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As religiões de matrizes africanas como fenômeno de hibridação de culturas em Salvador, Bahia. CAETANO, Carlos Alberto.¹ RESUMO O artigo aborda as questões relativas aos processos de hibridismo nas práticas religiosas de matrizes africanas a partir de vivência religiosa em Salvador, Bahia, com base na perspectiva conceitual de Canclini (2001), Hall (2003), Burke (2006), relacionando o tema com a abordagem geográfica de Holzer (1999). Integra a construção de uma tese de doutoramento em Geografia pela UNICAMP e tem o objetivo de estabelecer uma reflexão crítica sobre o tema. Parte da discussão sobre o conceito de matriz africana das religiões negras no Brasil, sugerindo o uso do plural, matrizes africanas, destacando que não existe uma única matriz, mas diversas, construídas pelos negros e negras, numa síntese de perspectivas culturais de resistência à escravidão. Relaciona o conceito de hibridação com a sistematização das práticas religiosas de matrizes africanas ocorridas desde a convivência de diferentes etnias nas senzalas até hoje. Uma das questões importantes colocadas pelo artigo é a sugestão de se diferenciar hibridismo cultural de sincretismo religioso, uma vez que o segundo refere-se, essencialmente, à relação entre o candomblé e a religião católica, havendo inclusive um manifesto de iyalorixás da Bahia contra tal prática. Já o hibridismo cultural é apresentado como um processo que ocorre do encontro de culturas diferentes que se imbricam, sem que haja um processo de mascaramento das características de uma dessas culturas, como ocorre no caso do sincretismo religioso entre o catolicismo e o candomblé. O artigo analisa ainda o fato de que, no regime colonial brasileiro, negros de diferentes origens étnicas foram colocados nas mesmas senzalas pelo colonizador, para dificultar uma eventual união contra a escravidão, sendo que o resultado perverso desse fato é a dificuldade que os negros têm hoje em descobrir qual a origem exata dos seus ancestrais na África. A partir disso o artigo problematiza o uso do que chama de genérico afro, que não indica a origem espacial, o lugar de onde vieram os ancestrais da população negra, para se usar uma categoria geográfica precisa em relação a isso, o lugar. Lugar de origem, lugar vivido, lugar de referência cultural. A reflexão feita traz a contribuição do conceito capital cultural a partir de uma citação de Bourdieu (1982) feita por Canclini (2001), destacando a importância do deslocamento de conceitos entre ciências diversas para a melhor compreensão de determinados fenômenos. PALAVRAS CHAVES: Hibridismo Cultural; escravidão negra; matrizes africanas; Candomblé.

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As religiões de matrizes africanas como fenômeno de hibridação de culturas em Salvador,

Bahia.

CAETANO, Carlos Alberto.¹

RESUMO

O artigo aborda as questões relativas aos processos de hibridismo nas práticas religiosas de matrizes africanas a partir de vivência religiosa em Salvador, Bahia, com base na perspectiva conceitual de Canclini (2001), Hall (2003), Burke (2006), relacionando o tema com a abordagem geográfica de Holzer (1999). Integra a construção de uma tese de doutoramento em Geografia pela UNICAMP e tem o objetivo de estabelecer uma reflexão crítica sobre o tema. Parte da discussão sobre o conceito de matriz africana das religiões negras no Brasil, sugerindo o uso do plural, matrizes africanas, destacando que não existe uma única matriz, mas diversas, construídas pelos negros e negras, numa síntese de perspectivas culturais de resistência à escravidão. Relaciona o conceito de hibridação com a sistematização das práticas religiosas de matrizes africanas ocorridas desde a convivência de diferentes etnias nas senzalas até hoje. Uma das questões importantes colocadas pelo artigo é a sugestão de se diferenciar hibridismo cultural de sincretismo religioso, uma vez que o segundo refere-se, essencialmente, à relação entre o candomblé e a religião católica, havendo inclusive um manifesto de iyalorixás da Bahia contra tal prática. Já o hibridismo cultural é apresentado como um processo que ocorre do encontro de culturas diferentes que se imbricam, sem que haja um processo de mascaramento das características de uma dessas culturas, como ocorre no caso do sincretismo religioso entre o catolicismo e o candomblé. O artigo analisa ainda o fato de que, no regime colonial brasileiro, negros de diferentes origens étnicas foram colocados nas mesmas senzalas pelo colonizador, para dificultar uma eventual união contra a escravidão, sendo que o resultado perverso desse fato é a dificuldade que os negros têm hoje em descobrir qual a origem exata dos seus ancestrais na África. A partir disso o artigo problematiza o uso do que chama de genérico afro, que não indica a origem espacial, o lugar de onde vieram os ancestrais da população negra, para se usar uma categoria geográfica precisa em relação a isso, o lugar. Lugar de origem, lugar vivido, lugar de referência cultural. A reflexão feita traz a contribuição do conceito capital cultural a partir de uma citação de Bourdieu (1982) feita por Canclini (2001), destacando a importância do deslocamento de conceitos entre ciências diversas para a melhor compreensão de determinados fenômenos.

PALAVRAS CHAVES: Hibridismo Cultural; escravidão negra; matrizes africanas; Candomblé.

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(¹) Doutorando em Geografia: UNICAMP. Orientadora profa. Arlêude Bortolozzi. Professor Assistente: UNEB

– Universidade do Estado da Bahia. [email protected]

1.Introdução: afro e matriz africana.

As senzalas brasileiras durante o período colonial, local onde viviam os escravos na

vigência do regime escravocrata que vitimou populações negras oriundas de diversos

territórios e lugares na África Ocidental, territórios esses que constituem hoje diferentes

países como Angola, Nigéria, Senegal, Moçambique, entre outros, são o ponto de partida

para as reflexões que este artigo propõe.

Os negros oriundos desses territórios e lugares, não falavam a mesma língua, já que

vinham de lugares com troncos linguísticos diferentes, portanto tinham culturas diferentes,

crenças e práticas religiosas diversas. As senzalas, então, tornaram-se ponto de encontro

dessas populações, passando a ser o locus de novas práticas socioculturais bastante

específicas, num processo que hoje é considerado como de hibridação cultural, de

hibridismo, que vai resultar no que chamamos de cultura negra brasileira. Esse processo de

hibridismo é o tema deste artigo.

Tornou-se usual na Bahia em particular e no Brasil de forma mais geral a utilização da

palavra afro para designar tudo aquilo que diz respeito à diversificada cultura dos negros

trazidos da África para o Brasil, na condição de escravos. É como se fosse possível pensar em

uma África única, um lugar idealizado, com uma cultura única, integrada por pessoas de uma

única característica, de uma única etnia. Um afro genérico. O mesmo acontece com o

conceito de matriz africana. Não existe uma matriz africana única, assim como não existe

um conceito que possa ser considerado o afro referencial. Este artigo se propõe a defender

que existem no Brasil diversas manifestações de diferentes matrizes africanas e diversas

manifestações do fenômeno cultural sintetizado no genérico afro.

Por isso, neste texto, irá se trabalhar com o uso do plural em relação às matrizes

africanas, explicitando que as culturas negras que chegaram ao Brasil formavam algo como

um caleidoscópio. A realidade da escravidão e os conflitos sociais do período colonial,

dizimaram algumas dessas culturas e modificaram cada uma das culturas que sobreviveram,

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dificultando a identificação de algumas das características originais peculiares de cada uma

delas. Para um negro ou negra brasileira saber hoje de que território ou lugar da África seus

ancestrais vieram é necessário um processo bastante complexo, que envolve inclusive

mapeamento genético.

Talvez, por isso mesmo, seja comum o uso do genérico afro e o não menos genérico

conceito de matriz africana, amplamente aceitos por alguns segmentos da comunidade

negra como referência em relação a esse importante fenômeno do patrimônio cultural

brasileiro: a contribuição milionária dos negros e negras que, oriundos de diferentes etnias e

de diferentes lugares na África, chegaram ao Brasil na condição de escravos.

2.Problemática: senzala como produtora de hibridação

Uma parte significativa desse complexo cultural está relacionada com o culto ao

sagrado, com aquilo que é considerado divino, como os rituais das religiões praticadas pelos

negros e, aceitas e praticadas hoje inclusive por não negros. São manifestações religiosas

relacionadas com os aspectos simbólicos de diferentes culturas presentes na vida cotidiana

dos brasileiros e que se expressam em suas práticas sociais. Algumas dessas práticas sociais

são oriundas, portanto, de territórios e lugares diferentes na África, preservadas nas

senzalas da escravidão, ainda durante o período colonial e mantidas até os dias de hoje.

As senzalas foram, nesse sentido, locais de produção de um intenso processo de

hibridação manifestado numa certa cumplicidade entre negros de origens étnicas

diferentes, algumas vezes até mesmo conflitantes, que tiveram a capacidade de sintetizar

suas culturas para sobreviver à dominação escravocrata e preservar seu patrimônio cultural.

Canclini (2001, p.192), ao analisar aspectos da cultura mexicana, particularmente no

que diz respeito aos museus, monumentos e a relação deles com o patrimônio cultural,

afirma que o patrimônio serve como lugar de cumplicidade. Deslocando-se esse conceito da

referência a museus mexicanos, com a devida ressalva, esse caráter dissimulador e de

cumplicidade do patrimônio, pode ser trazido para o debate sobre o tema deste artigo.

Assim, considera-se, como Canclini (2001), que o patrimônio

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dissimula que os monumentos e museus são, com frequência, testemunhos de dominação

mais que de uma apropriação justa e solidária do espaço territorial e do tempo histórico.

As marcas e os ritos que os celebram fazem lembrar a frase de Benjamin que diz que todo

documento de cultura é sempre, de algum modo, um documento de barbárie (CANCLINI,

2001, p.191).

A interpretação aqui apresentada, deslocada do seu uso original relativo a museus e

monumentos para a questão relativa às diferentes culturas negras trazidas para o Brasil pelo

regime colonial, justifica o uso do plural no que diz respeito às culturas negras e às matrizes

africanas presentes na formatação do patrimônio cultural brasileiro. Isso pode ajudar a

compreender o quanto esses complexos culturais são testemunhos da dominação e da

barbárie a que as etnias africanas foram submetidas no Brasil Colônia.

3.Objetivo: cultura é plural

O uso do singular na categoria matriz africana evidencia a barbárie perpetrada pela

colonização no sentido de eliminar as marcas referenciais de cada espaço territorial que

cada uma das diversas etnias negras representava. Considera-se, portanto, importante o uso

do plural para validar a presença no Brasil atual de muitas matrizes africanas, cada uma com

características próprias, expressas nos seus ritos, rituais, festas, celebrações e

comemorações.

Canclini (2001, p.191) fala sobre as celebrações e comemorações que ocorrem nos

museus onde se conserva o que é considerado um modelo de identidade, sempre se

referindo à recuperação da cultura mexicana.

Uma vez recuperado o patrimônio, ou ao menos uma parte fundamental dele, a relação

com o território volta a ser como antes, uma relação natural. Posto que nasceu nessas

terras, em meio a essa paisagem, a identidade é algo inquestionável. Mas como ao mesmo

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tempo tem-se a memória do que foi perdido e reconquistado, são celebrados e protegidos

os signos que os evocam. A identidade tem seu santuário nos monumentos e museus;

está em todas as partes, mas se condensa em coleções que reúnem o essencial (CANCLINI,

2001, p.191).

Transpondo mais uma vez a análise do autor para a realidade das práticas culturais

dos negros africanos trazidos como escravos para o Brasil, pode-se afirmar que os mesmos

tiveram sua relação com o território onde nasceram, ceifada pela colonização, pela

escravidão, mas a identidade estava para além da paisagem, registrada na memória

individual e coletiva que os signos e as celebrações rituais passaram a evocar, não em um

museu ou monumento como santuário, mas na prática social de resistência à escravidão,

práticas que passaram a ter o sentido de um santuário social cotidiano. E que começaram na

senzala.

Pode-se compreender que a junção de pessoas de diferentes origens étnicas, com

diversificadas práticas religiosas, culturais e sociais, vai produzir um processo de hibridação.

Burke (2006, apud Silva, 2014) aponta, inclusive, as formações religiosas que se manifestam

em diferentes formas de culto, seus signos, símbolos, ícones e a própria filosofia dessas

formações religiosas, como exemplos de identidades híbridas. Segundo o autor inglês, a

figura do híbrido muitas vezes funciona no papel de mediador cultural em especial nos casos

onde, após a consolidação do hibridismo, são produzidos resultados que, num certo sentido,

já nascem híbridos.

Os negros colocados nas senzalas coloniais brasileiras eram oriundos de diversas

etnias, uma estratégia da dominação escravocrata para facilitar sua dominação, mas esses

negros buscaram desconstruir essa heterogeneidade das divisões étnicas, permitindo o

nascimento e renascimento de rituais que uniam contra a possibilidade de apagar a

memória cultural e religiosa. Os rituais que renascem na senzala não fazem alusão a

conflitos específicos entre etnias e grupos. Canclini (2001, p. 192) destaca o aspecto

hegemônico que os rituais assumem ao se concretizarem.

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A história de todas as sociedades mostra os ritos como dispositivos para neutralizar a

heterogeneidade, reproduzir autoritariamente a ordem e as diferenças sociais. O rito se

distingue de outras práticas porque não é discutido, não pode ser mudado nem realizado

pela metade. É realizado, e então ratificamos nossa participação em uma ordem, ou é

transgredido e ficamos excluídos, de fora da comunidade e da comunhão (CANCLINI,

2001, p.192).

A senzala teve a função de unificar as etnias misturadas propositadamente pelo

colonizador para dificultar a possibilidade de uma reação anti-escravocrata. No silêncio da

escravidão os negros de diferentes etnias mantiveram seus rituais, sejam esses rituais de

iniciação, de legitimação ou de instituição, sempre com uma função social de integração

entre pares de origens étnicas distintas, constituindo assim, na diversidade, uma unidade a

partir do ritual simbólico. Como diz o próprio Canclini (2001),

as teorias mais difundidas sobre o ritual, desde Van Gennep a Gluckman, entendem-no

como modo de articular o sagrado e o profano e por isso o estudam quase sempre na vida

religiosa. Mas, o que é o sagrado ao qual remetem os ritos políticos e culturais? Uma certa

ordem social que não pode ser modificada e por isso é vista como natural ou sobre-

humana. O sagrado tem então dois componentes: é o que vai além da compreensão e da

explicação do homem e o que ultrapassa a sua possibilidade de muda-lo (CANCLINI, 2001,

p. 192).

Talvez seja esse o motivo de Canclini (2001, p. 192) citar Pierre Bourdieu (1982, pp

58 – 63) na obra Les Rites comme actes d’institution para falar dos ritos considerados

clássicos, como por exemplo, passar da infância para a idade adulta, explicando que o ritual

sanciona o mundo simbólico, “um ato de magia social”. No caso dos negros escravizados no

período colonial brasileiro, esses rituais que ocorriam na senzala vão, num certo sentido,

reterritorializar esses negros, apartados de seu lugar de origem, reconstruindo suas

identidades num processo de reterritorialidade educativa que superava as fronteiras étnicas

que os separavam, como contextualiza Burke (2006, p.91, apud Silva 2014).

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Segundo Burke (2006), os processos de segregação podem se transformar em

processos de adaptação que descontextualiza e recontextualiza, como ocorre com diversas

características de outros povos que chegam ao Brasil ao longo dos tempos. No caso dos

africanos, alguns voltaram à África quando libertos, levando de volta a seus lugares de

origem novos hábitos construídos ao longo dos tempos de escravidão no Brasil, como num

processo que Burke (2006) chama de reexportação do que foi hibridizado.

O fenômeno da cultura e da religião dos negros africanos no Brasil não é o único

exemplo que pode ser citado em relação à hibridismo entre culturas. Burke (2006) traz

exemplos desde Constantinopla, na Grécia; fala dos povos muçulmanos e a expansão do Islã;

a colonização inglesa na Índia e na Irlanda. Todos esses povos construíram uma nova cultura

a partir do processo de hibridação, eliminando, em alguns casos, a característica de

isolamento de alguns desses povos (Burke, 2006, p.101, apud Silva 2014). Pode-se dizer que

essa nova cultura acaba por se consolidar como capital cultural desses povos, ela traz para

eles uma nova relação de pertencimento.

4.Metodologia: problematizar a partir do capital

Neste artigo a interpretação foi feita a partir do recurso a uma metodologia de

caráter materialista histórico dialético e contempla a compreensão do papel do capital na

estruturação e reestruturação das relações sociais.

O conceito de capital cultural, utilizado inicialmente por Bourdieu (1982, apud

Canclini, 2001), é usado aqui a partir do fato de ter sido adotado por Canclini (2001, p. 195)

com a ressalva de que, no caso de Bourdieu, esse conceito é empregado para analisar

processos culturais educativos. Portanto, é feito um deslocamento de um conceito de uma

área para outra, como o próprio Canclini destaca.

Ainda que esse autor não o empregue em relação ao patrimônio. Aqui aponto sua

fecundidade para dinamizar a noção de patrimônio e para situa-la na reprodução social.

Um uso mais sistemático deveria discutir, como frente a qualquer importação de

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conceitos de uma área para outra, as condições epistemológicas e os limites do seu uso

metafórico em uma área para a qual não foi trabalhado (CANCLINI, 1991, p.195, nr 24).

Deslocar esse conceito para uma interpretação como a que este artigo está

propondo, requer o registro dessa ressalva e o cuidado de estar relacionando os rituais de

práticas simbólicas e educativas que ocorriam nas senzalas, com a construção do patrimônio

cultural de matrizes africanas tão presente na cultura brasileira.

Destaque-se que essas práticas simbólicas e educativas são mantidas até hoje pelos

templos religiosos negros, os terreiros de candomblé, nos rituais de iniciação, legitimação e

instituição de suas práticas sagradas e de suas relações com o simbólico e com o divino.

5.Resultados: Falando em identidade, cultura e hibridismo

É importante destacar que está se falando sobre identidade, cultura, escravidão,

colonialismo, etnias africanas e patrimônio cultural brasileiro, uma sequência de categorias

de análise que podem ser conceitualmente abordadas quando se introduz na interpretação

reflexões sobre hibridação, hibridismo e culturas híbridas, com base em Canclini (2001, p.

XVII, int.). Esse autor explica que

historiadores e antropólogos mostraram o papel decisivo da mestiçagem no Mediterrâneo

no tempo da Grécia clássica (Laplantine & Nouss), enquanto outros estudiosos recorrem

especificamente ao termo hibridação para identificar o que sucedeu desde que a Europa

se expandiu em direção à América (Bernand; Gruzinski). Mikhail Bakhtin usou-o para

caracterizar a coexistência, desde o princípio da modernidade, de linguagens cultas e

populares (CANCLINI, 2001, pp XVII-XVIII, int.).

No caso deste artigo, os conceitos hibridação e hibridismo são adotados em dois

sentidos. O primeiro diz respeito ao fato já citado de que diferentes etnias africanas foram

compulsoriamente colocadas numa convivência forçada pelo colonizador português. O

segundo, com características ainda mais agudas, refere-se à própria convivência entre

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senhores e escravos, agora não mais na senzala, mas na própria casa grande, fato

amplamente registrado por clássicos da sociologia brasileira. Resultando em contatos entre

culturas diversas que irão influenciar, por exemplo, as vestimentas femininas nos rituais do

candomblé.

Uma reflexão importante sobre os processos de hibridismo e hibridação cultural é

feita pelo jamaicano Stuart Hall (2003, p. 74), ao falar sobre o que ele chama, citando Aijaz

Ahmad (1995), de fertilização cruzada das culturas, referindo-se a todos os movimentos

populacionais envolvidos em viagens, contato, transmutação.

Um termo que tem sido utilizado para caracterizar as culturas cada vez mais mistas e

diaspóricas dessas comunidades é “hibridismo”. Contudo, seu sentido tem sido

comumente mal interpretado. Hibridismo não é uma referência à composição racial mista

de uma população. É realmente outro termo para a lógica cultural da tradução (grifo do

autor). Essa lógica se torna cada vez mais evidente nas diásporas multiculturais e em

outras comunidades minoritárias e mistas do mundo pós-colonial (HALL, 2003, p.74).

Colocada essa sinalização de Hall (2003) relativa à não referência à composição racial

mista da população, destaca-se que no caso deste artigo está se falando exatamente do

processo de tradução das diferentes culturas das diferentes etnias que se encontraram nas

senzalas do Brasil colonial e produziram uma sistematização de referência identitária que

culmina no que está sendo chamado de matrizes africanas. Hall (2003) prossegue sua

conceituação afirmando que

o hibridismo não se refere a indivíduos híbridos, que podem ser contrastados com os

“tradicionais” e “modernos” como sujeitos plenamente formados. Trata-se de um

processo de tradução cultural, agonístico uma vez que nunca se completa, mas que

permanece em sua indecidibilidade (HALL, 2003, p.74).

A experiência teórica do pesquisador indiano Homi Bhabha (1977), é citada por Hall

(2003, pp. 74-75), quando aborda a questão dos sistemas de referência de cada cultura no

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processo de hibridismo. Bhabha (1977) é conhecido por suas formulações sobre hibridação

quando fala, nesses casos, sobre a relação entre identidade e representação social.

Não é simplesmente apropriação ou adaptação; é um processo através do qual se

demanda das culturas uma revisão de seus próprios sistemas de referência, normas e

valores, pelo distanciamento de suas regras habituais ou “inerentes” de transformação.

Ambivalência e antagonismo acompanham cada ato de tradução cultural, pois o

negociador com a “diferença do outro” revela uma insuficiência radical de nossos próprios

sistemas de significado e significação (BHABHA, 1977, apud HALL, 2003, p.75).

Nos processos de hibridação é possível se afirmar que traduzir pode ser ou não ser

trair, uma vez que os valores traduzidos serão acompanhados por condições complexas e

muitas vezes conflituosas, como explica Bhabha (1977):

o hibridismo significa um momento ambíguo e ansioso de ... transição, que acompanha

nervosamente qualquer modo de transformação social, sem a promessa de um

fechamento celebrativo ou transcendência das condições complexas e até conflituosas

que acompanham o processo...[Ele] insiste em exibir ... as dissonâncias a serem

atravessadas apesar das relações de proximidade, as disjunções de poder ou posição a

serem contestadas; os valores éticos e estéticos a serem “traduzidos”, mas que não

transcenderão incólumes o processo de transferência (BHABHA, 1977, apud HALL, 2003

p.75).

Sempre referindo-se à América Latina, fato amplamente justificável em decorrência

de sua própria origem, Canclini (1991, XVIII, intr..) também cita Bhabha, entre outros

autores, ao explicar que na década final do século XX se estende a análise de hibridação a

diversos processos culturais, após citar que Mikhail Bakhtin usou-o para caracterizar a

coexistência, desde o princípio da modernidade, de linguagens cultas e populares.

Entretanto, o momento em que mais se estende a análise da hibridação a diversos

processos culturais é na década final do século XX. Mas também se discute o valor desse

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conceito. Ele é usado para descrever processos interétnicos e de descolonização (Bhabha,

Young); globalizadores (Hannerz); viagens e cruzamento de fronteiras (Clifford); fusões

artísticas, literárias e comunicacionais (De la Campa; Hall; Martín Barbero; Papastergiades;

Webner). (CANCLINI, 1991, XVIII, intr.).

6. Discussão: hibridismo não é sincretismo

Uma questão importante a se analisar para ampliar a discussão neste artigo diz

respeito ao chamado sincretismo religioso, praticado por essas mesmas populações negras

escravizadas no Brasil, a partir das relações da senzala com a casa grande. No caso, trata-se

do sincretismo entre a religião africana originária de cada grupo étnico e a religião católica

dos senhores dos engenhos. Embora o sincretismo não seja exatamente o tema deste artigo,

mas o hibridismo, é importante diferenciá-los.

A comparação entre o conceito de hibridação e sincretismo é feita por Canclini (1991)

de uma forma que pode ser considerada sutil, mas o conceito de sincretismo tem uma

importância fundante na discussão sobre o comportamento de negros escravizados nas

senzalas do Brasil colonial. Foi o fenômeno denominado sincretismo que permitiu a esses

negros continuarem suas práticas religiosas maquiadas como práticas católicas para fugir ao

controle do senhor do engenho.

Neste artigo prefere-se diferenciar hibridação de sincretismo, uma vez que a

hibridação é um fenômeno de síntese digamos que definitiva entre duas (ou mais) culturas,

enquanto o sincretismo, no caso das culturas de matrizes africanas no Brasil, foi uma

estratégia temporária de sobrevivência e resistência à dominação escravocrata. Que pode

ser desconstruído.

Tanto isso é correto que nas duas últimas décadas do século XX houve uma forte

crítica ao sincretismo religioso por parte de algumas comunidades religiosas negras na

Bahia, particularmente em Salvador, tendo sido divulgado um Manifesto Anti-sincrético,

assinado pelas mais respeitáveis mães-de-santo do candomblé baiano.

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Considera-se essa discussão entre hibridismo e sincretismo uma polêmica em aberto,

sem a necessidade de uma conclusão definitiva que venha a ser considerada como verdade.

Para Canclini (1991, p.XIX, intr.), alguns preferem continuar a falar em sincretismo em

questões religiosas, destacando que o termo híbrido, de fato, é carregado de equivocidade,

questionando a vantagem de seu uso na pesquisa científica.

Parto de uma primeira definição: (grifo do autor) entendo por hibridação processos

socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada,

se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas. Cabe esclarecer que

estruturas chamadas discretas foram resultado de hibridações, razão pela qual não podem

ser consideradas fontes puras (CANCLINI, 1991, p. XIX, intr.).

O autor detalha ainda mais como se processa o que ele chama de trânsito do discreto

ao híbrido, e a novas formas discretas,

é a fórmula “ciclos de hibridação”, proposta por Brian Stross, segundo a qual na história,

passamos de formas mais heterogêneas a outras mais homogêneas, e depois a outras

relativamente mais heterogêneas, sem que nenhuma seja “pura” ou plenamente

homogênea (CANCLINI, 1991, p. XX, intr.).

Assim, Canclini (1991) considera satisfatória a discussão que promove sobre a

importação do conceito de hibridismo de outra ciência, a biologia, para suas reflexões no

campo da cultura e da sociedade. Ele explica que

[...] não há porque ficar cativo da dinâmica biológica da qual toma um conceito. As

ciências sociais importaram muitas noções de outras disciplinas, que não foram

invalidadas por suas condições de uso na ciência de origem. Conceitos biológicos como o

de reprodução foram reelaborados para falar de reprodução social, econômica e cultural:

o debate efetuado desde Marx até nossos dias se estabelece em relação com a

consistência teórica e o poder explicativo desse termo, não por uma dependência fatal do

sentido que lhe atribuiu outra ciência (CANCLINI, 1991, p. XXI, intr.).

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Esse deslocamento conceitual guarda uma similaridade com o que está sendo

proposto por este artigo em relação às chamadas culturas de matrizes africanas, pelo fato de

que diversas etnias, cada uma com sua prática cultural, simbólica e religiosa, juntam-se para

produzir na senzala durante a escravidão colonial, uma outra prática cultural, um outro

universo simbólico e uma outra religião que vem resultar no que hoje chama-se de

candomblé e que pode ser interpretado como capital cultural das populações negras

brasileiras.

Esse uso do conceito econômico capital relacionado à categoria cultura merece um

comentário especial de Canclini (1991) que afirma que

[...] as polêmicas sobre o emprego metafórico de conceitos econômicos para examinar

processos simbólicos , como o faz Pierre Bourdieu ao referir-se ao capital cultural e aos

mercados linguísticos, não têm que concentrar-se na migração desses termos de uma

disciplina para outra, mas, sim, nas operações epistemológicas que situem sua

fecundidade explicativa e seus limites no interior dos discursos culturais: permitem ou não

entender melhor algo que permanecia inexplicado? (CANCLINI, 1991, p. XXI).

Também não se pode desconhecer que há, no candomblé, inclusive, a contribuição

da cultura do colonizador escravocrata branco em relação às vestimentas femininas,

inspiradas nas roupas das senhorinhas da corte. Aquelas saias rodadas, com muitas anáguas

engomadas por baixo.

7.Considerações finais: uma invenção brasileira

Na realidade, na África não existe uma religião chamada de candomblé, é uma

invenção híbrida brasileira. Na África existem cultos à ancestralidade, aos mortos e,

dependendo da etnia, culto aos orixás, aos voduns ou aos inkisses, palavras de diferentes

línguas para definir o mesmo fenômeno, mas que não recebe o nome de candomblé de

Page 14: As religiões de matrizes africanas como fenômeno de hibridação … · Parte da discussão sobre o conceito de matriz africana das religiões negras no Brasil, sugerindo o uso

orixás. Assim como existe culto aos ancestrais mortos e que, no Brasil, foi denominado de

candomblé de eguns, palavra yorubá que refere-se aos espíritos dos mortos.

Pode-se afirmar, portanto, que ao adotar esse procedimento de hibridação os negros

escravizados transformaram seus ritos simbólicos, suas práticas religiosas, seus cultos à

ancestralidade, em capital cultural da negritude brasileira.

Pode-se inferir que o casamento da reflexão sobre hibridismo com uma

problematização sobre as práticas culturais dos negros escravizados nas senzalas do Brasil

colonial produz, uma interpretação peculiar, que foge do que pode ser considerado um lugar

comum que se tornou o hábito de atribuir-se a essas práticas o rótulo de sincretismo, hoje

recusado e criticado por amplos segmentos ligados às práticas religiosas consideradas de

matrizes africanas. Mas que se refere, quase que exclusivamente, à relação entre as religiões

de matrizes africanas e à religião católica. Não se refere, por exemplo, às religiões negras de

matrizes africanas e o islamismo praticado no Brasil colonial. Mas, isso é tema para outro

artigo.

REFERÊNCIAS

BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2006.

CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade.

São Paulo: Edusp, 2001.

HALL, Stuart; SOVIK, Liv. Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte:

Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003.

HOLZER, Werther. Paisagem, imaginário, identidade: alternativas para o estudo geográfico.

In: ROSENDAHL, Zeny; CORRÊA, Roberto Lobato, orgs. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1999.

SILVA, Anderson Lopes da. “Hibridismo Cultural” de Peter Burke. Publ. UEPG Ci. Soc. Apl.,

Ponta Grossa, 22 (2): 229 -231, jul./dez. 2014. Disponível em

http://www.revistas2.uepg.br/index.php/sociais. Acesso em: 10 abr.2016.