as mãos de meu filho - Érico veríssimo

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" fantasma de Beethoven foi e2orcizado. :ompem os aplausos.

6entro de alguns momentos torna a apagar+se a luz. Brota de novo o c)rculo m!gico.

Suggestion Diabolique.

6. %argarida tira os sapatos que lhe apertam os pés, machucando os calos.

/ão faz mal. ;stou no camarote. /inguém v*.%e2e os dedos do pé com del)cia. Agora sim, pode ouvir melhor o que ele est! tocando,

ele, o seu <ilberto. $arece um sonho... 7m teatro deste tamanho. Centenas de pessoas finas,

bem vestidas, perfumadas, os homens de preto, as mulheres com vestidos decotados ' todos

parados, mal respirando, dominados pelo seu filho, pelo Betinho4

6. %argarida olha com o rabo dos olhos para o marido. Ali est! ele a seu lado, pequeno,

encurvado, a calva a reluzir foscamente na sombra, a boca entreaberta, o ar pateta. Como fica

rid)culo nesse smoking 4 " pescoo descarnado, danando dentro do colarinho alto e duro, lembra

um palhao de circo.6. %argarida esquece o marido e torna a olhar para o filho. Admira+lhe as mãos, aquelas

mãos brancas, esguias e !geis. ; como a m-sica que o seu <ilberto toca é dif)cil demais para ela

compreender, sua atenão borboleteia, pousa no teto do teatro, nos camarotes, na cabea duma

senhora l! embai2o =aquele diadema ser! de brilhantes leg)timos0> e depois torna a deter+se no

filho. ; nos seus pensamentos as mãos compridas do rapaz diminuem, encolhem, e de novo

Betinho é um beb* de quatro meses que acaba de fazer uma descoberta maravilhosa? as suas

mãos... 6eitado no bero, com os dedinhos meio murchos diante dos olhos parados, ele

contempla aquela coisa misteriosa, solta gluglus de espanto, me2e os dedos dos pés, com os

olhos sempre fitos nas mãos...

6e novo 6. %argarida volta ao triste passado. @embra+se daquele horr)vel quarto que

ocupavam no inverno de . (oi naquele ano que o Dnoc*ncio comeou a beber. " frio foi a

desculpa. 6epois, o coitado estava desempregado... Tinha perdido o lugar na f!brica. Andava

caminhando # toa o dia inteiro. %!s companhias. EF Dnoc*ncio, vamos tomar um traguinho0E @!

se iam, entravam no primeiro boteco. ; v! cachaa4 ;le voltava para casa fazendo um esforo

desesperado para não cambalear. %as mal abria a boca, a gente sentia logo o cheiro de caninha.

ECom efeito, Dnoc*ncio4 8oc* andou bebendo outra vez4E Ah, mas ela não se abatia. Tratava o

marido como se ele tivesse dez anos e não trinta. %etia+o na cama. 6ava+lhe café bem forte sem

a-car, voltava apara a 1inger, e ficava pedalando horas e horas. "s galos 3! estavam cantando

quando ela ia deitar, com os rins doloridos, os olhos ardendo. 7m dia...

6e s-bito os sons do piano morrem. A luz se acende. Aplausos. 6. %argarida volta ao

presente. Ao seu lado Dnoc*ncio bate palmas, sempre de boca aberta, os olhos cheios de

l!grimas, pescoo vermelho e pregueado, o ar humilde... <ilberto faz curvaturas para o p-blico,

sorri, alisa os cabelos. =E9ue lindos cabelos tem o meu filho, queria que a senhora visse, comadre,

crespinhos, vai ser um rapagão bonito.G>

 A escuridão torna a submergir a platéia. A luz fant!stica envolve pianista e piano. Algumas2

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notas saltam, como pro3éteis sonoros.

Navarra.

;mbalada pela m-sica =esta sim, a gente entende um pouco>, 6. %argarida volta ao

passado.

Como foram longos e duros aqueles anos de luta4 Dnoc*ncio sempre no mau caminho.<ilberto crescendo. ; ela pedalando, pedalando, cansando os olhos5 a dor nas costas

aumentando, Dnoc*ncio arran3ava empreguinhos de ordenado pequeno. %as não tinha constHncia,

não tomava interesse. " diabo do homem era mesmo preguioso. " que queria era andar na

calaaria, conversando pelos cafés, contando histórias, mentindo...

' Dnoc*ncio, quando é que tu crias 3u)zo0

" pior era que ela não sabia fazer cenas. Achava até graa naquele homenzinho

encurvado, magro, desanimado, que tinha crescido sem 3amais dei2ar de ser criana. /o fundo o

que ela tinha era pena do marido. Aceitava a sua sina. Trabalhava para sustentar a casa,pensando sempre no futuro de <ilberto. ;ra por isso que a 1inger funcionava dia e noite. <raas

a 6eus nunca lhe faltava trabalho.

7m dia Dnoc*ncio fez uma proposta?

' ;scuta aqui, %argarida. ;u podia te a3udar nas costuras...

' %inha /ossa4 1er! que tu queres fazer casas ou pregar bot&es0

' "lha, mulher. =Como ele estava engraado, com sua cara de fuinha, procurando falar a

sério4> ;u podia cobrar as contas e fazer a tua escrita.

;la desatou a rir. %as a verdade é que Dnoc*ncio passou a ser o seu cobrador. /o primeiro

m*s a cobrana saiu direitinho. /o segundo m*s o homem rela2ou... /o terceiro, bebeu o dinheiro

da -nica conta que conseguira cobrar.

%as 6. %argarida esquece o passado. Tão bonita a m-sica que <ilberto est! tocando

agora... ; como ele se entusiasma4 " cabelo lhe cai sobre a testa, os ombros danam, as mãos

danam... 9uem diria que aquele moo ali, pianista famoso, que recebe os aplausos de toda esta

gente, doutores, oficiais, capitalistas, pol)ticos... o diabo4 ' é o mesmo menino da rua da "laria

que andava descalo brincando na !gua da sar3eta, correndo atr!s da banda de m-sica da

Brigada %ilitar...

6e novo a luz. As palmas. <ilberto levanta os olhos para o camarote da mãe e lhe faz um

sinal breve com a mão, ao passo que seu sorriso se alarga, ganhando um brilho particular. 6.

%argarida sente+se sufocada de felicidade. %e2e alvoroadamente com os dedos do pé, puro

contentamento. Tem )mpetos de erguer+se no camarote e gritar para o povo? E8e3am, é o meu

filho4 " <ilberto. " Betinho4 (ui eu que lhe dei de mamar4 (ui eu que trabalhei na 1inger para

sustentar a casa, pagar o colégio para ele4 Com estas mãos, minha gente. 8e3am4 8e3am4E.

 A luz se apaga. ; <ilberto passa a contar em terna surdina as m!goas de Chopin.

/o fundo do camarote Dnoc*ncio medita. " filho sorriu para a mãe. 1ó para a mãe. ;le

viu... %as não tem direito de se quei2ar... " rapaz não lhe deve nada. Como pai ele nada fez.3

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9uando o p-blico aplaude <ilberto, sem saber est! aplaudindo também %argarida. CinqIenta por

cento das palmas devem vir para ela. CinqIenta ou sessenta0 Talvez sessenta. 1e não fosse ela,

era poss)vel que o rapaz não desse para nada. (oi o pulso de %argarida, a energia de %argarida,

a fé de %argarida que fizeram dele um grande pianista.

/a sombra do camarote, Dnoc*ncio sente que ele não pode, não deve participar daquelaglória. (oi um mau marido. 7m péssimo pai. 8iveu na vagabundagem, enquanto a mulher se

matava no trabalho. Ah4 %as como ele queria bem ao rapaz, como ele respeitava a mulher4 Js

vezes, quando voltava para casa, via o filho dormindo. Tinha um ar tão confiado, tão tranqIilo, tão

puro, que lhe vinha vontade de chorar. Kurava que nunca mais tornaria a beber, prometia a si

mesmo emendar+se. %as qual4 @! vinha um outro dia e ele comeava a sentir aquela sede

danada, aquela espécie de cócegas na garganta. (icava com a impressão de que se não tomasse

um traguinho era capaz de estourar. ; depois havia também os maus companheiros. " %aneca.

" Kosé $into. " Bebe+(ogo. Convidavam, insistiam... /o fim de contas ele não era nenhum santo.Dnoc*ncio contempla o filho. <ilberto não pu2ou por ele. A cara do rapaz é bonita, franca,

aberta. $u2ou pela %argarida. <raas a 6eus. 9ue belas coisas lhe reservar! o futuro0 6aqui

para diante é só subir. A porta da fama é tão dif)cil, mas uma vez que a gente consegue abri+la...

adeus4 Amanhã decerto o rapaz vai aos ;stados 7nidos... capaz até de ficar por l!... esquecer

os pais. /ão. <ilberto nunca esquecer! a mãe. " pai, sim... ; é bem+feito. " pai nunca teve

vergonha. (oi um patife. 7m vadio. 7m b*bedo.

@!grimas brotam nos olhos de Dnoc*ncio. 6iabo de m-sica triste4 " Betinho devia escolher

um repertório mais alegre.

/o atarantamento da comoão, Dnoc*ncio sente necessidade de dizer alguma coisa.

Dnclina o corpo para a frente e murmura?

' %argarida...

 A mulher volta para ele uma cara séria, de testa enrugada.

' Chit4

Dnoc*ncio recua para a sua sombra. 8olta aos seus pensamentos amargos. ; torna a

chorar de vergonha, lembrando+se do dia em que, 3! mocinho <ilberto lhe disse aquilo. ;le quer

esquecer aquelas palavras, quer afugenta+las, mas elas lhe soam na memória, queimando como

fogo, fazendo suas faces e suas orelhas arderem.

;le tinha chegado b*bedo em casa. <ilberto olhou+o bem nos olhos e disse sem nenhuma

piedade?

' Tenho vergonha de ser filho dum b*bedo4

 Aquilo lhe doeu. (oi como uma facada, dessas que não só cortam as carnes como também

rasgam a alma. 6esde esse dia ele nunca mais bebeu.

/o saguão do teatro, terminado o concerto, <ilberto recebe cumprimentos dos

admiradores. Algumas moas o contemplam deslumbradas. 7m senhor gordo e alto, muito bem

vestido, diz+lhe com voz profunda?4

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' ;stou impressionado, impressionad)ssimo. 1im senhor4 <ilberto enlaa a cintura da

mãe?

' :eparto com minha mãe os aplausos que eu recebi esta noite... Tudo que sou, devo a

ela.

' /ão diga isso, Betinho46. %argarida cora. ! no grupo um sil*ncio comovido. 6epois rompe de novo a conversa.

/ovos admiradores chegam.

Dnoc*ncio, de longe, olha as pessoas que cercam o filho e a mulher. 7m sentimento

aniquilador de inferioridade o esmaga, toma+lhe conta do corpo e do esp)rito, dando+lhe uma

vergonha tão grande como a que sentiria se estivesse nu, completamente nu ali no saguão.

 Afasta+se na direão da porta, num dese3o de fuga. 1ai. "lha a noite, as estrelas, as luzes

da praa, a grande est!tua, as !rvores paradas... 1ente uma enorme tristeza. A tristeza

desalentada de não poder voltar ao passado... 8oltar para se corrigir, para passar a vida a limpo,evitando todos os erros, todas as misérias...

" porteiro do teatro, um mulato de uniforme c!qui, caminha dum lado para outro, sob a

marquise.

' @inda noite4 ' diz Dnoc*ncio, procurando pu2ar conversa.

" outro olha o céu e sacode a cabea, concordando.

' @inda mesmo.

$ausa curta.

' /ão v* que sou o pai do moo do concerto...

' $ai0 6o pianista0

" porteiro para, contempla Dnoc*ncio com um ar incrédulo e diz?

' " menino tem os pulsos no lugar. um bicharedo.

Dnoc*ncio sorri. 1ua sensaão de inferioridade vai+se evaporando aos poucos.

' $ois imagine como são as coisas ' diz ele. ' /ão sei se o senhor sabe que nós fomos

muito pobres... $ois é. (omos. :oemos um osso duro. A vida tem coisas engraadas. 7m dia... o

Betinho tinha seis meses... umas mãozinhas assim deste tamanho... nós botamos ele na nossa

cama. %inha mulher dum lado, eu do outro, ele no meio. (azia um frio de rachar. $ois o senhor

sabe o que aconteceu0 ;u senti nas minhas costas as mãozinhas do menino e passei a noite

impressionado, com medo de quebrar aqueles dedinhos, de esmagar aquelas carninhas. "

senhor sabe, quando a gente est! nesse dorme+não+dorme, fica o mesmo que tonto, não pensa

direito. ;u podia me levantar e ir dormir no sof!. %as não. (iquei ali no duro, de olho mal e mal

aberto, preocupado com o menino. $assei a noite inteira em claro, com a metade do corpo para

fora da cama. Amanheci todo dolorido, cansado, com a cabea pesada. 8e3a como são as

coisas... 1e eu tivesse esmagado as mãos do Betinho ho3e ele não estava a) tocando essas

m-sicas dif)ceis... /ão podia ser o artista que é.

Cala+se. 1ente agora que pode reclamar para si uma part)cula da glória do seu <ilberto.5

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1atisfeito consigo mesmo e com o mundo, comea a assobiar bai2inho. " porteiro contempla+o

em sil*ncio. Arrebatado de repente por uma onda de ternura, Dnoc*ncio tira do bolso das calas

uma nota amarrotada de cinqIenta mil+réis e mete+a na mão do mulato.

' $ara tomar um traguinho ' cochicha.

; fica, todo e2citado, a olhar para as estrelas.

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