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As histórias que me ensinaram a viver

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A inspiradora relação entre um terapeutae seu jovem paciente

Jorge Bucay

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Para minha filha Claudia

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Sumário

Apresentação 9

Fator comum 11O elefante acorrentado 14O peito e o leite 17O tijolo bumerangue 18O verdadeiro valor do anel 20O rei bipolar 23As rãs no creme 26O homem que pensava estar morto 28O porteiro do prostíbulo 30Dois números menor 35Carpintaria “O Sete” 39Concurso de canto 42Possessividade 45Que terapia é esta? 47O tesouro enterrado 53Uma jarra de vinho 56Sozinhos e acompanhados 60A esposa surda 64Não misturar! 67Asas são para voar 71Quem é você? 73A travessia do rio 78Presentes para o marajá 81Buscando Buda 83O lenhador esforçado 88A galinha e os patinhos 90

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Pobres ovelhas 92A panela grávida 94O olhar do amor 98Os brotos da seringueira 100O labirinto 105O círculo do noventa e nove 108O centauro 115Diógenes 118Outra vez as moedas 120O relógio parado às sete horas 127As lentilhas 130O rei que queria ser louvado 133Os dez mandamentos 136O gato do Ashram 140O detector de mentiras 143Eu sou o Peter 147O sonho do escravo 152A esposa do cego 154A execução 157O juiz justo 165A loja da verdade 173Perguntas 175O plantador de tâmaras 178Autorrejeição 181

Epílogo 186

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Apresentação

Quando eu tinha 22 anos, dois fatos deixaram uma marca indelével em minha vida e moldaram meu futuro: a minha graduação em medicina e a morte de meu avô Farash.

Aos olhos dos que não o conheciam, meu avô pareceria um sujeito politicamente incorreto. Fumava e bebia em excesso, não gostava muito de trabalhar e adorava mulheres bonitas. No entan-to, tinha um coração enorme e possuía uma grande habilidade para contar histórias. Fossem inventadas ou reais, moralistas ou absur-das, bíblicas ou mórbidas, todas me faziam pensar.

Assim como a maior demonstração de afeto que minha mãe podia dar a alguém era oferecer-lhe algo para comer, a de meu avô era contar uma história (e, é claro, servir um pouco de anis turco). Essas histórias incutiram em mim a paixão pelos pequenos contos e pelas narrativas inspiradoras.

O livro que hoje você tem em mãos é uma antologia de relatos – alguns antiquíssimos, outros contemporâneos, histórias tradicio-nais de várias culturas, feitos já conhecidos aos quais decidi adi-cionar fatos da minha vida pessoal, poucos contos inventados por mim e uma ou outra piada que ouvi e que repito com frequência para meus pacientes.

Na busca por uma maneira de ilustrar o uso que faço desses relatos em meu consultório, criei os personagens Demián e Jorge (este, por sinal, se parece muito comigo!). No início ou no final de cada história adicionei uma conversa fictícia entre os dois para ilustrar uma sessão de análise. Acho que é desnecessário esclarecer que a lição que extraí de cada conto é somente um exemplo e que

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a sabedoria encerrada nele pode exceder em muito a aplicação que apresento.

Eu não posso materializar meu velho Farash para oferecê-lo ao leitor, mas confesso que gosto de pensar neste livro como um ver-dadeiro avô, pronto para lhe contar uma história sempre que você precisar de companhia ou conselho.

Dr. Jorge Bucay

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Fator comum

Quando cheguei pela primeira vez ao consultório de Jorge, sabia que não encontraria um terapeuta comum. Minha amiga Cláudia, que o recomendou, me avisou que ele era um sujeito “diferente”.

Eu já estava cansado das terapias convencionais, principalmente depois de ter passado anos entediantes num divã de psicanálise. Então liguei e marquei uma consulta.

A primeira impressão superou todas as minhas expectativas. Era uma tarde quente de novembro; cheguei cinco minutos antes do horário marcado e fiquei esperando lá embaixo, na portaria do edi-fício, até que desse a hora exata.

Às quatro e meia em ponto toquei o interfone, empurrei o por-tão e me dirigi ao nono andar.

Esperei no corredor.Esperei.E esperei.E, quando cansei de esperar, toquei a campainha do consultó-

rio.Quem abriu a porta foi um homem que parecia vestido para ir

a um piquenique: calça jeans, tênis e uma camiseta cor de abóbora berrante.

– Olá – disse ele, e seu sorriso me tranquilizou.– Oi – respondi –, sou Demián.– Sim, claro. O que aconteceu com você? Por que demorou

tanto para chegar aqui em cima? – Não, não demorei. Não quis tocar a campainha para não in-

comodar... caso estivesse atendendo...

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– Para não incomodar? Quem está incomodado aqui?Fiquei mudo.

O lugar onde Jorge atendia (não dava para chamar aquilo de “consul-tório”) era exatamente como ele: informal, desarrumado, descuidado, quente, colorido, surpreendente e – por que negar? – um pouco sujo.

Ele me fez sentar na cadeira em frente à dele. Enquanto eu con-tava algumas coisas sobre mim, Jorge bebia mate. Ele perguntou se eu queria.

– Tá – falei.– Tá o quê?– Tá, o mate...– Não estou entendendo.– Eu aceito o seu mate.Jorge fez uma reverência servil e irônica, disparando em seguida:– Obrigado, Majestade, por aceitar o “meu mate”.Fiquei mudo novamente.– Por que não me diz se quer um mate ou não, em vez de me

fazer favores?Esse sujeito ia me deixar louco. – Eu quero! – disse.E então Jorge me deu o mate.Decidi ficar mais um pouco.

Entre várias outras coisas, contei que devia haver algo de errado co-migo, porque eu tinha dificuldade de me relacionar com as pessoas.

Jorge perguntou como eu sabia que o problema era comigo. Respondi que tinha problemas com meu pai, minha mãe, meu ir-mão, minha namorada..., portanto, era óbvio que a culpa devia ser minha.

Foi então que Jorge me contou uma história pela primeira vez.Eu aprenderia mais tarde que ele adorava fábulas, parábolas,

contos, frases de efeito e metáforas.

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Segundo ele, a única maneira de compreender um fato sem vivenciá-lo é ter uma clara representação simbólica do aconteci-mento.

– Uma fábula, um conto ou uma história – afirmava Jorge – podem ser cem vezes mais lembrados que mil explicações teóricas, interpretações psicanalíticas ou divagações formais.

Nesse dia, Jorge me disse que poderia haver alguma coisa fora dos eixos em mim, mas que minha conclusão autoacusadora não se baseava em fatos concretos. Depois me relatou uma dessas histórias que ele contava em primeira pessoa e que eu nunca sabia se eram parte da sua vida ou da sua fantasia:

Meu avô era um grande pinguço. O que ele mais gostava de be-ber era anis turco. Ele servia o anis e acrescentava água para deixá-lo mais fraco, mas se embriagava do mesmo modo.

Então tomava uísque com água e se embriagava.E tomava vinho com água e se embriagava.Até que um dia decidiu se curar... e suspendeu a água!

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O elefante acorrentado

– Não posso – falei. – Não posso!– Tem certeza? – perguntou Jorge.– Tenho. Tudo o que eu queria era me sentar na frente dela e

dizer o que sinto... mas sei que não posso.Meu terapeuta sentou-se como Buda na horrorosa poltrona

azul da sala. Sorriu, olhou nos meus olhos e, baixando a voz (como fazia sempre que queria ser ouvido atentamente), disse:

– Posso lhe contar uma história?Meu silêncio foi resposta suficiente. Jorge começou a contar.

Quando eu era criança, adorava o circo, e o que mais gostava de ver eram os animais. O elefante era o que mais me chamava a atenção. Durante o espetáculo, aquele animal enorme fazia uma demonstração de peso, tamanho e força descomunais... mas depois da apresentação, ele ficava amarrado por uma das patas com uma corrente presa numa pequena estaca cravada no chão.

Embora a corrente fosse grossa e resistente, me parecia óbvio que o elefante, capaz de arrancar uma árvore pela raiz com sua for-ça, poderia facilmente arrancar a estaca e fugir.

O mistério era evidente: por que ele não fugia?Quando eu tinha 5 ou 6 anos e ainda confiava na sabedoria dos

adultos, perguntei a um professor sobre o mistério do elefante. Ele me explicou que o animal não fugia porque era adestrado.

– Se é adestrado, por que o acorrentam? – perguntei.Não me lembro de ter recebido qualquer resposta coerente.Com o tempo, esqueci um pouco essa história e só me lem-

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brava dela quando encontrava alguém que tinha a mesma dúvida que eu.

Há alguns anos conheci uma pessoa sábia o bastante para dar uma resposta: o elefante do circo não foge porque sempre esteve pre-so a uma estaca parecida com essa – desde muito pequeno.

Fechei os olhos e imaginei o elefante recém-nascido preso à es-taca. Tenho certeza de que naquele momento o elefantinho empur-rou, puxou e suou, tentando se soltar. E, apesar de tanto esforço, não conseguiu.

A estaca certamente era forte demais para ele.Eu poderia jurar que ele dormiu, exausto, e no dia seguinte fez

tudo de novo, e também no seguinte, e no seguinte... Até que um dia aceitou sua impotência e resignou-se ao seu destino.

Esse enorme e poderoso elefante que vemos no circo não escapa porque acha que não pode. Ele tem o registro e a lembrança de sua incapacidade, aquela que sentiu logo depois de nascer. O pior é que nunca mais voltou a questionar isso.

E jamais tentou pôr sua força à prova novamente.

– É isso aí, Demián. Todos somos um pouco como esse ele-fante do circo: vivemos amarrados a muitas estacas que nos tiram a liberdade. Acreditamos que “não podemos” um monte de coisas, simplesmente porque alguma vez, quando éramos crianças, tenta-mos e não conseguimos. Então fizemos o mesmo que o elefante. Gravamos na memória um registro de incapacidade e repetimos “Não posso... Não posso e nunca poderei”.

Fiquei olhando para ele, calado. – Crescemos carregando essa mensagem que nos impusemos e

nunca mais voltamos a tentar – disse ele. – No máximo, sentimos os grilhões e, de vez em quando, fazemos soar as correntes ou olhamos para a estaca e confirmamos o estigma: “Não posso e nunca poderei!”

Jorge fez uma longa pausa; depois se aproximou, sentou-se no chão à minha frente e concluiu:

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– Isso é o que acontece com você. Você vive condicionado pela lembrança de que outro Demián, que já não existe, não conseguiu. A única maneira de saber se você pode agora é tentar novamente, usando todo o seu coração... Todo o seu coração.

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O peito e o leite

Jorge não contava histórias em todas as sessões, mas eu me lembro de quase todas as que ele contou durante aquele um ano e meio de terapia. Talvez ele estivesse certo e essa fosse mesmo a melhor ma-neira de me ensinar alguma coisa.

Lembro-me do dia em que eu disse que me sentia muito depen-dente dele. Falei sobre quanto me incomodava não poder ficar sem a ajuda que ele me oferecia. A mistura de admiração e amor que eu tinha por Jorge fazia com que eu sentisse muita necessidade de sua aprovação. Então ele me disse:

Você tem fome de saber e fome de crescer. Fome de conhecer e fome de voar...É possível que hoje eu seja o peito que dá o leite que aplaca sua

fome... É ótimo que você queira esse peito. Mas não se esqueça:Não é do peito que você precisa... É do leite!

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O tijolo bumerangue

Naquele dia eu estava muito aborrecido. Tudo me incomodava. Mi-nha atitude no consultório era pouco produtiva, eu só reclamava. Falava mal de tudo o que tinha e fazia. Eu estava com raiva de mim mesmo.

– Sou um babaca – falei. – Um idiota. Eu me odeio.– Metade das pessoas neste consultório odeia você. A outra me-

tade vai contar uma história.

Havia um garoto que andava por aí com um tijolo na mão. Tinha decidido arremessá-lo em qualquer pessoa que o deixasse irritado. Essa atitude era um pouco agressiva, mas parecia eficaz, não é?

Um dia ele cruzou com um amigo que lhe respondeu mal. Fiel ao seu objetivo, pegou o tijolo e atirou nele. Não me lembro se che-gou a atingi-lo, mas o garoto ficou irritado por ter que buscar sua arma depois do ataque.

Decidiu então melhorar o “sistema de autoconservação do ti-jolo”, como ele o chamava. Amarrou uma corda de um metro de comprimento ao tijolo, pois assim não precisaria andar tanto para trazê-lo de volta. Atirou-o em outra pessoa e rapidamente compro-vou que o novo método também apresentava problemas.

Por um lado, a vítima tinha que estar a menos de um metro de distância. Por outro, tinha o trabalho de puxar a corda, que muitas vezes enrolava e formava nós.

O garoto decidiu inventar o “sistema TIJOLO III”, substituin-do a corda por uma mola.

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Agora sim, pensava, poderia lançar o tijolo várias vezes, que ele voltaria sozinho.

Quando saiu à rua e recebeu a primeira agressão, atirou o tijolo. Errou o alvo, mas a mola fez com que o tijolo voltasse e atingisse sua cabeça.

O segundo tijolo que arremessou também o atingiu, assim como o terceiro.

O que aconteceu no quarto foi interessante. O garoto tinha decidido arremessar o tijolo em sua vítima e, ao mesmo tempo, protegê-la da sua agressão. Esse galo ficou enorme.

Nunca se soube exatamente por que, mas o garoto jamais con-seguiu atingir alguém.

Os golpes sempre atingiram ele mesmo.

– Esse mecanismo se chama retroflexão e consiste basicamen-te em proteger outra pessoa da nossa agressividade. Criamos uma barreira que detém nossa energia negativa para que ela não atin-ja o outro. Essa barreira não absorve o impacto, apenas o reflete. Assim, toda a raiva volta para nós mesmos, e a manifestamos por meio de condutas de autoagressão (danos físicos, comida em exces-so, drogas, riscos inúteis) ou de emoções ou manifestações ocultas (depressão, culpa, somatização). Seria muito bom se não ficássemos com raiva. Porém, quando ela surge, a única maneira de dissipá-la é colocando-a para fora. Caso contrário, só o que conseguimos é ficar com raiva de nós mesmos.

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O verdadeiro valor do anel

Falávamos sobre a necessidade de sermos reconhecidos e valoriza-dos. Jorge terminava de explicar a teoria de Maslow sobre essas ne-cessidades. Todos precisamos do respeito e da afeição dos outros para construir nossa autoestima.

Na ocasião, eu estava me queixando por não ser aceito por meus pais, não ter muitos amigos de verdade e não ser reconhecido no trabalho.

– Há uma velha história – disse Jorge, enquanto me passava a chaleira para que eu me servisse – sobre um jovem que procurou a ajuda de um sábio. O problema dele era parecido com o seu.

– Venho procurá-lo, mestre, porque me sinto tão medíocre que não tenho vontade de fazer nada. Dizem que sou inútil, que faço tudo errado, que sou atrapalhado. Como posso melhorar? O que eu posso fazer para ser mais valorizado?

O mestre, sem olhar para o jovem, respondeu:– Sinto muito, rapaz, mas não posso ajudá-lo. Primeiro devo

resolver meu próprio problema. Talvez, se me ajudar a resolvê-lo, eu possa tentar fazer algo por você.

– De... de acordo, mestre – titubeou o jovem, sentindo-se mais uma vez desvalorizado por ver suas necessidades sendo colocadas em segundo plano.

– Bem, moço – disse o sábio, tirando um anel do dedo min-dinho da mão esquerda e entregando-o ao rapaz –, pegue o cavalo que está lá fora e vá até o mercado. Você deve vender este anel para pagar uma dívida. É necessário vendê-lo pelo melhor preço possí-

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vel, mas não aceite menos do que uma moeda de ouro. Vá e volte o mais rápido que conseguir.

O jovem pegou o anel e partiu.Assim que chegou ao mercado, começou a oferecê-lo aos co-

merciantes. Eles demonstravam interesse, até que o jovem falava o preço.

Quando mencionava a moeda de ouro, alguns riam e outros iam embora. Um velhinho chegou perto dele e amavelmente explicou-lhe que uma moeda de ouro era muito por um anel. Querendo ajudar, alguém quis pagar com um anel de prata e uma panela de cobre, mas, seguindo as instruções do mestre, o homem não aceitou.

Abatido pelo fracasso, depois de oferecer a joia a mais de cem pessoas no mercado, ele montou no cavalo e regressou.

O rapaz desejava muito ter voltado com a moeda de ouro; assim poderia liberar o mestre da preocupação e receber seu conselho e sua ajuda.

– Mestre, sinto muito, não foi possível conseguir o que pediu – disse ele ao entrar na casa. – Talvez até conseguisse duas ou três moedas de prata, mas não acredito que possa enganar ninguém so-bre o valor do anel.

– O que você disse é muito importante, amigo – respondeu o sábio, sorrindo. – É preciso primeiro saber o verdadeiro valor do anel. Pegue o cavalo novamente e vá até o joalheiro. Quem melhor do que ele para saber? Ofereça a joia e pergunte quanto ele pagaria por ela. Mas não venda. Volte aqui com meu anel.

E o jovem saiu cavalgando novamente.Depois de pesar e examinar o objeto com uma lupa, o joalheiro

disse:– Diga ao mestre que, se ele precisa vendê-lo agora, não posso

pagar mais do que 58 moedas de ouro.– Cinquenta e oito?! – exclamou o jovem.– Sim – insistiu o joalheiro. – Eu sei que você poderia obter

cerca de 70 moedas, mas como a venda é urgente...

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O moço, emocionado, voltou rapidamente à casa do mestre para contar o que tinha ocorrido.

– Sente-se – disse o sábio depois de escutá-lo. – Você é como este anel: uma joia valiosa e única. E, como tal, só pode ser avaliado por um especialista. Por que você vai querer que qualquer um des-cubra o seu verdadeiro valor?

E, dizendo isso, pôs novamente o anel no dedo mindinho da mão esquerda.

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O rei bipolar

Só me dei conta da minha excitação quando comecei a falar. Eu estava eufórico.

À medida que contava, percebia quantas coisas tinha feito na-quela semana.

Como outras vezes, sentia-me triunfante, apaixonado pela vida, um super-homem. Falei dos meus planos para os próximos dias. Tinha tanta força, tanta energia!

Jorge sorria enquanto escutava meu relato. Como sempre, ele pa-recia acompanhar meu estado de espírito. Poder dividir minha alegria com ele era mais um motivo para ficar contente. Tudo estava dando certo para mim. Continuei fazendo planos. Nem mesmo duas vidas seriam suficientes para eu realizar tudo o que eu estava disposto a fazer.

– Tenho uma história para lhe contar – disse meu analista. Fi-quei calado, mas reconheço que tive de fazer um esforço para isso.

Era uma vez um rei muito bom e poderoso que morava em um país distante. Mas ele tinha um problema: suas duas personalidades. Havia dias em que se levantava exultante, eufórico, feliz, e tudo lhe parecia maravilhoso. Achava os jardins de seu palácio ainda mais bonitos. Nessas manhãs, por alguma estranha razão, seus servos eram amáveis e eficientes.

Durante o desjejum, o rei afirmava que no seu reino eram fa-bricadas as melhores farinhas e colhidos os frutos mais saborosos.

Naqueles dias, o monarca reduzia os impostos, repartia rique-zas, concedia favores e legislava pela paz e pelo bem-estar dos an-ciãos. Além disso, realizava todos os pedidos dos súditos e amigos.

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Mas também havia os “outros dias”.Eram dias negros. Ele acordava achando que deveria ter dormi-

do um pouco mais, porém já era tarde e o sono o abandonara.Apesar do esforço, não compreendia por que seus servos esta-

vam tão mal-humorados nem por que o serviço estava tão ruim. O sol o incomodava mais do que a chuva. Achava a comida sem graça e o café, frio. A ideia de receber pessoas piorava ainda mais sua dor de cabeça.

Nesses dias, o rei pensava nos compromissos que havia assu-mido e em como conseguiria cumpri-los. Ele tornava a aumentar os impostos, confiscava terras, prendia seus opositores... Temeroso do futuro e do presente, perseguido pelos erros do passado, o rei voltava-se contra o povo e a palavra que mais usava era NÃO.

Consciente dos problemas causados por essas alterações de hu-mor, o rei chamou todos os sábios, magos e assessores do reino para uma reunião.

– Senhores, todos vocês conhecem minhas mudanças de hu-mor. Todos têm sido beneficiados pelos meus momentos de euforia e têm padecido com meus desgostos. Mas quem é mais prejudicado sou eu mesmo, que a cada dia desfaço o que já fiz, pois vejo as coisas de um modo diferente. Necessito que vocês trabalhem juntos para conseguir um remédio, uma poção mágica ou um encanto que me ajude a não ser tão absurdamente otimista que não enxergue os fatos nem tão ridiculamente pessimista que oprima e prejudique aqueles de quem eu gosto.

Os sábios aceitaram o desafio e trabalharam na tarefa durante várias semanas.

Porém, apesar de todos os feitiços e de todas as ervas, não en-contraram solução e admitiram o fracasso.

Nessa noite, o rei chorou.Na manhã seguinte, apareceu um estranho visitante pedindo

um encontro com o rei. Era um misterioso homem de pele escura vestindo uma túnica puída que algum dia havia sido branca.

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– Majestade – disse o homem, fazendo uma reverência –, venho de um lugar onde se fala dos vossos males e da vossa dor. Trago o remédio de que Vossa Majestade precisa. – Inclinando a cabeça, entregou ao rei uma caixinha de couro.

O rei, entre surpreso e esperançoso, abriu a caixa. Nela havia um anel prateado.

– Obrigado. É um anel mágico? – perguntou com entusiasmo.– Sim – respondeu o viajante. – Mas apenas usá-lo não é su-

ficiente. Todas as manhãs, assim que vos levantardes, deveis ler a inscrição do anel e lembrar-se dessas palavras cada vez que o virdes em vosso dedo.

O rei pegou o anel e leu em voz alta: ISTO também passará.

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As rãs no creme

Eu estava em época de provas. Já tinha feito duas provas finais e haveria mais uma na semana seguinte. A matéria era muito extensa e eu achava que não daria conta de estudar tudo.

– Não vou conseguir – falei. – É inútil continuar gastando ener-gia numa causa perdida. Acho que é melhor fazer a prova com o que eu aprendi até agora; ao menos, se for reprovado, não vou me lamentar pelo tempo que perdi estudando.

– Você conhece a história das duas rãs? – perguntou Jorge.

Era uma vez duas rãs que caíram numa tigela de creme. Ime-diatamente começaram a afundar; era impossível nadar ou boiar naquela massa espessa como areia movediça. No começo, as duas mexiam as pernas tentando inutilmente chegar à borda do recipien-te. Só conseguiam espirrar creme para todos os lados sem sair do lu-gar, afundando mais. Sentiam que era cada vez mais difícil respirar.

Uma delas falou:– Não adianta. É impossível sair daqui. Não consigo nadar neste

líquido pegajoso. Já que vou morrer mesmo, para que prolongar a dor? Não vejo sentido em morrer extenuada por um esforço inútil.

Então ela parou de bater as pernas e afundou de vez, literalmen-te engolida pela massa branca.

A outra rã, mais persistente, ou talvez mais teimosa, disse a si mesma:

– Não tem jeito! Não dá para sair daqui. Porém, já que a morte está chegando, vou lutar até ficar sem fôlego. Não quero morrer nem um segundo sequer antes da hora.

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Ela continuou batendo as pernas sem sair do lugar, sem avançar um centímetro, por horas a fio. E assim, depois de tanto mexer a massa, o creme virou manteiga.

A rã, surpresa, deu um pulo e foi patinando até a borda da tige-la. E saiu coaxando alegremente de volta para casa.

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O homem que pensava estar morto

Fiquei pensando no conto das duas rãs.– É como aquela frase de Almafuerte – comentei. – “Não se dê

por vencido nem quando já estiver vencido.” – Pode ser – disse meu terapeuta –, embora nesse caso me pare-

ça mais “Não se dê por vencido antes de ser vencido”. Ou, se você preferir, “Não se declare perdedor antes de chegar a hora da avalia-ção final”. Porque...

E ele me contou outra história.

Havia um senhor que estava muito preocupado com sua saúde, temendo que a morte estivesse chegando. Um dia, junto com outras ideias loucas, ele achou que poderia já estar morto. Então pergun-tou à sua mulher:

– Será que eu já estou morto? A mulher riu e mandou que tocasse as mãos e os pés. Ele obe-

deceu.– Viu, estão mornos! – disse a mulher. – Isso quer dizer que você

está vivo. Se estivesse morto, suas mãos e seus pés estariam gelados. A resposta pareceu razoável e o homem se tranquilizou.Semanas depois, ele saiu durante uma nevasca para arranjar lenha.

Quando chegou ao bosque, tirou as luvas e começou a cortar alguns galhos. Sem pensar, passou a mão na testa e notou que estavam frias. Lembrando-se do que a esposa lhe dissera, tirou os sapatos e as meias e verificou, aterrorizado, que seus pés também estavam gelados.

Naquele momento não teve mais dúvidas: tinha certeza de que estava morto.

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“Não é bom que um morto ande por aí cortando lenha”, disse a si mesmo. Assim, colocou o machado ao lado de seu burro e se deitou em silêncio no chão gelado, com as mãos em cruz sobre o peito e os olhos fechados.

Passados alguns momentos, uma matilha se aproximou da bol-sa onde o homem guardava os alimentos que havia levado para o bosque. Ao ver que não seriam impedidos, os cães devoraram tudo. O homem pensou: “Sorte desses animais eu já estar morto. Caso contrário eu os expulsaria a pontapés.”

A matilha continuou farejando a área e encontrou o burro amarrado a uma árvore. Era uma presa fácil para os dentes afiados dos cães. O burro chiou e deu coices. O homem pensou que pode-ria defendê-lo se não estivesse morto.

Em poucos minutos os cães acabaram com o burro. Insaciáveis, continuaram rondando o lugar. Não demorou muito até que um dos cães farejasse o homem. De repente, todos os animais estavam salivando à sua volta.

“Agora vão me comer”, pensou. “Se eu não estivesse morto, se-ria tudo diferente.”

Os cães se aproximaram... e, vendo que o homem não se mexia, comeram-no.

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