as sete danÇas para villa-lobos · pecadores da carne, ofereçamos bocados de emoção a esse...

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AS SETE DANÇAS PARA VILLA-LOBOS UM ESPETÁCULO MODERNO! BALLETEATRO EM 7 ATOS Textos de OSWALD DE ANDRADE Músicas de VILLA-LOBOS Libreto de MARIO DRUMOND ROTEIRO para Espetáculo de Dança com opções para ser levado a cena com música ao vivo ou com trilha gravada em fita magnética para ser produzido também em vídeo (Registrado na Biblioteca Nacional) Rio de Janeiro, março de 1993

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AS SETE DANÇASPARA VILLA-LOBOS

UM ESPETÁCULO MODERNO!

BALLETEATRO EM 7 ATOS

Textos de OSWALD DE ANDRADE

Músicas de VILLA-LOBOS

Libreto de MARIO DRUMOND

ROTEIRO para Espetáculo de Dança

com opções para ser levado a cena com música ao vivoou com trilha gravada em fita magnética

para ser produzido também em vídeo

(Registrado na Biblioteca Nacional)

Rio de Janeiro, março de 1993

DEDICATÓRIA

Este roteiro é dedicado a bailarina brasileira IZABEL COSTA. Ou melhor, pode-se dizer que sejadela mesma; porque, sem ela e sem a expressão maior da sua dança, que preenche nossos olhos

com o que há de melhor na Alma Brasileira, jamais teria sido escrito.

PERSONAGENSALMAOSWALDTRÊS AMIGAS DE ALMADOIS ESCRITORES (AMIGOS DE OSWALD)ALMA, A PRÉ-COLOMBIANAOSWALD, O CONQUISTADORA NEGRADIONÍSIOSGUARACI, A MÃE DOS VIVENTESMEFISTÓFELES

PROGRAMA

Abertura

1º ato - “SOUS LES TROPIQUES” (NOITES ESTRELADAS)2º ato - ESPÍRITO OSWALDIANO3º ato - ALMA E OSWALD NO PARAÍSO4º ato - ANTROPOFAGIA5º ato - NA GARCONNIÈRE6º ato - ALMA BRASILEIRA7º ato - FESTA DA RAÇA (IMPRESSÃO RÁPIDA DE TODO O BRASIL)

Na abertura e nos entreatos, enquanto se processam as mudanças de cenários, serão ouvidos textos e diálogos gravados em fitamagnética para as vozes das personagens de Alma, Oswald e seus dois amigos. Na cena, Oswald, interpretado por um atorsolitário, representa com gestos, movimentos, expressões e, às vezes, dublando a sua parte, o conteúdo destes textos ediálogos, que funcionam como prólogos dos atos que se seguem.

ABERTURA

Oswald (o ator) entra em cena e sorridente dirige-se ao centro do proscênio onde uma luz cai sobre ele. Seufigurino caracteriza um “dândi” do início do século. Ele, solene, tira do bolso do colete uma folha de papeldobrada. Abre-a (está em branco) e “lê” (dublando):

OSWALD

Perfeito cozinheiro das almas deste mundo. Na fórmula breve e exótica deste título está a promessado espetáculo mais útil, mais prático e mais moderno deste século de grandes torturados.

Se o nosso pobre corpo, depauperado a tóxicos e reduzido às proporções de carcaça degenerada,precisa de condimentos que o reabilitam, não me negará a posteridade serem almas humanas ascoisas mais esfomeadas e débeis que se agitam neste conflagrado planeta dos absurdos e dasinverossimilhancas.

Aqui encontrarão as irriquietas e contraditórias almas deste mundo com que matar a sua fome deexperiência e a sua fome de ilusão.

Muito de arte entrará nestes temperos, arte e paradoxo que, fraternalmente, se misturarão paraformar, no ambiente colorido e musical deste retiro, o cardápio perfeito para o banquete da vida.

Que o espetáculo produza o bem que há de encerrar.Obrigado, muito obrigado.

(curva-se em longa reverência de agradecimento e sai rapidamente enquanto abrem-se as cortinas)

1º ato - “SOUS LES TROPIQUES”(NOITES ESTRELADAS)

MÚSICAChoros nº 7 (Settimino) de Villa-Lobos. Duração: 9’25

INSTRUMENTOSFlauta, oboé, sax-alto, clarineta, fagote, violino, violoncelo e tam-tam.

BAILARINOS/PERSONAGENS4 bailarinas e 3 bailarinos sem definição de personagens.

LIBRETO

As noites estreladas sob os trópicos sempre foram misteriosas aos olhos dos visitantes estrangeiros.Sob o calor noturno a assombrada imaginação humana já figurou duendes, monstros, querubins,deuses, seres sobrenaturais e entidades inumeráveis, como se as vissem em pleno fazer da criaçãode um novo mundo.

Neste ballet, sete bailarinos representam sete entidades abstratas e indefinidas (que tanto podem seras 7 cores do arco-íris como os 7 orixás, além de monstros e deuses) dançando sob a abóbodaestrelada o que seria a Dança da Criação da Terra Brasilis.

SUGESTÕES CÊNICAS

Fundo infinito com céu estrelado e luzes como cenário.

Figurinos inspirados na abstração do artista Antonio Bandeira.

No caso de música ao vivo, músicos e maestro no fosso da orquestra.

1º ato - “SOUS LES TROPIQUES” (NOITES ESTRELADAS)Esboço esquemático do cenário

ENTREATO (entre o 1º e o 2º ato)

Oswald (o ator) entra com um caneco e uma garrafa de vinho nas mãos. Parece pensativo.

Vozes:

OSWALDTrago rapadura de cidra e uma alma pré-homérica, cheia de pinga com limão. Positivamenteamanhece na vida.

AMIGO 1O fogo da mulher amada não queima, ilumina.

AMIGO 2Casa a arte com tua vida e talvez sejas feliz!

ALMAMas a arte é tão longa... e a vida é tão curta...

OSWALDAcabo de ouvir paradoxos, bebo madeira e penetro neste asilo de músicos cegos, iludido pelasvirtudes do limão ou da pinga, e diviso, otimistamente, frescas madrugadas azuis.É assim, meus filhos, que se vive: faz-se mistér que não nos queime o sol e não nos assuste a noite.Temperemos os fogos do dia e atiremos punhados de luz na treva. Que amanheça sempre epossamos repousar passado o dia intenso e inconseqüente, no crepúsculo de uma saudaderesignada e quase feliz.E que é a vida senão uma sucessão de madrugadas?

Oswald toma uns tragos da caneca. Ao final da última fala dirige-se à mesa do cenário e neladeposita a garrafa e a caneca.

Ao sair de cena, em direção às coxias do lado oposto, Oswald, o ator, cruza com Oswald, obailarino, entrando em cena com idêntico figurino.

2º ato - ESPÍRITO OSWALDIANO(solo)

MÚSICAChoros nº 1 de Villa-Lobos. Duração: 3’02

INSTRUMENTOViolão-solo

BAILARINO/PERSONAGEMBailarino Principal/ Oswald

LIBRETO

A figura de um “dândi” do início do século que caracteriza a imagem do escritor Oswald deAndrade traz, dentro de si, e paradoxalmente, o espírito do malandro carioca, substânciafundamental da música de Villa-Lobos. Nesta dança-solo, o “dândi” transmuta-se em cena nomalandro e realiza esse espírito solto, ligeiro, esperto e alegre e, também, melancólico, do brasileiro,vivendo uma sombria madrugada urbana, carioca, cenarizada pelas visões de um outro Oswaldo, oGoeldi, e ao som virtuose do violão.

Oswald, o bailarino, entra em cena trazendo um guarda-chuvas. Cruza com Oswald, o ator, edirige-se até a mesa onde repousa o guarda-chuvas, senta-se e toma uns tragos. Em seguidacomeça a despir-se transmutando-se em malandro. O violão começa e o bailarino inicia seu solo.

SUGESTÕES CÊNICAS

Cenário reproduz o desenho de Oswaldo Goeldi.

2º ato - ESPÍRITO OSWALDIANOEsboço esquemático do cenário

ENTREATO (entre o 2º e o 3º ato)

Oswald, o ator, entra fumando um enorme charuto.

Vozes:

OSWALDComo os antigos sacerdotes de Baco ofereciam reses votivas a Dionísios, também nós, amáveispecadores da carne, ofereçamos bocados de emoção a esse amável e barbudo Tempo. As mulheressão belas e fáceis; em cada face feminina passa uma sombra de desejo, em cada vinha ainda há umcacho de uva, o sol é forte, o céu é azul, a mocidade um espasmo...

ALMAEu tinha três amigas... A primeira partiu... A segunda... A terceira... Quem o sabe?

AMIGO 2Em torno da mulher os homens formam duas correntes diversas e opostas: uns procurammaterializá-la, cultivando-lhe a carne e abafando-lhe a alma; os outros anseiam por espiritualizá-lademais, eriçando-a de complicações psíquicas

AMIGO 1Como são raros os que compreendem que ela, a fútil e gloriosa herdeira de Eva, é composta decorpo e alma.

OSWALDEntretanto, como desde a Mãe Eva, a mulher tem sido a síntese suprema do Vinho, do Bem, doPrazer, a trilogia luminosa da Vida, aí vão para os simples, para os ingênuos e sentimentais umpunhado de conselhos à guisa de receitas, todas elas sentidas, todas elas vividas, todas sofridas.

ALMAÉ o pecado imortal!

3º ato - ALMA E OSWALD NO PARAÍSO

(Duo)

MÚSICAChoros nº 2 de Villa-Lobos. Duração: 2’48

INSTRUMENTOSFlauta e clarineta

BAILARINOS/PERSONAGENSBailarina Principal/ AlmaBailarino Principal/ Oswald

LIBRETO

Alma é filha legítima de Guaraci, a mãe dos viventes. É a virgem, fruto ainda puro e intocado daterra do novo mundo. Oswald, filho de Dionísios, é por ele enviado para com elacomer os frutos da Árvore da Vida e dar origem a um novo e nobre povo.

Nessa dança Guaraci toca clarineta para Oswald dançar e Dionísios a flauta para a dança de Alma.

SUGESTÕES CÊNICAS

Cenários e figurinos inspirados em Rousseau, especialmente na sua pintura intitulada “O Sonho”.

No caso de música ao vivo, os instrumentistas podem ser coreografados para participarem da cenatocando os seus instrumentos nos papéis de Dionísios e Guaraci.

3º ato - ALMA E OSWALD NO PARAÍSOEsboço esquemático do cenário

ENTREATO (entre o 3º e o 4º ato)

Oswald, o ator, surge no canto do proscênio de frente para uma estante de livros, sobre a qual parece ler ouescrever num enorme volume.

Vozes:

ALMAAntes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.

OSWALDJá tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro.

ALMAcatiti catitiimara notiánotiá imaraipejú

OSWALDE já dizia o nosso avô Cunhambebe comendo gostoso a perna de um português: - Jaurá ichê! Poisdizemos também nós, seus netos: Não amolem!... É muito bom... (dublada essa última linha)

ALMAO índio é que era são.O índio é que era homem.O índio é que é o nosso modelo.

OSWALDDepois que veio a gente de fora, porque?Gente tão diferente, porque será?Tudo ficou estragado.Então chegou a vez da Descida Antropofágica:vamos comer tudo de novo. (dubladas as 2 últimas linhas)

ALMASó a Antropofagia nos une.

AMIGO 1Socialmente

AMIGO 2Economicamente

OSWALDFilosoficamente

TODOSTupi or not tupi, that is the question.

(black-out)

4º ato - ANTROPOFAGIA

(trio)

MÚSICAChoros nº 3 (Pica Pau) de Villa-Lobos. Duração: 3’45

INSTRUMENTOSClarineta, sax-alto, fagote, trombone, 3 trompas e Coro Masculino.

BAILARINOS/PERSONAGENSBailarina Principal/ Alma, a pré-colombianaBailarino Principal/ Oswald, o conquistadorBailarina Solista/ A Negra

LIBRETO

Sertão do Brasil na época da descoberta. Alma, a pré-colombiana, come gostoso a perna de umportuguês, à sombra dos cactus enormes da caatinga selvagem e ensolarada. Surge em cenaOswald, o europeu conquistador, que por ela se apaixona. Ele traz consigo a Negra, sua escrava,que completa um estranho triângulo amoroso, cheio de contradições, lutas e conquistas.

SUGESTÕES CÊNICAS

Cenários e figurinos a partir da obra da pintora Tarsila do Amaral, especialmente as pinturas “SolPoente” e “A Lua”.

Com música ao vivo, os músicos e o maestro ficam no fosso da orquestra e o coro pode serincorporado ao cenário, formando, em cena, composições estáticas de “cactus cantores”.

4º ato - ANTROPOFAGIAEsboço esquemático do cenário

ENTREATO (entre o 4º e o 5º ato)

Oswald, o ator, passeia pelo proscênio.

Vozes:

OSWALDA voz da minha mãe chega a minha memória. Deitada no eterno sofá de palhinha em que seinvalidaram seus últimos anos, ela me recomenda que tenha um diploma. Posso precisar dele navida. Sua confiança na fortuna que me darão nossos terrenos não é cem por cento. Muito menos aque decorre da minha vocação literária. Estamos no ano de 17. Decido retornar à Faculdade deDireito e alugo uma garconnière nos fundos de um 3º andar. Estreitam-se as minhas relações comAlma que chamamos “Miss Cíclone” acentuando na 1a. sílaba. É orfã de pai. A mãe, casada denovo, mora no interior. Ela estuda na Escola Normal, mora com a prima e é bailarina.

ALMAÀs meias luzes eu prefiroas meias de seda.

AMIGO 1Miss Cíclone c’est lafatalité!

OSWALD (carinhoso)Burrinha! Burrinha!

ALMA (tesuda)Ai, Juão! Ai, Juão!

AMIGO 2Primeira receita: nos casosde amor, à Dulcinéiaprefira-se a Dulce Nua.

OSWALD(sensual)Apague a luz.

ALMA (rindo, baixinho)Ri, devagar.

AMIGO 1A champagne é a sensualidadebebida. A pinga é aobscenidade bebida.

AMIGO 2O estilo é o homem,a mulher é o estalo.

OSWALD (dublado)Como já se percebe, aparecemna garçonnière as futurascelebridades das letraspátrias. Alma anima a turmatoda.

Os bailarinos já estão emcena. Oswald, o ator, caminhaem direção a eles quepermanecem imóveis enquantoas vozes prosseguem:

AMIGO 2Para uma orquestra de cegossó uma batuta invisível.Alma é a batuta invisível.

AMIGO 1Acima de tudo sejamos leais,prudentes e sensíveis.

OSWALDAlma, você fica insensíveldiante disso?

Oswald, o ator, sai pela coxia.

ALMA (dublada pela bailarina)Fico prudente e desleal.

OSWALD (dublado pelo bailarino)Que prudente lealdade!

Começa a dança.

5º ato - NA GARCONNIÈRE

(quarteto)

MÚSICAChoros nº 4 de Villa-Lobos. Duração: 5’40

INSTRUMENTOS3 trompas e trombone

BAILARINOS/PERSONAGENSBailarina Principal/ AlmaBailarino Principal/ Oswald2 bailarinos solistas/ 2 escritores (amigos de Oswald)

LIBRETO

São Paulo, 1917. No interior da garconnière de Oswald, Alma é o centro das atenções nos sarausliterários que ali se promovem, regados a champagne e vinhos, até altas madrugadas. Na cena,Oswald e dois de seus amigos disputam os favores da bela Alma que, frívola, diverte-se, oradeixando-se levar por um ou por outro, mas sempre retorna a Oswald quando este a exige oudemonstra seus ciúmes.

SUGESTÕES CÊNICAS

O cenário é o da ampla sala de visitas da garconnière decorada frugalmente no estilo “deco” dosanos 20. A parede correspondente ao fundo do palco tem, no centro, uma grande janela compersianas descidas mas com as aletas em posição de luz. De cada lado da janela vê-se dois grandesquadros. Pela janela aberta descortina-se um outro cenário que, em parte, mostra o outro lado deum beco escuro e, na outra parte, o perfil noturno e cheio de luzes de uma grande cidade. Naparede do beco uma luz pisca intermitente indicando a proximidade de um anúncio luminoso emnéon. Dentro da sala, um divã, uma mesa de centro e dois grandes almofadões. Na mesinha umbalde de gelo com champagne e cálices de cristal semi-cheios. Nas laterais não há cenários. Aesquerda, ao fundo, um belo piano de cauda ou meia-cauda.

Os figurinos são de gala da época, sendo o de Alma extremamente insinuante e avant-garde.

No caso de música ao vivo, os dois grandes quadros ao lado da janela central são, na verdade, doisfalsos quadros cujas molduras contornam duas “janelas” pelas quais são vistos os músicos tocando.À esquerda as 3 trompas, à direita o trombone, como se fossem quadros “vivos”, incorporando-seassim a execução musical ao cenário e à dança.

5º ato - NA GARCONNIÈREEsboço esquemático do cenário

ENTREATO (entre o 5º e o 6º ato)

Ao terminar o 5º ato saem os três bailarinos e Alma permanece. Entra Oswald, o ator.

Vozes:

OSWALDAlma retirou a blusa mostrando ao espelho os alvos seios manchados de apertos. Pensava:

(Alma vai se despindo frente a um espelho imaginário e, durante as falas, ela e o ator contracenaminterpretando-as como se ela fosse real e ele um espectro)

ALMAPorque será que quando uma porta me machuca, me faz sofrer; quando bato a cabeça numa janela,choro de dor; e ele pode me cortar a navalha, não dói: é delicioso!

OSWALDParece inteligente. Convido-a cinicamente a amar-me. Ela responde:

ALMASim, mas sem premeditação. Quando nos encontrarmos um dia.

OSWALDPergunto-lhe que opinião tem dos homens:

ALMAUns canalhas!

OSWALDE as mulheres?

ALMATambém!

OSWALDO seu jeito pequenino, o confessionário entontecedor dos seus sonhos... E a silhueta de mistério,terminando na mecha interrogativa a cair sobre os formosos olhos ingênuos... Quem seria essaestranha criança? Alí, no roçar dos travesseiros alvos, ela aprendera a embelezar a vida...Desmanchava as tranças negras pelas fronhas, alimentando a voragem íntima. Xingava-o rolando.Era uma tristeza, no entanto, que pedia mais, esse soluço de ternura divina que a inundava numfluido cálido. Chamava-o com as pernas. Era uma gata morena... E esticava-se retesada desensações para adorá-lo. Vinha-lhe à cabeça uma tonteira gostosa e sentia as pancadas sublimes doseu amor... sim... não... sim... não

(Oswald sai)

6º ato - ALMA BRASILEIRA

(solo)

MÚSICAChoros nº 5 (Alma Brasileira) de Villa-Lobos. Duração: 4’58

INSTRUMENTOPiano solo

BAILARINOS/PERSONAGENSBailarina Principal/ Alma3 bailarinas solistas/ 3 amigas de Alma

LIBRETO

Alma está só na garconnière. O dia vai clareando e ela se entrega aos seus devaneios de mulhersatisfeita e bem amada mas que traz em si todo o sofrimento intrínseco à sua condição de mulher ede brasileira, o que a torna ainda mais fatal. Toda a dança se faz ao som do piano e sob as luzes doamanhecer. Ao final, dia claro, chegam as três amigas e entram no sonho de Alma que já dorme.

SUGESTÕES CÊNICAS

No cenário o dia começa lentamente a amanhecer e o néon e as luzes da cidade aos poucos vão seapagando. Dois panos grandes pintados com duas “bibliotecas” da artista Vieira da Silva descempor cima dos quadros onde antes tocavam os músicos e ocupam as duas laterais da grande janelacentral, provocando uma mudança de ambiente da sala para a biblioteca da garconnière. A luz do“sol” penetra pela persiana sobre o piano, lateralmente, estriando-o.

Ainda durante o entreato, um garçon à francesa entra em cena e retira o balde com champagne e oscálices, levando-os numa bandeja.

O figurino de Alma, após despir-se é uma leve combinação rendada. As três amigas entram de tchu-tchus, como num sonho onde retornam as reminescências da iniciação de Alma como bailarina.

O figurino do pianista é idêntico ao de Oswald.

No caso de a música não ser ao vivo, o próprio Oswald, o ator, vai para o piano e simula estartocando.

Ao final da cena fecham-se as cortinas.

6º ato - ALMA BRASILEIRAEsboço esquemático do cenário

ENTREATO (entre o 6º e o 7º ato)

A cena ocorre no proscênio, com as cortinas fechadas. Oswald, o ator, dubla todas as suas falas. Mefistófeles (ouMefisto), que em verdade é Dionísios portando uma máscara de mão, “dança” as suas falas.

Oswald entra em cena com um enorme sobretudo, tiritando de frio e resmungando:

OSWALDHum, está frio aqui... Quem está aí?

MEFISTO (surgindo magicamente em cena)Eu, eu, se me permites.

OSWALDAntes de mais nada quero saber quem tomou a liberdade de irromper aqui e instalar-se na minhasala.

MEFISTOAntes de mais nada, essa é boa! Ora, eu não cheguei para adular-te a fim de que tomes parte deuma rodinha de artistas. Vim te falar de negócios.

OSWALDE por quem vos tomaria eu?

MEFISTOUê, como posso saber? Mas tu não ignoras quem sou, ora essa! Não deverias obstinar-te em fingirque não esperaste a minha visita há muito tempo. Não quer pegar mais outro agasalho?

OSWALDPretendeis realmente que me visitais aqui, nestas terras onde estais tão deslocado e impopular? Queabsurda falta de estilo. Na Europa eu teria admitido a vossa presença. Mas nunca aqui, sob este céucatólico-pagão. Será que não pode desligar essa amolação da correnteza glacial?

MEFISTOInfelizmente não. Lastimo não poder poder prestar-te este obséquio. Pois sou tão frio por índole.Como poderia eu sentir-me bem no lugar que habito?

OSWALDEstais vos referindo à espelunca do Inferno?

MEFISTOEssa é boa! Gostei dessa denominação rude, brejeira. Mas, a esta altura, trata-se de assunto nadaurgente. Temos tempo, muito tempo, tempo incalculável! Tempo é a melhor coisa que podemosoferecer.

OSWALDEntão quereis vender-me tempo?

MEFISTOTempo? Unicamente algum tempo? Não, meu caro Oswald, não é só com esse artigo que o Diabofaz negócios. O que importa é a espécie de tempo que se fornece! Um tempo grandioso, um tempodoido, um tempo totalmente endiabrado, com fases de júbilo e de folias mas também, como énatural, com períodos um tanto miseráveis ou mesmo inteiramente miseráveis. Não tento negá-lopois é assim que deve ser de acordo com a natureza dos artistas; que tendem a exceder-se emambas as direções. Tudo depende da predisposição, da presteza, do convite. Certas pessoas, comotu, tem mais talento do que as outras para a realização de proezas da bruxaria, e nós sabemos muitobem escolhê-las.

OSWALDCaluniador, não tenho nenhum comércio contigo. Não te convidei.

MEFISTOVejam só! Estás fazendo progressos. Esquentas-te. Abandonas finalmente a cortesia...

OSWALDBaboseira.

MEFISTOOlha, é difícil satisfazer-te. Vendemos tempo - digamos, vinte e quatro anos. Pode-se avistar o fimde um lapso tão grande? É adequada essa quantidade de anos? Com ela a gente pode viver à farta,que nem os velhos imperadores, e espantar o mundo através de numerosas obras diabólicas. Noentanto o fim pertence a nós. Passados eles, hemos de levar-te.

OSWALDParece-me que devo ouví-lo, meu caro Mefisto.

MEFISTOO que, aliás, gostas de fazer. No fundo estás contente de ter uma oportunidade para ouvir-me.Acho até que a idéia de escutar minhas palavras te assanha bastante...

OSWALDMentiroso sarcástico que és; uma vez que me obriga a ouvir-te.

MEFISTOQuem disse isso? O artista é irmão do criminoso e do demente. Pensas, por acaso, que já se hajarealizado alguma obra interessante, sem que seu autor tivesse aprendido a entender os celerados eos loucos?

OSWALDQue é que aguardais? Quereis que eu admire vosso sarcasmo? Nunca duvidei que saibaiscomunicar-me o que já sei. Vossa maneira de apresentá-lo tem um propósito claro. Mediante ela,quereis demonstrar-me que, para meus desígnios e minha obra, ninguém me poderá ser útil a não sero Diabo.

MEFISTOUma possibilidade muito teórica, de fato! Por tua causa já não necessitamos gastar nossa dialética.O que não nego é certa satisfação que me propicia a condição das obras em geral. Eu cumprominhás promessas tim-tim por tim-tim; justamente isso é o meu princípio comercial; em todos oscasos de burla o burlado sempre sou eu, por ainda acreditar em lealdade e honestidade...

OSWALDComovente, comovente. O Diabo torna-se patético. O coitado do Diabo moraliza. O sofrimentodos homens lhe confrange o coração. Em homenagem a ele, corteja a Arte. É assim que logo vosreconheço e acho muito gentil de vossa parte que ministreis nessa sala uma aula particular. Esperoque vos prontifiqueis a saciar a minha sede de sapiência lecionando não somente coisas que aprendipor minhas próprias forças. Tratais do tempo que vendeis e também das dores que se deve pagar.Sei que haverá prantos e ranger de dentes, mas não vos referistes ao fim, à liquidação definitiva dadívida.

MEFISTONo fundo o Inferno será apenas a continuação da tua vida excêntrica. Para resumir, a suaquintessência. Sua peculiaridade característica consiste em deixar aos seus habitantes unicamente aescolha entre o mais extremo frio e um calor tão intenso que até poderia derreter o granito. Entreesses dois estados, correm eles de cá para lá, ululando, pois enquanto se encontram num deles ooutro sempre se lhes afigura celestial alivio.

OSWALDE do gelo voltarei às labaredas. Evidentemente é uma antecipação do Inferno o que me preparais jáem terra.

MEFISTOÉ a existência extravagante a única a satisfazer um espírito orgulhoso, meu caro Oswald.

(Mefisto sai dando gargalhadas diabólicas)

Oswald assustado ajoelha-se e parece humildemente começar uma reza, uma oração:

OSWALDNossa Senhora dos CordõesEvoé(etc. - ver texto Oswald em anexo)

Sobre sua voz entra a voz de Alma (ver texto Alma em anexo) e em seguida vão sobrepondo-se asvozes do Amigo 1 e do Amigo 2 (ver tb. em anexo) criando um verdadeiro inferno de palavrasatordoando a cabeça de Oswald que parece ser torturado com suas próprias palavras como numcastigo do Inferno. Ao final dos textos, sua cabeça parece explodir e ele cai arrasado no chão.

As cortinas abrem-se.

Em seguida, e subitamente, Oswald levanta-se inteiramente recuperado e renovado, como se tivessepassado por uma catarse, joga fora o sobretudo e, altivo e enérgico, olha firmemente a platéia eanuncia em alto e bom som:

OSWALD- Xarope de Dinamite! É o nome da valsa que a nossa orquestra de cegos toca dias e dias, sob obalcão hipotético de Dona Felicidade.

Ele coloca os óculos escuros que tira do bolso do paletó e caminha em direção a orquestra. Frentea ela, volta-se para os músicos, como se empunhásse uma batuta invisível e diz, cínico:

OSWALDToca, Mefistófeles! Toca, meu ceguinho!

A orquestra começa.

7º ato - FESTA DA RAÇA

(IMPRESSÃO RÁPIDA DE TODO O BRASIL)

MÚSICANoneto de Villa-Lobos. Duração: 14'

INSTRUMENTOSFlauta, oboé, clarineta, sax, fagote, celesta, harpa, piano, coro misto e bateria (tímpanos, xilofone,bombo, tam-tam, tamborins, caixa, pratos, chocalhos, triângulos, reco-reco, coco e puita) - 10músicos, coro e maestro.

BAILARINOS/PERSONAGENSBailarina Principal/ AlmaBailarino Principal/ OswaldBailarina solista/ Alma, a pré-colombianaBailarino solista/ Oswald, o conquistadorBailarina solista/ A NegraBailarina solista/ Amiga de AlmaBailarino solista/ Amigo de OswaldBailarino/ DionísiosBailarina/ Guaraci, a mãe dos viventes

LIBRETO

Abstrato, expressionista, surrealista, futurista, modernista, concretista. Tudo isso já foi o Brasil nesteespetáculo. Agora, tudo se mistura no grande caldeirão do Perfeito Cozinheiro. Literalmente. Emcena, no fundo do palco, vê-se a boca da enorme caldeira onde se juntam os músicos de umaesdrúxula orquestra de cegos (todos de óculos escuros) em meio às cebolas, nabos, tomates,repolhos e outros legumes gigantescos, prontos para um monumental processo de “cozimento”. Aotoque da batuta invisível do “maestro” Oswald, o ator, a música começa, o caldeirão “ferve” e osbailarinos vão surgindo de dentro dos grandes legumes e, pulando fora do caldeirão, ocupam afrente do palco onde iniciam a dança. La estão todos os personagens, os ingredientes de umaperfeita deglutição cultural, impressão rápida de todo o Brasil; Festa da Raça.

SUGESTÕES CÊNICAS

O cenário é composto pela boca do caldeirão contornando toda a orquestra e os “legumes”, sob omesmo céu estrelado do 1º ato.

Os figurinos são os mesmos usados nos outros atos para as respectivas personagens exceto Alma eOswald que recebem uma criação nova e vanguardista.

Em caso de música ao vivo, os músicos com os instrumentos se colocam dentro do caldeirão e ocoro, com o verdadeiro maestro, fica no fosso da orquestra em posição tal que o maestro possareger a ambos, coro e orquestra.

No caso de fita magnética a orquestra é composta por manequins artificiais vestidos e com óculosescuros, segurando seus respectivos instrumentos.

7º ato - FESTA DA RAÇA (IMPRESSÃO RÁPIDA DE TODO O BRASIL)Esboço esquemático do cenário

Este roteiro foi elaborado para as seguintes músicas de VILLA-LOBOS:

1º ato - Choros nº 7 - Settimino (1924)

2º ato - Choros nº 1 (1920)

3º ato - Choros nº 2 (1924)

4º ato - Choros nº 3 - Pica Pau (1925)

5º ato - Choros nº 4 (1926)

6º ato - Choros nº 5 - Alma Brasileira (1925)

7º ato - Noneto (1923)

Os textos foram quase todos compostos pela adaptação de excertos das seguintes obras deOSWALD DE ANDRADE:

O Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo (1918)

Os Condenados (1917-1921)

Memórias Sentimentais de João Miramar (1923)

Pau Brasil - Poesia (1925)

Revista de Antropofagia (1927-1928)

Serafim Ponte Grande (1928)

Ponta de Lança - Polêmica (1943-1944)

Um Homem sem Profissão - Sob as ordens de Mamãe (1954)

Os textos do “diálogo com o Diabo” são uma adaptação de excertos da obra “Doutor Fausto” deThomas Mann, na tradução para o português de Herbert Caro.

Os títulos do 1º ato são do poeta francês Blaise Cendrars, extraídos do seu livro de poemas“Feulles de Route - Le Formose”, de 1924.

Os esboços esquemáticos dos cenários propostos foram desenhados pelo cenógrafo PauloFlaksman com a supervisão do autor.

A composição tipográfica deste libreto foi feita por Ricardo de Faria em PC IBM 286 com saídaem impressora Canon Inkjet.

Rio de janeiro, março de 1993.

Mario Drumond

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