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FACULDADE CATÓLICA DE UBERLÂNDIA CURSO DE TEOLOGIA LEANDRO NAZARETH SOUTO As influências da religião antiga grega (Mistérios de Elêusis, Dionisismo e Orfismo) e de alguns elementos essenciais do Pitagorismo e de Platão na construção da doutrina escatológica tradicional católica UBERLÂNDIA-MG JUNHO 2014

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Este estudo tem como objetivo central apresentar as influências da religião antiga grega –Mistérios de Elêusis, Dionisismo e Orfismo – e de alguns elementos essenciais do Pitagorismo e de Platão na construção da doutrina escatológica tradicional católica. O trabalho foi dividido em quatro capítulos. O primeiro aborda uma breve contextualização sobre mito e religião na Grécia antiga. No segundo capítulo são tratados os conceitos fundamentais dos principais movimentos da religião antiga grega, isto é, os Mistérios de Elêusis, o Dionisismo e o Orfismo. No terceiro capítulo, abordam-se o Pitagorismo, Platão e os seus elementos essenciais, tais como: o corpo, a alma, o dualismo corpo-alma, a imortalidade da alma e suas provas, os destinos (lugar/estados) escatológicos da alma e a metempsicose (transmigração/reencarnação) da alma. No quarto capítulo, apresenta-se a doutrina escatológica tradicional católica fazendo sempre referência à influência do Helenismo sobre ela, seja na formação da consciência dos cristãos ou da própria doutrina católica; ao mesmo tempo, apontam-se alguns problemas atuais enfrentados pela Igreja a partir das críticas da Teologia da Libertação atual. Utilizam-se para tratar desse tema as obras dos teólogos: Renold J. Blank (1935), João Batista Libânio (1932-2014) e Leonardo Boff (1938), críticos do platonismo e do temporalismo da escatologia tradicional católica e fomentadores de novo modelo escatológico, o ressurreição imediata. Palavras-chave: Mistérios de Elêusis. Dionisismo. Pitagorismo. Orfismo. Platão. Escatologia Cristã Católica.

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Page 1: As influências da religião antiga grega (Mistérios de Elêusis, Dionisismo e Orfismo) e de alguns elementos essenciais do Pitagorismo e de Platão na construção da doutrina escatológica

FACULDADE CATÓLICA DE UBERLÂNDIA

CURSO DE TEOLOGIA

LEANDRO NAZARETH SOUTO

As influências da religião antiga grega (Mistérios de Elêusis, Dionisismo e Orfismo) e de alguns elementos essenciais do

Pitagorismo e de Platão na construção da doutrina escatológica tradicional católica

UBERLÂNDIA-MG JUNHO 2014

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LEANDRO NAZARETH SOUTO

As influências da religião antiga grega (Mistérios de Elêusis, Dionisismo e Orfismo) e de alguns elementos essenciais do

Pitagorismo e de Platão na construção da doutrina escatológica tradicional católica

Monografia apresentada como requisito para obtenção do título de Bacharel em Teologia, pela Faculdade Católica de Uberlândia, durante o 1° semestre de 2014. Orientadora: Prof.ª Ms. Renée Ferreira

UBERLÂNDIA-MG JUNHO 2014

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LEANDRO NAZARETH SOUTO

As influências da religião antiga grega (Mistérios de Elêusis, Dionisismo e Orfismo) e de alguns elementos essenciais do

Pitagorismo e de Platão na construção da doutrina escatológica tradicional católica

Banca Examinadora composta pelos seguintes professores:

____________________________________________

Prof.ª Ms. Renée Ferreira Orientadora – Prof.ª na Faculdade Católica de Uberlândia

____________________________________________

Prof. Ms. Manoel Messias Coordenador – Prof. na Faculdade Católica de Uberlândia

____________________________________________

Prof.ª Dra. Ir. Maria Maura de Morais Prof.ª na Faculdade Católica de Uberlândia

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Dedico esta pesquisa primeiramente a

Deus, depois à minha querida família,

principalmente aos meus pais; aos meus amados

irmãos Weslley Nazareth e Henrique Nazareth;

aos meus sobrinhos Camilla e José pela leveza de

nossos encontros e pelo amor incondicional;

especialmente à minha esposa Jaqueline, sempre

compreensiva e incentivadora dos meus estudos;

e à Igreja, que me proporcionou e me deu a minha

fé, bem como o desejo de dar razões a ela de

maneira livre e racional.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, fonte de vida, amor, sabedoria e misericórdia, criador de todas as

coisas, por ter me dado a graça de concluir essa segunda graduação.

Agradeço à Igreja, que despertou em mim, ainda muito novo, o desejo de estudar

filosofia e teologia e por me dar a oportunidade de exercitar tantos aprendizados ao longo dos

meus 20 anos de caminhada e dos 15 anos de pregação em seu nome.

Agradeço a minha família, pelo apoio constante, principalmente aos meus pais, que

demasiadamente sacrificaram as suas vidas e seus sonhos para dar a oportunidade – que nunca

tiveram – aos seus três filhos de se formarem.

Aos meus amados irmãos Weslley Nazareth e Henrique Nazareth pelo amor e

incentivo constante nos meus estudos e minhas leituras.

A minha sobrinha Camilla e ao meu sobrinho José pela leveza de nossos encontros e

pela felicidade que eles me proporcionam devido o amor incondicional.

Agradeço a minha esposa querida Jaqueline, por estar sempre ao meu lado, pela sua

paciência na minha ausência durante os inúmeros compromissos com a faculdade e com a

Igreja, e pelo fato de sempre incentivar o meu estudo, atividade fundamental da minha

felicidade, e por continuar comigo nos momentos de alegrias e nos momentos difíceis.

Agradeço aos meus amigos de curso, que sobreviveram aos quatro anos todos os dias

na Faculdade Católica de Uberlândia, enriquecendo o diálogo e o conhecimento com as

partilhas, discussões e orações.

Agradeço aos professores que passaram pelo curso, que também se sacrificaram para

dar o máximo de si para que pudéssemos ter um ensino de qualidade e atual.

Agradeço aos meus orientadores Prof. Ms. Harley Juliano Mantovani pela orientação

até o momento de sua partida da instituição e à Prof.ª Ms. Renée Ferreira, por aceitar o

desafio de me orientar mesmo com tão pouco tempo. A ambos, obrigado pela dedicação,

paciência e disponibilidade em me ajudar e me incentivar.

Agradeço ao Prof. Phd. Rubens Garcia Nunes Sobrinho por me apresentar a religião

antiga grega e por me incentivar, por meio de textos e bibliografias, a estudar dentro da área

da Filosofia Antiga e Filosofia da Religião.

Enfim, agradeço a todos que contribuíram direta ou indiretamente para a realização

deste trabalho.

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"As religiões antigas não são nem menos ricas espiritualmente nem menos complexas e

organizadas intelectualmente do que as de hoje. Elas são outras.”

Jean-Pierre Vernant

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RESUMO

Este estudo tem como objetivo central apresentar as influências da religião antiga grega –Mistérios de Elêusis, Dionisismo e Orfismo – e de alguns elementos essenciais do Pitagorismo e de Platão na construção da doutrina escatológica tradicional católica. O trabalho foi dividido em quatro capítulos. O primeiro aborda uma breve contextualização sobre mito e religião na Grécia antiga. No segundo capítulo são tratados os conceitos fundamentais dos principais movimentos da religião antiga grega, isto é, os Mistérios de Elêusis, o Dionisismo e o Orfismo. No terceiro capítulo, abordam-se o Pitagorismo, Platão e os seus elementos essenciais, tais como: o corpo, a alma, o dualismo corpo-alma, a imortalidade da alma e suas provas, os destinos (lugar/estados) escatológicos da alma e a metempsicose (transmigração/reencarnação) da alma. No quarto capítulo, apresenta-se a doutrina escatológica tradicional católica fazendo sempre referência à influência do Helenismo sobre ela, seja na formação da consciência dos cristãos ou da própria doutrina católica; ao mesmo tempo, apontam-se alguns problemas atuais enfrentados pela Igreja a partir das críticas da Teologia da Libertação atual. Utilizam-se para tratar desse tema as obras dos teólogos: Renold J. Blank (1935), João Batista Libânio (1932-2014) e Leonardo Boff (1938), críticos do platonismo e do temporalismo da escatologia tradicional católica e fomentadores de novo modelo escatológico, o ressurreição imediata. Palavras-chave: Mistérios de Elêusis. Dionisismo. Pitagorismo. Orfismo. Platão. Escatologia

Cristã Católica.

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ABSTRACT

The current study aims to present the influences of ancient Greek religion (The Misteries of Eleusis, Dionisism and Orfism) and some key elements from Pitagorism and Plato in the construction of the traditional eschatological Catholic doctrine. The paper was divided into four chapters. The first addresses a brief contextualization about mith and religion in ancient Greece.The second chapter, deals with fundamental concepts of the main ancient greek religion movements, wich means, the Misteries of Eleusis, the Dionisism and the Orfism. On the third chapter, we will discuss the Pitagorism and Plato, their essencial elements, such as: the body, the soul, the dualism between body and soul, the immortality of the soul and its evidence, the eschatological destinations (places/states) of the soul and the metempsychosis (transmigration/ reincarnation) of the soul. The fourth and final chapter will present the traditional eschatological Catholic doctrine, always making reference to the influence of helenism, either on formation of conscience of Christians or their own Catholic doctrine and at the same time addressing some current problems faced by the church, from criticism of nowadays theology liberation, we will use the work of the theologians: Renold Blank (1935), João Batista Libânio (1932-2014) and Leonard Boff (1938) to approach this theme, critics of the Platonism and the traditional eschatological Catholic temporalism, the new eschatological model foment and immediate resurrection. Key Words: The Misteries of Elêusis. Dionisism. Pitagorism. Orfism. Catholic Christian

Eschatology.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 11

CAPÍTULO 1 ......................................................................................................................... 13

MITO E RELIGIÃO ANTIGA GREGA ............................................................................... 13

1.1 Contextualização ................................................................................................ 13

1.2 O mito e a poesia dos gregos ............................................................................. 14

1.3 O culto, o rito e a imagem dos deuses ............................................................... 16

1.4 O mundo e a organização dos deuses ................................................................ 17

1.5 A pessoa na religião antiga grega ...................................................................... 18

1.6 A religião antiga grega como uma religião cívica ............................................. 21

1.7 Os sacrifícios como prática da vida religiosa .................................................... 23

CAPÍTULO 2 ......................................................................................................................... 27

ELEMENTOS ESSENCIAIS DOS MISTÉRIOS DE ELÊUSIS, DO DIONISISMO E DO

ORFISMO ............................................................................................................................................. 27

2.1 Contextualização ................................................................................................ 27

2.2 Os Mistérios de Elêusis ...................................................................................... 28

2.3 Dionisismo ......................................................................................................... 29

2.4 Orfismo .............................................................................................................. 30

CAPÍTULO 3 ......................................................................................................................... 39

ELEMENTOS ESSENCIAIS DO PITAGORISMO E DO PLATONISMO ........................ 39

3.2 Pitagorismo ........................................................................................................ 40

3.3 Platão e sua visão ética-religiosa-ascética ......................................................... 42

3.3.1 O corpo ................................................................................................................. 44

3.3.2 A alma ................................................................................................................... 45

3.3.3 O dualismo corpo-alma ........................................................................................ 47

3.3.4 A imortalidade da alma e suas provas .................................................................. 48

3.3.5 Os destinos (lugar/estados) escatológicos da alma .............................................. 51

3.3.6 A metempsicose (transmigração/reencarnação) da alma .................................... 53

CAPITULO 4 ......................................................................................................................... 56

A DOUTRINA ESCATOLÓGICA CATÓLICA TRADICIONAL E SEUS PROBLEMAS

ATUAIS ................................................................................................................................................ 56

1 Conceitualização ................................................................................................... 56

4.2 A doutrina cristã sobre a morte .......................................................................... 57

4.3 O sentido da morte cristã ................................................................................... 58

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4.4 O juízo particular e o juízo final ........................................................................ 60

4.5 O purgatório como lugar/estado intermediário .................................................. 62

4.6 O inferno ............................................................................................................ 65

4.7 O céu .................................................................................................................. 68

4.8 Os problemas atuais levantados pelos teólogos da libertação e as respostas do

Magistério da Igreja ................................................................................................................ 70

4.8.1 O antiplatonismo ................................................................................................... 70

4.8.1 O atemporalismo ................................................................................................... 71

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 77

REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 78

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INTRODUÇÃO

O tema é versado sob o âmbito do estudo e de leituras sobre religião e filosofia

antiga grega. Serão examinados, sobretudo, os principais movimentos ou doutrinas

religiosas, tais como os Mistérios de Elêusis, o Dionisismo e o Orfismo, bem como a

compreensão dos assuntos ligados à religião e à escatologia do Pitagorismo e de Platão,

que contribuíram diretamente na construção da consciência dos cristãos e na

estruturação da doutrina escatológica tradicional católica.

Sabe-se que esses conceitos trouxeram importantes benefícios para a construção

da consciência cristã sobre o escatón, lugar/estado da alma após a morte, mas que

trazem alguns problemas para a teologia atual, especialmente para os teólogos da

libertação que fazem duras críticas à presença do platonismo e temporalismo na

escatologia. A partir dessas críticas, esses teólogos propõem um novo modelo

escatológico: o da ressurreição imediata.

Sendo assim, este estudo tem como objetivo central apresentar as influências que a

religião antiga grega e que o Helenismo tiveram na construção dos conceitos

escatológicos na doutrina cristã católica. Já o objetivo específico é mostrar que sim, a

religião antiga grega e o Helenismo influenciaram muito o cristianismo, sobretudo na

definição da doutrina escatológica cristã católica.

É necessário – para cumprir os objetivos da pesquisa – evidenciar as influências

dos Mistérios de Elêusis, o Dionisismo, o Orfismo, e alguns os elementos essenciais do

Pitagorismo e de Platão para a compreensão religiosa do homem grego, pois eles

subsidiaram a construção dos conceitos da doutrina escatológica tradicional católica.

As evidências desses estudos sugerem as seguintes hipóteses para responder ao

problema apontado: a doutrina cristã católica serviu de elementos da religião antiga

grega e da Filosofia Antiga Grega para construir, ao longo de sua história, os seus

conceitos escatológicos; o cristianismo se beneficiou muito dos movimentos religiosos

dos Mistérios de Elêusis, do Dionisismo, do Orfismo, e alguns dos elementos essenciais

do Pitagorismo e de Platão para a compreensão religiosa do homem grego, pois eles

contribuíram para a construção da consciência e visão cristã católica sobre o escatón, o

lugar/estado após a morte; conceitos como corpo, alma, o dualismo corpo e alma,

imortalidade da alma, transmigração da alma (metempsicose) e o estado/lugar da alma

após a morte são de suma importância para compreendermos a escatologia cristã

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católica; as críticas dos teólogos da libertação ao modelo tradicional de escatologia

católica fazem sentido na medida em que atacam conceitos helênicos presentes em sua

doutrina, tais como temporalismo e platonismo, para posteriormente propor um novo

modelo de ressurreição imediata.

O método adotado para a busca das respostas a essa pesquisa fundamentou-se nos

pressupostos de uma pesquisa exploratória e bibliográfica da literatura disponível em

língua portuguesa e italiana, textos e livros de autores da Mitologia, Filosofia Antiga

Grega, textos do magistério da igreja e dos teólogos da libertação.

Nesse sentido, o estudo foi dividido em quatro capítulos. O primeiro aborda uma

breve contextualização sobre mito e religião na Grécia antiga. No segundo capítulo, são

tratados os conceitos fundamentais dos principais movimentos da religião antiga grega,

isto é, os Mistérios de Elêusis, o Dionisismo e o Orfismo. No terceiro capítulo, estuda-

se o Pitagorismo, Platão e os seus elementos essenciais, tais como: o corpo, a alma, o

dualismo corpo-alma, a imortalidade da alma e suas provas, os destinos (lugar/estados)

escatológicos da alma e a metempsicose (transmigração/reencarnação) da alma. No

quarto e último capítulo, apresenta-se a doutrina escatológica tradicional católica

fazendo sempre referência à influência do Helenismo sobre ela, seja na formação da

consciência dos cristãos ou da própria doutrina católica. Ao mesmo tempo, aponta-se

alguns problemas enfrentados pela Igreja a partir de críticas da Teologia da Libertação

atual. Para tratar desse tema, foram utilizadas as obras dos teólogos: Renold J. Blank

(1935), João Batista Libânio (1932-2014) e Leonardo Boff (1938), críticos do

platonismo e do temporalismo da escatologia tradicional católica, e fomentadores de

novo modelo escatológico, o ressurreição imediata.

As referências bibliográficas utilizadas para embasar esta pesquisa passam por

Vernant (2006 e 2008), Gazzinelli (2007), Reale (1994 e 2012), Barnabé (2011),

Sobrinho (2007), Cullumman (2011), Blank (2000), Libânio (1985), Boff (1984) e

Ratzinger (2005).

Concluído, este estudo auxiliará a compreensão do processo do tema geral desta

pesquisa, sendo importante tanto para alunos e pesquisadores das áreas: Religião Antiga

Grega, Filosofia Antiga Grega, Filosofia Medieval, Mistérios de Elêusis, Dionisismo,

Orfismo, Pitagorismo, Platão, Escatologia Cristã Católica, Ressurreição Imediata e

Teologia da Libertação

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CAPÍTULO 1

MITO E RELIGIÃO ANTIGA GREGA

Neste capítulo, far-se-á uma breve contextualização sobre mito e religião na

Grécia antiga a fim de preparar o caminho para se entrar nos conceitos fundamentais da

Religião e Filosofia Antiga Grega, objeto primário deste estudo.

1.1 Contextualização

Não se pode ignorar a mitologia nem os cultos de mistérios dentro da religião

helênica para bem compreendê-la. Sendo assim, necessário é postular que a religião

grega é uma religião cívica, portanto, não há separação de vida pública e vida religiosa.

O maior desafio do historiador de religião grega é conseguir enxergar o que a religião

helênica tem de específico, o que o politeísmo tem de contraste que lhe possa ajudar a

melhor compreender as relações das demais religiões, monoteístas ou politeístas, e as

suas relações dos homens com o além, com o pós-morte.

Um alerta é importante: para se estudar as religiões é preciso deixar de lado o

terrível erro de valorizar as religiões reveladas e também abster-se de cristianizar tudo o

que se vê e lê. Portanto, esse cuidado fica claro nesta pesquisa ao se buscar o conselho

do especialista: "As religiões antigas não são nem menos ricas espiritualmente nem

menos complexas e organizadas intelectualmente do que as de hoje. Elas são outras"

(VERNANT, 2006, p. 3).

Para os gregos, não existe a necessidade de provar a existência de um deus e

nem a necessidade dele se revelar e se tornar cognoscível. No universo politeísta, não há

nada de revelação, não há nada que fundamente a verdade divina aqui neste mundo,

então os gregos se baseiam no uso e nos costumes do seu povo, dos seus ancestrais, isto

é, nos nómoi. Sendo assim, a “língua, o modo de vida, as maneiras à mesa, a vestimenta,

o sustento, o estilo de comportamento nos âmbitos privado e público, o culto não

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precisa de outra justificativa além de sua própria existência: desde que passou a ser

praticado, provou ser necessário” (VERNANT, 2006, p. 7).

Para os gregos, não existe diferenciação entre natural e sobrenatural, entre social

e religioso, entre humano e divino, isto é, o religioso está incluído no social assim como

o social está incluído no religioso em todas as suas esferas. Segundo Vernant (2006, p.

7), “a religião grega não constitui um setor à parte, fechado em seus limites e

superpondo-se a vida familiar, profissional, política ou de lazer, sem confundir-se com

ela". Nesse sentido, o religioso está incluído no social, não há separação de vida cívica

com vida religiosa, o indivíduo não é o ponto central da religião, ele não participa por

razões pessoais como, por exemplo, para a sua salvação ou a dos seus entes queridos.

Algum benefício no pós-morte só vai aparecer posteriormente nas religiões de mistério.

Se o fiel não tem uma relação pessoal com os deuses, qual seria então o motivo

para o culto e o sacrifício para esse deus? O culto honra os deuses gregos simplesmente

pelo fato deles representarem tudo aquilo que os homens gostariam de ser, se a natureza

humana é fraca, cheia de fadiga, sofrimento, doença e morte, os deuses são a antítese,

são belos, fortes, dotados de juventude e vida eterna.

Além do caráter social, que já foi citado, a religião antiga grega também possui

um caráter político importante, pois o sacerdote é uma autoridade pública. Para o fiel,

portanto, além do fato social e cultural, a prática do culto, da ida ao templo ou da

realização do sacrifício é essencialmente uma experiência religiosa.

1.2 O mito e a poesia dos gregos

A religião antiga grega é totalmente diferente das religiões reveladas, pois não

conheceu nem profeta, nem messias. Ela também não é uniforme, nem é determinada,

nem é dogmática, não tem casta sacerdotal, nem clero, nem igreja, nem livro, nem credo

e muito menos um conjunto coerente de crenças relativas ao além, algo importante para

este estudo.

A adesão da religião grega então se dá de forma prática, basta cumprir os ritos e

dar crédito às narrativas, dando assim crédito aos deuses cultuados. Negar a religião

grega então seria algo como deixar de existir socialmente, civicamente e politicamente

no mundo grego, uma vez que religião e vida social não se dissociam. Não vivenciar a

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religião seria algo como deixar de falar grego, deixar de viver o modo grego e deixar de

ser si mesmo.

Os saberes e narrativas sobre o universo religioso dos gregos, ou seja,

genealogia dos deuses, suas famílias, suas aventuras, seus conflitos ou acordos, seus

“poderes”, suas honras, etc., eram transmitidas por duas vias. A primeira pela tradição

oral das mulheres, mães, avós, cujo conteúdo era transmitido desde o berço e para as

crianças, de maneira que elas já imaginavam, situavam e pensavam a dimensão divina e

fantasiavam sobre esses temas como em contos de fadas.

A segunda maneira era por meio dos poetas, que davam as respostas aos

questionamentos primários dos humanos, tais como: Como o mundo foi criado? Quem

governa o universo? Quem sou eu? De onde eu vim? Para onde eu vou? Eles, com seus

talentos de oratória e música impecáveis, retiram os deuses de suas cátedras e os levava

ao convívio dos homens, por meio de suas narrativas, apresentação de suas potências,

lutas e batalhas. Essa prática já não tinha caráter íntimo como o das mulheres, ao

contrário era apresentada em público, na maioria das vezes, em meio aos banquetes,

gestas, concursos e jogos. Não era apenas um entretenimento social, pelo contrário, era

um modo de conservar a memória social das grandes narrativas dos deuses de suas

cidades.

Nesse sentido, Vernant (2006, p. 16) afirma que “a poesia oral ocupa um lugar

central na vida social e espiritual da Grécia”. É por meio da poesia que se fixa o

conhecimento das grandes narrativas dos gregos, é o gênero literário mais adequado

para a transmissão de conhecimento oral, seja ele narrativas dos deuses, dos heróis, dos

demônios e dos mortos. A poesia foi o instrumento essencial para falarmos hoje de

religião grega, se não a tivéssemos, teríamos cultos gregos diversos, mas não uma

religião grega.

Os grandes poetas que exercem papel fundamental nessa transmissão de

conhecimento são Homero e Hesíodo, especialmente nas obras, Ilíada e Odisseia, de

Homero, e a Teogonia, de Hesíodo.

Percebe-se, portanto, que a poesia se encarrega de fundamentar, sustentar e

disseminar o conhecimento sobre os seres divinos, suas relações com os humanos e a

relação dos homens com o além, mas surgem duas perguntas: esses escritos podem ser

considerados documentos de ordem religiosa ou literária? Pode-se atribuir verdade ou

falsidade nos seus poemas, narrativas ou fábulas? As respostas são diversas. Para os

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grandes eruditos do Renascimento, essas narrativas lendárias ajudam a compreender o

politeísmo grego, mesmo vivendo em um mundo demasiadamente cristão.

Alguns estudiosos mais modernos veem dificuldade e inquietações em afirmar

que são documentos de ordem religiosa que, pelo seu conteúdo, muitas vezes, são

incompatíveis com a própria divindade. Mas é com o avançar da história e da filosofia

na modernidade que a fábula, os poemas e as narrativas passam a ser analisadas

cuidadosamente por meio de bons métodos hermenêuticos, isto é, métodos de

interpretação. Vernant (2006) postula algo interessante sobre isso:

Nesse plano, as soluções são diversas: desde a rejeição, a denegação pura e simples, até as múltiplas formas de interpretação, que permitem “salvar” o mito substituindo a leitura banal por uma hermenêutica erudita que revela, sob a trama da narração, um ensinamento secreto análogo, por trás do disfarce da fábula, as verdades fundamentais cujo conhecimento, privilégio do sábio abre uma única via de acesso ao divino. Mas, quer recolham preciosamente seus mitos, quer os interpretem, critiquem-nos ou rejeitem-nos em nome de outro tipo de saber, mais verídico, os antigos continuam a recolher neles o papel intelectual que lhes era comumente atribuído, na Grécia das cidades-estados, como instrumento de informação sobre o mundo do além. (VERNANT, 2006, p. 20.)

O mito faz parte, nesse conjunto, da mesma maneira que as práticas de culto e

rito. E um dos pontos mais importantes é a decifração do mito; engana-se quem pensa

que o autor de uma narrativa ou poesia mítica escreve coisas da sua cabeça ou tem livre

trânsito para escrever o que se quer. Todo autor escreve apoiado em uma tradição que só

terá validade para o público se estiver sustentada sobre uma tradição que se segue, caso

o contrário não terá credibilidade.

A decifração do mito, então, visa destrinçar essa narrativa ou poesia e ali

encontrar elementos de compreensão do real (natural) ou daquilo que se quer expressar

(sobrenatural). O mito, nesse sentido, é mais explícito que o rito, pois se fala claramente

sobre o que se propõe dizer; o mito traz um saber, enquanto o rito abre espaço para a

experiência e interpretação. O culto é mais desinteressado, ele está preocupado mais

com a parte utilitária – porém, não menos cheio de significado – e simbólica.

Veja-se como se comportam esses elementos dentro da religião antiga grega.

1.3 O culto, o rito e a imagem dos deuses

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Pelo tópico acima, percebe-se que o mito, em narrativa ou poesia na vida diária,

fez o homem grego mais piedoso, mas, sem dúvidas, foi por meio do culto, do rito e da

imagem dos deuses que se criou um sentimento popular de se viver a crença.

O temor reverencial é dos elementos comuns que formam o núcleo primitivo e

universal de toda a experiência religiosa. Essa é base sob a qual se apoia os cultos

antigos. O rito também aciona a mesma experiência do divino, mesmo com toda a

pluralidade dos deuses politeístas dos gregos.

Para todo ato cultual, porém, não há outro deus para aquele que o cultua, senão

aquele que é invocado, uma vez que a pessoa dirige o culto a ele, nele é depositada toda

a sua esperança e toda a força de sua oração. Não se trata de um deus único, pois a

pessoa sabe da existência dos outros deuses, mas é no culto àquela divindade que ele

concentra suas forças.

Além do temor referencial e do sentimento difuso do divino, a religião grega

apresenta-se como uma vasta construção simbólica complexa e coerente, que abre para

o pensamento como para o sentimento seu espaço em todos os níveis e em todos os seus

aspectos, inclusive o culto.

Em relação à imagem dos deuses, três são os modos de figuração do divino, a

verbal, gestual e a própria imagem. Os gregos possuíam diferentes maneiras de

representar os seus deuses, que podem ser por meio de fenômenos naturais, objetos

naturais como uma árvore ou pedra, pode ser por algum objeto mesmo manipulado por

mãos humanas. Para Vernant (2006, p. 28), “cada forma de representação implica, para

a divindade figurada, um modo particular de manifestar-se aos humanos e exercer,

através de suas imagens, o tipo de poder sobrenatural cujo controle ela possui”.

1.4 O mundo e a organização dos deuses

A religião grega apresenta uma complexidade em sua organização. A definição

clara de um deus é melhor compreendida entendendo a sua relação com outros deuses

do panteão. Não é objeto desta pesquisa trabalhar toda a estrutura das três gerações de

deuses a partir da criação. No entanto, para melhor entender o processo de culto e

sacrifício, é importante entender que os deuses de cada cidade, santuário ou monumento

entram em um estado de relação e combinação com outros deuses e, nesse sentido, faz-

se necessário falar brevemente do papel e potência de alguns deles: Zeus (pai e rei);

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Zeus (brilhar, céu); Poseidon (mar); Hades (mundo subterrâneo); Júpiter (soberania);

Marte (guerreira); Quirino (fecundidade e prosperidade); Ouranós (escuro do céu); Gaia

(terra).

A superfície da terra é de domínio de Zeus, Poseidon e Hades, junto com uma

divindade feminina que é Gaia. No processo da agricultura, Zeus é a figura masculina,

Gaia é a figura feminina, Poseidon é a chuva que ajuda a fertilizar a semente embaixo

da terra, nas profundezas do solo.

A figura mais importante é a de Zeus. Ele se casa inúmeras vezes e gera diversos

filhos com papéis importantes no panteão e também estabelece uma ordem no mundo.

O fato de ter-se casado com Têmis faz com que ele fixasse, para sempre, a ordem das

estações da natureza e se firmasse como pai dos deuses e dos homens. Zeus é pai não

porque tenha gerado todos os seres, mas porque é rei e tem autoridade sobre todos eles.

Embora Zeus possua muitas facetas, ele não pode ser comparado a nenhum deus

que morre, pois é por meio da imortalidade que é traçada uma fronteira entre homens e

deuses, e seria pelo convívio que os homens e deuses poderiam estabelecer uma relação

de proximidade.

Zeus cria as cidades para que todos possam viver ali como irmãos. Zeus se

relaciona com os homens por meio dos fenômenos naturais e também por meio dos

oráculos e profetas. Daí a importância dos oráculos dentro da estrutura de comunicação

dos deuses com os homens.

Segundo Vernant (2006, p. 30), “o oráculo de Dodona, o mais antigo que os

gregos dizem ter existido entre eles era um oráculo de Zeus". Quando são pronunciados

oráculos em Delfos, eles dizem mais a respeito a Zeus do que a Apolo. Nesse sentido,

Apolo seria um profeta de Zeus, torna a palavra do Pai e Rei audível a todos aqueles que

souber escutar.

1.5 A pessoa na religião antiga grega

Antes mesmo de falar do papel da religião antiga grega como uma religião

cívica, faz-se necessário abordar o papel da pessoa na religião. Vernant (2008) trabalhou

bem esse tema no sexto capítulo da sua obra Mito e pensamento entre os gregos. No

início desse capítulo, Vernant (2008, p. 419) afirma que "um dos traços característicos

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da religião grega é dar às forças do além uma figura individual bem delineada e um

aspecto plenamente humano".

Os estudos constatam que o culto público e a religião da cidade contribuíram

para a formação de uma vida religiosa integrada à vida social e política dos indivíduos;

que o sacerdócio é uma magistratura e que toda magistratura comporta um aspecto

religioso, mas a grande novidade aqui é que, em termos individuais, o cidadão

estabelece uma relação com o divino por meio de sua participação em uma comunidade.

O agente religioso opera como representante de um grupo, em nome desse grupo, nele e por ele. O elo entre o fiel e o deus comporta sempre uma mediação social, não estabelece comércio direto entre dois sujeitos pessoais, ele exprime a relação que une um deus a um grupo humano tal casa, tal cidade, tal tipo de atividade, tal ponto do território. Expulso dos altares domésticos, excluídos dos templos da cidade, não aceito em sua pátria, o indivíduo acha-se desligado do mundo divino. (VERNANT, 2008, p. 420)

O ser religioso está intrinsecamente ligado ao ser social e à forma religiosa de

grupo e comunitária, embora seja a mais difundida na era antiga, não a única. No

segundo capítulo, será mostrado que os cultos a Dioniso possuem uma particularidade

diferente da organização institucional da cidade, e quem não acha lugar nos grupos

optam por essa expressão religiosa. É o caso das mulheres, elas são as grandes

sacerdotisas das casas de culto a esse deus. Vernant (2008, p. 421) afirma que "o

dionisismo é, de início e por predileção, religião de mulheres uma vez que as mulheres

são excluídas da vida política".

Não só as mulheres, mas também os escravos encontram-se nos cultos de

Dioniso, pois são proibidos de participar da vida política e social da cidade. Dessa

maneira, "a corrente religiosa do dionisismo ofereceu, pois, em época antiga, um quadro

de agrupamento aos que se achavam à margem da ordem social reconhecida"

(VERNANT, 2008, p. 421).

No tópico seguinte, será demonstrado que o Dionisismo oferece uma experiência

religiosa totalmente oposta ao culto oficial da cidade, libertando, de toda a ordem, o

quebranto das barreiras entre os homens e deuses, homens e animais, vegetais, barreiras

sociais e barreiras do próprio eu.

O Dionisismo aparece como uma cultura da loucura e do delírio. Por meio do

êxtase e do entusiasmo, o fiel tenta estabelecer uma relação íntima com o divino.

Dioniso é o deus que se apodera do fiel por meio da possessão, ele, porém, não é um

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deus da magia e da ilusão, nem um deus inacessível e inatingível, ele encarna no

homem como na natureza.

Em Dioniso há um avanço na relação pessoal dos homens com os deuses, porém,

nos cultos de mistérios, essa relação é muito mais íntima e evidente. Nos cultos de

mistério, a vida religiosa pode individualizar-se. O mistério agora não faz parte apenas

do social, mas da comunidade e do indivíduo que livremente participa dela.

Vernant (2008, p. 422) diz que "o mistério não só se dirige ao mistério como tal;

ele lhe oferece um privilégio religioso excepcional, uma eleição que, arrancando-o da

sorte comum, comporta a garantia de uma sorte melhor no além".

A comunhão do indivíduo com deus é o papel central da economia dos cultos de

mistérios. Sem dúvidas, dá-se pelo desejo de uma imortalidade bem-aventurada no pós-

morte, criando, pois, um elo fundamental entre o homem e deus.

A distância entre deuses e homens percorre a história da mitologia grega. São

exemplos Hipólito e Ártemis (VERNANT, 2008). Mesmo com a correspondência de

amizade e amor com a deusa durante toda a sua vida, no momento da morte, quando

Hipólito vê abrir para ele a porta do Hades e encontra Ártemis ao seu lado, naquela

última hora, traçam o último diálogo, afetuoso e apaixonado: "Ó senhora, vês o meu

estado miserável?", a deusa responde: "Vejo, mas aos meus olhos são proibidas

lágrimas, seria contrário à ordem que olhos divinos chorassem pela miséria dos

mortais". Logo a deusa o abandona diante da morte, feito um moribundo, um cadáver.

Nesse mito, confirma-se a evidência de que as naturezas do homem e dos deuses

são diferentes. Nesse sentido, a doença, o sofrimento e a morte é propriedade dos

homens e não dos deuses. Não dá para se ter uma relação pessoal com os deuses

helênicos, eles são forças e não pessoas.

Nesse sentido, os cultos de mistérios não querem se relacionar com uma

superpotência como é o caso de Zeus, algo já dado e hierarquizado dentro da mitologia

e que está no topo do panteão dos deuses. O indivíduo quer se relacionar com forças

particularizadas, tal, como exemplo, o relacionamento que ele quer ter com Afrodite, a

deusa da beleza. Ele está em busca, nesse relacionamento, da essência da beleza, isto é,

força que se dá em todas as coisas belas.

Nesse sentido, é possível pensar em uma unidade da pessoa divina ao se tomar

os deuses como forças e potência de uma unidade que seria Zeus. Existe Zeus e ao

mesmo tempo todos são Zeus. Vernant (2008, p.430) afirma que "para os gregos, Zeus

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está relacionado a diversas formas de soberania, do poder sobre outrem, com certas

atitudes e comportamentos humanos", o que facilita esse processo de relação

individualizada com os deuses.

No processo de comunhão, o homem grego não se relaciona apenas com os

deuses, mas também com os mortos nos cultos fúnebres e também com os heróis, por

meio da sua devoção às suas potências, forças e virtudes.

1.6 A religião antiga grega como uma religião cívica

A religião grega apresenta-se como uma religião cívica, instaura-se na mesma

época da constituição das cidades-estados, entre os séculos XI e VIII a.C. Nesse sentido,

o sistema religioso é reestruturado para a nova vida na polis. A vida local é ressaltada,

uma vez que a nova estruturação responde à particularidade de cada local e, assim, tem-

se deuses, santuários e templos para os deuses de cada cidade.

Percebe-se algumas inovações religiosas na religião cívica, estas são: templo

(local sagrado, separado do profano) como construção independente do habitat humano,

palácio real ou casa particular; estátuas cultuais nos templos ou cidade; no centro

urbano é instituída uma Acrópole ou Ágora; procissões rituais.

Segundo Vernant (2006, p. 42), “a ocupação do santuário e a sua vinculação

cultual ao centro urbano tem o valor de posse legítimo. Ao fundar seus templos, a pólis,

para garantir uma solidez inabalável à sua base territorial, implanta raízes até no mundo

divino”.

Não só os cultos dos deuses passaram a fazer parte da vida da cidade, mas

também o culto dos heróis, muitas vezes considerados como semideuses, tudo isso para

trazer um valor cívico e territorial.

Os cultos dos heróis estão relacionados a um local preciso, um túmulo com a

presença subterrânea do corpo do herói. Vernant (2006, p. 44) diz que os "túmulos e

cultos heroicos, através do prestígio do personagem homenageado, exercem para uma

comunidade o papel de símbolo glorioso e de talismã". A intenção dos cultos heroicos é

sempre de reunir um grupo a uma causa comum. O culto é para todos e os ritos fúnebres

apenas para parentes.

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Esse tema é importante para esta pesquisa, pois "a difusão do culto heroico não

responde apenas às novas necessidades sociais que surgem com a cidade. A adoração

dos heróis tem uma significação propriamente religiosa" (VERNANT, 2006, p. 45).

Para os gregos, a distinção dos cultos aos deuses e aos heróis está bem

delimitada. Os deuses são imortais e os homens são perecíveis e passíveis às doenças, à

velhice e à morte. Nesse sentido, os ritos são diferentes para cada um, para os heróis a

honra e para os deuses a devoção.

A maioria dos ritos fúnebres serve para abrir, para o defunto, as portas do Hades,

e fazê-lo desaparecer para sempre desse mundo, onde ele já não tem o seu lugar. Os

cultos querem preservar a memória do herói.

É preciso lembrar que os heróis conheceram a dor e o sofrimento, possuem

honras, mas eles não podem ser considerados deuses nem semideuses. Isso porque, no

"antigo tempo", para os gregos, os deuses mantinham uma relação próxima com os

humanos. De bom grado, misturavam-se com eles, convidavam-se para a casa deles,

comiam juntos, insinuavam-se até mesmo às suas mulheres para unir-se e, do

cruzamento de duas raças, a perecível e a imperecível ou imortal, nasceram belos filhos,

fortes e com potências específicas, os quais foram denominados de semideuses.

Eles possuem uma raça divina, e as suas lendas são contadas de gerações a

gerações pelos grandes poetas. Um exemplo são as narrativas de Hesíodo. Nessas

narrativas, algo novo aparece. Os heróis, semideuses, em vez de descerem às trevas do

Hades, eles são, graças ao divino, "arrebatados", transportados, alguns ainda vivos, a

maioria após a morte, para um lugar especial, afastado, para a Ilha dos Bem-

aventurados, onde continuam a gozar, em permanente felicidade, de uma vida

comparável a dos deuses.

Nesse sentido, o então mortal passa a gozar de alguns benefícios até então

reservados somente ao divino. Essa concepção é fortemente combatida pelo próprio

sistema religioso, mas cai na sabedoria popular e algumas virtudes são abstraídas desses

heróis para a construção de um modelo de vida a ser seguido pelos cidadãos, embora a

sabedoria grega sempre recomendasse aos homens a não quererem se igualar aos

deuses. Píndaro (522 - 443 a.C.) afirmava: "tenha coragem de ser um homem, não

queira ser um deus", o Oráculo de Delfos recomendava "sabe quem tu és"; "Conhece-te

a ti mesmo"; "Conheça os seus limites".

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Porém, mesmo com essas recomendações, grandes figuras lendárias como:

Aquiles, Teseu, Orestes, Herácles, Lisandro e Timoleonte eram cultuados pelo povo e

possuíam um papel importante na vida dele. Embora o próprio povo reconheça que eles

estão em outro plano, não pode ser intermediário em um processo de intercessão ao céu

na terra. O autor afirma que embora seja:

Instituído pela cidade nascente, ligado ao território desta, que ele protege, aos grupos de cidadãos, que ele patrocina, o culto dos heróis não desembocará, na época helenística, na divinização de personagens humanos nem no estabelecimento de um culto dos soberanos: esses fenômenos se ligam a uma mentalidade religiosa diferente. Solidário à cidade, o culto heroico declinará junto com ela. (VERNANT, 2006, p. 51)

1.7 Os sacrifícios como prática da vida religiosa

No tópico anterior, foi mostrado que vários são os espaços que são oferecidos

aos deuses, bosque, fonte, montanha, árvore, encruzilhada, etc. Mas é no templo que é

reservada, de fato, a morada do deus e serve de local para se cultuar e executar ritos

para aquele deus específico, ali se tem o altar como lugar central do templo e o

sacrifício, thysia, é executado como o maior ato de adoração ao deus.

Os sacrifícios normalmente, trata-se de um sacrifício cruento de tipo alimentar: um animal doméstico, enfeitado, coroado, ornado de fitas, é levado em cortejo ao som das flautas até o altar, aspergido com água lustral e com um punhado de grãos de cevada que também são lançados sobre o solo, o altar e os participantes, também eles portadores de coroas. A cabeça da vítima é então levantada, cortam-lhe a garganta com um golpe de máchaira, uma espada curta dissimulada sobre os grãos no kaneoyn, o cesto ritual. O sangue que jorra no altar é recolhido num recipiente. O animal é aberto; extraem-se suas vísceras, especialmente o fígado, que são examinadas para que saiba se os deuses aprovam o sacrifício. Nesse caso, a vítima é logo retalhada. Os ossos longos, inteiramente descarnados, são postos sobre o altar. Envoltos em gorduras, são consumidos pelas chamas com aromatizastes e, sob a forma de fumaça perfumada, elevam-se para o céu, em direção aos deuses. (VERNANT, 2006, p. 54)

No culto sacrificial, nada é desperdiçado, uma vez que o animal oferecido

cumpriu o seu papel no ato. Nesse sentido, alguns outros pedaços são grelhados em

espetos ou cozidos e consumidos pelos participantes no local ou levados para a casa

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deles. As partes como a língua e o couro ficam por conta do sacerdote do templo, tendo

ele celebrado o sacrifício ou não.

Um ponto importante é que todo cidadão não maculado, sem a prévia de

preparação ou formação específica, pode presidir o sacrifício, não sendo necessária a

presença obrigatória do sacerdote. Isso é uma mudança interessante no processo

religioso dos gregos. Na religião antiga grega não se vê o conceito de puro e impuro tão

fortemente presente nas religiões reveladas, aqui a pureza não precisa ser adquirida, ela

constitui o estado normal do cidadão.

Nem todos os ritos sacrificiais são de cunho cruento, algumas divindades como

Apolo Genetor, em Delfos, e de Zeus Hypatos, na Ática, exigem, ao invés de sacrifícios

de animais, oferendas vegetais, tais como frutos, ramos, sementes, mingau, bolos,

aspergidos com água, leite, mel, azeite, podendo incluir até mesmo vinho ou sangue.

Essas oferendas podem ser consumidas ou somente serem queimadas sobre o altar.

Algumas defesas de que esses seriam os sacrifícios puros, sem sangue, sem

execução de ser vivo, esses servirão de modelo para os pitagóricos e órficos, como será

falado no segundo capítulo. Vernant (2006, p. 56) afirma que nesse novo modelo de

sacrifício, “órficos e pitagóricos os invocarão para pregar, em seu modo de vida, um

comportamento ritual e uma atitude perante o divino que, rejeitando como ímpio o

sacrifício cruento, irão distinguir-se do culto oficial e parecerão estranhos à religião

cívica”.

Os sacrifícios variam pelo menos de duas maneiras, uma forma para os deuses

celestes e olimpianos e outra para os deuses ctonianos e infernais. Para os primeiros, os

altares são altos, para os segundos não se tem altar ou são baixos para que o sangue

escorra para dentro da terra.

No sacrifício olimpiano, a oferenda é para os deuses e um repasto de festa para

os homens. A maneira de conduzir o sacrifício é diferente, o animal vai ter amarras, sem

vestígios de violência, a ideia é colocar a passividade em primeiro plano. A maneira de

cozinhar ou assar a oferenda faz parte do rito, a fim de que nada tenha sido feito em vão.

Comer o alimento do sacrifício é uma comunhão social, que torna os cidadãos iguais

entre si, pois “os gregos só comem carne por ocasião dos sacrifícios e conforme as

regras sacrificiais” (VERNANT, 2006, p. 58).

Os ritos sacrificiais também são realizados em grandes momentos da cidade,

antes de travar uma batalha, abertura de uma assembleia, posse de magistrados, dentre

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outros. No mito “Os ardis (armadilha) de Prometeu”, conta-se que Prometeu teria

instituído o primeiro sacrifício. Conta-se que Zeus encarregou Prometeu de fazer a

separação das duas raças, uma vez que homens e deuses viviam em um mesmo

ambiente e dividia as mesmas coisas e, nesse momento, ele traz para o abate um enorme

boi, e ali divide tudo em dois, para lembrar-se da separação que deveria ocorrer dali em

diante. Com o sacrifício de Prometeu, instituiu-se a segregação dos estatutos divino e

humano.

Prometeu se revolta com Zeus e quer preparar uma armadilha e ali camufla a

parte boa de Zeus e só mostra manteiga e ossos. Por isso que, nos altares do sacrifício,

os homens queimam para os deuses os ossos brancos da vítima e guardam a porção de

Zeus para reparar a vingança.

Zeus sabendo da vingança de Prometeu deixa que ele acredite que estava em

vitória e ao dar a melhor parte para os homens, não vê que a carne estava envenenada e

ali acontece a sentença de morte para os humanos, condenados então ao envelhecimento

e a morte.

Contentando com a fumaça dos ossos, vivendo de odores e de perfumes, os deuses demonstram pertencer a uma raça cuja natureza é inteiramente diferente da dos homens. Eles são imortais, sempre vivos, eternamente jovens cujo ser não comporta nada de perecível, e que não tem nenhum contato com o domínio do corruptível. (VERNANT, 2006, p. 63)

Outro castigo dado por Zeus aos homens foi a primeira mulher, Pandora, e

introduz o nascimento por procriação e a necessidade do trabalho para o próprio

sustento, corrupção do corpo, doença e morte.

Prometeu, como reparação, leva o fogo para os homens e esse elemento é

compartilhado por deuses e homens, porém, para os homens é um elemento corruptível

e se apaga facilmente.

A fronteira entre deuses e homens é simultaneamente atravessada pelo fogo sacrificial que os une uns aos outros e sublinhada pelo contraste entre o fogo celeste, nas mãos de Zeus, e aquele que o furto de Prometeu pôs à disposição dos homens. (VERNANT, 2006, p. 64)

O fogo tem papel fundamental no sacrifício: separar a parte que deve ser

incensada para os deuses e aquela que deve ser cozida para os homens para que eles não

a comam cruz, devido o castigo de Zeus.

O mito prometeico mostra que não se deve rebelar nem tentar enganar o deus

dos deuses. Assim, o fogo prometeico, a necessidade do trabalho, a mulher, o

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casamento para ter filhos, os sofrimentos, a corrupção da carne, doenças e morte são

ações de Zeus para mostrar onde os homens deveriam se situar a partir dali entre os

animais e os deuses.

Nesse sentido, os ritos sacrificiais passaram a ser a comunicação dos homens

com o divino. Essa comunicação surge em uma cerimônia de festa, em um rito de

refeição para lembrar que a antiga comensalidade acabou, que agora homens e deuses

não vivem mais juntos, não comem mais juntos à mesma mesa. Vernant evidencia que

"no próprio rito que visa a reunir os deuses e os homens, o sacrifício consagra a

distância intransponível que doravante os separa" (2006, p. 66).

Não só de sacrifício cruento e culto público vive o homem grego. Existem várias

correntes místicas e aspirações religiosas entre os gregos a fim tentar um contato mais

direto e mais íntimo com os deuses, sobretudo para ter privilégio após a morte, por meio

de uma imortalidade entre os bem-aventurados ou de algum favor em vida ou na morte

pela observância de uma regra de vida pura.

No próximo capítulo serão abordados alguns fenômenos religiosos desse período

clássico, sobretudo dos Mistérios de Elêusis, o Dionisismo, o Orfismo, o Pitagorismo e

os elementos essenciais do Platonismo sobre o mesmo tema.

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CAPÍTULO 2

ELEMENTOS ESSENCIAIS DOS MISTÉRIOS DE ELÊUSIS, DO DIONISISMO

E DO ORFISMO

Neste capítulo serão abordados os conceitos fundamentais dos principais

movimentos da religião antiga grega, isto é, os mistérios de Elêusis, o Dionisismo e o

Orfismo.

2.1 Contextualização

No período clássico temos basicamente três fenômenos religiosos que moldaram

o modus religiosus do homem grego. São eles:

Primeiro – Os mistérios de Elêusis, caracterizados por serem exemplares em

seus cultos e mistérios, é um fenômeno oficialmente reconhecidos pela cidade; eles são

muito organizados, os seus ritos de iniciação possuem um caráter secreto e o seu modo

de recrutamento é aberto a todos os gregos segundo a opção individual de cada um.

Segundo – Os cultos de Dioniso, que também fazem parte da religião cívica,

possuem espaço para as festas e ritos a Dioniso dentro do calendário sagrado dos

deuses, mesmo que o seu deus seja o da loucura divina, mesmo que a prática religiosa

possua elementos diferentes dos cultos tradicionais, como as práticas de transe coletivo,

revelação epifânica e experiência sobrenatural estranha ao culto oficial da religião

antiga grega.

Terceiro – Orfismo, diferente dos demais, não se trata de cultos específicos, não

se devota um deus em particular e muito menos tem uma comunidade de crentes

organizada, ela está baseada em tradição de livros sagrados (Orfeu e Museu) que

comportam teogonias, cosmogonias, e antropogonias, é fortemente reconhecida pelo seu

estilo de vida diferente do convencional, adotam vegetariano como fonte de

alimentação, e dispõe de técnicas de cura, receitas para purificação da vida, receitas para

o pós-morte e propostas do destino da alma após a morte (estilo inaugural entre os

gregos).

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2.2 Os Mistérios de Elêusis

Elêusis era uma cidade da Grécia antiga onde se realizavam os Mistérios de

Elêusis, que eram ritos de iniciação ao culto das deusas agrícolas, Deméter e Perséfone.

Seu nome se deve a uma homenagem de fabuloso herói, Elêusis, que era considerado

filho de Mercúrio e Daíra, filha de Oceano.

É importante apresentar que os Mistérios de Elêusis não contradizem em nada a

religião cívica, nem quanto às crenças nem quanto às práticas. Deméter e Coré-

Perséfone são as duas deusas que patrocinam o Eleusismo. Não há condições de narrar

todo o mito, mas é importante saber que a narrativa do rapto de Coré por Hades faz

parte das lendas gregas e são absorvidas nos ritos secretos de Elêusis.

O processo de iniciação do candidato e sua evolução nos mistérios exigiam

grande dedicação e também cumprimento de ritos e cerimônias na cidade, na própria

Atenas, como o banho ritual no mar, e, depois de Atenas a Elêusis em uma procissão até

os objetos sagrados, e ali o clero, os magistrados, as delegações e a multidão

participavam do culto à luz do dia sobre o olhar de todos.

Existia o arconte rei, representante do Estado, que celebrava publicamente os

grandes mistérios, bem como membros das famílias tradicionais também celebravam e

cumpriam as festividades presentes no calendário sagrado dos deuses.

Sobre o ensinamento e do rito não se tem nada que evidencie um processo de

aprendizagem. Vernant (2006, p. 73) afirma que "não havia em Elêusis nenhum

ensinamento, nada que se assemelhasse a uma doutrina esotérica". Dessa forma, "os que

são iniciados não devem aprender algo, mas experimentar emoções e ser levados a

certas disposições".

Continua o autor: "terminado a iniciação, depois da iluminação final, o fiel tinha

o sentimento de ter sido transformado por dentro. [...] tornara-se um eleito, assegurado

de ter, nesta vida e na outra, uma sorte diferente do homem comum" (VERNANT,

2006, p. 73).

Alguns pontos são interessantes para esta pesquisa, sobretudo a parte da

escatologia nesses mistérios. A paixão de Deméter, a descida de Coré ao mundo infernal

e o destino dos mortos no Hades são pontos essenciais nos cultos de mistérios e que

ajudam a compreender a importância desse fenômeno entre os homens.

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Uma chamada proselitista, isto é, convidativa, era o fato de que bem-

aventurados seriam quem compreendera os mistérios e seu destino, após a morte, será

reconhecido. Os mistérios abriam uma nova perspectiva de continuar aqui na terra mais

feliz e de ter um final feliz após a morte, cada vez que o iniciado avançasse no Estado

de pureza religiosa.

Possuía também um argumento punitivo: profano seria aquele que não foi

iniciado e não conhecesse os mistérios e seu destino no Hades seria incerto. Um ponto

importante é que o iniciado, em sua vida civil, não se diferenciava em nada do não

iniciado, nenhuma marca de iniciação e nenhuma mudança no estilo de vida. Ele

carregava apenas a certeza que, após ter sido iniciado, algo melhor o esperaria após a

sua morte. Para ele, nas trevas, ainda haverá luz, alegria, danças e cantos.

2.3 Dionisismo

Talvez seja o deus mais diferente do panteão dos deuses, pois a presença do

transe e de mensagens epifânicas diferenciam seus ritos dos outros ritos tradicionais na

Grécia antiga. No Dionisismo comporta teletaí e órgia, iniciações e ritos secretos, dos

quais só podem participar o iniciado. E suas cerimônias, embora sejam realizadas na

cidade, elas estão às margens das gestas dos outros deuses, suas festas e cerimônias

acontecem, sobretudo, em Atenas durante as festas invernais de Dioniso, Oscofórias,

Dionísias rurais Antesteroas e Dionísias urbanas.

É preciso lembrar que todas as grandes cerimônias têm caráter extremamente

cívico, e as festas secundárias, ou que estão às margens, como as de Dioniso, podem

exercer alguns elementos de segredos e serem reservadas apenas aos iniciados.

No período clássico (século V a.C.), não parece ter existido grupos

extremamente selecionados que celebrassem os cultos reservados apenas aos iniciados,

celebrando junto com um grupo fechado, um culto específico sob o patrocínio de um

deus como será evidenciado séculos mais tarde.

Os cultos dionisíacos, celebrados no período clássico na cidade de Magnésia do

Meandro, são realizados basicamente por três colégios femininos compostos de

sacerdotisas qualificadas. A presença feminina é importante, pois se trata de uma

religião apartada da composição estrutural da cidade, e, portanto, mulheres que não

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tinham papel fundante nas religiões da cidade, encontram espaço nas religiões

periféricas.

Como anunciado anteriormente, os cultos dionisíacos diferem bastante dos

cultos oficiais da cidade, pois eles possuem aspectos cheios de excentricidades. Vernant

(2006, p. 77) afirma que "Dioniso revela outra face do sagrado [...], já não é regular,

estável e definido, mas estranho, inapreensível e desconcertante".

Dioniso é o único deus dotado de magia, à maneira de um ilusionista, joga com

as aparências e navega bem entre o fantástico e o real. Ele elimina a distância que

separa os deuses dos homens, e estes dos animais. Ele quebra o castigo de Zeus narrado

no Os ardis (armadilha) de Prometeu.

Os seus ritos e suas práticas fizeram com que o Dionisismo ficasse às margens

da cidade. Vernant (2006, p. 78) afirma que “Dioniso é ao mesmo tempo o mais terrível

e o mais doce dos deuses”. Para que os cidadãos experimentem a sua doçura é

necessário que a cidade o acolha como um deus e lhe garanta um lugar junto aos outros

deuses, um lugar no culto público. Celebrar solenemente as festas para Dioniso, ritos,

transe, embriagues pelo vinho, expressão corporal como em um teatro, prazeres de

amor, alegria das máscaras, travestismos, tudo isso é a integração de Dioniso à cidade e

à religião dela.

Um elemento novo é posto, isto é, de que o Dionisismo não anuncia uma melhor

sorte no além, e também ele não sugere uma vida ascética, cheia de regras e pureza para

que haja uma recompensa no pós-morte e do acesso à imortalidade da sua alma junto

aos Bem-Aventurados.

O Dionisismo abre uma perspectiva de religiosidade dentro do cotidiano das

vidas dos cidadãos presentes na cidade, sem a necessidade de um templo, sem

necessidade de sacerdote, sem marginalização e acepção de pessoas.

O Dionisismo, em suma, é a afirmação religiosa da vida total, não renegada nem

estilhaçada, ou seja, é o símbolo da aceitação integral e entusiasta da vida em todos os

seus aspectos e da vontade de afirmá-la, repeti-la.

2.4 Orfismo

Explora-se mais esse tema, pois é de onde sairão os principais conceitos para a

fundamentação desta pesquisa.

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O Orfismo floresceu entre o século VI e o século III a.C., trata-se de uma

religião de mistério, onde somente os iniciados podem ter acesso aos seus textos

sagrados, portanto, toda e qualquer manifestação mítica, cerimonial ou ritual são

ocultadas dos não iniciados.

O Orfismo não é somente um fenômeno religioso, é um movimento filosófico-

religioso que fora bastante difundido, sobretudo nos séculos V e VI a.C. Teria sido

fundado por Orfeu, segundo o qual a vida terrena era apenas uma preparação para a vida

mais elevada no pós-morte. Uma vida que poderia ser mais recompensadora se o fiel

levasse uma vida mais reta, asceta, dedicada, pura, por meio da prática das cerimônias e

ritos purificadores.

Nesse sentido, o Orfismo é uma espécie de busca da unidade perdida dentro da

religião antiga grega. Como se viu, essa corrente pertence ao Helenismo tardio, seus

problemas são de outra ordem e está mais preocupada com a condição da alma no pós-

morte, e quais seriam as práticas religiosas importantes para se ter alguma vantagem

quando a morte vir ao encontro do homem.

Segundo Vernant (2006, p. 82), "o Orfismo se opõe tanto aos cultos de mistério,

quanto do Dionisismo quanto ao culto oficial para se aproximá-lo da filosofia".

O Orfismo é uma religião que tem uma tradição em livros e escritos sagrados.

Vários deles foram encontrados recentemente e trouxeram algumas novidades para os

estudos, como foi o caso do Papiro de Derveni, encontrado em 1962 em Salônica,

provavelmente escrito no século V ou VI a.C. Seu conteúdo recheado de teogonia que

antecedeu aos pré-socráticos e que parece que Empédocles pode ter tido acesso e se

inspirado.

Por isso é tão complicado o estudo do universo Órfico. Por se tratar de uma

religião cujas bases é a escrita, deparamos com algumas dificuldades elementares em

relação à fontes primárias, escassas e conflitantes. Em relação às origens e às fontes tem

muita semelhança entre os grupos Eleusinos, Órficos e Pitagóricos, tornando confuso o

estudo.

A tradição escrita do Orfismo quase toda fora construída em forma de poemas

teogônicos (genealogia dos deuses), cosmogônicos (formação do universo),

cosmogônicos (fundação da espécie humana) e poemas escatológicos (revelação sobre o

Hades e sobre o percurso da alma após a morte).

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Esses últimos são o objeto principal deste estudo. Nesse sentido, é importante,

ressaltar que as teogonias do Orfismo se opõem às teogonias de Hesíodo. A seguir, dois

exemplos para melhor compreender a afirmação.

A teogonia hesiodiana:

Em Hesíodo, o universo divino organiza-se segundo um progresso linear que conduz da desordem à ordem, de um estado original de confusão indistinta a um mundo diferenciado e hierarquizado sob a autoridade imutável de Zeus. (VERNANT, 2006, p. 82)

Teogonia órfica:

Na origem [...] exprime a unidade perfeita, a plenitude de uma realidade fechada. Mas o Ser degrada-se à medida que a unidade se divide e se desmancha para fazer aparecerem formas distintas, indivíduos separados. A esse ciclo de dispersão deve suceder um ciclo de reintegração das partes na unidade do Todo. Será, na sexta geração, o advento do Dioniso órfico, cujo reinado representa o retorno ao Um, a reconquista da plenitude perdida. (VERNANT, 2006, p. 83)

Segundo Vernant (2006, p. 83), "Dioniso assume em sua pessoa de deus o duplo

ciclo de dispersão e de reunificação [...] visto que fundamenta miticamente a desgraça

da condição humana e ao mesmo tempo em que abre, para os mortais, a perspectiva da

salvação".

Nesse sentido, os Órficos mantêm uma vida de purificação por meio da vivência

dos ritos e do estilo que se abstém de toda a carne para evitar a impureza do sacrifício

cruento que a cidade santifica, mas que, a seu ver, só resgata o monstruoso festim dos

titãs.

O estilo de alimentação é apenas um dos principais pontos de uma vida reta e

recheada de pureza; o foco é uma vida asceta e com vários exercícios espirituais,

estabelecendo um novo estilo de vida, a fim de se purificar para gozar de uma vida

áurea no além.

Sendo assim,

As teogonias órficas desembocam, portanto, numa antropogonia e numa soteriologia que lhes dão um verdadeiro sentido. [...] o aspecto doutrinal não é separável de uma busca da salvação; a adoção de um estilo de vida puro, o descarte de toda mácula, as escolhas de um regime vegetariano traduzem a ambição de escapar à sorte comum, à

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finitude e à morte, de unir-se inteiramente ao divino. (VERNANT, 2006, p. 84)

O Orfismo, por se mostrar estranho à cidade desde suas regras e valores, cria o

desejo da "busca da salvação individual, situa-se fora da religião cívica" (VERNANT,

2006, p. 84). Para obter essa salvação, os seguidores do Orfismo trabalhavam

constantemente os exercícios espirituais, disciplina na alimentação, vegetarianismo,

controle e concentração do sopro respiratório, técnicas de ascese e êxtase (transe).

O processo de transe coletivo era a maneira que os Órficos tinham para

estabelecer contato com a divindade e sair mesmo que espiritualmente do mundo. Nesse

processo, o deus vem até esse mundo para estar com o grupo de fiéis, não são os

possuídos que saem do mundo, mas o deus que vem até eles e os fazem dançar, saltar,

etc.

Até então, na religião antiga grega nenhuma seita expressou-se com tanto rigor e

com todas as consequências essa saída do corpo e fuga do mundo quanto os Órficos, e

isso só aconteceu com a ajuda da filosofia e não somente da religião. Nesse sentido,

Vernant (2006, p. 88) afirma que "foi a filosofia que, ao transpor para o próprio registro

os temas da ascese, da purificação da alma, da imortalidade desta, assumiu essa tarefa".

Retoma-se o caráter literário do Orfismo para melhor compreender como esses

textos, muitas vezes pequenos poemas e fragmentos, pode elucidar alguns elementos

que serão absorvidos depois pelos pitagóricos e platônicos, depois assumidos dentro da

história do cristianismo para a formulação dos conceitos escatológicos da doutrina cristã

católica.

Para aprofundar ainda o argumento de que o Orfismo, em seu caráter literário,

estabeleceu diálogo entre religião antiga grega, cultos de mistérios e filosofia, serão

utilizadas algumas contribuições de Gazzinelli (2007), contidas no livro Fragmentos

Órficos.

Alguns textos ou fragmentos foram encontrados recentemente, como o caso do

Papiro de Derveni, que foi citado no início deste tópico, cujo conteúdo era de cunho

escatológico e de teogonia. Algo é importante: o uso dos papiros, por iniciados, fazia

com que o controle sobre o mistério deles se tornasse frágil, pois o papiro podia chegar

facilmente nas mãos de um não iniciado. Graças a essa dispersão, esta pesquisa teve

acesso a alguns papiros e placas, que serão detalhados ainda neste tópico.

Nessa mesma perspectiva, de que o conteúdo do Orfismo fugisse das mãos dos

iniciados, facilitou o acesso do seu conteúdo a alguns filósofos (Empédocles e Platão)

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ou correntes filosóficas (Pitagóricos e Estóicos) que conviveram com esse fenômeno

religioso de seu tempo, mesmo não iniciados, e fizeram com que estes fizessem

frequentes referências do Orfismo, sobretudo dos seus ritos, culto e conteúdo literário.

Os textos esotéricos chegaram às mãos desses autores ou correntes filosóficas e,

cada vez mais, o conteúdo religioso do Orfismo foi reelaborado e discutido como

conteúdo filosófico. Alguns pontos importantes foram levantados nesse sentido, os

quais podem postular uma certa relação entre o Orfismo e religião antiga grega. Estes

pontos são: doutrinas órficas relativas “às almas” são apropriadas por Empédocles,

Platão e Pitagóricos; a ascese órfica e suas consequências morais suscitaram debates em

relação a diversas questões éticas; uso de técnicas exegéticas de interpretação de

poemas órficos tornou-se um subsídio metodológico para filósofos examinarem poemas

cosmogônicos.

O que é importante para esta pesquisa são as doutrinas em relação à alma. No

mito de Orfeu, conta-se que ele teve acesso ao mundo das sombras, o Hades,

ludibriando os guardiões do portão com sua música, em busca de sua amada noiva. Lá

conseguiu vislumbrar o outro mundo, e quais as possíveis artimanhas a alma deveria ter

para fugir do ciclo eterno da reencarnação. Em uma outra versão, Orfeu é morto e sua

cabeça jogada rio abaixo, desce o rio cantando e ainda passa muitos anos proferindo

oráculos. Nesse sentido, Gazzinelli (2007, p. 15) afirma que "a descida da cabeça de

Orfeu rio abaixo é como um caminho da alma para a vida nova após a morte".

A curiosidade, então, era por receber um oráculo de Orfeu, cujo conteúdo

estivesse frequentemente ligado à busca do conhecimento, do que a ocorrência após a

morte, pois se ele havia descido ao Hades e retornado ao mundo dos vivos, ele poderia

revelar certos mistérios até então ocultos ao povo. Nesse sentido, alguns temas foram

introduzidos na cultura e religião antiga grega, a partir dali, tais como: imortalidade da

alma, divisão corpo e alma, metempsicose (transmigração da alma) e juízo após a morte.

Os Órficos mostravam a clara distinção entre o corpo (mortal) e alma (imortal),

apresentando-os como entidades distintas e que, após a morte, para os piedosos,

aguardavam uma vida bem-aventurada, enquanto que os ímpios aguardavam uma vida

de castigos. A explicação da divisão de corpo e alma está ligada ao mito de

desmembramento de Dioniso, no qual os seres humanos tinham sido criados das cinzas

dos titãs (natureza ctônica/titânica) e dos resquícios do corpo de Dioniso (natureza

divina/celeste).

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Algumas revelações dadas pelo Orfismo, sobretudo nas fontes mnemosínicas,

apresentavam uma frase que deveria ser dita pelo iniciado quando ele chegasse ao

Hades. Esta era: "Sou filho da terra e do céu estrelado, mas minha raça é apenas

celeste", reforçando e valorizando a natureza divina e celeste conservada do corpo de

Dioniso.

Recitando essa frase positiva, o iniciado então teria um benefício no juízo após a

morte. E assim as almas estariam nos seguintes lugares/estados conforme a sua

dedicação: almas virtuosas na Ilha dos Bem-Aventurados; as injustas no tártaro e as

almas incorrigíveis nos castigos eternos.

A crença de um julgamento após a morte e a crença na imortalidade da alma é

imprescindível para o Orfismo enquanto prática religiosa, pois isso justifica as práticas

de ascetismo e disciplina, que nada mais são do que a recusa do prazer do corpo (carne)

para atingir as bem-aventuranças após exercícios espirituais. No papiro de Derveni, isso

fica evidente quando se lê que os homens injustos serão punidos com a morte e que os

excessos serão descobertos pela Erínias, uma das divindades ctônicas. O mesmo ocorre

nas lâminas de ouro, que indicam para o iniciado evitar o caminho da esquerda,

tomando sempre o da direita e de dirigirem suas súplicas às juízas internas, guardiães da

fonte da memória como, por exemplo, Perséfone, uma rainha ctônica.

Outro ponto fundamental diz respeito ao Orfismo e transmigração da alma

(metempsicose), absorvido depois pelos pitagóricos e platonistas. Segundo a tradição

órfica, nascemos manchados pela impureza e é por meio da transmigração da alma, um

ciclo contínuo de reencarnação, que a alma é capaz de se purificar. Neste sentido,

entendemos que no Orfismo o processo de reencarnação é sempre ascendente, não se

tem a noção de transmigração para algum animal inferior para ser punido de alguma má

conduta na vida atual como em alguns outros movimentos religiosos. Sobre o período

que a alma deveria ficar no ciclo da reencarnação, os autores não chegam a um número

confiável, varia de três mil a dez mil anos.

Ascetismo órfico, como forma de se libertar desse ciclo, acontece por meio da

disciplina e dos exercícios espirituais, quando é possível atingir o estado de beatitude

(purificação). Nesse estado, aconteceria a apoteose, incluir-se entre os deuses e não ser

mais necessário reencarnar-se para se purificar. Uma inscrição em uma placa Ólbia, diz:

"vida/morte/vida", mostrando o processo cíclico da reencarnação e, em uma lâmina de

Turi III, autorreflete que o processo de reencarnação é um "ciclo do doloroso lamento".

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A prática ascética tinha como objetivo a purificação do corpo durante a vida

terrena. A música possuía um papel importante nos ritos de iniciação, já que precisava

ser um bom atrativo para o grupo, e fazendo referência sempre ao dom de Orfeu de

ludibriar pela música. Um dos preceitos mais importantes no ascetismo é o

vegetarianismo, uma vida sem sangue e sem carne era importante para manter a

purificação, posição oposta à religião tradicional que realizava sacrifícios cruentos,

como foi falado no início deste capítulo. Ao invés de animais e sangue, eram oferecidos,

durante os sacrifícios, bolos e frutas da terra. A regra era clara: comer o que é

inanimado e abster do que é animado. Proibia-se também o uso de lã, pois estariam

explorando os animais. Vestiam constantemente, durante os ritos, roupas brancas para

simbolizar pureza.

Um último ponto a ser levantado sobre o Orfismo é a questão da interpretação

alegórica dos poemas órficos, descobertos nos textos e fragmentos que foram citados no

início do tópico.

Foi dito anteriormente que a leitura e interpretação de textos literários – poemas

sagrados – faziam parte dos ritos de iniciação. Como os textos eram cifrados para

proteger sua revelação a não iniciados, a própria exegese era uma atividade exigida do

iniciado. Ele deveria ser capaz de distinguir e interpretar a etimologia das palavras,

reconhecer uma alegoria, uma metáfora, reconhecer similaridades, polissemias,

sinomías e analogias nos textos. Essa metodologia interpretativa usada no Orfismo era

reconhecida entre os filósofos para a interpretação de mito e cosmogonias.

Será falado, mesmo que de forma sucinta, de pelo menos três principais

fragmentos órficos disponíveis hoje para estudo, e que enriquecerão esta abordagem de

cunho escatológico, sendo um Papiro, o de Derveni; as Lâminas de Roma; e uma Placa,

a de Ólbia.

Com a descoberta do Papiro de Derveni foi possível enxergar o uso e a aplicação

dessas técnicas em um texto real, cujo conteúdo permeava entre a teogonia e a

escatologia. Nesse sentido, entendemos que o autor do Papiro de Derveni praticava a

religião por meio da leitura e interpretação (hermenêutica) dos poemas órficos. Assim, o

diálogo que se pode fazer hoje entre Orfismo e tradição filosófica só poderá se dar por

meio da leitura e interpretação.

O Papiro de Derveni foi encontrado em 1962, no nordeste da Grécia, em escrita

grega e dialeto jônico. Estima-se que foi escrito por volta do século IV a.C. e é

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considerado hoje, pelos estudiosos, o mais antigo papiro grego e literário e seu conteúdo

até então era inédito.

O Papiro de Derveni pode ser dividido em duas partes. A primeira trata-se de

escatologia, sacrifícios aos mortos e pena para quem age mal durante a vida; a segunda

trata-se de rapsódias órficas, acompanhadas de exegese do autor.

Esse papiro abriu novos campos de estudo e alguns deles estão sendo expostos

nesta pesquisa, tais como a relação entre Orfismo e filosofia, as técnicas exegéticas

como instrumentos de interpretação, a valorização e o privilégio do iniciado frente ao

não iniciado, tema recorrente no Papiro de Derveni, por ser este o único texto de

iniciação que a tradição dispõe até hoje, e entende-se que a interpretação da poesia

sagrada era vista como uma etapa a ser cumprida pelo pretendente no rito de iniciação.

Por sua vez, as Lâminas de Roma foram descobertas no século II d.C. e possuem

um forte sincretismo com o início da era cristã. Elas podem ser divididas em dois

grupos. O primeiro compõe as Lâminas antigas, que trouxeram grandes contribuições

em relação à natureza ctônica e celeste do seu portador, valorizando a celeste,

retomando assim o mito antropogônico órfico. Apresenta a crença na divisão do corpo e

alma e também a presença da ideia de guardiões do lago da memória (mnemosínicas).

Já o segundo grupo é composto pelas Lâminas recentes, que invocam divindades

ctônicas, reforça o fato de que o iniciado vem dentre os puros (privilegiados), e nelas

estão presentes pequenas súplicas do portador a fim de ascenderem um estado divino.

Muitas dessas lâminas não passaram de talismãs, pois seu conteúdo aparece como

secundário, devido à presença de dados erros de escrita.

Por fim, as Placas de Ólbia, que são de ossos de 5 a 7 cm, descobertas em 1951,

datadas aproximadamente do século V a.C. Foram encontradas em Ólbia, sul da Rússia,

colônia Grega de Mileto. As placas de ossos serviam como um cartão de identificação

dos iniciados, todas elas escritas Dion (abreviação de Dioniso).

Os conteúdos de algumas placas estão ligados à transmigração da alma.

Algumas placas trazem uma simbologia dos contrários, muito presente na antiguidade

grega, e outras ressaltam uma preocupação com a alma, preocupação principal dos

mistérios órficos. As descobertas dessas placas mostram a expansão do Orfismo pelo

mediterrâneo, passando por Creta, Magna Grécia, Egito, Ólbia.

Como são conteúdos pequenos, eles são colocados, a seguir, com a devida

tradução:

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PLACA I

biosthamatos bios - aletheia - Dio - Orphikoi

vida morte vida - verdade - Dioniso - Órficos

PLACA II

eirene polemos - aletheia pseudos - Dion

paz guerra - verdade mentira - Dioniso

PLACA III

Dio - aletheia - psikhe

Dioniso - verdade - alma

Alguns elementos presentes no Papiro de Derveni, nas Lâminas de Roma e nas

Placas de Ólbia corroboram na compreensão que, de fato, são materiais de conteúdos

órficos e estão em harmonia com escatologia da filosofia antiga, sobretudo entre os

pitagóricos e platonistas, que serão trabalhados nos próximos dois itens. Estes

elementos são: Divisão de corpo e alma; Imortalidade da alma; Transmigração da alma

(metempsicose); Reminiscência de vidas anteriores; Recompensa para iniciados

(virtuosos); Punição para não iniciados (ímpios / não virtuosos); Lugar/estado da alma

no pós-morte.

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CAPÍTULO 3

ELEMENTOS ESSENCIAIS DO PITAGORISMO E DO PLATONISM O

No capítulo três, são abordados os conceitos fundamentais do Pitagorismo e os

elementos essenciais sobre escatologia da filosofia de Platão.

3.1 Contextualização

Teve-se, dentro da filosofia, uma corrente filosófica que absorveu alguns

elementos da religião antiga grega para estabelecer o modus vivendi do homem grego,

que foi o Pitagorismo e também o filósofo Platão que trabalhou alguns elementos

ligados à religião que serão trabalhados nesta pesquisa, sobretudo a visão ético-

religioso-ascética. Aqui resumidamente um pouco sobre estes dois novos tópicos.

Quanto ao Pitagorismo, doutrina antiga da escola pitagórica, quase nada se deve

a Pitágoras e muito aos seus alunos e seguidores, pois ele nada escreveu. Um dos

conceitos mais importantes foi o da metempsicose, transmigração da alma, nas quais se

baseavam as crenças místicas e os ritos da seita. Os números são os elementos

constitutivos de todas as coisas para eles e os corpos celestes giravam em torno de um

fogo central, mais tarde denominado de sol e que teria influenciado Copérnico na idade

média.

Já quanto à Platão, ele viveu de 428 a 347 a.C, foi considerado um notável

homem grego, filho da nobreza, letrado, politizado e grande amante da filosofia.

Também foi discípulo de Sócrates, foi considerado pelo povo de sua época um herói,

um sábio e por que não um profeta do seu tempo, e até mesmo divino, como disseram

os renascentistas. A obra de Platão foi quase toda escrita em forma de diálogos. É

considerado um grande filósofo, não tanto pela formulação sistemática de sua obra, mas

pelo fato de que melhor interpretou o método socrático de uma busca de diálogo. Platão

absorveu o conteúdo oral deixado por Sócrates dando-lhe a forma escrita. É possível

identificar em seus diálogos diversos temas, mas os que mais interessa nesta pesquisa é

o tema que aborda a visão ético-religioso-ascética presentes nos diálogos do Fédon,

Górgias e na República.

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3.2 Pitagorismo

Antes mesmo de se abordar o Pitagorismo enquanto corrente filosófica, é

importante também falar, mesmo que de forma sucinta, do seu mestre, Pitágoras.

Filósofo grego, nascido na cidade de Samos em 570 a.C., embora tenha vivido entre os

aristocratas, possuía uma forte inclinação para a vida ascética. Tinha uma dedicação e

zelo missionário que formaram seu pensamento quando desejou estabelecer um novo

tipo de sociedade a ser governada por aqueles que se dedicavam à busca do saber e da

sabedoria, desejo esse que posteriormente seria assumido por Platão e que motivou a

escrita do livro A república.

Tudo que se tem de obras literárias sobre Pitágoras foi escrito por seus

discípulos de forma tardia e fantasista, cujos conteúdos trazem visões extraordinárias e

de cunho sobrenatural, tendo como pai divino o Apolo, que lhes concedeu grandes

virtudes e potências, como, por exemplo, lembrarem-se de suas vidas anteriores,

reencarnações passadas. Ele era considerado um homem-divino.

Um fato curioso é que tamanha era a veneração de Pitágoras pelos seus

discípulos que eles evitavam até mesmo pronunciar o seu nome, então frequentemente

utilizava-se expressões do tipo “ele disse”.

De acordo com as tradições, Pitágoras havia preparado o seu caminho

espiritual tendo acesso a outras culturas como, por exemplo, a egípcia e babilônica, o

que imprimiu nele um caráter espiritualista e fortaleceu seu interesse por uma vida de

regra, de meditação, controle respiratório, ascetismo, vegetarianismo, etc., que

influenciou outros filósofos e outras correntes filosófico-religiosas de sua época e, mais

do que isso, ele teria influenciado a criação da mais antiga corrente filosófica do período

helênico, depois da escola jónica, o Pitagorismo.

É preciso entender que Pitágoras possuía muitos interesses dentro do seu

pensamento e de sua escola, era um pensador ético-religioso, um filósofo propriamente

dito, um cientista, um organizador sociopolítico. O que interessa nesta pesquisa, no

entanto, é o primeiro aspecto, isto é, conhecer e aprofundar um pouco mais no Pitágoras

fundador de uma religião muito semelhante à dos órficos, mas que se apresenta

totalmente autônoma.

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Alguns aspectos serão importantes para a compreensão do Pitagorismo já

iniciado por Pitágoras, que são: a distinção do corpo e alma, a transmigração da alma

(metempsicose) e a sua proposição de regra ascética para a purificação e recompensa da

alma no pós-morte. Os conceitos sobre os números não interessam nesta pesquisa.

Para Pitágoras há sim o dualismo de corpo e alma, no qual o corpo seria um

elemento inferior e perecível que deveria ser dominado por um elemento superior,

imperecível e divino, isto é, a alma.

Essa alma estaria condenada a reencarnar no corpo de outro ser vivo, outro

homem, animal ou planta. O tipo de corpo a ser reencarnado teria relação direta com a

vida anterior que o indivíduo adotou, seja ela repleta de virtudes ou vícios, porém,

apresenta que esse ciclo contínuo de reencarnação poderia ser quebrado se determinada

alma atingisse um estado perfeito dos domínios das paixões e das necessidades físicas

(do corpo, da carne).

Alguns caminhos ajudariam a alma a alcançar essa liberdade de reencarnação,

estes são: a prática do ascetismo; a piedade religiosa; a prática da contemplação; a

busca do equilíbrio e da harmonia; a busca contínua pela sabedoria; e o cultivo da razão

(aplicações práticas da filosofia e da ciência).

Pitágoras divide a alma em três categorias, estas são: a dos que buscam o lucro

e a satisfação das necessidades; a dos que buscam a glória e o triunfo; e a dos que

buscam o conhecimento.

Após Pitágoras, tem-se referências de dezenas de pitagóricos, dentre eles as

figuras mais conhecidas são Teano, Hípaso, Pétron, Íon de Quios, Hípon de Samos,

Alcméon de Crotona, Amínias, Filolau, Êurito, Arquitas, Símias e Cebes.

O Pitagorismo é a primeira corrente filosófica a surgir no Ocidente. Não foi

apenas uma escola filosófica, mas também ético-religiosa, sociopolítica e estética

(música). A parte que interessa esta pesquisa é a parte ética-religiosa, mesmo foco que

será dado nas obras e na escola platônica no item a seguir.

Conforme dito anteriormente, do ponto de vista ético-religioso, o Pitagorismo é

muito semelhante ao Orfismo, tão bem explorado no tópico anterior, cujos

ensinamentos foram resumidos em: crença nos ensinamentos de um homem-divino

(Pitágoras); crença em reencarnações e transmigração da alma (metempsicose); busca

contínua de purificação por meio do ascetismo, moralidade, vegetarianismo, não

violência, respeito à vida, luta contra as paixões do corpo (da carne); preferência por

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uma vida discreta e piedosa; busca contínua pela razão e sabedoria (práticas da filosofia

e da ciência); a divindade mais significativa é Apolo e não Dioniso, conforme outros

fenômenos religiosos expostos nos itens anteriores; Pitágoras seria um mestre por

excelência e não Orfeu.

Esses são os pontos fundamentais aos quais irá se ater esta pesquisa para assim

poder entrar na visão ética-religiosa-ascética, tão bem trabalhada por Reale (1994) na

terceira seção do segundo volume de sua obra História da filosofia antiga.

3.3 Platão e sua visão ética-religiosa-ascética

Giovanni Reale em seu livro História da Filosofia Antiga, volume II, vai

trabalhar, na terceira seção, a componente ético-religioso-ascética do pensamento

platônico e, nesse texto, são encontrados elementos importantes para fundamentar a esta

pesquisa. Na primeira parte, será destacada especificamente a importância da

componente místico-religiosa-ascética em Platão e depois será trabalhada a questão da

imortalidade da alma, seu destino no além e a questão da reencarnação.

De início, vale lembrar que a filosofia de Platão é impregnada fortemente por

um espírito religioso, sendo que alguns a entenderam como sendo uma espécie de

iniciação à mística, e alguns diálogos podem ser considerados grandes respostas a

questões divinas que sempre interpelaram o homem grego. A dimensão mística de

Platão está presente nos diálogos, Górgias, Fédon, no livro da A república, e no Fedro,

textos que são utilizados aqui para fundamentarem a argumentação neste item.

No Górgias, Platão reflete muito sobre o sentido da vida órfica e vida pitagórica,

e, nesse contexto, ele não somente aceita vários conceitos propostos por esses

fenômenos religiosos, como aprofunda alguns deles.

No Górgias (482 c ss), Platão vai tratar sobre os problemas fundamentais da vida

do homem, respondendo a algumas contradições, como a do fato de Sócrates, um justo,

ter sido morto, condenado a beber cicuta, um veneno, por ter sido condenado a

corromper a juventude, enquanto muitos injustos continuam livres; o mesmo acontece,

segundo ele, com o virtuoso justo, com o político justo, todos sucumbem enquanto os

injustos parecem triunfar.

Uma das grandes questões postas durante o diálogo é a questão da verdade, sob

o domínio de quem ela estaria? Um dos protagonistas do diálogo, Cálicles, diz com toda

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impudência, falta de pudor, que a verdade estaria do lado daquele que é mais forte,

daquele que sabe zombar de tudo e de todos, daquele que sabe gozar de todos os

prazeres, desejos e paixões, daquele que saberia buscar todos os meios para justificar

um determinado fim, e, portanto, a justiça seria apenas um conceito criado pelos fracos

e quem buscaria virtudes como temperança, uma das principais virtudes cultivadas pelos

gregos, isto é, a justa medida, o equilíbrio, não estaria senão vivendo em uma realidade

conforme a morte.

É justamente em resposta a essa e tantas outras questões sobre o comportamento

humano, que Platão reencontra a verdade no ensinamento órfico-pitagórico e reelabora

um componente ético-religioso-ascético em seu pensamento.

Reale (1994, p. 182) afirma:

Cálicles e todos aqueles dos quais Cálicles é símbolo dizem que a vida do virtuoso, que mortifica os instintos, é vida sem sentido, e, portanto, morte (Górgias, 492 d ss). Mas, o que é a vida? E que é a morte? Essa que chamamos de vida não poderia acaso ser morte e, ao contrário, ser verdadeira vida aquele que começa com a morte?

Nesse sentido, Platão afirma: "Eu não ficaria maravilhado se fosse verdade o que

Eurípedes afirma quando diz: Quem pode saber se viver não é morrer e morrer não é

viver? E que nós, na verdade, estamos mortos” (Górgias, 492 e.).

O momento em que Platão começa a tratar do problema do destino da alma após

a morte, este tema passa a ser primordial para este estudo. Nesse sentido, Platão quer

mostrar que o homem é a sua psyché, como o próprio Sócrates dizia, mas quer provar

que essa psyché é imortal, e que ela não se dissolve quando o corpo do homem morre. O

autor debruça nesse problema e a doutrina sobre a imortalidade da alma passa para

primeiro plano dos seus diálogos dando uma nova feição à ética e à política, ambas

disciplinas que tratavam sobre os atos e costumes do homem na cidade, na pólis.

Reale ressalta um ponto importante que foi tratado por Platão, de que

viver para o corpo (como faz a maioria dos homens) significa viver para aquilo que está destinado a morrer; viver para a alma significa ao contrário, viver para aquilo que está destinado a viver sempre, significa viver purificando a alma por meio de um progressivo desapego corpóreo. (REALE, 1994, p. 183)

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Nesse sentido, uma nova releitura é feita a partir dos problemas humanos, onde

os justos são injustiçados, ele pode até perder sua "vida", o seu corpo, pode morrer, mas

ali está morrendo somente o que é mortal, o que é imortal ainda permanecerá intacto,

ele a conservará para a eternidade.

Após a concepção de Platão sobre o mundo inteligível, algo novo aparece, que

até então não havia aparecido entre os órficos e pitagóricos: a ideia de uma alma imortal

que racionalmente encontra o seu lugar para além do mundo sensível.

Reale (1994, p. 183) postula que "a existência de uma alma imortal, que

unicamente pode dar sentido à visão da vida que descrevemos, não permanece mais

mera crença nem somente fé e esperança, mas é racionalmente demonstrada".

Se no Orfismo tinha-se apenas uma visão dos cultos e religião de mistério, como

alguns autores caracterizam, em Platão, apoiado em uma metafísica, isto é, em uma

doutrina suprassensível, temos uma nova visão, a de que a alma seria a dimensão do

inteligível e imaterial do homem, eterna como é eterno o próprio inteligível e o

imaterial.

Nesse sentido, Platão começa um movimento para provar a imortalidade da

alma, assim se diferenciando das doutrinas antigas do Orfismo e Pitagorismo colocando

instâncias racionalistas para se falar de algo inteligível e imaterial.

Um dos temas mais importantes já levantados neste capítulo é a questão da

imortalidade da alma, os seus destinos ultraterrenos, seja lugar/estado no além e,

sobretudo, a questão da metempsicose que aparece fortemente entre os órfico-

pitagóricos e que será reorganizada em Platão. Não é possível, pois, falar desses três

grandes temas se antes não se explanar alguns elementos essenciais da filosofia antiga

grega e medieval, tais como: corpo, alma, dualismo corpo-alma, imortalidade da alma,

estado/lugar da alma após a morte e transmigração/reencarnação da alma

(metempsicose).

Vejamos a seguir cada um deles:

3.3.1 O corpo

A definição mais básica de corpo é a que vem do latim, corpus, é tudo o que

existe naturalmente no mundo natural, ou seja, tudo o que pertence à natureza é

constituído de corpo, corpo é tudo o que possui extensão em qualquer direção (altura,

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largura e profundidade). Uma das noções mais antigas é aquela que considera o corpo

humano como o instrumento da alma. Essa noção prevaleceu por muitos séculos, de que

sendo ele de natureza distinta da alma deveria ser sacrificado para que a alma, de

natureza divina, fosse elevada. A ideia de que o corpo seria apenas o seu repositório, um

cárcere, um túmulo ou prisão da alma, vem de doutrinas órfico-pitagóricas e platônicas.

A partir dessa noção, o que foi desenvolvido ao longo da história foi um

desprezo pelo corpo. Esse desprezo foi exposto inicialmente por Platão no Fedro, o qual

apresenta que a queda da alma do mundo divino se deu pela má compreensão e má

consciência do ser divino e, portanto, as almas precisariam descer para o mundo terreno.

Essa migração inicial e, posteriormente na segunda vida, a transmigração se dava

sempre em uma realidade corpórea, seja ela humana ou de um animal.

Essa mesma ideia, dos “odiadores” do corpo, isto é, daqueles que acreditam ser

necessário o sacrifício do corpo para a elevação da alma, ganha grande peso na Idade

Média, mas especialmente na Patrística com Orígenes e depois também com Agostinho

e Tomás de Aquino, autores que ajudarão a construir a visão escatológica cristã católica.

Outro argumento em relação ao corpo, muito reforçado entre os gregos é que ele

seria um instrumental da alma. Vários autores refletiram sobre isso, isto é, na

contraposição do corpo em relação à alma, entre eles, Parmênides, Empédocles,

Demócrito, os Pitagóricos, os Atomistas. O que debruçou mais sobre o assunto, sem

dúvidas, foi Platão, que definiu que no corpo, mortal, reside algo imortal e divino, que é

a alma, que preexiste e encarna no corpo. Ele elabora esses conceitos nos textos: Fédon

(33c e 70c), República (livro IV) e Timeu (90a). No livro A república, Platão estrutura a

alma em três partes: intelecto, desejo e paixão. Só o intelecto que é a parte superior, e,

portanto, imortal.

3.3.2 A alma

Alma, do latim, anima, que significa, princípio animador da vida, do

pensamento, do espírito. Em suma, é o que anima e sensibiliza as atividades espirituais,

pois ela é de uma natureza espiritual e divina. Segundo alguns filósofos gregos, a alma é

incorpórea, imortal, é uma substância diferente da do corpo e, portanto, existe

independente do corpo. Não existe atividade psíquica ou espiritual sem ela. Ela é o

princípio organizador do corpo.

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Nas religiões de culto de mistérios e também no Pitagorismo três pontos importantes

são evidenciados em relação a alma, estes são: a liberdade da alma durante o sono ou no

transe durante o rito participativo; as práticas de ascese voluntária com base na

abstinência corporal e exercícios espirituais; as histórias de xamãs ou sacerdotes que

desaparecem e reaparecem, as migrações mágicas do espírito de um para o outro, etc.

Esses argumentos fundamentam a separação do corpo e da alma e demonstram

elementos práticos para a libertação da alma rumo às bem-aventuranças. O processo de

purificação conduz a alma ao fim dos nascimentos (reencarnações) sucessivos e faz com

que ela retorne a sua origem divina.

Em Platão, existem vários argumentos e conceitos sobre a alma e sua natureza.

No diálogo Fedro (245 d), Platão afirma que "a alma se move por si e todo o corpo cujo

movimento é imprimido de fora é inanimado, todo corpo que se move por si, do seu

interior, é animado, e essa é, precisamente a natureza da alma".

Segundo Platão, Deus deu a cada um a sua alma. Esse argumento está presente

no diálogo Timeu (90 a), é posto em Platão, mas retomado com mais força entre os

medievais, Plotino, Agostinho e Tomás de Aquino, que mostram que se a alma veio de

Deus é para lá que ela voltaria após a sua passagem pela morte.

Platão trabalha uma teoria interessante já iniciada por Plotino, a da tripartição da

alma. Esses argumentos estão presentes no livro IV da República. A divisão da alma

seria uma parte intelecto, desejos e paixão. No movimento de tripartição da alma, Platão

quer fazer a mesma partição na cidade, na diferenciação entre os povos (Citas e Trácios,

Fenícios, Egípcios e Gregos).

A alma, para Platão, tem dois elementos mutuamente distintos: o elemento

racional, pelo qual ela raciocina e pensa; e o elemento irracional pelo qual ama, tem

sede, fome, etc. Nesse sentido, é fundamental notar que só a alma racional é superior e

imortal, pois é assimilada ao divino.

Nos diálogos Górgias e Fédon é que Platão explora a verdadeira natureza da

alma humana juntamente com os argumentos de defesa ou provas da sua imortalidade.

Esses argumentos foram detalhados no capítulo anterior, mas, em resumo, poderíamos

dizer que, para Platão, a alma é a causa da vida e por isso é imortal. Já que a vida

constitui a sua própria essência, ela é simples, incorpórea, que move por si, que vive e

dá vida ao corpo, realidade corpórea, mortal, teria as características opostas a da alma.

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Para os demais neoplatônicos e os pais da Igreja Oriental há um reforço das

ideias de Platão, ou seja, da imaterialidade e unidade da alma. É, sobretudo, com

Agostinho, que esse conceito é difundido no mundo cristão com reconhecimento da

interioridade espiritual como via de acesso privilegiada à realidade própria da alma.

Essa via de acesso é a experiência interior do homem, a Deus se dá nessa interioridade,

uma vez que está presente na alma humana e o processo de iluminação se daria

justamente nessa interioridade.

A alma pode ser entendida, de forma simplificada é claro, em dois sentidos: o

primeiro enquanto princípio de vida, animação da vida e do pensando, isto é, a forma do

composto humano; e o segundo sentido enquanto inspiração moral, um caráter mais

ético, a alma como senhora do corpo. Esse ponto é fundamental para se compreender,

no próximo tópico, o dualismo corpo-alma.

3.3.3 O dualismo corpo-alma

Dualismo, nada mais é que uma luta antagônica de dois princípios. Para esta

pesquisa, faz sentido analisar o dualismo entre corpo e alma, o primeiro de substância

material, enquanto o segundo possui substância espiritual.

O dualismo corpo-alma aparece em vários autores da filosofia antiga e também

entre as doutrinas órfica-pitagóricas. Mas, com certeza, é em Platão que há a

estruturação do dualismo maduro. Sua teoria do dualismo é quase radical, a ideia do

corpo como túmulo e cárcere de alma é desenvolvida. Em contrapartida, a tese sobre a

imortalidade da alma se dá na tese socrática da separação da alma do corpo após a

morte. Segundo essa tese, tal separação se daria pelo fato de que o corpo, por sua

condição natural, seria mortal e a alma, por sua condição sobrenatural, seria imortal.

Sócrates postula o argumento para alertar os seus contemporâneos sobre "o cuidado que

é preciso ter com a alma" (APOLOGIA DE SÓCRATES, 24d e 30a), pois "o homem é

a sua alma" (ALCIBÍADES, 130c).

Tem-se eco desses argumentos sobre o cuidado da alma nos seguintes diálogos

de Platão: Ménon (81a), Fédon (70c e 103a), Górgias (493a e 522a) e Crátilo (400c).

Platão é tido como um habitual dualista, na medida em que separa a perfeição da alma

com a imperfeição do corpo, a sua natureza divina da natureza corpórea e afirma que

corpo é material e mortal, enquanto a alma é imaterial e imortal, portanto, espiritual.

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Essa separação entre corpo e alma, material e espiritual, vai ser assumido por

Agostinho na Patrística e por Tomás de Aquino na Escolástica.

3.3.4 A imortalidade da alma e suas provas

A imortalidade da alma, sem dúvida, é um dos conceitos mais antigos

difundidos na filosofia e religião antiga do Ocidente. A crença na imortalidade, na

filosofia, dá-se na crença da imortalidade da pessoa individual, isto é, da alma em sua

totalidade e também naquilo que na pessoa tem em comum com o princípio eterno e

divino, isto é, a parte impessoal da alma.

Abordar a imortalidade da alma é um tema bem recorrente da filosofia antiga e

medieval e, como se observa, é Platão que estabelece algumas provas consistentes sobre

isso. O diálogo que mais reflete sobre a imortalidade da alma é o Fédon, e ali ele

estabelece três provas a favor de tal existência.

A primeira foi atribuída pouco valor, até mesmo por Platão, pois se valeu de

recursos de categorias de caráter físico como a procedência heraclitiana e depois se

apoiou fortemente na questão da reminiscência para provar a sua pré-existência.

Já a segunda diz respeito à natureza da alma humana, se ela é capaz de conhecer

coisas imutáveis e eternas. Para poder captar tais coisas, é, conditio sine qua non,

condição sem a qual não há, que sua natureza também seja imutável e eterna. Para

fundamentar essa questão, Platão irá reforçar a distinção dos dois planos de realidade.

As realidades sensíveis, isto é, perceptíveis e sensíveis, que nunca permanecem na

mesma condição, e as realidades invisíveis e inteligíveis, que permanecem sempre

imutáveis. Nesse sentido, o corpo teria acesso às realidades sensíveis ao ponto que a

alma teria acesso às realidades inteligíveis.

Reale (1994, p. 186-7) afirma: "Já que o visível é mutável e o inteligível

imutável, a alma deve ser imutável". Se o corpo se apoia nas percepções sensíveis e na

realidade mutáveis e a alma nas percepções inteligíveis e em uma realidade que não

muda, quando essas duas realidades estão juntas em uma só pessoa, Platão reforça um

elemento importante que será desenvolvido ao longo da história da filosofia e também

da religião cristã a partir dos neoplatônicos, isto é, de que "quando a alma e o corpo

estão juntos, é a alma que domina e governa; ao passo que o corpo obedece e é

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dominado pela alma; ora, é característica do divino comandar; e do que é mortal de ser

comandado" (REALE, 1994, p. 186).

Nesse sentido, aparece uma outra conclusão importante a partir da teoria

platônica em relação à alma humana: ela é afim ao divino, enquanto o corpo é afim ao

mortal. E, no próprio diálogo, a personagem Sócrates, na conclusão sobre a natureza da

alma, encerra o assunto de maneira didática e assertiva. Sócrates diz:

Observa agora, Cebes, se de tudo o que dissemos não se segue que a alma seja semelhante em grau sumo ao que é divino, imortal, inteligível, uniforme, indissolúvel e sempre idêntico a si mesmo, enquanto o corpo é semelhante em grau ao que é humano, mortal, multiforme, ininteligível, dissolúvel e jamais idêntico a si mesmo. Temos algo a objetar contra essas conclusões, Cebes? Ou não é assim? - Não, nada a objetar [afirma Cebes]. (FÉDON, 79 a 80b)

A terceira prova apresentada em Fédon sobre a imortalidade da alma diz respeito

a algumas características estruturais das ideias, afirmando claramente que as ideias

contrárias não podem combinar e conviver juntas, pois uma anula e exclui a outra.

O autor dá um exemplo interessante para explicar essa prova, afirmando que:

Quando uma ideia entra em determinada coisa, a ideia contrária que estava em tal coisa desaparece e cede o lugar, [exemplo], não só a ideia de grande e a de pequeno não podem combinar entre si e claramente se excluem entre si quando consideradas em si e por si, mas também o grande e o pequeno que estão nas coisas mutuamente se excluem, sobrevindo um ao outro desaparece e cede o lugar.(REALE, 1994, p.188)

Esse argumento apresentado pelo autor não somente vale para os contrários,

grande e pequeno, quente ou frio, mas também para todas aquelas ideias e coisas que,

mesmo não sendo contrárias entre si, têm em si os contrários atribuídos em sua

essência, como é o caso do fogo e frio ou gelo e quente.

O autor aplica o mesmo argumento supracitado à questão da alma. Ele afirma:

A alma tem como marca essencial a vida e a ideia da vida, ela é, com efeito, que traz a vida ao corpo e o mantém vivo. E sendo a morte o contrário da vida, em força do princípio já estabelecido, a alma, que tem como marca essencial a vida, não poderá estruturalmente acolher em si a morte e será imortal. Logo, ao sobrevir a morte, o corpo se corromperá e a alma se retirará para outro lugar. (REALE, 1994, p. 188)

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O argumento é o mesmo. Se a alma é a psyché, isto é, aquela que anima a vida,

ou a própria vida, ela não pode conviver e acolher a morte, simplesmente porque a ideia

de vida e a ideia de morte totalmente se excluem, e, portanto, fazer que e alma morra é

simplesmente um absurdo, uma contradição de termos, como grande-pequeno, fogo-

frio, gelo-quente.

Também no livro da República, Platão trabalhou uma prova interessante em

favor da imortalidade da alma. Afirmando que o mal é o que corrompe e destrói ao

ponto que o bem é o que ajuda e acrescenta.

O autor desenvolve bem o argumento, a partir dessa noção de mal que pode ou

não destruir alguma coisa. Toma-se a sua citação para melhor compreensão:

Se pudéssemos encontrar algo que tenha o mal que o torna mau, mas que, não obstante, não o pode dissolver nem destruir, deveremos concluir que tal realidade é estruturalmente indestrutível, já que não se pode destruir o seu próprio mal, a fortiori [por causa de uma razão mais forte] não a poderá destruir o mal das outras coisas. Pois bem, é esse exatamente o caso da alma. Ela tem o seu mal que é o vício (injustiça, insensatez, impiedade, etc.); mas o vício, por maior que seja, não destrói a alma que continua a viver, mesmo se muito má, justamente o oposto do que acontece com o corpo, que ao ser estragado pelo seu mal, corrompe-se e morre. (REALE, 1994, p. 189)

Portanto, podemos concluir que a alma jamais poderá ser destruída pelo mal que

o corpo lhe possa causar, porque o mal do corpo é totalmente alheio à alma e não poderá

jamais atingir a natureza divina dela, pois ela é indestrutível.

No diálogo Fedro, a imortalidade da alma é deduzida do conceito de psyché,

princípio que dá movimento, ânimo à vida. E o grande argumento de que o princípio de

movimento, enquanto tal, nunca pode cessar, sendo assim, nunca morrerá.

Vejamos o que Platão desenvolve no Fedro sobre esse argumento:

Toda alma é imortal. Com efeito, o que se move a si mesmo é imortal, mas o que move um outro e, por sua vez, é movido por outro, cessando o seu movimento cessa a sua vida. Somente o que se move a si mesmo nunca cessa o movimento, pois não pode abandonar a si mesmo e, antes, é fonte e princípio do movimento para as outras coisas enquanto são movidas. [...] Assim, pois, o princípio do movimento é o que se move a si mesmo. E este não pode nem perecer nem morrer. [...] Portanto, tendo-se manifestado imortal o que se move a si mesmo, ninguém tenha receio de dizer que é esta a essência da alma. (FEDRO, 245 c, 246 a)

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3.3.5 Os destinos (lugar/estados) escatológicos da alma

Os destinos, lugar/estado da alma no pós-morte são é um tema complexo e, por

mais que Platão tenha elaborado tão bem as provas sobre a imortalidade da alma, é nos

mitos que ele buscará embasamento para falar dos destinos escatológicos da alma. A

mitologia não tem a pretensão de nos propor argumentos racionais para esse tema, mas

consegue, de maneira eficaz, propor-nos uma "fé razoável" sobre ele.

O autor afirma que segundo Platão:

O homem está sobre a terra como de passagem e a vida terrena é como uma provação. A verdadeira vida está no além, no Hades (invisível). E no Hades a alma é "julgada" segundo unicamente o critério da justiça e da injustiça, da temperança e da devassidão, da virtude e do vício. (REALE, 1994, p. 191)

Uma das passagens mais interessantes encontradas no Papiro de Derveni diz que

a alma, antes de entrar pelos portões do Hades, deveria se despir do seu corpo e de tudo

o que foi antes dali, logo entendemos que para os juízes não importa se aquela alma foi

de um grande rei ou de um humilde súdito, o que realmente importa é sobre o modo que

viveu, se com justiça ou injustiça, amor ou desamor, se foi virtuoso ou entregue aos

vícios.

Nesse sentido, no "julgamento", a alma pode se seguir à seguinte tríplice: se a alma

viveu em plena justiça, receberá a recompensa e viverá nas Ilhas dos Bem-aventurados;

se a alma viveu em plena injustiça, receberá o castigo eterno e será precipitada no

Tártaro; se a alma viveu algumas injustiças sanáveis e se viveu justamente boa parte da

vida, arrependendo-se das próprias injustiças, será temporariamente punida, e uma vez

expiada a culpa, receberá o prêmio que merece.

Sobre o "juízo" que decide a sorte da alma no além, Platão, no diálogo Górgias,

retoma a mitologia e fundamenta sua tese. Sabe-se que na época de Cronos e Zeus, os

juízos sobre a sorte da alma aconteciam ainda em vida e, muitas vezes, poderiam

esconder as injustiças que haviam cometido, pois estariam na presença de parentes que

poderiam interceder a seu favor e também vestidos de tudo o que tinham e eram, isto é,

de beleza, riqueza, honras, etc. Portanto, Vejamos a passagem do diálogo:

Em primeiro lugar, deverá ser retirada dos homens a possibilidade de prever a própria morte, sendo que agora a podem prever; por isso

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ordenei já a Prometeu que retire essa possibilidade dos homens. Além disso, depois da morte, deverão ser julgados despojados de todos esses revestimentos. E também o juiz deverá estar despojado de tudo: o juízo deverá ser feito pela própria alma do juiz diretamente sobre a própria alma do que deve ser julgado, logo depois da sua morte: sem a companhia de todos os parentes e depois de ter deixado na terra todos aqueles outros ornamentos, a fim de que a sentença seja justa. (GÓRGIAS, 523 d - 524 a)

Até o número de juízes era importante nesse momento. Para que a destinação da

alma julgada para as Ilhas dos Bem-aventurados, para o Tártaro ou para o período de

expiação fosse o mais justo possível, Zeus teria então concedido a seus três filhos o

poder de julgamento.

Ainda sobre as penas que deveriam ser cumpridas no Hades, Platão escreve

belamente sobre a função purificadora da dor e do sofrimento por meio da culpa dos que

cumprem penas, vejamos:

Acontece que todo homem que cumpra uma pena que lhe foi aplicada com razão torna-se melhor e lucra com isso e serve de exemplo aos outros a fim de que, vendo-o sofrer o que sofre, sejamos tomados de temor e tornem-se melhores. E aqueles que tiram proveito cumprindo a pena que lhes foi aplicada pelos deuses e pelos homens são os que comentem culpas curáveis. De qualquer maneira, o proveito lhes vem somente através de dores e sofrimentos, seja sobre a terra seja no Hades; com efeito, não se pode ficar livre da injustiça de outra maneira. Mas aqueles que cometeram as injustiças maiores e que, em razão dessas injustiças tornaram-se incuráveis, servem unicamente de exemplo aos outros; e enquanto para si mesmos não trazem nenhum proveito, justamente porque incuráveis, aproveitam no entanto aos outros, isto é, àqueles que os veem sofrer os castigos maiores, mais dolorosos e mais terríveis, por toda a eternidade, em razão das suas culpas: são verdadeiros e próprios exemplos suspensos no cárcere do Hades, espetáculo e advertência aos injustos que continuam chegando. (GÓRGIAS, 525 b-c).

Ainda sobre a sorte das almas no Hades, Platão escreve no Fédon:

Assim, pois, é feito no além. E depois que os mortos aí chegam, cada um conduzido pelo próprio daimon, primeiramente são julgados os que viveram bem e santamente e os malvados. Quanto aos que viveram uma mediania entre o bem e o mal, chegados às margens do Aqueronte, sobem em barcas que ali estão preparadas para eles e nelas chegam ao lago, onde permanecem para purificar-se seja expiando as próprias culpas se acaso as cometeram, seja recebendo a recompensa pelas suas boas ações segundo o mérito e cada um. Ao contrário aqueles que foram reconhecidos incuráveis porque cometeram muitos e graves sacrilégios, homicídios numerosos injustos e fora da lei e outros crimes como esses, a sorte que lhes cabe é ser lançados ao Tártaro donde jamais sairão. Ao contrário, aqueles que cometeram culpas passíveis de serem curadas, mesmo graves como, por exemplo,

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os que sob o impulso da ira, cometeram ações violentas contra o pai ou contra a mãe e disso se arrependeram por toda a vida ou os que de modo semelhante, tornaram-se culpados de homicídio, são lançados ao Tártaro. Mas depois que foram precipitados e lá permaneceram por um ano, a onda os rejeita para fora: os homicidas ao longo do Cócito, e os violentos contra pai e mãe, ao longo do Piriflegon. Depois de arrastados pela corrente até o lado Aquerúsio, desde esse lugar gritam e chama, uns aos que assassinaram, outros aqueles contra os quais cometeram violência e, invocando-os, suplicam e rogam que permitam-lhes sair do lago e os acolham; se conseguem convencê-los saem do rio e esse é o fim dos seus males; se não, são de novo levados para o Tártaro e, outra vez para os rios. Não cessam de sofrer esses castigos enquanto não convençam as suas vítimas: essa a pena que lhes foi imposta pelos juízes. Finalmente, os que viveram uma vida de grande santidade, logo libertados desses lugares subterrâneos e deles retirados como de um cárcere, elevam-se a uma habitação pura acima da terra. Entre esses, os que se purificaram adequadamente com o exercício da filosofia vivem completamente livres de todo o vínculo com o corpo por todo o tempo futuro, e vão para habitações ainda mais belas do que essas, e não é fácil descrever. (FÉDON, 113 d - 114 c).

Um ponto importante é que o próprio Platão vê as limitações de se falar do além,

seja por meio da racionalidade seja se valendo dos mitos, como fez para fundamentar os

lugares/estados da alma no além, para isso, o mesmo adverte:

Sem dúvidas, sustentar que as coisas sejam de verdade assim como as descrevi não convém a um homem que tenha com senso; mas sustentar que isso ou algo semelhante deva acontecer às nossas almas e ao lugar para onde vão, uma vez que se afirma ser a alma imortal: pois bem, isso me parece perfeitamente sensato, e vale a pena arriscar-se a crê-lo, pois o risco é belo! (FÉDON, 114 d - 115 a)

Neste sentido percebemos que a visão de Platão é clara a respeito da

imortalidade da alma e também da existência de um lugar/estado para ela após a morte.

3.3.6 A metempsicose (transmigração/reencarnação) da alma

A doutrina escatológica de Platão se entrelaça com a doutrina órfica-pitagórica

que foram comentadas nos itens anteriores, sobretudo o conceito da metempsicose, isto

é, da transmigração da alma, da reencarnação das almas.

No diálogo Fédon (81 c - 82 c), Platão afirma que se as almas viveram uma vida

excessivamente ligada aos corpos, às paixões, aos amores e aos prazeres, não

conseguiriam, mesmo com a morte, separar-se de tudo o que é ligado ao corpo. Sendo

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assim, essas almas então iriam vagar por certo tempo, como fantasmas, até que, atraídas

pelo desejo corpóreo, ligam-se novamente aos corpos e não somente de homens, mas

também de animais, segundo o tipo de comportamento que tiveram em sua vida

anterior, sobretudo, ligada a questões morais. As que se entregaram a embriaguez,

violência e sexualidade desenfreada reencarnariam em um asno ou animal semelhante;

as que cometeram injustiças e tiranias iriam se encarnar em forma de lobos e falcões, e

as que cultivaram algumas virtudes como temperança e justiça voltariam no mesmo

gênero humano. Platão afirma ainda que somente entraria para a estirpe dos deuses

aqueles homens que teriam se dedicado muito à filosofia, como amante do saber.

Platão, mesmo que tardiamente no seu diálogo Timeu (42 b-d), fala do ciclo que

vidas percorridas antes de ir para o Hades. O processo é narrado de forma regressiva, se

alguém que viveu bem sua primeira vida e se reencarnando novamente em gênero

humano e vivesse bem, deveria ter uma vida feliz. Após sua morte seguiria para o

Hades e teria seu julgamento segundo a justiça da sua alma e assim chegaria as Ilhas dos

Bem-aventurados. Se, porém, alguém que não viveu tão bem sua primeira vida, na

segunda passaria à natureza de mulher, se mesmo assim falhasse, passaria à natureza de

feras, segundo a semelhança de suas inclinações, como narrado acima, reencarnando-se

em um asno, em um lobo e feras semelhantes.

Na República (X, 618 a), Platão vai tratar do número limitado de almas e,

portanto, da necessidade do regresso delas após anos gozando do sofrimento ou

prêmios, isto é, o autor considera que o prêmio ou castigo ultraterrenos teriam uma

duração limitada. Mas qual seria este tempo? Estamos falando de quantos anos?

Influenciado pelo Pitagorismo, Platão fala do número para estabelecer essa duração.

Então, se a vida terrena pode durar até cem anos, o tempo máximo de sofrimento ou

prêmio no além seria de mil anos, e se o castigo fosse muito grave, duraria até dez mil

anos. Passando esse tempo, a alma deveria se reencarnar.

Nesse momento é inaugurado algo novo em Platão. Se antes eram os deuses ou

as necessidades que faziam com que as almas se reencarnassem, agora existe uma maior

liberdade nesse processo. Segundo o ateniense, a reencarnação não é imposta e sim

proposta, e a escolha é inteiramente entregue à liberdade das próprias almas, logo a

escolha é feita individualmente por elas. Para esses argumentos, Platão se vale do Mito

de Er. O valor que ele dá a esse mito é o mesmo que dá nos mitos presentes no Fédon,

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um valor de um socorro por meio de uma "fé razoável" para se falar de algo que foge à

razão.

No Fedro (246a-249d), Platão propõe uma visão do além ainda mais complexa.

Para ele, inicialmente ou originalmente, a alma estaria junto dos deuses e vivia uma vida

divina e teria caído em algum corpo aqui na terra em razão de alguma culpa. Se a culpa

fosse mínima, sua primeira vida corpórea seria em um corpo humano, caso o contrário,

poderia vir em corpo de algum animal. Aquelas almas que conseguem compreender e

ver o Ser divino, continuam a viver com os deuses; ao contrário, as outras almas que

não conseguem chegar à Verdade seriam precipitadas a viver na terra.

Para clarificar o argumento, segue uma citação:

Esta é a lei de Adrasta: a alma que, encontrando-se no séquito de um deus e tenha visto alguma das verdades (ideias), permanece incólume até o outro giro e se sempre puder fazer assim ficará ilesa para sempre. Mas se por falta de vigor intelectual não viu nada e se, em razão de algum acidente, encheu-se de esquecimento e de maldade e tornou-se pesada tendo, em razão do peso, perdido as asas e se precipitado sobre a terra, dispõe a lei que não entre nenhuma natureza de animal durante a primeira geração [...]. (FEDRO, 248 c)

Em Fedro, a respeito da duração limitada de tempo do prêmio ou castigo

ultraterreno aparece uma novidade: depois de passados dez mil anos, todas as almas

ganhariam novamente asas, segundo a mitologia, e voltariam todas para junto dos

deuses.

Em suma, Platão quis dizer em todos os seus diálogos escatológicos que "o que

dá sentido a essa vida é o destino escatológico da alma, isto é, a outra vida; o aquém

tem sentido somente se referido a um além" (REALE, 1994, p. 202).

No quarto e último capítulo será abordado como esses elementos fundamentais

da filosofia antiga e medieval apresentados ajudaram a formar a consciência cristã e

com ela sua doutrina escatológica e quais os problemas levantados pela teologia atual

acerca desse processo de helenização que é demonstrado nesta pesquisa.

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CAPITULO 4

A DOUTRINA ESCATOLÓGICA CATÓLICA TRADICIONAL E SEU S

PROBLEMAS ATUAIS

Historicamente, sabe-se que a doutrina escatológica tradicional católica sofreu

a influência do Helenismo, tanto na formação da consciência dos cristãos quanto da

própria doutrina católica. O objetivo deste capítulo é mostrar como isso se deu, além de

apontar os problemas que a Igreja enfrenta atualmente a partir das críticas da Teologia

da Libertação.

1 Conceitualização

A palavra escatologia é formada por duas palavras gregas: eschatos, que

significa último, fim, e da palavra logos, denominada palavra, discussão, instrução,

ensino, estudo, etc. Portanto, escatologia é o estudo do fim ou o estudo das últimas

coisas, ou ainda o estudo dos últimos dias.

O termo escatologia foi usado pela primeira vez em 1677 na obra Sistema

Locorum Theologicorum, do teólogo luterano Abraham Calov (1612-1686). Numa obra

teológica católica, aparece pela primeira vez no livro de Franz Oberthur (1745-1831),

Biblische Antropologie (Antropologia Bíblica), publicado nos anos 1807-1810. É só a

partir do século XIX que a noção “escatologia” começa a ser usada de maneira geral e

mais fortemente entre os tratados de escatologia católica tradicional.

No entanto, é somente na Escolástica (séc. XII – XIII) que os tratados clássicos

surgiram, sobretudo, pelo trabalho árduo de Pedro Lombardo (1100-1160), filósofo

italiano clássico da escolástica e também por Tomás de Aquino (1225-1274), o maior

representante desse período importante da Idade Medieval.

Os títulos mais usados para se falar de escatologia são: De finibus hominis et mundi

(sobre o fim do homem e do mundo); De extremis (sobre os últimos acontecimentos);

De novissimis (sobre as novas coisas).

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Sobre o De novissimis, temos ainda pelo menos três subdivisões importantes,

estas são: De novissimis hominis (sobre a visão individual do homem); De novissimis

mundi (sobre uma visão coletiva do mundo); De secundo adventu Christi (sobre uma

visão coletiva da segunda volta de Cristo).

Esta pesquisa trata mais especificamente do tema De novissimis, isto é, sobre as

coisas novas, sobretudo os temas, juízo particular, inferno, purgatório e céu que, sem

dúvidas, é a parte da escatologia que fora mais influenciada pelos conceitos da religião e

filosofia antiga grega, tema defendido nesta pesquisa. Os temas ligados à escatologia do

homem e do mundo serão tratados apenas como apêndices.

Não faz parte do objeto de estudo desta pesquisa trabalhar os temas das teologias

protestantes tradicionais acerca da escatologia, embora se tenha lido atentamente o livro

de Oscar Cullmann (1902-1999), Imortalidade da Alma ou Ressurreição dos mortos,

que mostra uma forte oposição de sua teologia com a helenização dos conceitos sobre os

novíssimos. Por questões de delimitação da pesquisa, foca-se essencialmente na

doutrina tradicional cristã católica.

O que cabe nesse momento é adentrar nos temas principais da doutrina escatológica

tradicional católica, apresentando a sua composição e, ao mesmo tempo, mostrando as

influências que a religião e filosofia antiga grega tiveram sobre esses temas. Estes temas

são: a doutrina cristã sobre a morte; o sentido da morte cristã; o juízo particular e o juízo

final; o purgatório como lugar/estado intermediário; o inferno; o céu; os problemas

atuais levantados pelos teólogos da libertação acerca da ressurreição imediata e as

respostas do magistério da Igreja.

4.2 A doutrina cristã sobre a morte

A palavra “morte”, na Sagrada Escritura, tem um tríplice significado: fim da

vida natural, perda da graça sobrenatural (Ef 2,1) e perda da vida eterna (Ap 20,14). A

morte corporal em si é natural ao homem, mas essa destruição do corpo humano, no

estado de justiça original, foi suprimida pelo dom da imortalidade. Esse dom foi

perdido pelo pecado e a mortalidade humana recuperou seus direitos e seus efeitos.

Por isso, a Sagrada Escritura não está em contradição consigo mesma, quando

atribui à causa da morte tanto a natureza criada como o pecado: ambos os motivos são

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verdadeiros. Vê-se isso claramente nos seguintes textos da Sagrada Escritura: Gn 2,17;

Rm 5,12; cf. Gn 3,19; Sl 102 e 103.

Com a morte, termina, para o homem, o tempo reservado para a vida aqui na

terra, o que a Igreja chama de tempo de mérito e do demérito. Nesse sentido, não se

pode mais verificar uma mudança substancial das suas disposições e uma modificação

essencial da sua sorte após a morte. Cabe somente a Deus, por meio do juízo particular e

final, estabelecer a sorte do homem no pós-morte.

Constata-se claramente esse processo de encerramento nas parábolas do rico

Epulão e do pobre Lázaro (Lc 16) e das dez virgens (Mt 25), que indicam que havia um

tempo de decisão que já está irrevogavelmente encerrado. Em Jo 9, Jesus diz: “É

preciso que eu faça as obras daquele que me mandou, enquanto é dia, pois já vem a

noite (a morte) quando ninguém mais pode trabalhar”. Tantos outros exemplos podem

ser percebidos do mesmo âmbito nos seguintes textos: Gal 6,9-10; 1 Tes 5,2-4; 1 Pd

1,3-8; 2 Pd 3,10; Tg 4,13-14; Ap 3,3 e 16,15.

Sobre a importância decisiva da morte, os Padres limitaram-se estritamente às

afirmações do Novo Testamento. Segundo eles, depois da morte não é mais possível

adquirir-se mérito algum.

A Escolástica reitera, de forma didática, a doutrina dos Padres e introduz a

distinção entre o estado de via (status viae) e o estado de termo (status termini). A

razão pela qual com a morte cessa a atividade meritória do homem encontra-se, segundo

a Escolástica, somente numa lei positiva de Deus.

Fazem exceção somente Orígenes e os dois Gregórios gregos, os quais admitem

uma conversão e uma purificação dos maus na outra vida e, por isso, uma modificação

na sua sorte.

4.3 O sentido da morte cristã

No Catecismo da Igreja Católica – CIC, os tópicos 1.010 a 1.019, instruem todo

o povo cristão sobre o sentido da morte cristã. Com certeza, os temas ligados à dor, ao

sofrimento e à morte são os mais difíceis de serem trabalhados com os fiéis, pois, na

piedade popular, esses reveses da vida são vistos, muitas vezes, como castigo por conta

do pecado, pois a pregação dura, carregada de uma moralidade exacerbada, ainda leva

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muitos pregadores a repetir sem uma boa exegese e hermenêutica bíblica: “o salário do

pecado é a morte” (Rm 6,23).

No segundo capítulo do livro de Oscar Cullann, Imortalidade da alma ou

Ressurreição dos mortos, ele irá trabalhar esse tema, de que o salário do pecado é a

morte. Ele mostra que, para os gregos, a morte é natural, sobretudo pela crença da

metempsicose (transmigração/reencarnação da alma). Já para os judeus, a morte sempre

foi encarada como antinatural, anormal e contrária ao propósito de Deus (é preciso

retomar a análise de Gn em que o homem morre, pois, pecou e houve a queda e com ela

a concupiscência do pecado que leva a morte).

Cullmann (2011, p. 16) diz: "A narrativa do Gênesis mostra que ela [a morte]

entrou no mundo apenas como decorrência do pecado do homem". Dessa forma, se o

pecado é, portanto, algo oposto a Deus, a morte também o é na mesma visão, sendo

assim, a morte não pode ser uma amiga como propõe os gregos, mas o último dos

inimigos.

A problemática do tema se dá por meio desse contexto, isto é, de que a morte

sempre fora encarada como um lado negativo para a vida humana. O catecismo, porém,

defende uma nova perspectiva, a de que “Graças a Cristo, a morte cristã tem um sentido

positivo” (CIC, 1.010). E completa que “para os que morrem na graça de Cristo, é uma

participação na morte do Senhor, a fim de poder participar também de sua

Ressurreição” (CIC, 1.006).

Nesse sentido, o processo de ressurreição está ligado a um conceito divino, que

subjulga o pecado e a morte. Nós por nós mesmos não somos capazes de nos libertar,

somente aquele que venceu a morte é capaz, isto é, Jesus Cristo, ele que ressuscitou de

corpo e alma, estando verdadeiramente morto, ressuscitou dos mortos para que todo

aquele que Nele crer ressuscitará também.

A grande novidade então está nisto: que por meio do batismo, o cristão já

estaria sacramentalmente “morto com Cristo”, e assim viveria uma vida nova, e

morrendo na graça de Cristo, a morte física consuma este “morrer em Cristo” e

completa, assim, a incorporação no mistério pascal do Cristo e ele viveria o ato redentor

por meio da ressurreição.

Dessa forma, o sentido da morte, para o cristão, ganha uma nova perspectiva.

Ela é vista como um processo de união e comunhão com Cristo; São Paulo diz: “O meu

desejo é partir e ir estar com Cristo” (Fl 1, 23). Sendo assim, a vida não é mais tirada e

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não ganha mais uma conotação negativa, a vida não seria então tirada, mas

transformada e após a morte do nosso corpo natural seria dado um novo corpo na

ressurreição.

Sobre a questão da transmigração da alma ou reencarnação, a Igreja em seu

catecismo postula: “A morte é o fim da peregrinação do homem, do tempo de graça e

de misericórdia que Deus lhe oferece para realizar a sua vida terrestre segundo o projeto

divino e para decidir seu destino último”. Quando tiver terminado “o único curso de

nossa vida terrestre”, não voltaremos mais a outras vidas terrestres. “Os homens devem

morrer uma só vez” (Hb 9, 27). “Não existe reencarnação” depois da morte (CIC,

1.013).

É necessário apresentar, de maneira esquemática, o modelo escatológico

tradicional para se entender os temas que serão trabalhados a seguir.

CÉU CÉU

VIDA – MORTE – JUÍZO PARTICULAR PURGATÓRIO – JUÍZO FINAL

INFERNO INFERNO

Com o encerramento da vida do homem aqui na terra, ele passa pelos estágios de

morte do coração, o que a medicina ainda não considera como morte, mas um estágio de

morrer clínico, sendo necessária a utilização de aparelhos para que o coração continue a

bater, mas a morte clínica se dá no momento em que há a morte do cérebro. Nesse

estágio, entende-se que há a morte vital. Nesse sentido, o homem passaria para o juízo

particular. Baseado em sua vida terrena, sua alma teria a possibilidade de três destinos

escatológicos: o céu (se o homem viveu em estado de graça), o inferno (se estava ou

viveu em pecado mortal) e um estágio intermediário que seria o purgatório (se estava ou

viveu em pecado venial). Nesse estágio intermediário, o qual a Igreja sustenta a

existência, a alma estaria esperando um juízo final que, após o período/tempo de

expiação, a alma seria julgada finalmente e teria como destino o céu ou o inferno, e é no

momento do juízo final que teríamos os corpos devolvidos, não na mesma matéria, é

claro, mas glorificado, e ali cumpriria a promessa da ressurreição da carne.

4.4 O juízo particular e o juízo final

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Segundo o Catecismo da Igreja Católica, “a morte põe fim à vida do homem

como tempo aberto ao acolhimento ou à recusa da graça divina manifestada em Cristo”

(CIC, 1.021). O novo testamento afirma, repetidas vezes, a possibilidade de uma

retribuição imediata após a morte de acordo com as obras e a fé daquele que morreu, e

esse destino pode ser diferente para uns e outros de acordo com as suas ações

particulares. Essa ação é chamada de juízo particular, ato que coloca a sorte da alma sob

a perspectiva da vida de Cristo, e o julgamento pode acarretar uma felicidade plena no

céu, uma condenação imediata para sempre ou mesmo uma passagem a um estado

intermediário para purgação e expiação.

A doutrina escatológica tradicional católica reconhece a existência e a

precedência desse juízo particular, que é como a introdução do juízo final ou universal.

Mesmo que a Igreja não tenha nenhuma definição dogmática a respeito da existência do

juízo particular, ele estaria implícito nos exemplos de retribuição imediata dado a

algumas figuras nos evangelhos ou por meio do dogma da assunção de Maria aos céus.

Nas parábolas de Lázaro e do rico está implícita a noção de escatologia

intermediária e do juízo particular. Na parábola do rico avarento e do pobre Lázaro (Lc

16, 19-31), Jesus assume a concepção vigente sobre a sorte imediata dos mortos e diz:

“morto o rico, foi sepultado no inferno”. Ora, lá ele estava numa condição anterior ao

destino final, ou juízo final, pois ainda tinha parentes na terra que não desejava que

fossem cair nos mesmos tormentos.

Além de fazer referência ao intervalo entre a morte pessoal e o julgamento final,

a parábola transparece a ideia de um primeiro juízo quando atesta que, já no estado

intermediário, o rico sofria as penas do inferno. A noção de um julgamento primeiro e

anterior ao juízo final, pode ser vista também em Lc 23,43. Quando Jesus diz ao bom

ladrão “hoje estarás comigo no paraíso”, está prometendo uma comunhão consigo a

começar já depois da morte e naquele “estado/lugar” que, anteriormente à ressurreição

do último dia, o que chamamos de paraíso ou céu.

Em suma, os dados da revelação propõem dois momentos na realização

escatológica do homem. O primeiro logo após a morte, por meio do julgamento

intermediário, e o segundo no fim dos tempos, por meio do juízo universal final. E é

somente no juízo final que a ressurreição dos mortos, dos justos e injustos acontecerá.

Duas passagens são interessantes sobre o juízo final: “esta será a hora em que

todos os que repousam no sepulcro ouvirão a sua voz e sairão: os que tiverem feito o

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bem, para uma ressureição de vida; os que tiverem praticado o mal, para uma

ressurreição de julgamento” (Jo 5, 28-29). Então Cristo

virá em sua glória, e todos os anjos com Ele. [...] E serão reunidas em sua presença todas as nações, e Ele há de separar os homens uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos, e porá as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua esquerda. [...] E irão estes para o castigo eterno, e os justos irão para a vida eterna. (Mt 25, 31-44. 46)

Esse dia, o do juízo final, acontecerá por ocasião da volta gloriosa de Cristo e

somente o Pai conhece essa hora e só Ele irá decidir o seu advento. O julgamento

universal ou juízo final servirá para que Deus possa revelar a Sua Justiça sobre todas as

injustiças cometidas por suas criaturas. É esse mistério que instiga os homens o dom do

temor de Deus, pois não se sabe nem o momento e nem a hora da morte em que

ocorrerá o juízo particular, muito menos a hora do juízo final da ressurreição do corpo.

4.5 O purgatório como lugar/estado intermediário

A Igreja reconhece que existe um estágio intermediário entre o céu e o inferno

pelo qual a alma ainda não totalmente purificada ou totalmente condenada passaria por

um processo, por meio de um tempo de purificação até o dia do juízo final. É

importante entender que esse estágio de purificação é totalmente diferente do estágio de

condenação.

O purgatório, portanto, seria esse estágio. De acordo com a doutrina da Igreja, é

nesse estágio que as almas dos justos sofrem, completando a reparação de suas faltas,

sejam elas pecados graves, já perdoados por Deus, mas que exigem certa reparação,

uma vez que ainda não foram reparados totalmente na vida aqui na terra, ou pecados

leves, dos quais a pessoa não se penitenciou antes e que, embora não peçam sua

condenação eterna, impedem o ingresso imediato no céu com os Bem-aventurados.

Como foi abordado no tópico anterior: enquanto a doutrina do juízo particular

não foi solenemente declarada pela Igreja, mas muitas vezes expressa indiretamente, foi

quando se definiu que logo depois da morte a alma apossa-se de sua sorte eterna e

definitiva, uma vez que “não se há de supor que tal separação [dos bem-aventurados e

condenados] ocorra sem julgamento divino em que este não ocorra debaixo da soberania

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de Cristo” como afirmou Tomás de Aquino. A doutrina do Purgatório, porém, é dogma

de fé.

A existência do purgatório foi definida pelos Concílios de Florença e Trento e

recordada no Vaticano II e segue algumas referências bíblicas, de São Gregório Magno

e também dos próprios concílios.

Na Sagrada Escritura, essa evidência pode ser vista nas seguintes passagens:

1Cor 3, 15, sobre a verdadeira função dos pregadores, afirmando que “aquele, porém,

cuja obra for queimada perderá a recompensa. Ele mesmo será salvo, mas, como que

através de fogo” e 1Pd 1,7, sobre o amor e a fidelidade para com Cristo, o qual a “fé,

mais preciosa que o ouro [...] é provada pelo fogo”.

O mesmo tema é recordado por uma proposição de São Gregório Magno (540 a

604), que diz:

No que concerne a certas faltas leves, deve-se crer que existe antes do juízo um fogo purificador, segundo o que afirma aquele que é a Verdade, dizendo, que, se alguém tiver pronunciado blasfêmia contra o Espírito Santo, não lhe será perdoada nem no presente século nem no século futuro (Mt 12, 32). Desta afirmação podemos deduzir que certas faltas podem ser perdoadas no século presente, ao passo que outras no século futuro. (DIÁLOGO 41, 3)

No Concílio de Florença (1439–1445) afirma-se que a sorte dos defuntos (de

sorte defunctorum) que falecerem no amor de Deus, mas antes de sua morte não houve

tempo necessário para cumprir as penitências por causa de seus pecados, os que

cometeram ou que deixaram de fazer, por omissão, suas almas deverão ser purificadas

depois da morte com as penas do purgatório (paenis purgatoriis).

A definição desse lugar intermediário [purgatório] fundamenta tradição de se

rezar pelos defuntos, prática muito comum na piedade popular e também na história da

Igreja, pois, desde os primeiros séculos, ela fez questão de honrar os seus mortos

também na liturgia, em todas as celebrações eucarísticas se reza pelos fiéis defuntos,

que morreram na esperança da ressurreição em Cristo Salvador.

Essa definição de rezar pelos defuntos aparece nesse concílio, uma vez que as

almas estão se purificando, para que recebam um alívio para essas penas. Os fiéis

viventes são convidados e chamados a participarem do sacrifício da missa, de orações

individuais e comunitárias, nas doações das esmolas e as outras práticas de piedade que

os fiéis costumam oferecer pelos outros fiéis, segundo as disposições da Igreja.

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Também nesse concílio é definido o destino das almas daqueles que, depois do

batismo, não se mancharam de nenhuma culpa, e também a respeito daquelas que,

depois de terem cometido o pecado, foram purificadas ou nesta vida ou depois da sua

morte no modo acima descrito. Declara-se, então, que são logo aceitas no céu e veem

claramente o Deus uno e trino como ele é, mas algumas de modo mais perfeito que

outras, segundo a diversidade dos méritos.

Em Florença, também faz referência das almas daqueles que morrem em pecado

mortal atual ou somente original. Elas descem imediatamente ao inferno para serem

punidas, mesmo que com penas diferentes dos que cometeram pecados mortais ou

pecaram contra o próprio Espírito Santo.

No Concílio de Trento (1545–1563), na 22ª sessão, doutrina e cânones sobre o

sacrifício da missa, é postulado que a missa é sacrifício propiciatório para vivos e

mortos, sejam para purificação dos que ainda estão vivos ou para a diminuição ou alívio

das penas das almas no purgatório.

O sacrifício da missa, segundo a tradição dos Apóstolos, é legitimamente

oferecido não só pelos pecados, penas, satisfações e outras necessidades dos fiéis vivos,

mas também pelos falecidos em Cristo ainda não plenamente purificados. São Pio IV

(1499-1565) apresenta na profissão de fé tridentina a existência do purgatório e que as

almas ali prisioneiras serão ajudadas pelos sufrágios dos fiéis.

No Concílio Vaticano II (1962-1965), o mais recente do tempo atual, o qual

comemora seus 50 anos, no capítulo VII (n. 48-51) da Lumen Gentium, sobre a Igreja,

trata de um tema apresentado, a índole escatológica da vocação da Igreja. A abordagem

escatológica segue uma passagem interessante, no tópico 50, sobre as relações da Igreja

peregrina com a Igreja celeste, veja:

Reconhecendo cabalmente esta comunhão de todo o Corpo Místico de Jesus Cristo, a Igreja terrestre, desde os primórdios da religião cristã, venerou com grande piedade a memória dos defuntos e, “porque é um pensamento tanto e salutar rezar pelos defuntos (2Mc 12, 46), também ofereceu sufrágios em favor deles. (LG, cap. VII, 50)

A Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé reafirma dogmaticamente a

existência desse estágio no documento Dei Verbum (DV): “A Igreja, em conformidade

com a Sagrada Escritura, espera a manifestação gloriosa de Nosso Senhor Jesus Cristo”

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(DV, 1,4), que ela considera como distinta e diferida em relação ao estado próprio do

homem imediatamente após a morte.

Na própria Sagrada Escritura há evidências desse estágio intermediário quando

aborda a ressurreição dos mortos, situando-a no final dos tempos. Cria, pois, um espaço

dentro da eternidade entre a morte do indivíduo e o fim dos tempos, ou seja, o dia do

juízo final. Esses argumentos fortaleceram a posição da Igreja em se defender esse

conceito, embora se entenda que essa é uma grande herança grega, das doutrinas

órficas-pitagóricas em que a alma “não pura” passaria um tempo em processo de

expiação de suas falhas, quase sempre ligada a questões morais, injustiças e

destemperança.

4.6 O inferno

A palavra inferno tem muitas derivações, algumas delas dos gregos, como

Hades, Tártaro, expressões judaicas, como Sheol e algumas outras palavras aparecem no

Novo Testamento, tais como: Geena, perdição e morte.

A Escolástica postula o inferno como sendo a moradia (receptacula) das almas

separadas dos corpos e que foram condenadas por estar em condição de pecado mortal,

ou por pecar contra o Espírito Santo ou por escolher livremente estar fora da comunhão

com Deus. Para esta pesquisa, interessa esta visão, a do estado de pena ou morada dos

condenados que, do ponto de vista dogmático, existe e a sua existência é concreta e

eterna.

O Catecismo da Igreja Católica diz:

Não podemos estar unidos a Deus se não fizermos livremente a opção de amá-lo. [...] Aquele que não ama permanece na morte. Todo aquele que odeia o seu irmão é homicida. E sabeis que nenhum homicida tem a vida eterna permanecendo nele (1Jo 3, 14-15). Morrer em pecado mortal sem ter-se arrependido dele e sem acolher o amor misericordioso de Deus significa ficar separado do Todo-Poderoso para sempre, por nossa própria opção livre. E é este estado de auto exclusão definitiva da comunhão com Deus e com os bem-aventurados que se designa com a palavra inferno. (CIC, 1033)

O ensinamento da Igreja aborda a existência e a eternidade do inferno, não como

um lugar, mas como um estágio de separação da graça de Deus. As almas dos que

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morrem em estado de pecado mortal descem imediatamente aos infernos, e lá estariam

reservadas algumas penas. Jesus mesmo fala alguma vezes da “geena”, do fogo que não

se apaga, do fogo eterno. Jesus anuncia, em termos graves, que “enviará seus anjos, e

eles erradicarão de seu Reino todos os escândalos e os que praticam iniquidades, e os

lançarão na fornalha ardente” (Mt 13, 41-42), ou quando proclamou a condenação

“afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno” (Mt 25, 41).

Não muitas passagens existem sobre o tema, mas um apelo é feito por Matheus

para chamar a responsabilidade desta separação para o homem. “Entrai pela porta

estreita, porque largo e espaçoso é o caminho que conduz à perdição. E muitos são os

que entram por ele. Estreita, porém, é a porta e apertado o caminho que conduz à vida.

E poucos são os que entram” (Mt 7, 13-14). E um apelo constante é colocado na liturgia

da Igreja, sobretudo na liturgia eucarística, um apelo do sacerdote para “que ninguém se

perca, mas que todos venham a converter-se” (2Pd 3,9).

Alguns fundamentos bíblicos são importantes para esta reflexão. O Antigo

Testamento não traz uma revelação explícita sobre o inferno. Pouco oferece o antigo

conceito hebraico do Sheol, onde, desde o princípio, são representados, sem

discriminação, todos os mortos, imersos numa vida triste de sombras.

Nos dois últimos séculos do Antigo Testamento se tem já uma crença comum na

existência do tormento eterno. Em Daniel se lê que os ímpios ressuscitarão “para o

opróbrio e o eterno horror” (Dan 12,2). Segundo o livro da Sabedoria, “serão entregues

à dor e sua lembrança perecerá” (Sb 4,18).

No Novo Testamento, João Batista dirá: “fogo inextinguível” (Mt 3,12). Jesus

reitera essa doutrina, apresentando o inferno como uma “geena” como já foi dito nas

passagens acima, mas que podem ser comprovadas também nestas outras: Mt 5, 22; Mc

9, 42-47; Mt 23, 15; Lc 12,5; Mt 23,33; Lc 13,28; Mt 7,13; Jo 17,12; Mt 22,13; Lc

16,24; Mt 25,30. Em conformidade está a exposição dos outros escritos do Novo

Testamento confirmando a mesma dimensão, estes são: 2Cor 5,10; Rom 2,5-9; 2 Tes

1,7-9; Rom 6,21-23; Filp 5,19; Gal 6,8; Heb 10,27; 2 Pd 2,4-8; 1 Pd 4,18; Jd 6-7; Ap

20,6-10.

Em suma, a doutrina de Cristo e dos Apóstolos e da Igreja deduz e afirma

claramente que existe um inferno, um estado de pena para os maus e que os tormentos

são sem fim, eternos e, todavia, diversos, segundo as culpas.

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Nesse sentido, constata-se que a pena maior do inferno seria a condição de

separação ou excomunhão com Deus, e estando fora da participação da vida de Deus, o

homem perderia o sentido maior e a finitude de sua vida, a vivência plena da felicidade.

A esse tema, a Teologia Escolástica chama de privação da visão de Deus (poena

damni). Também teria uma segunda pena, a pena dos sentidos (poena sensus), algo um

pouco assustador, mas que São Gregório Magno (540 a 604) interpreta o fogo do

inferno como um fogo corporal (gehennae ignis corporeus), fogo que seria possível se

queimar mesmo sendo a alma imaterial, pois se trata de um fogo especial, que queima

sem consumir.

Diversos filósofos da época questionaram a Igreja sobre a impossibilidade de um

fogo que arde eternamente. A contestação se dá de imediato por Agostinho que limita a

razão humana dessa compreensão, dizendo que:

Nós não podemos conhecer nem a natureza do corpo ressuscitado nem a tipologia do fogo do inferno. [...] Não existe, portanto, razão para nos pedirem ainda exemplos pelos quais evidenciem a credibilidade que o corpo dos homens condenados ao tormento eterno não perca a alma no fogo, arda sem consumir-se, sofra sem morrer. (AGOSTINHO, 2001, XXI, 4.1)

A razão e a linguagem limitam quando se vai falar de assuntos que fogem da

experiência sensível, portanto, falar de inferno, purgatório e céu parece ser muito

abstrato, sobretudo na atualidade cientificada que hoje se vive. A teologia posterior

continuou com a tentativa de penetrar no âmago do fogo eterno. Porém, é difícil marcar

um avanço para uma pesquisa tão intangível e com objeto inalcançável para

experimentos. Mas, de fato, poder-se-ia questionar: se trata do “fogo” em sentido

metafórico ou real?

Outra questão levantada pela Escolástica é sobre as diferenças entre os

condenados. Há, pois, uma penalidade diferenciada, que se ajusta à maldade do pecador.

E mesmo no inferno se exerce a misericórdia de Deus, “não no sentido de que Deus

retire aos condenados todo sofrimento, mas que de certo modo os alivia, punindo-os

menos do que merecem”, afirma Tomás de Aquino.

Assim como a questão intangível do “fogo eterno”, não é preciso supor, nos

condenados, um estado de pena insuportável ou suportável. A questão mais prudente

seria postular que estar fora da comunhão com Deus seria sim a maior das penas no

inferno cuja dor seria inexplicável.

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As discussões mais recentes sobre o tema, e que denominou o inferno como

dogma de fé, mostra que as almas daqueles que morreram em pecado mortal, ou só com

o pecado original, descem logo ao inferno, sendo, todavia, punidas com penas

diferenciadas.

Nas décadas de 1970 e 1980 houve algumas revisões dos estudos de

escatologias, sobretudo com o apogeu da Teologia da Libertação na América Latina.

Antes, a visão era que se o sofrimento e a dor abatessem os homens aqui nesta vida, não

haveria problemas, pois um lugar melhor estaria garantido para eles após a morte; após

a releitura, é dado um encorajamento para que se pudesse morrer aqui, lutar aqui, pois

se o céu começa aqui, é preciso melhorar o mundo em que se vive.

Nesse sentido, os teólogos da libertação, em nome da infinita misericórdia

divina, rejeitam a realidade do inferno explicitamente ou apenas insinuam essa negação.

O inferno então seria um hiato teológico, isto é, uma possibilidade, mas que, na prática,

não existiria, pois se entende que, por meio do vislumbre e clarificação dos erros

humanos diante do autojulgamento e do reconhecimento da divindade em todo o seu

esplendor, a contemplação do rosto de Deus, o homem, mesmo livre, escolheria estar

em Deus (no céu) e não fora Dele (no inferno).

A pergunta que não se cala então é: quem está no inferno? Uma boa notícia é

que nem a doutrina da Igreja, na tradição e no magistério extraordinário, nem a doutrina

da Escritura constrangem, de modo certamente obrigatório, à afirmação determinada de

que ao menos alguns homens são realmente condenados, quer se trate de pessoas

nominalmente designadas, quer de anônimos.

A Igreja declarou oficialmente a respeito de inúmeras pessoas que elas se

encontram como santos e santas junto de Deus. Não existe, porém, nenhum

pronunciamento por parte da Igreja sobre a condenação de sequer uma pessoa

nominalmente, por pior que tenha sido essa pessoa em sua vida terrena.

4.7 O céu

Numerosas são as expressões que a Sagrada Escritura usa para indicar o céu.

Etimologicamente deriva-se do latim, coelum, que significa cavidade, sempre utilizado

para derivar o reino dos céus, reino de Deus, vida, vida eterna, salvação, reino, paraíso,

glória do Senhor, banquete nupcial, banquete, etc.

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No credo da Igreja Católica reza-se frequentemente “creio na vida eterna” (credo

in vitam aeternum). Então é para a Igreja não um conceito, um lugar ou estágio, mas um

dogma de fé. E como se trata de um estado/lugar destinado “aos que morrem na graça e

na amizade de Deus, e que estão totalmente purificados, vivem para sempre com

Cristo”, como afirma o Catecismo da Igreja Católica (CIC, 1023). A Igreja jamais teve

que combater heresias relacionadas desta ordem e nem tratar em grandes concílios a

reformulação de sua visão sobre o paraíso.

A vida no céu está ligada à visão beatífica de Deus, na qual as almas dos bem-

aventurados, contemplados com essa dádiva eterna, estando no céu onde contemplam a

essência divina que se lhes mostra imediatamente, sem véu, clara e abertamente (divina

essentia immediate se nude, clare et aperte eis ostendente). Nessa contemplação, os

homens seriam felizes, uma vez que tal face, até então nunca foi revelada aos homens.

Veja a advertência que Deus faz a Moisés, no livro do Êxodos, quando este deseja ver a

face Dele. Vendo a face Dele, a clarificação seria tão intensa que ele poderia se cegar.

Vários são os versículos que ilustram os fundamentos bíblicos sobre a vida

eterna, o mais forte deles, sem dúvidas, é a passagem do bom ladrão, em que o próprio

Jesus promete: “Em verdade, eu te digo, hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 43). A

única promessa divina foi o céu, lembramo-nos da passagem sobre o novo céu e uma

nova terra, "onde Deus enxugará as lágrimas dos nossos olhos, pois nunca mais haverá

morte, nem luto, nem clamor, e nem dor haverá mais" (Ap 21, 4).

Qual seria, pois, a natureza do paraíso? De que lugar/estado se fala aqui? O

Catecismo diz: “O céu é o fim último e a realização das aspirações mais profundas do

homem, o estado de felicidade suprema e definitiva” (CIC, 1024).

A vida eterna dá ao ser humano a realização plena de suas possibilidades, é, em

suma, o atingimento da felicidade perfeita, pois viver no céu é viver em Deus.

No tópico anterior foram feitas perguntas do mesmo tipo e vale repeti-las aqui:

Quem tem acesso ao céu? Quem está lá no paraíso? De muitos modos, a imaginação

popular e de alguns escritores desenhou um paraíso quase que em réplica à realidade

terrestre. Tornou-se comum, inclusive, conceber a presença de animais e das outras

naturezas criadas integrando a “paisagem do céu”. A Igreja, apoiando-se na Sagrada

Escritura e no testemunho dos Santos Padres, ensina que no paraíso vivem os anjos e os

bem-aventurados contemplando a Trindade Santa e a Virgem Maria.

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4.8 Os problemas atuais levantados pelos teólogos da libertação e as respostas do

Magistério da Igreja

Um dos temas que pode levantar algumas discussões acerca da problemática

atual sobre a escatologia advém de uma visão que é denominada Teologia da

Ressurreição Imediata. Essa visão, que começou a ser trabalhada e rebatida por volta de

1920, sobretudo pelo teólogo Joseph Ratzinger (posteriormente Bento XVI). Em seu

livro, Escatologia: morte e vida eterna, ele dá algumas respostas acerca desse tema,

sobretudo em relação aos conceitos postulados pelo teólogo protestante alemão Carl

Stange (1870-1959), pioneiro dessa nova doutrina.

Na teologia católica, uma rediscussão das ideias escatológicas começou somente

por volta de 1950, ocasionada pela dogmatização da assunção de Maria e pelo contexto

de diálogo ecumênico. Gisbert Greshake (1933) e Gerhard Lohfink (1934) abraçaram

esquemas bastante similares aos dos protestantes, enveredando-se nos caminhos da

“ressurreição na morte”.

Os problemas levantados por essa nova doutrina se baseiam em duas matrizes

filosóficas, advindas do Helenismo, isto é, o antiplatonismo e o atemporalismo. No

Brasil, os maiores representantes dessa tendência são, em geral, os teólogos da

libertação: Renold J. Blank (1935), João Batista Libânio (1932-2014) e Leonardo Boff

(1938). E esses serão basicamente os dois temas que serão trabalhados neste último

tópico.

4.8.1 O antiplatonismo

Os teólogos da libertação, Renold J. Blank (1935), João Batista Libânio (1932-

2014) e Leonardo Boff (1938), por meio das suas obras sobre escatologia, objeto desta

pesquisa, fazem críticas à presença do platonismo na doutrina escatológica tradicional

católica, sobretudo em relação ao dualismo corpo-alma que interferiu diretamente para

direcionar o processo de juízo particular e juízo final. E também à formulação de que só

o corpo morre no momento da morte e que a alma, por ser imortal, teria outro destino.

Seguem algumas fundamentações teóricas dos autores analisados:

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Os autores pesquisados apresentam suas fundamentações. Para Blank (2000, p.

77), o modelo tradicionalmente usado na religião cristã recorre à ideia de que o homem

seria composto de corpo e alma: “O corpo, nesta união, é a parte mortal, enquanto a

alma é a parte imortal. Na morte, diz o modelo, a alma se separa do corpo, e entra em

nova dimensão, chamada Eternidade”.

De acordo com Libânio (1985, p. 63), a alma é substância espiritual, imortal,

eterna. Ele afirma: “De raça divina preexistente, só chegará à beatitude, desprendendo-

se dos laços do corpo. Esse modelo teórico impor-se-á, naturalmente reconduzido aos

limites da ortodoxia cristã”.

Já Boff afirma que os que definiam a morte como sendo separação da alma do

corpo restringiam-na somente à dimensão biológica do homem. Segundo ele,

é só o corpo que morre; a alma fica intacta, pois é imortal. Mas aqui se denota uma indigência antropológica muito grande, porque a morte não afeta o homem todo. Existe alma desencarnada da matéria e do mundo? [...] O espírito é sempre encarnado. O corpo é sempre espiritualizado. (BOFF, 1984, pág. 39).

O documento da Comissão Teológica Internacional intitulado “Algumas

questões atuais concernentes à Escatologia”, de 1992, aponta a posição do magistério

sobre essa questão, afirmando que:

Os teólogos que propõem a ressurreição na morte desejam suprimir a existência depois da morte de “uma alma separada”, que consideram um resíduo de platonismo. É muito compreensível o temor que move os teólogos favoráveis à ressurreição na morte: o platonismo seria um gravíssimo desvio da fé cristã. (CTI, 2000, p. 435)

A discussão ainda está aberta e cabe aos estudos atuais e futuros da escatologia

mostrar possibilidades de uma releitura do modelo escatológico tradicional.

4.8.1 O atemporalismo

Junto com a primeira crítica sobre o antiplatonismo há uma segunda crítica feita

pelos teólogos da libertação sobre o temporalismo também presente na doutrina

escatológica tradicional católica. Essa crítica é sobre a presença de dimensão espaço

temporal no além, isto é, se no pós-morte a alma é direcionada para outra realidade que

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não a terrena. Então o fato de conservar terminologias e conceitos como espaço e tempo

seria inviável.

Os teólogos da libertação não foram pioneiros no tema. Os grandes teólogos

Karl Barth (1886-1968) e Emil Brunner (1889-1966) já haviam demonstrado o

desconforto sobre essa questão e postularam que o homem, após a morte, sai do tempo e

do espaço e entra em nova dimensão sem tempo, chamada eternidade.

Bank desenvolve bem o argumento em relação à atemporalidade da realidade no

além. Segundo ele:

Naquele momento, o tempo para de existir como dimensão existencial desta pessoa. Para ela, a morte significa “o fim dos tempos”. Como não há tempo, não pode haver passagem de nenhum tempo entre um acontecimento e o outro. Por causa disso, é impossível uma alma ficar separada do corpo na eternidade, aguardando ali a ressurreição do corpo. Numa dimensão sem tempo não se pode aguardar nada, pois essa dimensão é o agora atemporal. A alma de uma pessoa que morre não tem mais tempo de se separar do corpo, pelo simples fato de o tempo não mais existir. (BLANK, 2000, p. 109 e 145)

Ainda sobre essa questão, Libânio faz uma excelente consideração sobre a

ressurreição no último dia. Afirma ele:

Presos ao esquema linear temporal, que situa a ressurreição final no término último da sucessão de eventos históricos, não conseguimos captar o sentido da ressurreição na hora da morte, como “último dia”, como a intersecção da história pessoal com toda a história, como o acabamento da história. (LIBÂNIO, 1985, p. 212)

Boff reforça novamente o argumento dizendo que:

Pela morte se entra num modo de ser que abole as coordenadas do tempo. Só a partir deste ponto de vista se pode já dizer que não se concebe afirmar qualquer tipo de “espera” de uma suposta ressurreição no final cronológico dos tempos. (BOFF, 1984, p. 42)

Blank (2000, p. 109) complementa dizendo que “o momento da morte e o

momento do final dos tempos coincidem na eternidade” e, portanto, não seria possível

falar de tempo nesta outra realidade que é o além.

A partir dessas duas críticas bem fundamentadas pelos teólogos da ressurreição

imediata, novos dois pontos são colocados para reflexão. O primeiro é o da

simultaneidade do juízo particular com o juízo final, uma vez que tudo é dado de forma

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imediata após a morte e, interligado a essa primeira definição, faz-se necessário uma

nova compreensão do purgatório e, por conseguinte, do inferno e do céu.

Antes mesmo de detalhes desses novos conceitos, é importante relembrar as

grandes diferenças do esquema/modelo escatológico:

Modelo escatológico tradicional:

CÉU CÉU

VIDA – MORTE – JUÍZO PARTICULAR PURGATÓRIO – JUÍZO FINAL

INFERNO INFERNO

A análise feita pelos teólogos da libertação, adeptos da doutrina da ressurreição

imediata, é que o modelo tradicional está carregado de doutrina helênica. A maior delas

é a divisão de corpo e alma, isto é, uma vez que o homem é dotado de uma natureza

mortal (corpo) e uma natureza imortal (alma), no modelo tradicional só morre o que é

mortal e, na ressureição, a alma vai para um destino no além, enquanto o corpo fica na

realidade terrena aguardando o dia do juízo final em que será ressuscitado e ganhará

uma nova forma, a de um corpo glorioso.

Modelo escatológico dos teólogos da ressurreição imediata:

VIDA – MORTE TOTAL (CORPO-ALMA) – AUTOJULGAMENTO CÉU (CORPO-ALMA)

(IMEDIATO)

Nesse esquema não se faz necessário e nem faz sentido a alma ficar aguardando

em um lugar intermediário, pois a ressurreição se dá de forma imediata. Isso é

defendido, pois, na realidade do além, não existe nem tempo nem espaço. Nesse

sentido, a crítica ao temporalismo se dá pela não existência de tempo e espaço na

dimensão do além. E a crítica ao platonismo se dá pela não aceitação do dualismo

corpo-alma.

Portanto, a visão do além e do modo de entrada nele permanece diferente do

modo tradicional explorado na doutrina escatológica tradicional católica e também dos

modelos da religião e filosofia antiga grega, seja nos Mistérios de Elêusis, no

Dionisismo e no Orfismo, seja em no Pitagorismo ou em Platão.

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As interpretações sobre o modus operandis do instante da ressurreição imediata

varia de acordo com cada autor, mas se completam mutuamente. Segundo Leonardo

Boff (1938), no instante da morte, o homem é colocado diante de uma radical decisão.

Para Libânio (1932-2014), o homem, na condição da morte, defronta-se com o conjunto

de sua vida para uma decisão final do seu estado com Deus. E para Blank (1935), o

momento da morte e o momento do final dos tempos coincidem na eternidade.

Segundo os autores, a simultaneidade do juízo particular com o final se dá pelo

simples fato de que a pessoa que morreu vive o juízo final no momento de sua morte,

não necessitando aguardar em uma realidade intermediária por esse momento e, no

instante do juízo particular, acontece o final e também a ressurreição do corpo.

Desse modo, não é Deus quem julga o homem, mas o homem que julga a si

próprio. Blank afirma que:

Durante toda a sua vida, o homem podia fechar os olhos perante si mesmo. Podia fechar os olhos também perante as consequências de seus atos e de suas omissões. No momento da morte isso não mais é possível. A morte se torna o primeiro momento de cognição total, no qual o ser humano será confrontado, queira ou não, com todas as dimensões de si mesmo. (BLANK, 2000, p. 158).

Blank desenvolve o argumento de que o indivíduo possui um conhecimento

amplíssimo, que se dá tridimensionalmente: dimensão pessoal, socioestrutural e

histórica. O indivíduo conhece-se pessoalmente e dentro de um sistema entrelaçado de

convivência e vislumbra o efeito histórico de suas ações e omissões pessoais. É a partir

de tal visão totalizante de si mesmo que tem condições de se autojulgar.

É no autojulgamento que o homem tem acesso à clarificação de suas ações.

Nesse processo, cada homem verá a verdade e não poderá se esconder dela. Com essa

tese, derruba-se a necessidade de um juiz, seja como imaginavam os gregos, os juízes

das portas do Hades, sejam o juízo particular e final do próprio Deus.

Para Blank (1935), o autojulgamento seria o purgatório, autopurificador, intenso

e imediato, o tempo então seria substituído pela intensidade. Para Libânio (1932-2014),

no encontro com Deus, por meio do processo de autojulgamento, a decisão está na mão

do homem, pois ele mesmo vê todas as suas incoerências no momento da clarificação, e

esse instante metafórico para ele é o próprio purgatório. Nessa mesma perspectiva, para

Boff (1938), o purgatório já inicia aqui na terra, por meio das dores, do sofrimento, das

decepções, etc.

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Se o purgatório é o termo de um longo processo de maturação e crescimento purificador, então ele já se inicia aqui na terra. As dores, as frustrações e os dramas existenciais, pelos quais o homem não raro tem que passar, podem pelo homem prudente ser confiscados como alto valor de interiorização e purificação. (BOFF, 1984, p. 64)

Nesse sentido, o estágio intermediário do purgatório é ressignificado, pois não

existe mais tempo de purificação, purgação ou expiação. Se a ressurreição é dada de

forma imediata, como mostram os autores, a temporalidade é subtraída e o que fica é

apenas a vida terrena, com todas as nuances, alegrias e tristezas, saúde, dores e

sofrimentos, conquistas e decepções, e esse viver já seria o próprio processo de

purificação do homem antes do autojulgamento.

Essa é a nova compreensibilidade do conceito de purgatório, e a última chance

de conversão na morte é um ato doloroso de maior ou menor intensidade dependendo da

pessoa que auto se julga. Nesse sentido, afirma Libânio:

O purgatório pode ser considerado, por conseguinte, como um processo pessoal, histórico, em que a pessoa vai superando suas contradições, seus egoísmos, até aquele momento final de encontro com Deus. Aí os últimos resquícios serão apagados. No encontro com Deus, a transparência total de nossa consciência pela força da luz de Deus permitirá que rejeitemos clara e livremente essas últimas incoerências. (LIBÂNIO, 1985, p. 242)

Se o purgatório não existe, a dimensão do inferno então seria apenas um

pressuposto teórico para o autojulgamento, seria o que a teologia chama de hiato

teológico, e, portanto, “o inferno seria uma possibilidade que não é divina, [pois tais

teólogos partem da premissa] que a única Promessa divina foi o céu. Não sendo

promessa, anúncio, objeto de esperança, o inferno entraria, então, dentro da categoria de

possibilidade” (LIBÂNIO, 2000, p. 260).

O grande problema que a doutrina escatológica tradicional precisou dar conta, ao

longo dos anos, foi quanto às seguintes questões: Como é que podemos imaginar uma

vida depois da morte, se tanto os criminosos, os culpados, como os que não querem

saber de Deus, se todas essas pessoas seguem vivendo juntos após a morte? O que

acontecerá com as pessoas más? A justiça de Deus não deveria intervir pelo menos após

a morte, já que não o fez no decorrer desta vida? Onde estaria essa justiça se os

criminosos e pecadores não recebessem os seus merecidos castigos e os outros as

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recompensas que lhes cabem? Como ficaria a recompensa dos que foram justos se todos

vão para o mesmo destino? De que adianta eu ser justo e reto nesta vida se no momento

da morte eu posso me converter e receber o mesmo prêmio que daquele que foi justo a

vida toda?

Não nos parece a mesma interpelação dos trabalhadores da primeira hora na

parábola narrada por Matheus sobre os trabalhadores da vinha? Lembremos: “Ao

receber, murmuravam contra o pai de família, dizendo: Estes últimos fizeram uma hora

só e tu igualaste a nós que suportamos o peso do dia do calor do sol” (Mt 20, 11).

Ora, a dimensão intermediária foi retirada, o inferno passou ser apenas uma

possibilidade, mas que na prática não existe, pois se entende que, por meio do vislumbre

e clarificação dos erros humanos diante do autojulgamento e do reconhecimento do

divino face a face, o homem, mesmo livre, escolheria sempre estar na presença e

participar da vida de Deus, isto é, de estar no paraíso, do que optar por estar fora Dele,

no inferno. Sendo assim, o céu seria a única realidade, o grande lugar/estágio em que as

almas humanas estariam, pela infinita misericórdia de Deus e, pela possibilidade de

autojulgar-se, o homem estaria com os anjos, os bem-aventurados contemplando a

Trindade Santa e a Virgem Maria.

E, se tornarmos a questionar Deus como fez os trabalhadores da primeira hora

ele poderá nos responder à altura: “Amigo, não fui injusto contigo. Não combinaste um

denário? Toma o que é teu e vai. Eu quero dar a este último o mesmo que a ti. Não

tenho o direito de fazer o que eu quero com o que é meu? Ou teu olho é mau porque eu

sou bom? Assim, os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos” (Mt 20,

13-16). Nesse sentido, entendemos que o modelo de ressurreição imediata proposto

pelos teólogos da libertação não se trata de críticas sem fundamento ou apenas ataque ao

modelo tradicional, que precisaria de renovação, mas sim é uma tentativa vem

fundamentada de se retirar todo o platonismo e temporalismo do discurso e falar de

maneira mais didática do destino da alma após a morte para o povo de Deus, dificuldade

que é encontrada tanto no trabalho da pastora, do missionário e até mesmo nos púlpitos

dos sermões das Igrejas. Nesse sentido, a resposta aos questionamentos sobre quem

teria então direito à morada dos bem-aventurados, quem encontraríamos no céu,

tornaria-se mais simples e mais adequada: todos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa envolveu um grande esforço na leitura e entendimento da Idade

Antiga Grega, na qual evidenciamos a importância do mito e da religião na

compreensão total do homem grego, que não tem a sua vida individual e pública

separada do contexto religioso. Mais adiante, detalhamos os conceitos fundamentais dos

principais movimentos da religião antiga grega, isto é, os Mistérios de Elêusis, o

Dionisismo e o Orfismo, as quais possuem vários elementos escatológicos que

subsidiaram os pitagóricos e Platão a elaborar bem os conceitos de corpo, alma,

dualismo corpo-alma, imortalidade da alma e suas provas, os destinos (lugar/estados)

escatológicos da alma e a metempsicose (transmigração/reencarnação) da alma,

elementos presentes na construção do modelo escatológico tradicional católico, bem

como a formação da consciência e a doutrina escatológica cristã como um todo.

Não tínhamos o objetivo de criticar cada ponto de helenização dentro da

doutrina escatológica tradicional católica, mas em alguns momentos mostramos

algumas evidências, sobretudo, na conceitualização de juízo particular e final,

purgatório como lugar intermediário, inferno e céu.

Nossa pesquisa teve como foco também, mesmo que de maneira introdutória,

mostrar os problemas atuais enfrentados pela Igreja a partir de críticas da teologia da

libertação, cujos autores analisados foram Renold Blank, João Batista Libânio e

Leonardo Boff, trabalhando, sobretudo, as críticas ao modelo escatológico tradicional

da presença do platonismo e temporalismo na visão do além, e também detalhando um

pouco sobre a ressignificação que esses autores dão ao criar um modelo escatológico da

ressurreição imediata que propõe uma nova compreensão dos juízos particular e final,

do purgatório, do inferno e do céu.

Acreditamos que o objetivo da pesquisa foi concluído, mas não encerrado, uma

vez que se abre uma grande perspectiva de estudo na linha de pesquisa escatologia e

teologia da libertação, a fim de contribuir ainda mais para uma nova compreensão de

salvação (soteriologia) e ressurreição imediata (escatologia).

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