje chamamos de barco, nós

modificamos tudo. O barco era luando, aí ele mandou fazer aquele barco bonito.

Quando foi no dia dos quinze anos dela. O barco estava n’agua com tripulante que

era irmãos, os primos dela. Embarcaram com ela e voltaram, o mar estava bom,

estava calmo. Aí eles começaram a fazer aquela meia-lua que se faz agora, iam lá e

voltavam. Não demorou e deu trebanzeiro de mar, o primeiro o luando resistiu, o

segundo também no terceiro ele emborcou. Só viram aquele bicho que boiou do

fundo, pegou ela e voltou pro fundo. Eles ficaram ali esperando que ela boiasse.

Esperaram, esperaram e resolveram ir pra casa. Chegando lá eles disseram, fomos

passear com a sereia, bicho do fundo levou, corre sangue nas veias, em nosso

coração, deixou dor. Aí foi tudo chorando e a mãe dela chorava e se pegava com a

Nossa Senhora do céu que tivesse piedade dela, amostrasse a filha dela viva ou

morta, aí era aquele clamor. Eles iam lá todo dia, que fizesse sol e noite eles iam

nesse lugar. Quando fez um mês que eles iam lá neste lugar, ela boiou e subiu em

cima de uma praia de areia, pra baixo era um peixe já com escamas prata e pra

cima a mesma moça que ela era, o cabelo dela que cobria o seio dela. Quando

viram reconheceram, aí vieram. Ela disse não venham mais que não sou mais do

meio de vocês, não abraçam comigo, não sou do meio de vocês vou cumprir a

minha missão, eu trabalho no fundo com os botos, os bichos do fundo. Ela disse a

eles que quando completasse um mês depois deles estarem ali com ela, era pra

trazer todo o pessoal dela. Quando completou um mês ela subiu na praia de areia,

Page 7: AS TRADIÇÕES QUE NARRAM O PASSADO · Mazagão Velho é um povoado localizado no sul do Estado do Amapá e possui uma população de 7.598 habitantes (IBGE, 2010). Os moradores desse

7

pra baixo peixe pra cima era ela, a sereia, aí ela levou o nome de Iemanjá, por que

ela trabalha nas linhas de Umbanda. Ela é encantada. (...) Olha minha sina é essa,

nasci pra ser Iemanjá das cordas de pajé, então não me abrace, mas eu vou ajudar

vocês, eu sou de vocês. (Informação oral)7.

No relato de Dona Josefa sobre a origem da festa da Piedade é visível a presença

africana e indígena na narrativa. E tanto a narrativa do mito quanto o ritual festivo

assemelham-se ao Turé, uma festa realizada entre as famílias Karipunas, tratada por Antonella

Tassinari (2003). O Turé estar associado a pajelança, quem participa são aqueles que

acreditam no poder do pajé ao qual o Turé pertence. O Turé é considerado um momento para

dançar, beber e cantar com os seres sobrenaturais chamados de Karuãna. Na festa da Piedade

a menina que foi levada para o “fundo” ajudou o seu povo a fazer a festa, no caso do Turé

indígena o início para a preparação da festa acontece quando o Pajé em sonho visita o “fundo”

onde encontra com seus Karuãnas que também são chamados de “bicho”. Após voltar dessa

viagem o Pajé realiza seu Turé igual ao que participou no “fundo”.

A mesma narrativa também explica a origem dos objetos da festa, a Menina que virou

sereia teria ajudado seu povo negro africano a criar uma série de objetos, rezas e uma santa

para que eles pudessem acalantar suas dores festejando essa santa. O trecho abaixo apresenta

a explicação de Dona Josefa sobre a origem da materialidade da festa da Piedade.

Vocês pegam argila aquele barro liguento, (..) que dá o nome de argila. Peguem a

argila, façam uma santa com o filho dela deitado no colo morto e vão festejar essa

santa. Eu vou ajudar vocês a fazerem essa festa. No dia 02 (dois) de julho, eu quero

que essa santa já esteja pronta para vocês fazerem a festa. No dia que ela marcava

eles iam lá. Ela ensinava como era pra fazer o tambor, a taboca da roça para fazer

o xeque-xeque, ensinava tudo como era, limpar bem colocar o milho dentro pra

fazer o barulho. O gomo do bambu feito aqueles dentinhos e uma vareta tipo uma

faca de pau, aí eles passam ali. Tem o tambor, a taboca e esse rape-rape. São os

instrumentos que têm. A bebida é a gengibre ralada colocada na difusão do caldo

da cana, e espere por um mês. Perto da festa vocês espremem, bem exprimido, é

essa a bebida. Naquele tempo não tinha açúcar, não tinha nada (Informação oral)8.

A relação com encantados, seres sobrenaturais e a criação dos objetos se conectam a

natureza que também pode ser vista como a precursora da vida humana, onde tudo começou.

A santa, o tambor, a taboca e o reco-reco foram criações produzidas com a ajuda de um ser

encantado que apontou a madeira e a argila, dois elementos que viria a selar o pacto entre a

menina encantada e o seu povo negro africano que de acordo com a memória coletiva dos

mazaganenses hoje seus descendentes realizam a Festa da Piedade e durante as procissões

cantam e tocam o seguinte refrão de uma conhecida folia da festa.

“Fui passear com a Sereia

7 Informação coletada na ocasião da pesquisa de campo realizada com os idosos do povoado de Mazagão Velho

em 2013. 8 Informação coletada na ocasião da pesquisa de campo realizada com os idosos do povoado de Mazagão Velho

em abril de 2014

Page 8: AS TRADIÇÕES QUE NARRAM O PASSADO · Mazagão Velho é um povoado localizado no sul do Estado do Amapá e possui uma população de 7.598 habitantes (IBGE, 2010). Os moradores desse

8

Bicho do fundo levou

Corre sangue pelas veias

No meu coração deixou dor”.

Nesse sentido, essa folia retoma a narrativa da menina sereia que explica a origem da

festa da Piedade. O passeio com a sereia no continente africano, tornou-se o passeio com a

Nossa Senhora da Piedade, onde a representação desta santa associa-se a entidade de matriz

afro-religiosa chamada de Iemanjá.

4. O BATUQUE DA PIEDADE

O silêncio do povoado é rompido pelo som agudo dos rojões que se arrebentam na

escuridão do céu e ilumina os rostos daqueles que debaixo os observam. O ato anuncia que

mais um festejo se inicia em Mazagão Velho, a Festa de Nossa Senhora da Piedade é

considerada por seus fazedores como expressão da cultura negra. Esse festejo acontece

anualmente, entre 02 a 12 de julho. A programação inclui o batuque, dança, canto, alvoradas,

novenas, ladainhas, folias religiosas, procissões, arrecadação e distribuição das imagens de

Nossa Senhora da Piedade, meia-lua, leilão, baile dançante, levantamento e derrubada do

Mastro.

A festa da Piedade é organizada por homens e mulheres que pertencem às várias

famílias mazaganenses. Mas quem realiza o ritual festivo é o grupo de foliões composto por

homens de todas as idades, a maioria mantém relação de parentesco. A participação feminina

nesse grupo não é permitida. Segundo os foliões mais antigos, isso é justificado pelo

fundamento do festejo que é a adoração dos 12 apóstolos por Maria Santíssima, mãe de Jesus.

Como os foliões representam os apóstolos, e, entre eles não tinha mulher, a participação delas

não pode ser aceita.

Durante a festa, os foliões da Piedade saem em procissão pelas ruas de Mazagão Velho,

com as vestimentas nas cores azul e branca, tocam os dois Tambores com leveza e remexem

as várias Tabocas que emitem som de chuva no telhado de Brasilit. Seguindo o ritmo o

mestre-sala entoa o seguinte verso: “Virgem da Piedade; Diz que vai embora”. A cada verso

entoado pelo Mestre-sala, os demais foliões respondem com o seguinte refrão: “Andou,

andou, andou; Ô Maria do céu, andou”. Essa folia religiosa é cantada durante a procissão que

segue sempre uma mesma organização. A bandeira da santa no início e no final a imagem da

santa escoltada por dois foliões. Ao centro da procissão ficam os devotos e os demais foliões

da Piedade.

Page 9: AS TRADIÇÕES QUE NARRAM O PASSADO · Mazagão Velho é um povoado localizado no sul do Estado do Amapá e possui uma população de 7.598 habitantes (IBGE, 2010). Os moradores desse

9

A fotografia a seguir apresenta o grupo de foliões da Piedade em um dos vários

momentos do festejo. Todos os anos os foliões e os pagadores de promessas, pousam em

frente ao principal templo Católico, a Igreja de Nossa Senhora da Assunção. Esse momento,

ocorre na chegada da Santa em Mazagão Velho, depois de ter participado da procissão fluvial.

Imagem 1: A Festa da Piedade, chegada da santa, 1999

Fonte: Museu da Imagem e do Som – MIS/AP.

Na fotografia, homens e objetos são responsáveis pelo festejo. O tambor que aparece no

canto esquerdo da imagem nos lembra da presença do Batuque, o principal elemento que

caracteriza o festejo como sendo de matriz negra. O Batuque em Mazagão Velho também é

chamado de mão-de-samba. Ele ocorre em vários momentos do festejo, na alvorada, antes da

novena, na entrega, na busca da santa e no fim do festejo, quando é acompanhado pela

Gengibirra9. Mas também extrapola o tempo e o espaço da festa. O grupo de foliões da

Piedade também fazem apresentações em eventos regionais e nacionais.

Conforme Salles e Isdebski (1969) a origem do batuque é africana e, possivelmente,

deve ter sido o grande gerador das imensas variedades de danças do caboclo amazônico como

o Carimbó10 do Pará, o Marabaixo de Macapá e o Batuque da Piedade de Mazagão Velho.

Quando tivemos contato com os Marabaixeiros e Batuqueiros do Amapá, observamos que

eles se referem a Mazagão Velho como o “Berço da cultura negra no Amapá”. Justificam

isso, descrevendo que esse lugar foi a “porta de entrada da cultura negra”, porque os

9 Uma bebida típica das festas negras em Mazagão Velho. A base é composta por o gengibre, cachaça e abacaxi. 10 O Carimbó é uma manifestação cultural típica do Estado do Pará. Recebeu o título de Patrimônio Cultural

Brasileiro, concedido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Page 10: AS TRADIÇÕES QUE NARRAM O PASSADO · Mazagão Velho é um povoado localizado no sul do Estado do Amapá e possui uma população de 7.598 habitantes (IBGE, 2010). Os moradores desse

10

primeiros negros africanos que chegaram ao Amapá estavam na companhia dos colonos

marroquinos. Nessa versão da origem do Batuque e do Marabaixo, os seus atuais fazedores

afirmam que essas manifestações foram criadas por esses negros em Mazagão. Tanto o

Marabaixo quanto o Batuque são formas pelos quais os devotos louvam suas divindades

católicas em comunidades negras, urbanas e rurais, no Amapá.

Observamos que nas comunidades rurais que realizam as duas manifestação, o

Marabaixo e o Batuque estão associados a história dos negros e com isso a história da

escravidão. A exemplo, na comunidade quilombola do Curiaú os idosos contam que a dança

do Marabaixo representa o momento de sofrimento da escravidão vivida, já a dança do

Batuque representa a liberdade do negro que por muito tempo foi mantido em cativeiro. Por

isso, a dança do Marabaixo é dançada com a cabeça baixa e passos curtos, já a dança do

Batuque é dançada com movimentos mais livres. Em Mazagão Velho, como iremos ver mais

adiante, as narrativas são outras, mas fazem indiretamente relação ao negro mantido em

cativeiro e ao negro liberto.

3. AS MEMÓRIAS DOS BATUQUEIROS

“Esse Mazagão Velho vem de lá, daquele Marrocos dalí. Vocês sabem? Veio essa

família pra cá. Morreu um bocado com uma doença que deu aqui. Mas ficou um

resto deles que eu digo que começa de mim com a minha mãe. Que vem nesse

embolado pra cá também. Não tinha Mazagão Velho. Mas esses que vieram de lá,

abriram essa cidade (...). Não fomos nós que abrimos, foi um pessoal que vieram

daí de fora, da África. (Informação oral)11

Entre tantas histórias e memórias que habitam o imaginário dos mazaganenses, o

deslocamento daqueles colonos é o principal marco temporal que fundamenta os processos

identitários dos moradores. Nas conversas informais realizadas com os idosos daquele lugar,

percebemos que ao recordarem dos festejos mais antigos lembravam também dos seus

familiares, como pais e avós, que dedicaram suas vidas na organização dos festejos.

Manoel Reis é um idoso de mais de 80 anos, reconhece seu pai e seu avô como figuras

que tinham um conhecimento da história de Mazagão. As lembranças que hoje estão

acessíveis na memória desse homem, foram compartilhadas no contato que ele teve com seus

familiares. Ecléa Bosi (1994) define isso como a “função social da memória” ao qual

lembranças de um indivíduo passam a fazer parte da memória de outro indivíduo devido as

relações sociais que há entre eles. No caso de Manoel essas relações ocorreram no âmbito

11 Informação oral consultada no acervo da Superintendência do Iphan no Amapá, entrevista com Odacina, 2013.

Page 11: AS TRADIÇÕES QUE NARRAM O PASSADO · Mazagão Velho é um povoado localizado no sul do Estado do Amapá e possui uma população de 7.598 habitantes (IBGE, 2010). Os moradores desse

11

familiar, cujo pai compartilhava histórias e memórias. Ao perguntar sobre o surgimento da

festa de Nossa Senhora da Piedade, ele nos narra que:

Essa festa foi do tempo das primeiras pessoas que vieram pra cá. Daqui os escravos

padeciam muito e um bocado deles fugiram daqui, uns foram pro Carvão, no rio

Mutuacá ali, outros pro Maracá, nessa mata aí saíram adoidado, aí vararam lá. Lá

têm um igarapé, uma parada que se chama Queimada. Lá eles fizeram uma roça, lá

queimaram, e ficou batizado o lugar de Queimada. Os primeiros escravos que

vieram pra cá [Mazagão Velho] apanhavam muito, morriam, matavam e um bocado

fugiram, foram pra lá. E tinha uns que vieram de lá da África, não sei de onde eles

vieram, não lembro bem, eles que começaram a fazer essa festa lá e vieram e

fundaram lá na Queimada. Da Queimada eles passaram lá pra outra vila no

Carvão. Aí a Queimada passou a fazer parte do Carvão (Informação oral)12

Nas memórias de Manoel no tempo da escravidão em Mazagão, muitos dos negros

africanos fugiram do lugar e passaram a ocupar ás margens de igarapés e rios, onde fundaram

povoados. Na Queimada (atual Carvão), parte desses negros, fundaram a Festa da Piedade.

Seus descendentes, ainda hoje, realizam o festejo. Ao visitarmos os povoados de Igarapé do

Lago e Engenho do Ajudante, observamos que os moradores desses lugares também realizam

a festa da Piedade. Assim, no Amapá, além de Mazagão Velho, três outras comunidades

realizam a Festa. O intrigante é que elas estão relativamente próximas da antiga vila colonial:

Engenho do Rio Ajudante (7 km), Carvão (20 km) e Igarapé do Lago (133 km). Isso nos

instiga a pensar se os batuqueiros dessas comunidades tem alguma relação de descendência

com aqueles que criaram o festejo. Integra-se a isso o fato de que hoje, as comunidades do

Carvão e do Igarapé do Lago se autodefinem como quilombolas, e por isso a Fundação

Cultural Palmares (FCP) emitiu suas certidões de Comunidades Remanescentes de

Quilombos.

A imagem abaixo mostra a localização das comunidades que realizam a Festa da

Piedade, espaços ocupados, provavelmente, pelos negros que saíram de Mazagão, durante e

depois do período colonial.

12 Informação coletada na ocasião da pesquisa de campo realizada com os idosos do povoado de Mazagão Velho

em abril de 2014

Page 12: AS TRADIÇÕES QUE NARRAM O PASSADO · Mazagão Velho é um povoado localizado no sul do Estado do Amapá e possui uma população de 7.598 habitantes (IBGE, 2010). Os moradores desse

12

Figura 2- Localizações das comunidades que que realizam a Festa da Nossa Senhora da Piedade

Fonte: Elaborado a partir do mapa do Amapá de 2007.

Assim, pensar na possibilidade de que um festejo tradicional pode marcar os

deslocamentos dos negros e dos seus descendentes sobre um território é estimulante, bem

como pensar que outro festejo possa marcar a permanência daqueles que não fugiram. A

narrativa de surgimento da Festa do Divino Espirito Santo, a qual se realiza o Marabaixo, faz

referência aos negros que não saíram de Mazagão no tempo da escravidão. Fernando (52

anos) é folião de várias festas, pertence a uma família antiga, os Videira. Hoje reside na casa

que pertenceu a dona Odacina, uma cantadeira de Marabaixo falecida. Em uma das conversas

que tivemos, ele lembrou que os moradores antigos de Mazagão contavam que no período da

escravidão existiam duas Festas do Divino Espírito Santo, uma dos “brancos” e a outra dos

“negros”.

A “festa dos brancos” era realizada no mês de maio, o que acarretava um excesso de

trabalho aos escravos, isto porque trabalhavam exaustivamente na realização dos festejos de

seus senhores, não restando tempo para se dedicarem aos seus próprios festejos. Assim,

tiveram que transferir a data do festejo do mês maio para o de agosto. Com o tempo, após a

saída dos portugueses que tinham título de nobreza, Mazagão passou a realizar apenas uma

festa do Divino, já que não havia na comunidade muitos “brancos” que dispusessem de

valores econômicos para custear a festa.

As narrativas de surgimentos da festa da Piedade e da Festa do Divino de Mazagão

Velho recriam memórias do negro escravizado. A primeira faz referência aqueles negros que

fugiram, deixaram a vida de maus-tratos para trás e criaram um modo de vida que fazia

resistência ao sistema escravista vigente. Já a segunda, faz referência aos negros que

permaneceram na Vila Colonial e tiveram que resistir para manter viva sua manifestação

Page 13: AS TRADIÇÕES QUE NARRAM O PASSADO · Mazagão Velho é um povoado localizado no sul do Estado do Amapá e possui uma população de 7.598 habitantes (IBGE, 2010). Os moradores desse

13

cultural. No trecho abaixo, Manoel Reis descreve um fato ocorrido em Mazagão Velho,

provavelmente, depois do período colonial.

Depois que eles estavam lá, aqui [Mazagão Velho] não tinha essa festa [Piedade].

Aí tinha o que era o intendente, que agora se chama prefeito. Eles convidaram ele

que era o Velho Flexa. Aí ele foi pra lá para assistir a festa. Chegando lá, ele achou

muito bonita, mas era muito difícil, que lá era o igarapé seco, iam pegando a lama

com o remo. Aí, quando ele chegou aqui [Mazagão Velho], ele fez um ofício

convidando os principais da festa de lá. Chegando aqui ele conversou com eles e

explicou, será que não era melhor trazer a festa pra cá, que aqui o rio é melhor (...).

Naquela época não tinha estrada, nem pensando. Mas, o rio aqui era franco, de

águas grande, dava pra vim mais gente aqui. Aí eles combinaram. Trouxeram a

festa pra cá (Mazagão Velho). (Manoel Reis, morador de Mazagão Velho, pesquisa

de campo, 2014)

Através desse trecho, podemos analisar que o Intendente13 Manoel Valente Flexa, ao

convidar os fazedores da festa da Piedade para Vila de Mazagão, promoveu provavelmente o

retorno dos descendentes daqueles que outrora foram escravizados neste lugar. No trecho

abaixo, Manoel Reis descreve um episódio intenso entre seus familiares e o padre.

Fizeram a festa no primeiro ano [...]. O padre Hermano não queria. [Mas] eles

meteram a cara e fizeram. Quando foi no segundo ano, a primeira novena 23 de

junho, eles se reuniram pra ir com a santa para levarem na casa de Dona

Belarmina. Nessa casa que se fazia as novenas das festas que os padres não

queriam na igreja. Eles vieram por aqui, quando chegaram ali, o padre que morava

numa casa, que de baixo da terra tem uma calçada muito bonita lá, que era a casa

dos padres. Aí o padre abriu as portas lá e chamou os foliões lá. Eles pensando que

ele ia dá uma benção, o padre foi e tomou a santa. (...). Eles ficaram muito

revoltosos. Aí o pai do meu pai queria invadir lá, pra bater no padre. Voltaram com

a festa pra lá de novo [Carvão], foi o tempo que o padre morreu e a festa veio pra

cá. (Manoel Reis, morador de Mazagão Velho, pesquisa de campo, 2014)

Como visto, no relato o retorno dos batuqueiros não foi amistoso. O ato de intolerância

protagonizada pelo padre Hermano Elsing14, mostra o quanto essa prática cultural o

incomodava. Esse tipo de postura interferiu por muito tempo na realização dos festejos

religiosos organizados pelos devotos do lugar. Nesse contexto, a casa de dona Belarmina,

citada por Manoel, teve uma função importante. Conhecida como “Tia bela”, essa senhora

permitiu que no espaço doméstico de sua residência, fossem realizadas as novenas e ladainhas

dos festejos que não eram aceitos pelos eclesiásticos da Igreja Católica.

Na memória social dos atuais mazaganenses, grande parte dos festejos eram proibidos

de serem realizados dentro do templo. Essa posição era adotada por muitos padres tanto os da

congregação Missionários da Sagrada Família (MSF) quanto da congregação do Pontifício

13 No Brasil, o intendente era um cargo da administração pública, existiu até 1930 quando foi substituído pelo

cargo de prefeito. 14 Missionários da Sagrada Família (MSF), permaneceu como pároco de Mazagão entre 14 de agosto de 1911 a

29 de maio de 1921 (Dados da Diocese de Macapá).

Page 14: AS TRADIÇÕES QUE NARRAM O PASSADO · Mazagão Velho é um povoado localizado no sul do Estado do Amapá e possui uma população de 7.598 habitantes (IBGE, 2010). Os moradores desse

14

Instituto das Missões Estrangeiras (PIME). Entre todos os festejos apenas dois eram aceitos –

a Festa de São Tiago e a Festa de Nossa Senhora da Assunção – empreendimentos da Igreja

Católica nessa comunidade. Para o então representantes da Igreja Católica em MZV, o

fortalecimento dessas festas poderia representar a valorização da fé cristã. Isso porque, a Festa

de São Tiago e a Festa de Nossa Senhora da Assunção estão associadas a Fortaleza Militar de

Mazagão, cenário de luta e resistência do cristianismo no Marrocos.

Manuel Reis lembra que antes a novena da Festa da Piedade acontecia no mesmo

período da Festa de São Tiago. Aí os padres impinimaram de novo. Porque quando era dia

16, todos iam pra casa da novena [Casa da Tia Bela] e na igreja ninguém ia. Esses padres

italianos impinimaram, impinimaram15. Por isso, quiseram acabar com a festa da Piedade,

mas o chefe da comissão da festividade na época não permitiu. Propôs a mudança da data da

novena da Piedade.

Como já dito, hoje os mazaganenses reconhecem todas essas festas como suas heranças

culturais. A resistência para manter os festejos associados a cultura negra permitiu que eles

chegassem até os dias atuais. A partir disso, pode-se refletir sobre o conjunto de festas dessa

comunidade, como um valioso patrimônio cultural, no qual os mazaganenses enfrentaram, a

longo prazo, investidas contrárias as suas manifestações. As resistências dessas práticas

festivas revelam o valor inestimável atribuído a esses bens culturais que narram o passado do

negro neste território tão marcado pela presença lusitana.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Portanto, a presente pesquisa entende que cada festa possui em si a constituição da

história, da memória e da identidade do grupo que a realiza, que se constroem a cada dia e a

cada ano. No sentido de que as festas religiosas revigoram a alma das pessoas que fazem a

festa por toda sua vida e vivem para fazê-las. Além disso, elas dizem algo, as festas são

narrativas rituais que falam o que pode ir além da história da “cidade portuguesa transladada”

como Laurent Vidal define o deslocamento da população da Fortaleza de Mazagão para o

Amapá, pode contar sobre aspectos da cultura que foram historicamente invisibilizados,

também pode contar sobre um povoado que se transformou, e continua se transformando. No

caso de Festa da Piedade pode contar sobre a histórias e as memórias dos negros africanos no

Amapá.

15 Manoel Reis, morador de Mazagão Velho, pesquisa de campo, 2017.

Page 15: AS TRADIÇÕES QUE NARRAM O PASSADO · Mazagão Velho é um povoado localizado no sul do Estado do Amapá e possui uma população de 7.598 habitantes (IBGE, 2010). Os moradores desse

15

5. REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Renata Malcher de. As cidades da Amazônia no século XVIII. Belém, Macapá e

Mazagão. Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, 1998.

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade. Lembranças de Velhos. São Paulo: Companhia das

Letras, 1994.

BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: Ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê

Editorial, 2003.

BOYER, Véronique. Passado português, presente negro e indizibilidade ameríndia: o caso de

Mazagão Velho, Amapá. Religião e Sociedade. Vol. 28, n.2. Rio de Janeiro, 2008.

CANDAU, Joel. Memória e identidade. Tradução Maria Leticia Ferreira. 1ª.ed. São Paulo:

Contexto, 2012.

MAUÉS, Raymundo Heraldo. Um aspecto da diversidade cultural do caboclo amazônico: a

religião. Revista Estudos avançados. 19 (53), 2005.

RIBEIRO, Karina Nymara Brito. Festa da mãe de Deus da Piedade de Mazagão Velho,

Amapá: narrativas e materialidades de um patrimônio festivo. 2015. Monografia do Curso de

História e historiografia da Amazônia da Universidade Federal do Amapá.

SALLES, Vicente e ISDEBSKI, Marena. Carimbó: trabalho e lazer do caboclo. Revista

brasileira de Folclore, v. IX, n. 25, p.278-, setembro/dezembro. 1969.

TASSINARI, Antonella Maria Imperatriz. No Bom da Festa: O processo de construção

Cultural das Famílias Karipunas do Amapá. São Paulo: Editora da Universidade de São

Paulo, 2003.

VIDAL, Laurent. Mazagão, a cidade que atravessou o Atlântico: do Marrocos à Amazônia.

Tradução Marcos Marcionilo. São Paulo: Martins, 2008.