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'As pessoas têm de descobrir que perdem tempo quando não leem' Entrevista Delia Lerner: educadora Argentina Consultora de órgãos governamentais em vários países, especialista afirma que as escolas não sabem ensinar leitura e escrita  Simone Iwasso Mesmo com todos os conhecimentos científicos sobre a aquisição da leitura e escrita desenvolvidos nos últimos 30 anos, a escola ainda insiste num foco equivocado: ensina a língua e não as práticas sociais vinculadas a ela. Ou seja, além de não conseguir dar sentido ao ato de ler e escrever, despertando o interesse do estudante, cobra nas avaliações o que não foi transmitido em sala de aula. A análise é da educadora argentina Delia Lerner, especialista da Universidade de Buenos Aires e consultora de diversos órgãos governamentai s na América Latina, inclusive no Brasil, onde assessora o Ministério da Educação (MEC). Com a experiência de quem, além do trabalho acadêmico, mantém uma escola em Buenos Aires, que funciona como seu laboratório, Delia esteve no País em outubro para falar com educadores durante a Semana Victor Civita de Educação. A seguir, trechos da entrevista concedida ao Estado. Por que é tão difícil formar estudantes com autonomia para leitura e escrita? Há dois problemas diferentes. Um deles é o próprio ensino de leitura e da escrita. O outro é se as avaliações aplicadas para verificar leitura e escrita estão realmente avaliando. Para mim, não é evidente que devemos ter

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7/25/2019 As Pessoas Precisam Saber Délia

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'As pessoas têm de descobrir que perdem tempo

quando não leem'

Entrevista

Delia Lerner: educadora Argentina

Consultora de órgãos governamentais em vários países, especialista

afirma que as escolas não sabem ensinar leitura e escrita 

Simone Iwasso 

Mesmo com todos os conhecimentos científicos sobre a aquisição da leitura

e escrita desenvolvidos nos últimos 30 anos, a escola ainda insiste num focoequivocado: ensina a língua e não as práticas sociais vinculadas a ela. Ouseja, além de não conseguir dar sentido ao ato de ler e escrever, despertandoo interesse do estudante, cobra nas avaliações o que não foi transmitido emsala de aula. A análise é da educadora argentina Delia Lerner, especialistada Universidade de Buenos Aires e consultora de diversos órgãosgovernamentais na América Latina, inclusive no Brasil, onde assessora oMinistério da Educação (MEC). Com a experiência de quem, além dotrabalho acadêmico, mantém uma escola em Buenos Aires, que funcionacomo seu laboratório, Delia esteve no País em outubro para falar comeducadores durante a Semana Victor Civita de Educação. A seguir, trechosda entrevista concedida ao Estado.

Por que é tão difícil formar estudantes com autonomia para leitura e

escrita?

Há dois problemas diferentes. Um deles é o próprio ensino de leitura e da

escrita. O outro é se as avaliações aplicadas para verificar leitura e escritaestão realmente avaliando. Para mim, não é evidente que devemos ter

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confiança nos resultados dessas avaliações porque a leitura e escrita são processos que se desenvolvem com o tempo e, mesmo que seja importante para o sistema educacional ter uma fotografia instantânea do que se passa nomomento, não é o que importa realmente para quem está olhando de dentroda classe. O importante é fazer com que os alunos avancem como leitores eescritores. Muitas provas são feitas à imagem e semelhança de provasinternacionais - algumas inclusive são internacionais. Por exemplo, naArgentina houve muito escândalo quando se compararam os resultados daFinlândia com os da Argentina. Bom, é necessário nos questionarmos qual osentido em comparar resultados de países tão diferentes. Escutei umaentrevista do ministro da Educação da Finlândia sobre a que ele devia tão

 bons resultados. Ele respondeu que os professores recebiam salários muito bons, estavam em constante formação e tinham excelentes condiçõestrabalhistas. Isso, em relação à Argentina, já diz muita coisa sobre o nossosistema, não sobre nossos alunos.Esse é um problema. O outro é que, no sistema educacional constituído, a

leitura e a escrita como processos não são objeto de ensino. No caso daescrita, ela é objeto de avaliação, mas não de ensino. O que se visualizacomo objeto de ensino tradicionalmente é a língua, não as práticas delinguagem vinculadas a ela.

Como mudar essa cultura de falta de ensino? 

 Não creio que seja só o professor que possa mudar algo. Há muitos quetentam. Um dos pontos mais elementares é que os professores, desde cedo,

leiam muito para seus alunos. E leiam obras de qualidade. Ao menos naminha experiência, ler para as crianças é uma das medidas mais fáceis deserem inseridas no sistema escolar com resultado. É essencial que, desde oinício da escolarização, leitura e escrita estejam dotadas do sentido querealmente têm. A escola entende que ler e escrever não são atividades que seaprendem só para ler e escrever, mas também para comunicar-se comoutros, para informar-se sobre os outros, para apreciar as qualidadesliterárias de um autor, para pensar melhor, aprofundar as idéias. A escola

 precisa mostrar as situações nas quais se pode trabalhar escrita e leitura com propósitos tão interessantes quanto os que são oferecidos fora da escola.

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 Como o desenvolvimento científico e os avanços do conhecimento sobre

o sistema cognitivo infantil, podem contribuir para o ensino? 

Um aspecto fundamental do ensino é propor problemas cognitivos aosalunos porque, ao tentar respondê-los, eles estarão produzindoconhecimento como resposta. Dessa perspectiva, conhecer as ideias dascrianças, como os processos que elas desenvolvem, é fundamental porque

 permite organizar situações didáticas nas quais as crianças podem intervir,que tipo de desafios eles podem conseguir resolver usando seusconhecimentos prévios, permite aproximar o ensino da aprendizagem. Essaaproximação é essencial para acabar com as altíssimas taxas do fracassoescolar. Para nós, foram um aporte muito forte os descobrimentoslingüísticos, os modelos de psicologia cognitiva sobre o modelo de escrita.Os estudos mais recentes focam muito no nível da palavra, que, para o usocom a aprendizagem, sabemos não ser suficiente. Então usamos menos os

conhecimentos mais atuais. Em Buenos Aires, todas as escolas públicas têmlaboratório de computação e todas as séries, uma ou duas vezes por semana,têm horários reservados para usar o computador. Agora, há uma diferençaqualitativa quando existe um ajudante de um professor que é monitor desseslaboratórios e quando tudo está nas mãos de um garoto que entende muitode computadores, mas nada de ensino. Com relação à leitura foi mais difícil

 por causa do hipertexto. Isso que estamos incorporando nas escolas que têmcondições propõe muitos problemas didáticos. Como fazer para que osestudantes decidam se uma informação é confiável ou não? Como fazer com

que eles a comparem com outras fontes de informação? Como lidar com a possibilidade de reprodução sem gerar condições didáticas para que osalunos sejam autores e não mescladores de textos de outras pessoas? Isso émais difícil hoje. É um novo problema didático.

O que seria essencial que pais e professores soubessem? 

Gostaria que todo mundo tivesse a possibilidade de descobrir que a leitura ea escrita são ferramentas de desenvolvimento pessoal importantes. Sempreme lembro de um especialista francês em leitura que fazia a seguinte

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atividade com os alunos: ir à biblioteca e analisar todos os livros que elesnunca leram. E descobrir por que não os leram. Com esse tipo de atividade,ele conseguia fazer os estudantes se interessarem mais e desenvolverem umsenso crítico. Para que alguém se transforme em um não-leitor, que seja umnão-leitor crítico, que saiba porque está lendo e porque não está lendo. Sealguma coisa as ferramentas tecnológicas fizeram foi obrigar as pessoas aler. Crianças que não leem passam o dia trocando mensagens pelo celular.As pessoas precisam descobrir o que estão perdendo quando não leem. Seelas soubessem disso, muitos não-leitores se tornariam leitores. Muitascrianças não sabem o que podem encontrar na leitura. E seria muito bom sea escola conseguisse um dia lhes mostrar isso.

Quem é:

Delia Lerner 

A educadora trabalha como assessora de órgãos governamentais em vários países da América Latina e na Espanha

É professora da Universidade de Buenos Aires e da Universidade de LaPlata, na Argentina

Trabalha como consultora do Ministério da Educação (MEC) nas áreas dealfabetização e currículos