as múltiplas faces da violência no brasil

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    As mltiplas faces da violncia no Brasil

    Leonarda MusumeciIE/UFRJ

    1. Nmeros e nomesDe 1985 a 1995, segundo dados do Ministrio da Sade, 307 mil pessoas residentes no

    Brasil foram vtimas de homicdio ou morreram em consequncia de leses corporais

    intencionalmente provocadas por terceiros, cifra a que se somam 141 mil mortes derivadas de

    outras violncias e 316 mil causadas por acidentes de trnsito. Os mesmos dados mostram que

    os homicdios e mortes por leso dolosa cresceram 88%, a vitimizao fatal em acidentes de

    trnsito, 33%, e que s as mortes por outras violncias tiveram um decrscimo de 25% nessa

    dcada.1

    Considerando-se o pas como um todo, de cada cem mil habitantes 24 morreram

    assassinados ou vtimas de leses dolosas em 1995. Na Regio Sudeste o ndice foi de 33 por

    cem mil, chegando a 62 por cem mil no estado do Rio de Janeiro, 41 no Esprito Santo e 34 no

    estado de So Paulo. O total de mortes por agresses intencionais nesses trs estados cresceu

    respectivamente 223%, 153% e 64% durante o perodo 1985-1995. Em diversas outras unidades

    da federao, fora da Regio Sudeste, as taxas de incremento absoluto tambm foram

    elevadssimas: 625% em Roraima, 298% em Sergipe, 265% no Amap, 184% na Bahia, 152%

    no Distrito Federal e 151% em Mato Grosso do Sul, para citarmos apenas alguns exemplos.

    Acidentes de transporte mataram em todo o pas, no ano de 1995, 21 pessoas em cada cem mil

    habitantes, registrando-se os ndices mais altos nas Regies Centro-Oeste (30 por cem mil), Sul

    (29) e Sudeste (24). As maiores taxas estaduais de crescimento de bitos por essa causa, na

    dcada 1985-1995, foram verificadas em Roraima (800%), Sergipe (125%), Cear (111%), Acre

    (87%) e Distrito Federal (77%).

    Os nmeros do Ministrio da Sade retratam uma parte apenas, e a mais trgica, da

    violncia: aquela resultante na morte das vtimas. impossvel dimensionar o universo -

    certamente muito maior - de agresses no-letais praticadas cotidianamente no pas: no se criou

    ainda uma base de mbito nacional reunindo dados sobre violncia e criminalidade, e s alguns

    estados divulgam regularmente estatsticas dessa natureza, com base em boletins e registros de

    1Ministrio da Sade/DATASUS. Sistema de Informaes sobre Mortalidade - SIM(dados divulgados via Internet).

    As estatsticas dessa fonte baseiam-se em levantamento de atestados de bito feito nos cartrios pelas secretariasestaduais e agrupados por tipos de causa mortissegundo normas da Organizao Mundial de Sade. Embora hajasubregistro, os dados de mortalidade so geralmente mais precisos que os indicadores de agresses no-letais,que dependem de notificao das vtimas, salvo quando mensurados tambm atravs de pesquisas devitimizao.

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    ocorrncias policiais. Data de 1988 a primeira e ltima pesquisa nacional de vitimizao,

    realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica. A falta de informaes quantitativas

    abrangentes e atualizadas constitui, por si mesma, um srio obstculo ao conhecimento das

    diversas modalidades, causas e efeitos da violncia no Brasil, anlise da sua distribuio e

    evoluo, bem como avaliao dos resultados de polticas e iniciativas direcionadas aoenfrentamento desse problema.

    Mesmo com dados fragmentrios, os esforos de pesquisadores e ativistas de diversas

    instituies para ampliar a visibilidade e compreenso dos fenmenos de violncia no pas vm

    indicando a necessidade de superar esquemas explicativos demasiado genricos, monocausais,

    em prol de anlises que captem as vrias formas e espaos de manifestao da violncia. Esta

    no se distribui homogeneamente na sociedade, nem se apresenta com a mesma face para os

    diversos segmentos que a compem. Embora se alimente de um caldo de cultura comum -profundas desigualdades sociais, impunidade, tradies autoritrias, pouca disseminao dos

    valores de respeito aos direitos humanos e civis - so mltiplas as suas fontes e motivaes,

    como so de diversos tipos os seus agentes e vtimas.

    Violncia urbana.Em torno do trfico clandestino de drogas e armas estrutura-se a face mais

    visvel da violncia e da criminalidade urbanas contemporneas, tanto no Brasil quanto em

    outros pases do mundo. Tem-se exagerado, contudo, na retrica do crime organizado, comojustificativa para o tratamento do problema por um vis militar e blico, enxergando-se nas

    comunidades carentes, onde se enraiza uma ponta do trfico (nem sempre a mais organizada),

    focos de contestao da soberania nacional - vis que sanciona outras formas de violncia e

    arbtrio, oriundas do prprio aparelho de Estado, contra essas comunidades. inegvel que em

    muitas delas o controle exercido por traficantes e suas leis cria enclaves quase-autnomos,

    margem do poder pblico, residindo a uma das fontes multiplicadoras da violncia e do crime.

    Parece evidente tambm existirem conexes entre o crescimento do trfico de drogas/armas e aescalada da violncia com fins lucrativos que vitimiza diversas camadas sociais: seqestros,

    roubos de automveis e autocargas, assaltos a residncias e a estabelecimentos comerciais e

    financeiros, extorses e latrocnios.2Entretanto, o enfoque blico no apenas tende a deixar em

    segundo plano outras redes que possibilitam a expanso do trfico e que no se situam no

    interior das comunidades carentes, como refora, ao invs de modificar, algumas das condies

    2No h dados nacionais, como j dito, para dimensionar essas modalidades de violncia. Na Regio Policial daGrande So Paulo, segundo informaes do SEADE, o nmero notificado de crimes contra o patrimnioenvolvendo violncia (roubos e tentativas de roubo, latrocnios, extorses e seqestros com fim de extorso)aumentou 8,5% entre 1995 e 1996. Anurio Estatstico do Estado de So Paulo 1996. So Paulo, FundaoSEADE, 1997 (dados divulgados via Internet).

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    de reproduo do problema: a falta de confiana das massas populares no poder pblico e os

    justificados sentimentos de temor e revolta que estas nutrem em relao Polcia, ponta mais

    visvel do aparelho estatal, decerto no contribuem para enfraquecer os baronatos de traficantes,

    nem para angariar a colaborao dos no-traficantes com as foras da lei.

    Jovens do sexo masculino, entre 15 e 29 anos, constituam, em 1995, 47% das vtimas deassassinatos e mortes decorrentes de leses dolosas no pas como um todo, correspondendo a um

    ndice de 78,4 bitos por cem mil habitantes dessa faixa etria. Em alguns bairros pobres das

    cidades do Rio de Janeiro e So Paulo, os homicdios na faixa de 15 a 34 anos atingem

    propores endmicas, chegando a mais de 200 por cem mil habitantes.3O envolvimento com

    gangues, com o trfico de drogas e com a criminalidade parece ser um dos maiores fatores de

    exposio violncia letal entre jovens de baixa renda nessas reas urbanas.4 Quanto mais

    fechados os canais legtimos de ascenso - acesso ao ensino de 2 e 3 graus, e a postoscompensadores no mercado de trabalho -, maior a atratividade da opo criminosa para um

    nmero crescente de jovens, no se devendo esquecer, porm, que essa uma opo

    eminentemente masculina: nas mesmas condies sociais, revela-se muito mais baixo o

    envolvimento de mulheres de qualquer faixa etria com a violncia em espaos pblicos, o que

    sinaliza a co-presena de valores culturais associando masculinidade a violncia, ou risco de

    violncia, entre os atrativos exercidos pelo mundo do crime sobre uma parcela da juventude

    brasileira.5 Valores que, por sinal, no so exclusivos dos homens jovens, nem das camadasmenos favorecidas, mas que encontram a, frente a um estreito leque de escolhas, seus canais de

    expresso mais visveis e mais letais.

    Na cidade do Rio de Janeiro j se esboam, embora ainda de forma tmida, algumas

    polticas afirmativas direcionadas fatia da populao composta de jovens negros (pretos e

    pardos), moradores de favelas, margem tanto do mercado de trabalho, quanto do sistema

    escolar. Programas mais amplos de gerao de emprego e renda, aumento de escolaridade e

    requalificao profissional comeam tambm a ser desenvolvidos pela recm-criada SecretariaEspecial do Trabalho do Municpio, em parceria com organizaes da sociedade civil, nas

    3Mapa de risco da violncia: cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, CEDEC/ISER, 1997 e PINHEIRO, PauloSrgio. Volncia, crime e sistemas policiais em pases de novas democracias. Tempo Social - Revista deSociologia da USP, (9)1: 43-52, maio de 1997.4Cf. SOARES, Luiz Eduardo, MILITO, Cludia & SILVA, Hlio. Homicdios dolosos praticados contra crianas eadolescentes no Estado do Rio de Janeiro - 1991 a julho de 1993. In: SOARES, Luiz Eduardo et al. Violncia e

    poltica no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Relume-Dumar/ISER, 1996, pp. 189-215; CALDEIRA, Csar. OperaoRio e cidadania: as tenses entre o combate criminalidade e a ordem jurdica. Comunicaes do ISER, 48, 1966,p. 48; PINHEIRO, Paulo Srgio. Volncia, crime e sistemas policiais em pases de novas democracias. TempoSocial - Revista de Sociologia da USP, (9)1: 43-52, maio de 1997.5Cf. ZALUAR, Alba. Teleguiados e chefes: juventude e crime. Religio e Sociedade, 15(1): 54-67, 1990.

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    comunidades beneficiadas pelo projeto Favela-Bairro. Diversos outros municpios brasileiros

    multiplicaram nos ltimos anos iniciativas governamentais e no-governamentais, de natureza

    educacional, esportiva ou profissionalizante, objetivando ampliar oportunidades de integrao e

    ressocializao da juventude pobre, principal grupo de risco da violncia urbana. Os resultados

    de tais esforos na dimininuo dessa modalidade de violncia s a longo prazo, contudo,podero ser devidamente avaliados.

    Violncia no campo. Outras so as fontes especficas do crescimento da violncia em reas

    rurais: a preservao de uma estrutura fundiria altamente concentrada, o aumento das presses

    pela reforma agrria e a multiplicao de conflitos de terras nas cinco regies do pas. No Brasil

    como um todo, segundo levantamento da Comisso Pastoral da Terra, o nmero anual de mortes

    em conflitos agrrios oscila, desde 1991, entre 35 e 49, e voltou a crescer nos ltimos anos ototal de episdios conflituosos: de 361 em 1993 para 379 em 1994, 440 em 1995 e 653 em 1996,

    tendo aumentado significativamente, tambm, o nmero de pessoas envolvidas: de 252.236 em

    1993 para 481.490 nos dez primeiros meses de 1997.6Com marchas e contramarchas, a poltica

    brasileira de reforma agrria ainda se mostra demasiado tmida e lenta face urgncia de

    reordenao da estrutura de posse da terra, sem a qual muito provavelmente continuaro

    aumentando as ocupaes, os conflitos e os desfechos violentos - estes alimentados tambm pela

    impunidade de que normalmente desfrutam os autores e mandantes de crimes contratrabalhadores e lideranas rurais (apenas 3,5% dos casos de homicdio, tentativa de homicdio e

    amea de morte foram a julgamento na dcada 1985-1995). Dados mais recentes da CPT

    mostram que, aps a comoo causada pelos massacres de Corumbiara e Eldorado dos Carajs,

    reduziu-se o nmero de assassinatos cometidos no campo pela Polcia, mas no o nmero de

    homicdios relacionados a conflitos fundirios: mudaram apenas seus agentes diretos,

    prevalecendo agora pistoleiros particulares a mando dos proprietrios de terras.7

    Um avano significativo foi obtido, porm, no enfrentamento de outra modalidade deviolncia rural: o trabalho escravo. Segundo relatrio da organizao Human Rights Watch,

    aes conjuntas do Ministrio do Trabalho, CPT e sindicatos de trabalhadores reduziram

    drasticamente, entre 1995 e 1996, o nmero de vtimas registradas em carvoarias do Mato

    Grosso do Sul e Minas Gerais (respectivamente, de 26.047 para 2.487 e de 10.040 para 790),

    estando em tramitao no Congresso Nacional um plano para desapropriao de terras sujeitas a

    trabalho escravo no sul do estado do Par.

    6Comisso Pastoral da Terra. Conflitos no campo/Brasil, 1997. Sem Fronteiras, 240, maio de 1996 e 242, julho de1996 (textos divulgados via Internet).7Human Rights Watch. Acontecimentos na rea de Direitos Humanos - Brasil, 1998 (divulgado via Internet).

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    Violncia policial. O fim do regime militar no diminuiu a brutalidade das polcias brasileiras,

    apenas redirecionou parcialmente seus alvos. Tortura e outras formas de violncia arbitrria

    continuam sendo prticas comuns, cotidianas, nas ruas, delegacias, quartis e presdios, voltadas

    agora sobretudo contra camadas pobres e desprotegidas da populao. Execues extrajudiciais,desaparecimentos e sistemticas violaes dos mais elementares direitos humanos

    permanecem, em boa parte do pas, fazendo parte dos mtodos de atuao policial.8 A

    impunidade dos crimes cometidos pela Polcia e a inacessibilidade do sistema judicirio para os

    estratos mais pobres realimentam essa violncia seletiva do aparelho estatal, exacerbada em

    alguns casos por polticas de segurana que incitam diretamente barbrie, erigindo-a em

    indicador de eficcia no combate ao crime, como vem ocorrendo no estado do Rio de Janeiro

    desde 1995, quando se instituiram premiaes por bravura para policiais envolvidos emconfrontos armados. A mdia mensal de civis mortos deliberada ou acidentalmente nesses

    confrontos (grande parte deles ocorridos em favelas; muitos com evidncias de execues

    extrajudiciais) aumentou 100%, passando de 16, no perodo de janeiro de 1993 a abril de 1995,

    para 32 entre maio de 1995 e julho de 1996, s no municpio do Rio de Janeiro. No de So

    Paulo, ao contrrio, essa mdia declinou em 1996, depois da instalao da Ouvidoria de Polcia

    e do PROAR, programa que afasta temporariamente do servio ativo e submete a reciclagem os

    policiais militares envolvidos em operaes de alto risco com vtimas civis.9 parte o estmulo ou desestmulo provindo de polticas especficas, regionalmente

    diferenciadas, existem outros condicionantes mais amplos que dificultam a erradicao das

    diversas formas de arbtrio e violncia policiais. Entre eles, um arcabouo institucional obsoleto,

    que reproduz uma cultura blica, autoritria, nos rgos de segurana, preserva a auto-

    suficincia corporativa desses rgos, subtraindo-os ao controle da sociedade, e favorece a

    ambientao de bolses corruptos e criminosos no seu interior. importante observar que nem

    sempre as prticas violentas resultam de uma orientao deliberada dos comandantes, chefes depolcia ou secretrios de segurana pblica; algumas vezes ocorrem fora do controle dessas

    autoridades, quando no contra as mesmas, deixando clara a existncia de espaos de autonomia

    dentro do prprio aparelho responsvel pela aplicao da lei, espaos em certo sentido anlogos

    aos que o trfico de drogas e de armas estabelece em reas urbanas desprezadas pelo poder

    pblico. Mas, se a violncia policial tem fortes razes na estrutura e na cultura institucionais

    prevalecentes, ainda no afetadas de forma mais extensa pelo processo de redemocratizao,

    8Cf. Anistia Internacional, Relatrio 1996 - Brasil, e Informe Anual 1997, captulo sobre o Brasil; Human RightsWatch. Acontecimentos na rea de Direitos Humanos - Brasil, 1998 (textos divulgados via Internet).9CANO, Ignacio. Letalidade da ao policial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, ISER, 1997.

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    tambm encontra terreno favorvel na tolerncia ou mesmo apoio de setores da sociedade ao uso

    arbitrrio da fora, suspenso de direitos humanos e civis, em nome do combate a reais ou

    supostos bandidos. Pesquisa realizada em 1996 na Regio Metropolitana do Rio de Janeiro

    mostrou 63% de aprovao integral para a frase bandidos no respeitam os direitos dos outros,

    por isso no devem ter direitos respeitados e 40% de respostas opinando ser justificvel emalguns casos o uso de mtodos violentos para obter a confisso de suspeitos.10

    compartilhada pela cultura policial dominante, por segmentos da chamada opinio

    pblica e por setores importantes da mdia a crena de que o respeito aos direitos humanos

    compromente a eficcia do trabalho policial, e de que este se resume essencialmente em reprimir

    criminosos comprovados ou potenciais - se necessrio, de forma truculenta. Muito longe est de

    difundir-se no Brasil o conceito de segurana pblica como poltica social, destinada - do

    mesmo modo que as polticas de educao, sade, saneamento etc. - a reduzir desigualdades eampliar o acesso cidadania, pela aplicao equnime da lei. No s instituies policiais

    arcaicas ou governos ineficientes, nem s as desigualdades econmicas, mas tambm valores

    sociais anti-democrticos contribuem, assim, para reproduzir o ciclo vicioso da violncia e da

    excluso. Por seu turno, o medo da violncia refora esses valores, bem como o descrdito geral

    na capacidade de a fora pblica conseguir efetivamente cont-la - determinando, entre outras

    coisas, o recurso macio segurana particular por parte das classes mdia e alta, e a

    proliferao de enclaves fortificados nas reas urbanas (shoppings, condomnios residenciais,complexos empresariais, centros culturais etc.), que privatizam espaos coletivos e mantm

    afastadas as classes perigosas, no pressuposto (freqentemente desmentido) de que isto

    afastar ao mesmo tempo a violncia.11Durante o perodo 1985-1995, houve um aumento de

    112% no pessoal ocupado pelas empresas de vigilncia e guarda em todo o pas; descontando-se

    os efeitos da terceirizao, constata-se um crescimento lquido da ordem de 56% nos postos de

    trabalho de vigilante e vigia, cujo nmero j representa quase o dobro do pessoal ocupado em

    todas as Polcias, Corpos de Bombeiros, Guardas Penitencirias, Guardas Municipais e rgostcnicos, burocrticos e de apoio ligados esfera da segurana pblica. Sendo extremamente

    frouxo o controle do poder pblico sobre esses servios, tornaram-se abundantes, no mesmo

    perodo, denncias que apontam descumprimento das normas legais para o exerccio da

    10Lei, justia e cidadania. Drogas, vitimizao e cultura poltica na Regio Metropolitana do Rio de Janeiro. Rio deJaneiro, CPDOC-FGV/ISER, 1997. Ver tambm CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Direitos humanos ou privilgiode bandidos? Desventuras da democratizao brasileira. Novos Estudos CEBRAP, 30: 162-74, julho de 1991;

    CARDIA, Nancy. O medo da polcia e as graves violaes dos direitos humanos. Tempo Social - Revista deSociologia da USP, 9:(1): 249-65, maio de 1997; PAIXO, Antnio Luiz ( in memoriam) & BEATO, Claudio. Crimes,vtimas e policiais. Tempo Social - Revista de Sociologia da USP, 9(1): 233-48, maio de 1997.11Cf. CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Enclaves fortificados: a nova segregao urbana. Novos Estudos CEBRAP,47: 155-76, maro de 1997.

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    atividade; multiplicao de firmas clandestinas ou de fachada; envolvimento de guardas

    particulares em roubos e seqestros; agresses e assassinatos cometidos pelos mesmos; baixa

    qualificao e pssimo preparo profissional e psicolgico dos vigilantes; formao de cartis e

    mfias ligadas a setores da Polcia - para citar apenas alguns exemplos mostrando o quanto

    essa soluo pode engendrar novos focos de violncia, a que no esto imunes os grupos sociaisdela supostamente protegidos.12

    Violncia no sistema penitencirio. De acordo com o Censo realizado em 1995 pelo Ministrio

    da Justia, havia no Brasil 144.484 prisioneiros para apenas 68.597 vagas - diferena que por si

    mesma j fala da crise existente no sistema carcerrio brasileiro e de uma das causas da

    recorrncia de episdios violentos e das numerosas rebelies de presos verificadas nos ltimos

    anos (em So Paulo, onde se concentram 40% da populao carcerria, houve 79 casos de

    rebelio em presdios e delegacias no ano de 1996 e 91 casos s no primeiro semestre de

    1997).13 superlotao e s condies insalubres acrescentam-se torturas e espancamentos

    praticados por policiais, cumplicidade destes com a violncia fsica e sexual entre os detentos,

    falta de acesso ao trabalho e ao lazer, manuteno de presos com sentena j cumprida, com

    mandados de priso expirados e com direito a regime aberto, semi-aberto ou liberdade

    condicional.14 No melhor a situao das instituies destinadas a menores infratores, que

    longe esto, na maioria, de capacitadas a recuper-los, tendendo pelo contrrio a completar

    sua socializao para a violncia e para o crime.

    Pouco se avanou ainda no terreno das penas alternativas. Segundo levantamento

    realizado no Rio de Janeiro, essas penas poderiam aplicar-se a 24% da atual populao

    carcerria do estado - parcela que, somada aos 30% de presos com direito a livramento

    condicional, traria um significativo desafogo ao sistema penitencirio e uma conseqente

    reduo dos nveis de violncia no seu interior, bem como do nus que ele representa para a

    sociedade (segundo o Ministrio da Justia, cada preso custa em mdia no Brasil 3,5 salrios

    mnimos por ms).15Entretanto, os parcos investimentos continuam sendo direcionados quase

    12MUSUMECI, Leonarda. Servios privados de vigilncia e guarda no Brasil. Um estudo a partir de informaes daPNAD (1985-1995). Rio de Janeiro, IPEA/DIPES (Texto para Discusso), a sair. Ver tambm PAIXO, AntnioLuiz. Segurana privada, direitos humanos e democracia. Notas preliminares sobre novos dilemas polticos. NovosEstudos CEBRAP, 31: 131-41, outubro de 1991; HERINGER, Rosana Rodrigues. A indstria da segurana privadano Rio de Janeiro. Dissertao de Mestrado. Rio de Janeiro, IUPERJ, 1992.13Ministrio da Justia/DEPEN. Censo Penitencirio 1995 (dados divulgados via Internet); Human Rights Watch.Brasil - Relatrio 1998.14

    Human Rights Watch. Brasil - Relatrio 1998; FERREIRA, Maria Emlia Guerra. A produo da esperana -Casa de Deteno de So Paulo - Carandiru. So Paulo, Educ, 1996; Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil.Campanha da Fraternidade 1997 - Texto base (trechos divulgados via Internet).15LEMGRUBER, Julita. Os riscos do uso indiscriminado da pena privada de liberdade. Comunicaes do ISER,15(47): 37-39, 1996.

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    exclusivamente reforma e construo de prises: em 1996, alm de terem sido gastos apenas

    34% da verba orada para o Fundo Penitencirio Nacional, menos de 1% da despesa foi para a

    rubrica de reintegrao social dos presos, declarando-se como prioridade expressa o puro e

    simples aumento de vagas no sistema.16

    Violncia no trnsito. Sem relao direta com carncias scio-econmicas ou com o que se

    costuma englobar na esfera da criminalidade, a alta e crescente vitimizao em acidentes de

    transporte exibe outra face da violncia no Brasil, tendo como substrato o desrespeito

    institucionalizado s normas de segurana e a vasta margem de impunidade que a prpria lei

    brasileira at h pouco garantia para agresses cometidas ao volante contra terceiros. De 1985 a

    1995, houve tendncia reduo das mortes por essa causa entre crianas de zero a nove anos,

    mas nas faixas etrias superiores aumentou a vitimizao fatal tanto entre homens quanto entre

    mulheres, tanto em nmeros absolutos quanto proporcionalmente populao. O Distrito

    Federal detinha em 1995 o maior ndice de bitos causados por acidentes de transporte (43 por

    cem mil habitantes), seguido de Santa Catarina (37 por cem mil), Roraima (34) e Paran (32).

    Nesse mesmo ano, segundo dados do Departamento Nacional de Trnsito, houve 255.537

    acidentes com vtimas no pas como um todo, 28% dos quais atropelamentos e o restante

    colises, choques, tombamentos e capotagens; o nmero total de vtimas chegou a 346.623,

    sendo 7,4% fatais.17 Em 1996, de acordo com dados do SEADE, houve s no estado de So

    Paulo 100.200 vtimas de acidentes de veculos, sendo 4,5% fatais.18

    Apesar de ainda pairarem muitas dvidas sobre as condies concretas de sua

    implementao, o novo Cdigo Nacional de Trnsito, entrado em vigor no incio de 1998,

    representa um avano considervel no combate irresponsabilidade e impunidade, podendo

    tornar-se ponta de lana de um amplo processo reeducativo capaz de alterar substancialmente

    atitudes que hoje fazem dos veculos automotores armas to letais quanto as que carregam,

    juntos, polcias e bandidos na guerra da criminalidade urbana.

    Violncia domstica. De acordo com os dados do Ministrio da Sade, 10% das vtimas de

    homicdios ou mortes derivadas de leses dolosas em 1995 eram crianas de 0 a 9 anos ou

    16Folha de So Paulo, 28 de maio de 1997.17IBGE. Anurio estatstico do Brasil 1996. Os ndices de mortalidade do DENATRAN so mais baixos que os do

    Ministrio da Sade, provavelmente porque computam o tipo de vitimizao (fatal ou no-fatal) registrado logoaps o acidente, enquanto na segunda fonte aparecem tambm as vtimas de leses que vieram a falecer emmomentos posteriores.18Anurio Estatstico do Estado de So Paulo1996. So Paulo, Fundao SEADE, 1997 (dados divulgados viaInternet).

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    mulheres com dez anos e mais de idade. Se a participao dessas duas categorias relativamente

    baixa, o nmero de vtimas, entretanto, cresceu muito na dcada 1985-1995, aumentando

    respectivamente, 65% e 88%. No h como aferir, para todo o pas, que proporo da violncia

    letal se origina no crculo de relaes primrias (famlia, vizinhana etc.) e que parcela deriva de

    agresses annimas, mas, a julgar pelos dados disponveis sobre agresses no-letais, os laosprimrios so a maior fonte de violncia contra mulheres e crianas no Brasil. A pesquisa de

    vitimizao realizada pelo IBGE em 1988 mostrou que 66% das agresses fsicas sofridas por

    mulheres com 10 anos ou mais de idade e 82% das sofridas por crianas de ambos os sexos entre

    0 e 9 anos haviam sido praticadas por parentes ou conhecidos das vtimas, verificando-se uma

    percentagem mais baixa, embora tambm significativa, desse tipo de agresso entre homens com

    idade igual ou superior a dez anos (53%).19 Outras estatsticas - que abrangem apenas o universo

    das agresses notificadas, no sendo, portanto, diretamente comparveis aos dados do IBGE -mostram que nesse universo predominam denncias de violncia interativa praticada por

    familiares ou pessoas prximas das vtimas: por exemplo, 92% das ocorrncias registradas no

    ano de 1992 em quatro das cinco Delegacias Especiais de Atendimento Mulher do estado do

    Rio de Janeiro reportavam agresses cometidas por cnjuges ou ex-cnjuges (78%), parentes

    (9%) e vizinhos (5%) das denunciantes, prevalecendo entre os tipos de violncia leses

    corporais, ameaas e crimes sexuais (estupro, tentativa de estupro, atentado violento ao pudor);

    mais de 70% das fichas revelavam episdios anteriores de agresso, isto , um padro deviolncia recorrente no mbito das relaes primrias.20 Do total de inquritos enviados ao

    Ministrio Pblico pelas DEAMs fluminenses no perodo de 1991 a meados de 1995, 63%

    referiam-se a denncias de leses corporais, 33% a ameaas e os 4% restantes a crimes sexuais,

    sendo o acusado, em 96% dos casos, pessoa do sexo masculino e, em 88% dos casos, cnjuge ou

    pessoa ligada por outros laos afetivos vtima (amigo, namorado, ex-namorado).21

    Crianas de ambos os sexos tambm so agredidas sobretudo no circuito prximo de

    relaes, como indicam os dados da pesquisa nacional de vitimizao referentes a agresses no-letais e como indicam algumas pesquisas regionais disponveis, mesmo aquelas que focalizam

    apenas a violncia letal. Com base em inquritos da Polcia Civil, um levantamento feito pelo

    ISER mostrou que 67% dos homicdios dolosos praticados em 1991 contra crianas de 0 a 11

    anos no estado do Rio de Janeiro tiveram como autores pessoas da famlia (em contraste com

    19IBGE. Participao poltico-social 1988, vol. 1: Justia e vitimizao.20SOARES, Luiz Eduardo, coord., et al. Violncia contra a mulher: levantamento e anlise de dados sobre o Riode Janeiro em contraste com informaes nacionais. Rio de Janeiro, ISER, 3 ed., 1993.21CARRARA, Srgio et al.Violncia contra a mulher no Rio de Janeiro - Brasil. Comunicaes do ISER, 48: 34-38, 1997.

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    19% na faixa de 12 a 17 anos) e 30% estavam associados a crimes sexuais (em contraste com

    5%

    na faixa de 12 a 17 anos). Mostrou ainda que, enquanto 85% dos adolescentes vtimas de

    homicdio foram mortos com armas de fogo, mais de 60% das crianas foram vitimizadas por

    outros meios (armas brancas, objetos contundentes ou perfurantes, estrangulamento), e que at11 anos era muito pequena a diferena no nmero de meninos e meninas assassinados, ao passo

    que, entre os adolescentes mortos, a proporo de vtimas do sexo masculino superava 90% do

    total.22Embora utilizem outro recorte etrio, as estatsticas do Ministrio da Sade referentes ao

    pas como um todo parecem confirmar que o gnero um fator menos significativo na

    probabilidade de vitimizao letal de crianas do que na de pessoas de faixas etrias superiores.

    Em 1995, segundo essa fonte, 56% das vtimas de homicdios e mortes por leses dolosas com

    idades entre 0 e 9 anos eram do sexo masculino e 44% do sexo feminino - percentagens quepassavam, respectivamente, para 90% e 10% quando considerada a faixa de 10 a 19 anos e para

    93% e 7% na faixa de 20 a 29 anos de idade.

    A violncia contra mulheres e crianas - no computando aquela associada a crimes

    contra o patrimnio (roubos, extorso mediante seqestro etc.), que pode escolher suas vtimas

    indiferentemente entre pessoas de ambos os sexos e de diversas idades - aponta para uma

    problemtica transformada em objeto de grande mobilizao social noutros pases, sobretudo

    nos Estados Unidos,23mas que entre ns ainda constitui, se no um tabu, um tema menor napauta dos debates sociais: a violncia domstica, os padres violentos de resoluo de conflitos

    interativos no espao familiar e comunitrio - espao onde parecem estar circunscritos: (a) boa

    parte da violncia de gnero; (b) parte possivelmente ainda maior das agresses sofridas por

    crianas de ambos os sexos e (c) parte talvez menor, mas no desprezvel, da violncia entre e

    contra homens adolescentes e adultos. Certamente o pacto de silncio que oculta essa

    problemtica vem sendo rompido, tambm no Brasil, pelos movimentos feministas e pela

    mobilizao em torno dos direitos de crianas e adolescentes, podendo-se contabilizar algumasconquistas importantes, ao menos no sentido de aumentar a visibilidade da violncia

    intrafamiliar, como as Delegacias Especiais, hoje espalhadas por todo o pas, e a multiplicao

    de programas, associaes, comisses, parcerias e redes de defesa de direitos e prestao de

    assistncia aos dois segmentos em questo. Contudo, alm das tradicionais dificuldades aqui

    existentes para implementar, manter e disseminar iniciativas dessa natureza, quer partam do

    22SOARES, Luiz Eduardo, MILITO, Cludia & SILVA, Hlio. Homicdios dolosos praticados contra crianas eadolescentes no Estado do Rio de Janeiro - 1991 a julho de 1993. In: SOARES, Luiz Eduardo et al. Violncia e

    poltica no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Relume-Dumar/ISER, 1996, pp. 189-215.23Cf. SOARES, Barbara Musumeci. Mulheres invisveis. Violncia familiar e formaes subjetivas. Tese deDoutoramento. Rio de Janeiro, IUPERJ, 1997.

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    Estado ou de entidades civis,24o prprio recorte por gnero e por faixa etria tende muitas vezes

    a deixar em segundo plano perguntas talvez cruciais para o enfrentamento dos fenmenos de

    violncia no Brasil: que nexos existem entre a violncia no espao pblico e a violncia no

    espao privado? Esta ltima privilgio das classes populares, ou, mesmo com variaes, est

    presente em outras camadas da sociedade? Mulheres so apenas vtimas ou eventualmentedesempenham o papel de agressoras, por exemplo, contra os filhos pequenos? Ainda que suas

    causas bsicas possam originar-se de condies scio-econmicas, como/onde se reproduzem os

    modelos violentos de resoluo de conflitos, os valores autoritrios, o desprezo por regras

    universais, o desrespeito diferena e a tolerncia desigualdade? Podemos esperar que a

    Polcia seja menos violenta, o Estado menos seletivo, as prises menos desumanas, a Justia

    mais equitativa e as elites menos insensveis aos problemas sociais enquanto no ousarmos

    descerrar tambm a espessa cortina que encobre a violncia e a desigualdade inscritas nos nossosespaos primrios de relaes?

    Violncia homofbica. H pouqussimos dados no Brasil sobre formas de violncia que a

    Justia norte-americana classifica como hate crimes: agresses motivadas expressamente por

    preconceitos tnicos, sexuais ou religiosos. Se difcil caracterizar aqui uma violncia

    propriamente racial, nos moldes norte-americanos ou sul-africanos (no obstante a maior partedas vtimas brasileiras de violncia, como nesses pases, ser composta de pretos e pardos),

    comea a tornar-se mais visvel uma modalidade de hate crimeat h pouco tempo ignorada ou

    silenciada: a violncia contra homossexuais. Levantamento feito pelo Grupo Gay da Bahia, com

    base em notcias da mdia, identificou, no perodo de janeiro de 1996 a junho de 1997, 171 casos

    de assassinato cuja motivao evidente era a homofobia, muitos deles com requintes de

    crueldade prprios do crime psicoptico ou daquele cometido sob intenso sentimento de

    dio.25A multiplicao de entidades militantes e a ampliao dos espaos de fala trazem tona,para alm das atitudes discriminatrias associadas AIDS, um outro espectro de agresses

    cotidianas - na famlia, no Exrcito, nos presdios, no espao pblico - de que so alvo os

    homossexuais brasileiros em virtude do preconceito contra sua opo sexual.26 Longe de

    constituir um problema menor, ou de interesse restrito aos grupos em questo, esta mais uma

    24Sobre as dificuldades de implantao dos Conselhos de Direitos e Conselhos Tutelares previstos no Estatuto daCriana e do Adolescente, ver CONANDA, Relatrio sntese das conferncias estaduais, preparatrio da IIConferncia dos Direitos da Criana e do Adolescente, 1997 (divulgado via Internet).25Jornal do Brasil, 13 de julho de 1997.26HAMANN, Edgar Merchn. Violncia contra homossexuais: elaborando uma agenda de solues. Jornal Ns PorExemplo, s/d (artigo divulgado via Internet).

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    ponta dos fenmenos de violncia que nos remete esfera dos valores e da cultura, difuso

    incipiente e aplicao mais incipiente ainda da pauta de direitos humanos no pas. Talvez no

    existam relaes diretas, mas no haveria elos indiretos entre a violncia homofbica e formas

    mais jocosas de preconceito que se manifestam nos programas de televiso, nas piadas

    grosseiras contadas em mesas de bar mesmo por intelectuais de esquerda e na generalizadaaverso postura politicamente correta entre ns?27

    2. Algumas inovaes na rea de segurana pblica

    Em maio de 1997, foi elaborado pelo Ministrio da Justia, em conjunto com diversas

    organizaes da sociedade civil, o Programa Nacional de Direitos Humanos, com objetivo de

    identificar os principais obstculos promoo e proteo dos direitos humanos no Brasil, e

    apresentar propostas concretas de carter administrativo, legislativo e poltico-cultural para

    enfrentar esses problemas. O programa menciona todas as modalidades de violncia acima

    relacionadas, e outras mais. abrangente e ao mesmo tempo detalhado quanto s medidas

    necessrias a curto, mdio e longo prazos para uma profunda interveno nas fontes de violncia

    e de violao de direitos em todo o pas. Faz apelo mobilizao social e contempla a

    necessidade de criar bases para uma cultura de direitos humanos, assim como de promover a

    reforma da Justia e das instituies policiais brasileiras.28 Sem dvida representa um enorme

    avano, pelo menos no plano dos propsitos e intenes, uma referncia bsica a partir da qual

    podero disseminar-se e articular-se iniciativas em diversos campos para enfrentar as mltiplas

    faces dos fenmenos de violncia no Brasil. Associadas ao Programa, j ocorreram trs

    mudanas importantes na legislao: foi criminalizado o porte de armas, tipificou-se o crime de

    tortura e transferiu-se para a Justia Civil a jurisdio sobre homicdios dolosos cometidos em

    servio por policiais militares. Novas medidas legislativas possivelmente iro seguir-se,

    pairando, porm, sobre elas a dvida de sempre, referente ao lapso no Brasil entre a existncia

    da lei e a sua aplicao; a efetividade desta no poder depender apenas dos recursos estatais,

    mas dever contar tambm com uma ampla participao de organizaes da sociedade civil.

    Outro ponto de incerteza diz respeito base de apoio necessria, no Congresso e no prprio

    Poder Executivo, para viabilizar a reforma institucional dos rgos de segurana, comeando

    pela sua desconstitucionalizao, que acabaria com o atrelamento das Polcias Militares ao

    Exrcito e possibilitaria que cada estado definisse a estrutura organizativa mais adequada s suas

    27Cf. SOARES, Luiz Eduardo. O politicamente correto, as culturas polticas e o processo civilizador. Textoapresentado no Instituto de Estudos Avanados da USP em dezembro de 1997.

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    condies e necessidades, dentro dos marcos estabelecidos por uma poltica nacional de

    segurana pblica. Essa proposta, entre outras formuladas pelo Grupo de Avaliao da

    Segurana Pblica do Ministrio da Justia, at agora no avanou, esbarrando em fortes

    resistncias provenientes das corporaes policiais e dos setores que as representam no

    Parlamento.Apesar da camisa-de-fora imposta pelo artigo 144 da Constituio, polticas de

    segurana diferenciadas no espao e no tempo permitiram que se desenvolvessem ao longo dos

    anos 90 algumas experincias inovadoras significativas, menos pela sua abrangncia do que pela

    sinalizao de caminhos viveis para mudanas nas atitudes e na cultura policiais. Cabe destacar

    os ensaios de implantao do policiamento comunitrio ou interativo no bairro de Copacabana, o

    mais populoso do Rio de Janeiro, e em diversas cidades do Esprito Santo - com maior sucesso

    nestas ltimas, devido em parte a peculiaridades locais, mas tambm ao apoio mantido pelogoverno estadual, apoio que faltou ao projeto carioca, desativado logo aps a posse do atual

    governador.29Conhecem-se tambm iniciativas importantes, embora de natureza distinta, em

    So Paulo, Sergipe, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Paran e Pernambuco, objetivando

    reduzir a violncia da Polcia, desmontar redes criminosas no interior da mesma e ampliar

    parcerias com organizaes da sociedade civil em torno da defesa dos direitos humanos.

    Policiais vm atuando como educadores de meninos de rua no Projeto Ax (Bahia) - uma

    pequena surpreendente revoluo, em um pas que ainda tem muito a fazer para construirdemocraticamente suas polcias, segundo afirma o presidente da seo brasileira da Anistia

    Internacional.30 O estmulo provindo do PNDH, que apia parcerias com ONGs para

    implementao de projetos educativos destinados a policiais, poder multiplicar nos prximos

    anos essas experincias tpicas; se ao mesmo tempo avanarem as mudanas legislativas e

    organizativas mais amplas previstas no Programa, e ampliarem-se as bases da cultura poltica

    democrtica, tornar-se- possvel, talvez, comear a vislumbrar um quadro menos desalentador,

    distinto do que traam hoje os nmeros e nomes da violncia no Brasil.

    28Ministrio da Justia. Programa Nacional de Direitos Humanos, 1997 (divulgado na ntegra via Internet).29

    Cf. MUSUMECI, Leonarda (coord.). Segurana pblica e cidadania. A experincia de policiamento comunitrioem Copacabana (1994-95). Relatrio final do monitoramento qualitativo. Rio de Janeiro, ISER, junho de 1996;MUNIZ, Jacqueline. A polcia interativa no Esprito Santo. Observaes preliminares. Rio de Janeiro,ISER/Ministrio da Justia/VIVA RIO, novembro de 1996.30BALESTRERI, Ricardo. Polcia, para qu? (artigo divulgado via Internet).

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    ANEXO: TABELA E GRFICOS

    BRASIL: MORTES POR CAUSAS VIOLENTAS E ACIDENTESDE TRANSPORTE, SEGUNDO FAIXA ETRIA E GNERO

    1995

    Homicdios e lesesdolosas

    Outras violncias Acidentes de transporte

    Nmero N/100 milhabitantes2

    Nmero N/100 milhabitantes2

    Nmero N/100 milhabitantes2

    Todas as idades Total1 37128 23,8 10220 6,6 33155 21,3Masc. 33751 43,9 8467 11,0 25954 33,7Fem. 3325 4,2 1714 2,2 7138 9,0

    0 a 9 anos Total1 287 0,9 446 1,4 2048 6,3Masc. 161 1,0 272 1,7 1208 7,4Fem. 125 0,8 172 1,1 835 5,2

    10 a 19 anos Total1 5638 16,9 1252 3,8 4375 13,2Masc. 5058 30,1 1019 6,1 3116 18,5Fem. 577 3,5 229 1,4 1250 7,6

    20 a 29 anos Total1 13752 48,4 2452 8,6 7802 27,5Masc. 12770 89,9 2120 14,9 6544 46,1Fem. 974 6,9 322 2,3 1248 8,8

    Fontes: Construdo a partir de informaes do Ministrio da Sade/DATASUS e do Anurio Estatstico do Brasil1996 (IBGE).

    (1) Inclui vtimas sem indicao de gnero.(2) Clculo com base na populao da faixa etria e gnero correspondentes s categorias de vtimas.

    BRASIL: MORTES POR CAUSAS VIOLENTAS E ACIDENTESDE TRANSPORTE, POR CEM MIL HABITANTES

    1985-1995

    0,0

    5,0

    10,0

    15,0

    20,0

    25,0

    1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995

    Homicdios eleses dolosas

    Outrasviolncias

    Acidentes detransporte

    Fontes: Construdo a partir de informaes do Ministrio da Sade/DATASUS e do Anurio Estatsticodo Brasil 1996 (IBGE).

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    15BRASIL: HOMENS DE 10 ANOS E MAIS MORTOS POR CAUSAS VIOLENTAS

    E ACIDENTES DE TRANSPORTE (NMEROS ABSOLUTOS)1985-1995

    0

    5000

    10000

    15000

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    25000

    30000

    35000

    1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995

    Homicdios eleses dolosas

    Outras violncias

    Acidentes detransporte

    Fonte: Construdo a partir de informaes do Ministrio da Sade/DATASUS

    BRASIL: MULHERES DE 10 ANOS E MAIS MORTAS POR CAUSAS VIOLENTASE ACIDENTES DE TRANSPORTE (NMEROS ABSOLUTOS)

    1985-1995

    0

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    4000

    5000

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    1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995

    Homicdios elesesdolosas

    Outrasviolncias

    Acidentes detransporte

    Fonte: Construdo a partir de informaes do Ministrio da Sade/DATASUS

    BRASIL: CRIANAS DE 0 A 9 ANOS MORTAS POR CAUSAS VIOLENTASE ACIDENTES DE TRANSPORTE (NMEROS ABSOLUTOS)

    1985-1995

    0

    500

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    1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995

    Homicdios elesesdolosas

    Outrasviolncias

    Acidentes detransporte

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    16

    BRASIL: HOMENS DE 15 A 29 ANOS MORTOS POR CAUSAS VIOLENTASE ACIDENTES DE TRANSPORTE (NMEROS ABSOLUTOS)

    1985-1995

    0

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    1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995

    Homicdios eleses dolosas

    Outrasviolncias

    Acidentes detransporte

    Fonte: Construdo a partir de informaes do Ministrio da Sade/DATASUS

    BRASIL: MULHERES DE 15 A 29 ANOS MORTAS POR CAUSAS VIOLENTASE ACIDENTES DE TRANSPORTE (NMEROS ABSOLUTOS)

    1985-1995

    0

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    500

    750

    1000

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    1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995

    Homicdios eleses dolosas

    Outras violncias

    Acidentes detransporte

    Fonte: Construdo a partir de informaes do Ministrio da Sade/DATASUS

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    17UNIDADES DA FEDERAO: HOMICDIOS E MORTES DECORRENTES

    DE LESES DOLOSAS, POR 100 MIL HABITANTES1995

    0,05,0

    10,015,020,025,030,035,040,0

    45,050,055,060,065,0

    RJ ES AP PE DF SP MS RR AL MT RO AC AM GO SE PR RS PB PA CE BA RN SC TO MA MG PI

    Fontes: Construdo a partir de informaes do Ministrio da Sade/DATASUS e do Anurio Estatstico

    do Brasil 1996 (IBGE).

    UNIDADES DA FEDERAO: MORTES DECORRENTESDE OUTRAS VIOLNCIAS, POR 100 MIL HABITANTES

    1995

    0,0

    5,0

    10,0

    15,0

    20,0

    25,0

    30,0

    SE RJ RO GO MS RS RN TO AC CE PR MG SP PB PE AM ES SC MA MT DF PI PA AL BA RR AP

    Fontes: Construdo a partir de informaes do Ministrio da Sade/DATASUS e do Anurio Estatstico

    do Brasil 1996 (IBGE).

    UNIDADES DA FEDERAO: MORTES DECORRENTES DE ACIDENTESDE TRANSPORTE, POR 100 MIL HABITANTES

    1995

    0,0

    5,0

    10,0

    15,0

    20,0

    25,0

    30,0

    35,0

    40,0

    45,0

    DF SC RR PR GO ES MS RJ SP AP MT RS AL RO SE MG PE AM AC PB CE RN TO PA PI MA BA

    Fontes: Construdo a partir de informaes do Ministrio da Sade/DATASUS e do Anurio Estatsticodo Brasil 1996 (IBGE).

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    18BRASIL: HOMENS DE 10 ANOS E MAIS MORTOS POR CAUSAS VIOLENTAS

    E ACIDENTES DE TRANSPORTE, POR CEM MIL HABITANTES1985-1995

    0,0

    10,0

    20,0

    30,0

    40,0

    50,0

    60,0

    Homicdios eleses dolosas

    Outras violncias Acidentes detransporte

    bitosporcemm

    ilhomens

    19851990

    1995

    Fontes: Construdo a partir de informaes do Ministrio da Sade/DATASUS e do Anurio Estatstico

    do Brasil 1996 (IBGE).

    BRASIL: MULHERES DE 10 ANOS E MAIS MORTAS POR CAUSAS VIOLENTASE ACIDENTES DE TRANSPORTE, POR CEM MIL HABITANTES

    1985-1995

    0,0

    2,0

    4,0

    6,0

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    Homicdiose lesesdolosas

    Outrasviolncias

    Acidentesde

    transporte

    bito

    sporcemm

    ilmulheres

    1985

    1990

    1995

    Fontes: Construdo a partir de informaes do Ministrio da Sade/DATASUS e do Anurio Estatstico

    do Brasil 1996 (IBGE).

    BRASIL: CRIANAS DE 0 A 9 ANOS MORTAS POR CAUSAS VIOLENTASE ACIDENTES DE TRANSPORTE, POR CEM MIL HABITANTES

    1985-1995

    0,0

    1,0

    2,0

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    4,0

    5,0

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    7,0

    8,0

    Homicdios e

    leses dolosas

    Outras violncias Acidentes de

    transporte

    bitosporcemm

    ilcrianas

    1985

    1990

    1995

    Fontes: Construdo a partir de informaes do Ministrio da Sade/DATASUS e do Anurio Estatstico

    do Brasil 1996 (IBGE).