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7 AS EMPRESAS FAMILIARES NO BRASIL J. Sérgio R. C. Gonçalves © 2000, RAE - Revista de Administração de Empresas / EAESP / FGV, São Paulo, Brasil. RAE Light v. 7 n. 1 p. 7-12 Jan./Mar. 2000 A partir do momento em que Schumpeter, reconhecendo que o progresso econômico se transforma- va em atividade de grupos de espe- cialistas e admitindo também que o próprio progresso técnico passava a ser cada vez mais um processo co- letivo e, portanto, despersonalizado, estavam, desde então, criadas as ba- ses para a elaboração do que pode ser identificado como “teoria clás- sica das organizações empresariais”. Isso terá também estimulado Peter Drucker a propor a substituição do magnata pelos técnicos e adminis- tradores profissionais como coman- dantes da empresa privada. A partir desse momento, porque, conseqüên- cia da teoria que se elaborou, a em- presa familiar recebeu um estigma que iria marcá-la pelas décadas seguintes: o estigma da incompe- tência pressuposta. Schumpeter imaginou a unida- de industrial gigantesca, perfeita- mente burocratizada, não deixando espaço para as pequenas e médias empresas, expropriando os seus proprietários e caminhando para re- duzir o empresário à condição de assalariado. Peter Drucker, na me- dida em que a burocracia compe- tente se identifica com a organiza- ção moderna, segue nessa mesma linha, percebendo nos executivos profissionais, que nascem com essa mesma organização, os novos líde- res, exercendo uma liderança que se baseia na competência; eles são os especialistas e os administra- dores profissionais. A essa competência opõe-se, ine- vitavelmente, a incompetência dos empresários e suas empresas fami- liares, identificável especialmente nos pontos seguintes: a) a empresa familiar permite-se uma organização informal, con- fusa e incompleta; b) ela adota como valor básico a confiança pessoal, em prejuízo da competência, tornando-se in- capaz de contar com técnicos e especialistas de gabarito; c) ela pratica o nepotismo sob diver- sas formas, impossibilitando defi- nitivamente a profissionalização; d) finalmente, a empresa familiar é imediatista, o que impede qual- quer forma de planejamento em- presarial. Como resultado dessa avaliação, a empresa familiar passou a ser pen- sada, quando o foi, em função daque- le que seria o seu momento trágico, ou seja, o momento da sucessão. Ima- ginado com o mesmo fatalismo que marca o teatro clássico grego. Nesse caso, o inevitável podia até mesmo ser comprovado estatisticamente: em todo o mundo, a menor parte das empresas familiares sobrevive numa segunda geração e uma minoria des- prezível suporta a terceira. Até a década de 50, a empresa familiar brasileira teve presença qua- se absoluta em praticamente todos os segmentos da economia nacional, desde a atividade agrícola até o sis- tema financeiro, passando pela indús- tria têxtil, de alimentação, de servi- ços e de meios de comunicação. A partir daí, iniciado o grande projeto de desenvolvimento e modernização nacional, ela passaria a partilhar cada vez mais espaços com as empresas multinacionais e com as estatais. Não se deve avançar no tema, entretanto, sem o cuidado de deixar claro o que se entende por empresa familiar, visto que, na maioria das ocasiões, pressupõe-se o que ela TENDÊNCIAS

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AS EMPRESAS

FAMILIARES NO BRASIL

J. Sérgio R. C. Gonçalves

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RAE Light • v. 7 • n. 1 • p. 7-12 • Jan./Mar. 2000

A partir do momento em queSchumpeter, reconhecendo que oprogresso econômico se transforma-va em atividade de grupos de espe-cialistas e admitindo também que opróprio progresso técnico passava aser cada vez mais um processo co-letivo e, portanto, despersonalizado,estavam, desde então, criadas as ba-ses para a elaboração do que podeser identificado como “teoria clás-sica das organizações empresariais”.Isso terá também estimulado PeterDrucker a propor a substituição domagnata pelos técnicos e adminis-tradores profissionais como coman-dantes da empresa privada. A partirdesse momento, porque, conseqüên-cia da teoria que se elaborou, a em-presa familiar recebeu um estigmaque iria marcá-la pelas décadasseguintes: o estigma da incompe-tência pressuposta.

Schumpeter imaginou a unida-de industrial gigantesca, perfeita-mente burocratizada, não deixandoespaço para as pequenas e médiasempresas, expropriando os seusproprietários e caminhando para re-duzir o empresário à condição deassalariado. Peter Drucker, na me-

dida em que a burocracia compe-tente se identifica com a organiza-ção moderna, segue nessa mesmalinha, percebendo nos executivosprofissionais, que nascem com essamesma organização, os novos líde-res, exercendo uma liderança quese baseia na competência; eles sãoos especialistas e os administra-dores profissionais.

A essa competência opõe-se, ine-vitavelmente, a incompetência dosempresários e suas empresas fami-liares, identificável especialmentenos pontos seguintes:

a) a empresa familiar permite-seuma organização informal, con-fusa e incompleta;

b) ela adota como valor básico aconfiança pessoal, em prejuízoda competência, tornando-se in-capaz de contar com técnicos eespecialistas de gabarito;

c) ela pratica o nepotismo sob diver-sas formas, impossibilitando defi-nitivamente a profissionalização;

d) finalmente, a empresa familiar éimediatista, o que impede qual-quer forma de planejamento em-presarial.

Como resultado dessa avaliação,a empresa familiar passou a ser pen-sada, quando o foi, em função daque-le que seria o seu momento trágico,ou seja, o momento da sucessão. Ima-ginado com o mesmo fatalismo quemarca o teatro clássico grego. Nessecaso, o inevitável podia até mesmoser comprovado estatisticamente: emtodo o mundo, a menor parte dasempresas familiares sobrevive numasegunda geração e uma minoria des-prezível suporta a terceira.

Até a década de 50, a empresafamiliar brasileira teve presença qua-se absoluta em praticamente todos ossegmentos da economia nacional,desde a atividade agrícola até o sis-tema financeiro, passando pela indús-tria têxtil, de alimentação, de servi-ços e de meios de comunicação. Apartir daí, iniciado o grande projetode desenvolvimento e modernizaçãonacional, ela passaria a partilhar cadavez mais espaços com as empresasmultinacionais e com as estatais.

Não se deve avançar no tema,entretanto, sem o cuidado de deixarclaro o que se entende por empresafamiliar, visto que, na maioria dasocasiões, pressupõe-se o que ela

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seja, o que pode não ser exatamenteverdadeiro. Muitas vezes, pretende-se que ela seja aquela na qual con-vivem duas ou mais gerações de umamesma família, o que, na verdade,não é necessário que ocorra. Emoutras, não menos freqüentes, faz-se a distinção entre a empresa fami-liar e a empresa individual, quandonão se leva em conta que todo indi-víduo participa pelo menos de umafamília de formação, aquela em quenasceu e foi educado, sendo muitocomum que tenha ainda uma famí-lia de procriação, a que ele mesmoformou pelo casamento.

O que de fato caracteriza a em-presa familiar é a coexistência detrês situações, que são:

a) a empresa é propriedade de umafamília, detentora da totalidadeou da maioria das ações ou co-tas, de forma a ter o seu controleeconômico;

b) a família tem a gestão da empre-sa, cabendo a ela a definição dosobjetivos, das diretrizes e dasgrandes políticas;

c) finalmente, a família é respon-sável pela administração do em-preendimento, com a participa-ção de um ou mais membros nonível executivo mais alto.

A Metal Leve tem sido um exem-plo perfeito de dois ou mais empre-sários de diferentes famílias parti-cipando do mesmo empreendimen-to, sendo mais correto qualificá-lacomo empresa multifamiliar, muitopróxima da empresa familiar, mascom características e principalmen-te problemas muito específicos.

De qualquer forma, é essa co-existência de situações que vai per-mitir que a cultura familiar penetrena esfera da empresa, marcando-aem diferentes graus com os seus va-lores, que, por sua vez, determinamcomportamentos específicos. Porisso mesmo é que faz sentido estu-dar-se a empresa familiar brasileira

tendo sempre como ponto de parti-da o estudo da cultura da famíliaempresária no Brasil.

Essa família tem sido historica-mente orientada por dois referenciaisbásicos: o patrimonialismo e opatronato político.

O patrimonialismo sustentou-senas famílias patriarcais, formando,com muita freqüência, parentelas,sob a chefia de um senhor. Em ter-mos práticos, é uma visão patrimo-nialista que permite à família ad-ministrar o patrimônio pessoal e oda empresa como se fosse único eprivado. Ainda nos dias atuais, sãomuitas as famílias que consideramos ativos da empresa, inclusive osque compõem o ativo fixo, comopropriedade pessoal, enquanto ospassivos são entendidos como obri-gações da empresa. É o que justifi-ca o antigo ditado popular que serefere ao “dinheiro em dois bolsos,mas de um dono só”.

As famílias, herdando valorespróprios de uma estrutura patriarcale adotando um comportamentopatrimonialista, tendem a adotar,quase que necessariamente, nas suasempresas, um comportamentopaternalista. Não existe, então, umarelação profissional e jurídica entrea empresa e o empregado, mas umarelação pessoal, necessariamente ori-entada e disciplinada pelo patrão edono, baseada em fidelidade e mú-tua confiança, o que acontece prin-cipalmente durante a gestão e admi-nistração do fundador. Não pode seresquecido, porém, que muitas empre-sas familiares, ou por maturidade, oumesmo por terem de enfrentar nomercado de trabalho a concorrênciade grandes empresas multinacionais,foram libertadas das práticas pater-nalistas. Um recurso usado com bonsresultados para chegar-se a isso temsido a criação de fundações, que, co-mumente, assumem atividadesassistenciais, de treinamento, cultu-rais e de lazer; essas fundações têmcondições de realizar de maneira

mais madura e aperfeiçoada umaintermediação entre a empresa, oempregado e a família, na qual ofundador ou seus sucessores estarãosimbolizados na instituição, que osdispensa de uma presença física edireta nesse relacionamento.

De qualquer forma, é a visão pa-trimonialista que provoca as gran-des inconsistências da empresa fa-miliar: o autoritarismo, o nepotismo,o uso da confiança pessoal, e não dacompetência, para a escolha de co-laboradores, implicando ainda o pa-ternalismo como forma de relacio-namento com os empregados. Comcerteza, em grau extremo, o patri-monialismo leva a um fracasso ine-vitável da empresa. Mas não é as-sim que ele se manifesta, quase sem-pre sendo atenuado e disciplinadopor diversos condicionantes, sob aforma de valores sociais. Mesmoassim, é um patrimonialismo sobre-vivente que torna a empresa famili-ar particularmente vulnerável emdeterminados momentos, aquelesque representam grandes transiçõese que podem ser chamados de ritosde passagem, que marcam etapas navida da empresa.

Nos empreendimentos bem-sucedidos, há um momento em queo fundador tem necessidade de reversuas atitudes e seus procedimentos.A relação entre criador e criaturadeve ser alterada, porque a criatura,a empresa, passa a ter necessidadede determinadas competências queele, o criador, não possui, mas quedeverá ser capaz de identificar, lo-calizar e alocar. Deve ser lembradoque, ainda na década de 50, o desa-fio envolvido nessa transição, pelainexistência de executivos em nú-mero suficiente e com formaçãoadequada, era muito grande, o quelevou muitas vezes o empresário acometer equívocos capazes de pro-vocar o fracasso da empresa. Já háalgum tempo, porém, boas escolasde administração, consultores com-petentes, disponibilidade de litera-

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tura e de informações asseguram àempresa familiar a possibilidade deformar uma competência intelectu-al adequada às suas necessidades.Com certeza, porém, não poderáhaver espaço para qualquer práticade nepotismo nem mesmo para amanutenção de formas de relaçõespessoais baseadas em simpatias esentimentos de confiança.

Também no mais comum das ve-zes, as empresas familiares devemrealizar um ou mais “saltos”, quetomam a forma de projetos, envol-vendo investimentos expressivos.Trata-se de um outro momento detransição, quando uma possível per-sistência de conceitos e procedi-mentos vindos do antigo patrimo-nialismo pode tornar a empresa ex-tremamente frágil. É ele, em últi-ma instância, que permite que osestudos de mercado e os projetostécnicos sejam substituídos pela in-tuição e pela improvisação, quasesempre com resultados desastrosos,uma vez que terão sido captados re-cursos e assumidos índices altos deendividamento, sem que se obtenhao retorno apenas imaginado. Os ris-cos são ainda maiores quando umprojeto passa a ter apenas umpretenso objetivo de investimento,mas, de fato, é montado diante dapossibilidade de obter recursos acustos subsidiados em um Banco deDesenvolvimento, que podem serdesviados para complementação deum capital de giro já insuficienteou mesmo para fins totalmente di-ferentes e até alheios à empresa.

É sabido que a empresa familiarno Brasil enfrenta tipicamente pro-blemas em sua capitalização ade-quada e em sua capacidade de sus-tentar um projeto mais pesado deinvestimento. Durante muito tempo,a possibilidade prática e viável paraa captação de recursos para investi-mentos foi representada pelo BancoNacional de Desenvolvimento Eco-nômico e Social (BNDES). É real-mente expressivo o número de em-

presas familiares que puderam rea-lizar competentemente a sua voca-ção contando com o apoio dessa ins-tituição. Mas essa afirmação nãoinvalida a observação de que, comgrande freqüência, o relacionamen-to entre os empreendedores famili-

ares e os técnicos do BNDES foiduro e difícil. Ainda uma vez, a cul-tura patrimonialista impedia o reco-nhecimento de que um Banco deDesenvolvimento atua a partir depolíticas definidas em nível macro-econômico, pretendendo atingi-lasinteragindo com a iniciativa priva-da. Era mais fácil que o empresáriopensasse que obteve um emprésti-mo lastreado em garantias pessoaissuas, para ser usado na sua empresaonde e como quisesse.

Caso o BNDES conserve em seusarquivos os projetos apresentadospor empresas familiares que foramaprovados depois de feitas as devi-das análises, sendo entendidos comocompatíveis com os objetivos de umplano de desenvolvimento da eco-nomia nacional, mas que acabaramsendo mal-sucedidos, levando essasempresas à falência, existirá, então,uma documentação especialmenterica que futuramente deverá ser es-tudada por quem tenha interesse nahistória das empresas industriais fa-miliares no Brasil.

Uma possibilidade, que muitasvezes se apresentava como interes-sante, mas que, nos tempos mais re-centes, se torna praticamente impe-rativa, é aquela que leva ao processode busca de novos sócios ou parcei-ros. Enquanto essa procura de sóci-

os nasce da necessidade de capitali-zação do empreendimento, em tese,a alternativa de abertura do capitalcom oferta pública de ações seria amais aceitável para o empresário fa-miliar. No entanto, quando ela che-gou a ser experimentada, acabava

esvaziada na maioria dos casos, por-que os direitos de acionistas mino-ritários sempre foram limitados eassim mesmo pouco respeitados, oque permitia transformar-se o proces-so em não mais do que um expedien-te para a captação de recursos a cus-tos muito baixos, sem a contraparti-da de responsabilidades maiores.Além disso, não será demais lembrarque o mercado de ações no Brasil foisempre pouco expressivo nos volu-mes que movimenta, tendo-se torna-do, no decorrer do tempo, cada vezmais seletivo em função de interes-ses especulativos imediatistas.

Por outro lado, foi sendo ampli-ada a possibilidade de contar comsócios institucionais, isto é, bancos,especialmente bancos de negócios,fundos de previdência privada e se-guradoras. Mas o que se pode con-cluir, com base em observação decomportamentos praticados até ago-ra, é que, na grande maioria dos ca-sos, esses sócios surgem em momen-tos de crise financeira profunda naempresa familiar, trazendo o apoiorepresentado por novos recursos eprovidenciando-se o saneamento doempreendimento para que se torneviável a sua venda subseqüente.Assim, e com mais rigor, não há pro-priamente a formação de uma par-ceria, mas a adoção de uma solução,

É a visão patrimonialista que provoca as grandesinconsistências da empresa familiar: o autoritarismo,o nepotismo, o uso da confiança pessoal, e não dacompetência, para a escolha de colaboradores.

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a menos inconveniente, para um pro-blema que envolve credores e deve-dores, minimizando-se prejuízos departe a parte.

Com o rápido processo que pas-sou a ter o nome de “globalização”,as empresas nacionais, inclusive asfamiliares, têm reconhecido a neces-sidade imperativa, como condiçãobásica para a sobrevivência, de bus-car e conseguir sócios estratégicos.

Nesse novo cenário, importam defato: o acesso à tecnologia, o mono-pólio cada vez maior das grandescorporações multinacionais, a pos-sibilidade de assegurar a participa-ção no mercado, seja qual for ele,uma vez que eles passam a ser con-trolados pelas mesmas multinacio-nais, que formam cadeias integradasdo suprimento às vendas, numa si-tuação inédita, que tem exemploacabado na indústria automobilísti-ca. Portanto, o parceiro estratégicoserá sempre um sócio estrangeiro.

As famílias que se tenham con-servado fiéis à ética patrimonialista,mesmo que busquem, não encontra-rão esse tipo de parceiro, passando aviver a experiência de uma morteanunciada. Mas é preciso reconhecerque mesmo os empresários que sou-beram livrar-se da cultura transmiti-da pelos mais velhos ainda assimenfrentam e enfrentarão dificuldades.

A formação de uma joint venture,quando se entende por ela a forma-ção de uma associação, começa poruma negociação sempre difícil emtorno do valor do negócio. Mesmo

quando já se deixou de lado o méto-do tradicional, do patrimônio líqui-do ajustado, adotando-se sistemasmais sofisticados, como o do “flu-xo de caixa descontado” ou o do“múltiplo do lucro sustentável”, ain-da continuam a existir aspectos to-talmente subjetivos, o que se tornamais sério quando se coloca em dis-cussão o valor de um eventual fun-do de comércio (goodwill). É bas-

tante fácil entender que, para a fa-mília empresária, especialmentepara o seu fundador, a sua empresaterá sempre um valor muito especí-fico, algo que a distingue de qual-quer outra: afinal, com muita fre-qüência, o próprio nome da empre-sa é dado a ela pela família, e o pres-tígio econômico e social da famíliaé dado a ela pela empresa. Com cer-teza, porém, negociadores e execu-tivos profissionais, representando osinteresses de uma empresa multina-cional, não serão comovidos pelossentimentos da família que se sentaao outro extremo da mesa para ne-gociar, nem sempre tendo o bomsenso de fazer-se representar tam-bém por negociadores profissionais.

Vencida a primeira etapa, definin-do-se um valor para o negócio, se-gue-se um momento constrangedor:os números só serão definitivos de-pois de feito um trabalho muito cui-dadoso de auditoria (dull dilligence).Para a empresa familiar, será umaexperiência sempre dolorida, impli-cando a intromissão de homens des-conhecidos naquilo que foi sempre

identificado como privativo famili-ar, algo como entregar a um policialos velhos álbuns de fotografias dafamília para que ele identifique paise avós, revolvendo-se ossadas e his-tórias nem sempre edificantes.

Finalmente, mas não o mais fá-cil para a família proprietária, serãoredigidos os documentos que darãoforma jurídica à associação, quan-do se definem pontos extremamen-te estratégicos, tais como: decisõesque exigirão quorum qualificado;política de distribuição de lucros;composição dos órgãos de direção;e estabelecimento do “direito de pre-ferência” e do “direito de saída”. To-dos eles, e ainda mais outros quepoderiam ser lembrados, implicampenosas renúncias a serem feitaspela família, que teria tido sempreo poder absoluto.

Com certeza, em quase todas assituações concretas, a associaçãoenvolve uma grande negociação,que é feita entre partes com podereseconômicos significativamente dife-rentes. Por isso mesmo, o que temocorrido durante a última década,desde que se iniciou a “globaliza-ção”, vem sendo muito menos umprocesso de associações estratégicase muito mais o de compra da em-presa familiar nacional pela multi-nacional feita num único momentoou então num processo que compor-ta diversas etapas.

Finalmente, e ainda quando sepensa sobre os momentos de transi-ção que são experimentados pelaempresa familiar, resta lembraraquele que é exatamente o maisenfatizado e estudado: a passagemdo comando da empresa, especial-mente quando ela envolve o seu fun-dador. Com relação a essa passagem,devem ser propostas pelo menos trêsconsiderações.

Em primeiro lugar, é inevitávelque, na empresa familiar brasileira,o processo sucessório seja, aindaque em graus diferentes, orientadopor uma cultura que a configurou

Boas escolas de administração, consultorescompetentes, disponibilidade de literatura ede informações asseguram à empresa familiara possibilidade de formar uma competênciaintelectual adequada às suas necessidades.

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como patriarcal e patronal, o queleva ao privilégio do filho homemprimogênito como sendo o sucessornecessário. Além deste, existirãoainda outros comportamentos, pres-supostos como os melhores, que de-vem orientar as sucessões, numasegunda, terceira ou em outras ge-rações. O que não pode ser esqueci-do, porém, é que a família, comoinstituição, experimentou mudançasprofundas, que devem ser compre-endidas em função de uma “revolu-ção das individualidades” ocorridadurante a segunda metade deste sé-culo e que está dando a cada mem-bro da família uma liberdade, emrelação a ela mesma, que é inéditano mundo moderno ocidental. Comisso, tanto o casamento deixa de seruma instituição perene, como as re-lações entre pais e filhos transfor-mam-se, deixando de existir a ve-lha patria potestas e o antigo temorreverencial. E é assim que a empre-sa familiar, no Brasil, da mesma for-ma que no resto do mundo, tem aenfrentar o desafio de ajustar-se auma nova família, organizada demo-craticamente, justificável enquantoos seus membros entendam que elalhes dá satisfação.

Em segundo lugar, deve ser lem-brado que a família é um pequenogrupo social, no qual são desenvol-vidos os sentimentos mais fortes quepossam marcar um ser humano: amo-res e ódios; as empatias e as repug-nâncias criadas em aparente subjeti-vidade; a proximidade e a rejeição; aproteção castradora e a indiferença;e, muito especialmente, a inveja.Esse mundo familiar, povoado porforças ocultas e alguns fantasmas,pode ser transferido para o mundo daempresa, quando inevitavelmente osresultados serão lamentáveis. Do en-contro entre as duas esferas, a do pri-vado (a família) e a do público (aempresa), surgem algumas relaçõesque são particularmente perigosas:entre irmãos e/ou primos, no momen-to da sucessão; entre sogro e genro;

entre avô e neto; mas nenhuma maisperigosa do que a relação entre a so-gra e a nora, mulher do filho suces-sor. Os jogos do inconsciente da fa-mília poderão não prejudicar a suaempresa enquanto ela estiver sob ocomando de um patriarca, que usa do

seu poder absoluto não para solucio-nar os conflitos, mas para discipliná-los. Ou enquanto eles puderem defato ser solucionados ou ao menosorientados pelos membros da famí-lia, com ou sem o apoio de especia-listas no assunto. Deve-se admitir,porém, que esse problema diz respei-to a toda empresa familiar, e não ape-nas às brasileiras.

Em terceiro lugar, não há comoadmitir que, na grande maioria doscasos, os empresários conseguemser, de forma aparentemente incoe-rente, competentemente equivoca-dos na formação dos filhos suces-sores. Aqui, sem dúvida, o caso bra-sileiro, é exemplar. Numa socieda-de marcada pelas mais profundasdesigualdades sociais imagináveise até inimagináveis, esse filho temsido educado para exercer o podersem limites. Desde a infância, eleé educado nas melhores escolas,que se destinam aos filhos das eli-tes, num processo que tem continui-dade na universidade. Ao mesmotempo, ele freqüenta os clubes deelite e desenvolve uma rede de re-lações pessoais úteis. Uma vez ter-minado o curso universitário, elepoderá obter o seu grau de mestra-do ou doutorado numa das institui-ções de ensino de maior renome in-ternacional. Conhecerá o mundo

com muitas viagens e dominará al-guns idiomas. Se não bastasse, po-derá ser um excelente atleta, prati-cando modalidades esportivas pre-ferencialmente exóticas. Enfim, ofilho sucessor é formado de manei-ra a ser sadio, simpático, bem in-

formado, bem relacionado eautoconfiante. Ao assumir uma po-sição de comando na empresa dafamília, ele penetra em um mundopovoado por seres que ele jamaisconheceu e enfrenta problemas quenão podem ter a solução que maislhe convém, apenas por um ato devontade sua. Com certeza, esse nãoé o maior problema que desafia aempresa familiar brasileira, mas,nos tempos mais recentes, tem sidoa causa mais freqüente dos seus fra-cassos. De qualquer forma, poderácom algum otimismo ser entendi-do como resultado de um modismo,passageiro como todos...

Identificou-se, inicialmente,como segundo traço marcante naempresa familiar brasileira, o patro-nato político. Com efeito, praticadodurante todo o Império, quando seformou a elite dos “barões do café”,prosseguiu durante a Primeira Repú-blica, sustentado pelo primeiro Con-vênio de Taubaté, de 1905, tendopassado pela Segunda República,pelo Estado Novo, conseguindo es-tar sempre vivo. Quando o “nacio-nalismo desenvolvimentista”, a par-tir dos anos 50, foi adotado comopolítica do Estado Nacional, o patro-nato político soube aproveitar-se dosfinanciamentos subsidiados e dispo-níveis nos Bancos de Desenvolvi-

É sabido que a empresa familiar no Brasil enfrentatipicamente problemas em sua capitalizaçãoadequada e em sua capacidade de sustentar umprojeto mais pesado de investimento.

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mento, das tarifas protecionistas, quecriavam reservas de mercado, tantoquanto dos incentivos fiscais, quepretenderam, em tese, contemplaráreas especialmente empobrecidas,como o Nordeste e o Norte, ou ativi-dades estratégicas, como a pesca ouo turismo. O patronato político so-breviveu até mesmo durante o longoperíodo autoritário, não sendo des-cabido entender que realmente o au-toritarismo foi imposto para que elecontinuasse a ser praticado.

A prática do patronato, assegu-rada pelo Estado protetor e mantidapor tanto tempo, provocou, além doestímulo à incompetência, uma ou-tra grande distorção. O empresário,acostumado-se a ter o Estado a ser-vi-lo, nunca entendeu que seria ne-cessário e legítimo assumir encar-gos impostos por ele, o Estado ser-vidor, tanto os impostos, especial-mente o tributo sobre rendimentos,como as obrigações trabalhistas ouainda o respeito ao meio ambiente.Por esse motivo, as empresas fami-liares no Brasil sempre se sentiramtranqüilas e mesmo justificáveisquando adotavam procedimentosque são eufemisticamente rotuladoscom o nome de “informalismo”.

O neoliberalismo e a “globaliza-ção” fizeram com que esse quadrofosse completamente modificado, oque aconteceu desde os primeirosanos da década de 90. Sem que ti-vesse havido um período de transi-ção, a empresa nacional, e especial-mente a familiar, foi obrigada a serimediatamente eficiente, criandocondições para sobreviver nummundo de competição terrível. Atéo presente, com certeza, os resulta-dos foram totalmente negativos. Se-tores inteiros, que historicamenteforam espaços ocupados por empre-sas familiares, foram rapidamenteassumidos e controlados por gran-des empresas multinacionais, o queaconteceu, como um dos maioresexemplos disso, com a chamada in-dústria de autopeças.

Uma análise dos pontos fracos daempresa familiar no Brasil, arrema-tada com a observação de que elavive um momento extremamente di-fícil, não pretende de nenhuma ma-neira sugerir a sua inviabilidade nostempos atuais. Nem pretende que oúnico caminho possível seja aqueleque tem sido apontado com mais fre-qüência, quando a família estaria dei-xando de ser empresária para tornar-se acionista. Essa proposta seria ar-riscada, se não fosse antes inútil, namedida em que simplesmente nuncahaverá nenhuma força capaz de im-pedir a força empreendedora dos in-divíduos que se tornam empresáriose querem ter a sua empresa.

É verdade que a empresa famili-ar, não só no Brasil, sempre enfren-tou desafios que levam constante-mente a grandes distorções. Mas éverdade também que existem atual-mente recursos, proporcionados porestudos e pesquisas, que permitemvencer esses desafios. Por outrolado, mas obrigando ao aperfeiçoa-mento, a inviabilidade histórica deconservação do patronato político,desaguando na criação de uma situ-ação de concorrência implacável,transforma a competência em con-dição de sobrevivência para a em-presa familiar.

Por outro lado, a família nucle-ar, que desde o século passado éaquela que se encontra nas origensda empresa familiar, passa por trans-formações imensas. Não será desca-bido acreditar que uma configuraçãofamiliar, menos castradora queaquela que sobreviveu por pelo me-nos um século e meio, poderá abrirespaços para relações familiaresmais equilibradas, reduzindo-se osriscos de as forças inconscientes,que movem as pessoas no âmbito doprivado, penetrarem na esfera daempresa. Mais ainda, e na medidaem que uma nova família pretendeestar orientada pelo respeito às in-dividualidades de seus membros,alguns conceitos e normas, como o

de propriedade familiar e herança,deverão ser revistos. O individualis-mo que se pleiteia agora, manten-do-se uma postura de coerência,aponta para a herança e sucessãodefinidas por ato de vontade indivi-dual, isto é, o testamento, deixandode ter sentido a figura do herdeironecessário e todo o conjunto de re-gras legais que tornam obrigatóriosdeterminados procedimentos.

Também é particularmente ani-mador para a empresa familiar que,com toda certeza, as previsões deSchumpeter e de Peter Drucker nãose confirmaram. A grande corpora-ção, organizada cientificamente,passando a ser identificada como“mecanicista”, teve as virtudes dopassado transformadas em vícios: adepartamentalização rígida, a espe-cialização, a burocratização, o pla-nejamento rígido, tudo isso impedea criatividade, a flexibilidade e a ca-pacidade de adaptação a transforma-ções. Necessariamente, no outro ex-tremo, muitos dos antigos vícios edas aparentes incoerências da em-presa familiar, desde que canaliza-dos competentemente, transformam-se em virtudes, as mais desejadas nomomento atual.

Por último, mas não menos im-portante, é possível pensar que oempresário e a sua empresa famili-ar virão a ser a sustentação de umliberalismo capitalista amadurecido,em oposição ao neoliberalismo dofim do século, que empobrece ab-surdamente o modelo capitalistaquando passa a reconhecer no lucroo seu único objetivo, a ser alcança-do mesmo que ao preço do avilta-mento da dignidade humana. �

J. Sérgio R. C. Gonçalves éAdvogado, Filósofo, Diretor

Administrativo de empresa no setor deautopeças e Consultor.

E-mail: [email protected]

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