as elites orgânicas transnacionais diante da crise
TRANSCRIPT
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Universidade Federal Fluminense (UFF)
Centro de Estudos Gerais (CEG)
Instituto de Filosofia e Cincias Humanas (IFCH)
Programa de Ps-Graduao em Histria (PPGH)
As elites orgnicas transnacionais diante da crise: os
primrdios da Comisso Trilateral (1973-1979)
Rejane Carolina Hoeveler
Dissertao apresentada ao Programa de
Ps- Graduao em Histria da Universidade
Federal Fluminense, como requisito para obteno
do ttulo de Mestre.
Niteri
Maro de 2015
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As elites orgnicas transnacionais diante da crise: os
primrdios da Comisso Trilateral (1973-1979)
Rejane Carolina Hoeveler
Dissertao apresentada ao Programa de
Ps- Graduao em Histria da Universidade
Federal Fluminense, como requisito para obteno
do ttulo de Mestre.
Orientador(a): Virgnia Fontes
Niteri
Maro de 2015
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Folha de Aprovao
As elites orgnicas transnacionais diante da crise: uma
histria dos primrdios da Comisso Trilateral (1973-1979)
Rejane Carolina Hoeveler
Dissertao apresentada ao Programa de
Ps- Graduao em Histria da Universidade
Federal Fluminense, como requisito para obteno
do ttulo de Mestre.
Orientadora: Virgnia Fontes
BANCA EXAMINADORA
Prof Dr Virgnia Fontes (UFF/EPSJV-Fiocruz)
________________________________________________________________
Prof. Dr. Renato Lus do Couto Neto e Lemos (UFRJ)
_____________________________________________________________________
Prof. Dr. Joo Mrcio Mendes Pereira (UFRRJ)
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II
Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat
H695 Hoeveler, Rejane Carolina.
As elites orgnicas transnacionais diante da crise : os primrdios da
Comisso Trilateral (1973-1979) / Rejane Carolina Hoeveler. 2015.
420 f.; il.
Orientadora: Virgnia Maria Fontes.
Dissertao (Mestrado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de
Cincias Humanas e Filosofia, Departamento de Histria, 2015.
Bibliografia: f. 391-403.
1. Comisso Trilateral. 2. Relaes exteriores; aspecto histrico. 3.
Poltica internacional. I. Fontes, Virgnia Maria. II. Universidade Federal
Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. III. Ttulo.
CDD 327
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III
Agradecimentos
Agradeo minha orientadora, professora Virgnia Fontes, que esteve presente
em todos os momentos da realizao desta pesquisa com enorme ateno, ao professor
Renato Lemos, que acompanha minha trajetria desde a graduao, e cujo apoio e
influncia foi fundamental ao longo do trabalho, e ao professor Joo Mrcio Mendes
Pereira, que gentilmente participou da banca de defesa. Um agradecimento muito
especial aos professores Marcelo Carcanholo e Ana Saggioro Garcia, que participaram
da banca de qualificao e contriburam com valiosas crticas e sugestes.
Correndo enorme risco de cometer injustias, quero agradecer aos inmeros
colegas com os quais, ao longo destes dois anos de intensa pesquisa, compartilhei
reflexes. So eles os colegas do Coletivo Mais Verdade, Elaine Bortone, Luiz Mrio
Behnken, Martina Spohr, Pedro Campos, Carlos Tautz, Joo Roberto Lopes Pinto,
Mariana Vantine, Karina Melo, Camila Bockhorny. Os amigos e camaradas Miguel
Borba de S, Marcos Arruda, Tiago Francisco Monteiro, lvaro Bianchi e Rodrigo
Duarte Fernandes dos Passos, alm de tudo, pelos preciosos ttulos bibliogrficos a mim
gentilmente disponibilizados.
Aos amigos e professores Tatiana Poggi, Felipe Abranches Demier e Gilberto
Calil pelas longas conversas e sugestes. Os colegas do Grupo de Trabalhos e
Orientao (GTO), com quem aprendi e troquei enormemente nesses dois anos: Andr
Guiot, Thiago Marques Ribeiro, Joo Paulo Oliveira Moreira, Hugo Belluco, Danilo
Spinola Caruso, Marcio Lauria Monteiro, entre muitos outros, e tambm os colegas do
grupo de estudos Mundos do Trabalho, do Rio de Janeiro. Os colegas do NIEP-Marx da
UFF, admirveis professores e estudiosos. Os amigos de longussima data Marlia El-
kaddoum Trajtenberg, Felipe Almeida, Miguel Rgo, talo Rocha, Anderson Tavares,
Valrio Paiva, Claudio Beserra de Vasconcelos. Muitos amigos cujo apoio foi
absolutamente fundamental nessa difcil empreitada.
Por fim, um agradecimento carinhoso minha famlia e ao Demian Bezerra de
Melo.
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IV
As elites orgnicas transnacionais diante da crise: uma histria dos
primrdios da Comisso Trilateral (1973-1979)
Rejane Carolina Hoeveler
Resumo
O tema desta dissertao a histria dos primeiros anos de existncia da Comisso
Trilateral, entidade privada fundada em 1973 que engloba representantes do mundo
empresarial, poltico e acadmico dos Estados Unidos, Europa e Japo, constituindo-se
como parte daquilo que Ren Dreifuss chamou de elites orgnicas transnacionais. A
criao da comisso foi fruto do engajamento empresarial de fins dos anos 1960 e incio
dos anos 1970, perodo convulsionado por crises de diversas ordens (econmica,
poltica e social) nos pases capitalistas centrais. O trabalho visa entender como, de sua
fundao at 1979, a comisso tratou de temas candentes como a crise do sistema
monetrio internacional, o primeiro choque do petrleo, o funcionamento das
instituies internacionais e aquilo que a comisso caracterizou como crise da
democracia.
Palavras-chave: Comisso Trilateral; elites orgnicas; trilateralismo
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V
The transnational organic elites before the crisis: a history of the
early years of the Trilateral Commission (1973-1979)
Rejane Carolina Hoeveler
Abstract
The theme of this work is the story of the early years of the Trilateral Commission, a
private entity founded in 1973 that includes representatives of business, political and
academic in the United States, Europe and Japan, establishing itself as part of what
Ren Dreifuss called "transnational organic elites". The creation of the commission was
the result of corporate engagement of the late 1960s and early 1970s, period convulsed
by crises of various orders (economic, political and social) in central capitalist countries.
The study aims to understand how, since its foundation until 1979, the commission dealt
with burning issues such as the international monetary crisis, the first "shock" of oil, the
functioning of international institutions and what the commission characterized as
"crisis of democracy ".
Key words: Trilateral Comissiom; organic elites; trilateralism
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VI
Sumrio
Introduo......................................................................................................................01
Comeando do comeo: quem a Comisso Trilateral?................................................06
O que a Comisso Trilateral e o trilateralismo............................................................09
O que pretende este trabalho...........................................................................................12
Periodizao....................................................................................................................13
Fontes..............................................................................................................................14
Diviso dos captulos.......................................................................................................15
Palavras iniciais..............................................................................................................17
Cap. 1 Imperialismo, Estado e elite orgnica: um debate
introdutrio....................................................................................................................18
1. O sistema internacional na perspectiva liberal clssica.......................................20
2. As perspectivas marxistas em relao ao sistema internacional: o imperialismo e
suas metamorfoses...............................................................................................28
2.1. O carter internacional do capitalismo.......................................................28
2.2. O debate clssico do imperialismo e suas reverberaes............................31
2.3. O imperialismo contemporneo....................................................................42
3. Antonio Gramsci e as contribuies da escola neogramsciana..........................48
3.1. A escola neogramsciana em debate.........................................................52
3.2. Sociedade civil transnacional, internacionalizao do Estado e classe
capitalista transnacional...............................................................................................60
4. A matriz poulantziana: a transformao contempornea do Estado-
nao................................................................................................................................68
4.1. A teoria do Estado no marxismo...................................................................68
4.2. Poulantzas: internacionalizao do capital e mudanas do
Estado..................................................................................................................72
5. O conceito de elite orgnica de Ren Dreifuss..................................................78
5.1. A obra de Ren Dreifuss...............................................................................79
5.2. Elite orgnica, frente mvel e Estado-maior................................................85
5.3. Os usos do conceito de elite..........................................................................88
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VII
Captulo 2 - Elites orgnicas transnacionais e suas entidades: antecedentes da
Comisso Trilateral.......................................................................................................96
1. As primeiras elites orgnicas transnacionais.......................................................97
1.1. O Committee for Economic Development (CED)...97
1.2. O Bilderberg.................................................................................................101
1.3. O Political and Economic Planning (PEP) britnico......102
1.4. A rede CED-PEP-Cepes e seus congneres.................................................105
1.4.1. Congneres latino-americanas........................................................112
2. O Council of Foreign Relations e seu Projeto para os anos 1980..................115
2.1. O modelo do CFR e suas transformaes.............................................116
2.2. A guerra do Vietn e as mudanas no CFR..........................................119
2.3. O Projeto para os anos 1980 do CFR...............................................126
3. A renovao do engajamento corporativo no incio dos anos 1970.................130
3.1. A ideologia da obsolescncia do Estado-Nao...................................137
Captulo 3 - O que o trilateralismo e a Comisso Trilateral: conceitos fundadores
e aspectos organizativos..............................................................................................142
1. Os conceitos fundadores do pensamento trilateralista......................................144
1.1. O mundo na era tecnetrnica de Z. Brzezinski..................................146
1.1.1. Na crise, a transio entre duas eras........................................149
1.1.2. A era da crena voltil, ou o fim da ideologia..........................155
1.1.3. A crtica ao ps-modernismo e Nova Esquerda..........................157
1.1.4. A crise da democracia liberal........................................................162
1.1.5. Os guetos locais, os guetos globais................................................165
1.1.6. Uma comunidade das naes desenvolvidas.............................169
1.2. O conceito de interdependncia e o trilateralismo....................................172
1.2.1. A interdependncia complexa e as instituies internacionais.......178
1.2.2. A sntese trilateralista..................................................................184
2. O que a Comisso Trilateral: membros, funcionamento e
estrutura...................................................................................................185
2.1. Outras influncias na formao da Comisso Trilateral......................185
2.1.1. A Brookings Institution e os Tripartite Dialogues..............................186
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VIII
2.2. Membros.....................................................................................................188
2.2.1. Intelectuais acadmicos..................................................................189
2.3. Coordenao................................................................................................191
2.4. James E. Carter e a Comisso Trilateral.....................................................191
2.5. O conspiracionismo e a oposio de direita................................................196
2.6. Aspectos formais da comisso......................................................................200
2.6.1. Programas......................................................................................200
2.6.2. Durao e financiamento...............................................................201
2.7. Pequena cronologia das origens da CT......................................................202
Captulo 4 A Trilateral e as facetas da crise econmica nos anos
1970...............................................................................................................................180
1. A Trilateral e a crise do sistema monetrio
internacional......................................................................................................182
1.1. A crise cclica do capitalismo e o dinheiro a partir de Marx: breve
digresso terica.........................................................................................182
1.1.1. A inconversibilidade do dlar em debate........................................185
1.2. As formas de manifestao da crise econmica dos anos 1960-1970...189
1.2.1 O impasse diante da crise do sistema monetrio internacional......193
2. A proposta trilateralista de reforma do sistema monetrio
internacional......................................................................................................199
2.1. Ajuste das balanas de pagamentos e convertibilidade........................203
2.2. Balano e perspectivas..........................................................................207
2.3. O trilateralismo e o FMI: o caso da Jamaica.......................................210
2.4. A Trilateral, o Banco Mundial e a assistncia aos pases em
desenvolvimento.........................................................................................213
2.4.1. Trabalhando em interesses comuns.............................................219
2.4.2. Balano e perspectivas: 1976..........................................................227
3. A OPEP e o choque do petrleo de 1973.......................................................230
3.1. A poltica do petrleo e o Terceiro Mundo............................................231
3.2. Unindo o mundo trilateral numa poltica energtica comum: a proposta
trilateralista diante da crise energtica.......................................................237
3.3. Reacomodando o mercado de commodities..........................................241
-
IX
4. A Trilateral e a crise alimentar dos anos 1970...............................................246
4.1. Um programa para dobrar a produo de arroz na sia atravs da
irrigao......................................................................................................251
4.1.2. O debate sobre o programa trilateralista contra a fome...................254
5. Concluso: repondo as contradies capitalistas em outro
patamar?.............................................................................................................256
Captulo 5 A Trilateral e a democracia: polticas de restrio e exportao......260
1. A crise do Estado e as transformaes no Estado capitalista nos anos 1960-
70.......................................................................................................................263
2. A Trilateral, a inflao e a democracia..............................................................267
3. A crise da democracia: democracia versus governabilidade.............................269
3.1. O pessimismo em relao democracia................................................272
3.2. As causas da crise da democracia.........................................................276
3.3. O colapso das instituies e os intelectuais engajados.........................284
3.4. Recomendaes aos pases trilaterais...................................................287
3.5. O debate dentro da CT sobre o Crisis of Democracy............................289
3.5.1. Os comentrios de Ralf Dahrendorf............................................289
3.5.2. Controvrsia prolongada.............................................................292
4. O trilateralismo e a democracia no Terceiro Mundo...............................................300
4.1. A doutrina gradualista da CT e as transies democrticas no Terceiro
Mundo........................................................................................................302
4.2. O debate sobre a campanha de direitos humanos: duas abordagens...309
4.3. A doutrina gradualista da CT e as transies democrticas no Terceiro
Mundo........................................................................................................316
4.3.1. O caso da interveno de Huntington no debate sobre a
descompresso controlada no Brasil.......................................319
4.3.2 Brzezinski no pas do futuro: 1978................................................324
5. Concluso................................................................................................................327
Captulo 6 A Comisso Trilateral e as instituies internacionais: (re)moldando a
hegemonia.....................................................................................................................332
1. Organizaes internacionais e hegemonia: breve digresso terica..................333
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X
2. A crise do sistema internacional: diagnstico e terapia trilateralista para as
instituies internacionais..................................................................................339
2.1. Uma proposta ampla de reforma das instituies internacionais.........341
2.2. A despolitizao das instituies internacionais...................................342
2.3. Newcomers, dropouts e liderana compartilhada.................................344
2.4. reas de atuao....................................................................................347
2.4.1. O escndalo da Lockheed e a proposta de uma instituio para auto-
regular as multinacionais................................................................349
2.5. Um sistema preventivo de consultas internacionais..............................352
2.6. A administrao da interdependncia global num novo sistema
internacional.............................................................................................354
2.7. Gradualismo e descentralizao...........................................................359
2.8. Desacordos em relao s propostas....................................................361
3. A Trilateral, o mundo socialista e a segurana internacional no fim dos anos
1970: duas abordagens.......................................................................................363
3.1. Unilateralismo disfarado de trilateralismo? O debate sobre a estratgia
trilateralista para o Leste..........................................................................367
3.2. A discusso sobre a reviso nas relaes com o bloco socialista: um
ponto de inflexo dentro da comisso................................................,.....374
3.3. Terceira fase: vitria da posio pela nova guerra fria?.....................375
4. Consideraes finais..........................................................................................377
Consideraes finais....................................................................................................379
Bibliografia...................................................................................................................391
Apndices......................................................................................................................404
-
1
Introduo
As informaes sobre a crtica dos excessos anti-democrticos de determinadas elites; as
intervenes rudemente imperialistas nos pases do Terceiro Mundo; e, ainda mais, a
secundarizao e a postergao que afetam trs quartos da humanidade tudo isso pode ser
introduzido em discursos denunciatrios sem tocar, nem sequer tangencialmente, nas leis
tendenciais que regem, com uma lgica frrea e objetiva, o sistema capitalista de sempre e, com
novas leis e nova lgica, o capitalismo transnacional das grandes corporaes. Isso possvel e
Carter o fez, com mediana genialidade, durante sua campanha eleitoral. F-lo tambm e mais
discretamente, por no precisar se eleger, a Comisso Trilateral. Os trilateralistas (entre eles [James
E.] Carter), conscientes da profunda necessidade de administrao da crise que debilita o
capitalismo, adotam uma linguagem que postula revises profundas. Em certos momentos, essa
linguagem no s ousadamente critica, como tambm apresenta deslegitimaes fugazes do
sistema visando construir uma ideologia plausvel que legitime o reordenamento do mesmo.1
O tema desta dissertao a histria dos primrdios da Comisso Trilateral, entidade
privada fundada em 1973 que constituiu a primeira do gnero a envolver nomes de peso do
mundo poltico, empresarial e acadmico dos EUA, da Europa Ocidental e do Japo (da os trs
lados em seu nome). A iniciativa foi lanada nos Estados Unidos pelo magnata David Rockefeller
e pelo estrategista Zbigniew Brzezinski, mas contou com os esforos de um conjunto
relativamente heterogneo de intelectuais acadmicos, polticos e grandes empresrios unidos, a
princpio, sob a mesma bandeira, o chamado trilateralismo. Tratava-se de prover uma
alternativa estratgica para um mundo que era por eles visto como convulsionado por crises de
diversas ordens e pelo fim da hegemonia que os Estados Unidos conseguiram impor
internacionalmente aps a Segunda Guerra Mundial, crise que em sua viso exigia um
alinhamento comum entre os pases centrais.
Para entender sua histria necessrio situ-la em seu contexto originrio, o incio dos
anos 1970, perodo que viveu sob a ressaca daquela dcada que parecia que no iria ter fim.
Segundo o terico literrio Fredric Jameson, os anos 1960 comeam com a Revoluo Cubana
(1959), sob a influncia da descolonizao da frica inglesa e francesa, e com os primeiros sit-
ins organizados pelo movimento negro nos EUA. Comeando, deste modo, um pouco antes de
1961, a dcada se encerra com outra srie de eventos que atingem seu pice em 1973, ano em que
fundada a Comisso Trilateral.2
Nos EUA, o fim do alistamento obrigatrio e o incio da retirada das tropas do Vietn, em
1973, significaram o fim do maior movimento anti-belicista e de solidariedade a um pas de
1 ASSMAN, Hugo. Os trilateralistas sugerem uma chave de leitura deste livro: o terceiro mundo visto como
ameaa; SANTOS, Theotnio dos; CHOMSKY, Noam (orgs.). A Trilateral nova fase do capitalismo mundial.
Petrpolis: Vozes, 1979. p.8. 2 Assim como Antonio Gramsci e Eric Hobsbawm situaram o Sculo XIX entre a Revoluo Americana at a
ecloso da Primeira Guerra Mundial, numa escala de tempo menor, nos pareceu adequada a periodizao para os
anos 1960 proposta por Jamenson. Ver JAMESON, Fredric. Periodizando os anos 60. In. HOLLANDA, Helosa
Buarque de (org.). Ps-modernismo e poltica. Rio de Janeiro: Rocco, 1992, p.81-126.
-
2
Terceiro Mundo que j existira naquele pas; ao mesmo tempo em que a chamada Nova Esquerda
j dava sinais de crise desde a dissoluo da Students for a Democratic Society, em 1969. Na
Europa, a expanso do chamado eurocomunismo parecia vir para enterrar de vez as formas de
atividade poltica associadas ao Maio de 68, cujo significado ficaria em disputa por muito tempo.3
Concomitantemente, assinala Jameson, os intelectuais do establishment, particularmente
nos EUA, comeam a sair de uma postura um tanto atemorizada e passariam a erguer suas vozes
contra o barbarismo poltico e cultural dos anos 1960 que, mesmo com a entrada da nova
dcada, pareciam no ter terminado. Entretanto, continua Jameson, em julho de 1973,
certos intelectuais de um tipo bem diverso, representando vrias formas concretas de poder
poltico e econmico, comearo a repensar o fracasso do Vietn em termos de uma nova estratgia
global para a afirmao dos interesses dos Estados Unidos e do Primeiro Mundo. O
estabelecimento da Comisso Trilateral, por eles promovido, ser pelo menos um marco
significativo na recuperao de um impulso pelo que deve ser chamado de a classe dirigente.4
bastante recorrente entre os analistas assinalar o curto perodo entre fins da dcada de
1960 e incio de 1970 como um perodo central para a compreenso de uma srie de
caractersticas do capitalismo contemporneo, nas mais diversas searas: economia, poltica,
cultura, ideologia; e as perturbaes econmicas que se manifestam com fora em 1973 como
comparveis s crises de 1873 e 1929, embora com caractersticas muito diferentes.5
Os movimentos organizados e os grupos de resistncia armada cresceriam? A crise
econmica passaria ou se aprofundaria? Haveria petrleo suficiente para a produo industrial
nos nveis que os pases avanados demandavam? As relaes com o chamado bloco comunista
esfriariam mais ou recrudesceriam? E as relaes entre os principais pases capitalistas, poderiam
evoluir para uma situao de conflito aberto? O mundo sobreviveria ameaa nuclear? Estas
eram apenas algumas das questes que perturbavam qualquer noo de estabilidade. Acima de
tudo, ainda havia a prpria noo de que o mundo poderia ser outro, coisa que aparentemente
ficaria soterrada com a avalanche neoliberal a partir dos anos 1980 quando, como bem
ilustraram o mesmo Jameson e Slavoj iek no incio dos anos 1990, passou a ser mais fcil
imaginar um mundo ps-humano do que um mundo no regido pela mercadoria.6
3 Idem, p.120. 4 Idem, p.120. 5 Eric Hobsbawm, por exemplo, em sua histria do sculo XX localizou justamente ai o fim da Era de Ouro e o
incio do Desmoronamento. HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos. O breve sculo XX (1914-1991). So Paulo:
Companhia das Letras, 1996. 6 Parece-nos mais fcil hoje imaginar a completa deteriorao da terra e da natureza do que a quebra do capitalismo
tardio, mesmo que isso se deva a alguma debilidade de nossas imaginaes. JAMESON, Fredric. Antinomias da
ps-modernidade. In. A virada cultural. Reflexes sobre o ps-modernismo. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,
2006 [1991], p.91. IEK, Slavoj. O espectro da ideologia (Introduo). In. IEK, Slavoj (org.). O mapa da
ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p.7.
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3
Alguns autores, como A. Argumedo, argumentam que a coincidncia entre as mudanas
no plano internacional e a crise econmico-financeira assinala o que ela chamou de crise
epocal, que inclui tanto o mundo ocidental quanto o mundo socialista antagnico, e cuja
resoluo assinalar, sem dvida, uma etapa crucial no devir humano.7
A reorganizao do capitalismo em uma situao de crise como aquela dos anos
1960/1970, que no se constitua apenas de uma crise econmica, mas poltica, ideolgica,
envolvendo a totalidade social, no poderia se basear simplesmente numa adoo de uma nova
poltica econmica. Exigia tambm, e talvez sobretudo, modificaes nas estruturas do Estado, tal
como havia ocorrido na ltima grande depresso (nos anos 1930) em diversas latitudes do
planeta. A preocupao da Trilateral com a evoluo do regime democrtico tanto nos pases
centrais como nos pases perifricos especialmente reveladora de sua conscincia totalizante a
este respeito: no que se refere aos pases centrais, no era possvel superar a crise sem alterar as
estruturas daqueles regimes consolidados no ps-Segunda Guerra. O neoliberalismo, quando da
implantao de suas terapias de choque, sempre exigiu, alis, tal modificao profunda na
estrutura do Estado. No entanto, assinale-se que a Trilateral no se caracterizou especialmente ou
unicamente por ser uma entidade neoliberal, como outras que surgiram nos anos 1970; ao
contrrio, em seus primrdios defendia propostas historicamente keynesianas, como a criao de
um Banco Central Mundial.
importante assinalar, a esta altura, que uma situao de crise no significa paralisia,
esgotamento do capitalismo, tampouco colapso; ao contrrio, pode significar um ponto a partir do
qual as relaes capitalistas se expandem, aprofundando ainda mais seu desenvolvimento
desigual.8 Em segundo lugar, partimos do pressuposto de que, por mais organizadas e poderosas
que sejam as classes capitalistas, elas esto igualmente sujeitas s contradies do capitalismo,
no possuindo nenhum poder especial de se pr acima destas. Ao contrrio, observaremos como
as estratgias mais bem elaboradas daquilo que chamaremos de elite orgnica transnacional se
defrontam permanentemente com resistncias.
No entanto, observamos tambm que as formas de organizao das elites orgnicas
desenvolveram-se, aprofundaram-se, internacionalizaram-se, e procuraram estar altura dos
desafios colocados hegemonia do grande capital. A histria das entidades privadas das elites
7 Crisis em la possibilidad de lograr consenso para um proyecto de desarrollo econmico, social y cultural, que se
manifiesta con incrementada fuerza em el escenario mundial.(...) La formacin misma de la Comissin Trilateral a
comienzos de los aos setenta (...) es expressin de um proyecto que convoca a sus ms lcidos intelectuales
organicos para debatir ls respuestas posibles ante esta situacin critica. ARGUMEDO, Alcira. Los labirintos de la
crisis. America Latina: poder transnacional y comunicaciones. Buenos Aires: Folios Ediciones, 1984. 8 (...) o fato de a lgica capitalista lanar a humanidade em crises sucessivas e cada vez mais profundas no significa
que o capitalismo esteja em processo de recuo ou de estreitamento de suas bases sociais. FONTES, Virgnia. O
Brasil e o capital-imperialismo. Teoria e Histria. Rio de Janeiro: EdUFRJ/Fiocruz, 2010.p.42.
-
4
orgnicas capitalistas comea no incio do sculo XX, e conhece um momento particularmente
frutfero entre meados e fins dos anos 1960 e o incio dos anos 1970. Como assinalamos,
justamente o perodo em que gestada a Comisso Trilateral, a primeira entidade do gnero que
se pretendia, de fato, transnacional.
Outra coisa importante a assinalar aqui que o uso do termo Terceiro Mundo neste
trabalho no tem sentido categorial, terico, mas sim meramente descritivo. Estamos, aqui,
plenamente de acordo com Aijaz Ahmad quando este aponta a mistificao existente na teoria
dos trs mundos em todas as suas verses.9 precisamente este ponto, alis, que nos
diferenciamos de parte da literatura que estudou a Trilateral, de um ponto de vista que ficou
conhecido como terceiro-mundista.
Como explica Luis Maira, o primeiro impulso do interesse de cientistas sociais acerca da
Comisso Trilateral refluiu com o desgaste do governo Carter, o governo que representou a
chegada ao poder da plataforma trilateralista. A derrota dos democratas nas eleies de 1980
parecia enterrar de vez as pretenses trilateralistas, o que gerou uma desvalorizao quase
completa da importncia da Comisso Trilateral, dando-se quase por certo que suas iniciativas
haviam experimentado uma perda de significado definitiva.10 Raciocinar desta maneira, porm,
afirma Maira, seria cometer um grave erro. O verdadeiro significado da estratgia trilateral sua
convocatria aos setores mais eficientes das burguesias nacionais dos pases do centro para somar
esforos na definio e aplicao de polticas comuns que sirvam a seus interesses
fundamentais.11 Da que o seguimento de seu estudo, alerta o autor, deve prosseguir com uma
alta prioridade. Outro motivo, acrescentaramos, que o tema no fique nas mos da prolfera
literatura conspiracionista, que propaga uma viso de mundo explicitamente conservadora.
Felizmente, para alm da literatura conspiracionista, cujas bases sociais, polticas e
ideolgicas sero mencionadas no captulo 3 deste trabalho, alguns estudos profundos j foram
feitos sobre a Trilateral. Em 1979, a primeira obra sobre a Comisso Trilateral publicada no
Brasil. Voltando-se para entender criticamente o fenmeno do governo Carter em um continente
9 Uma formao ideolgica que redefiniu o anti-imperialismo no como um projeto socialista a ser realizado pelos
movimentos de massa das classes populares, mas como um projeto desenvolvimentista a ser realizado pelos Estados
mais fracos das burguesias nacionais durante sua competio colaborativa com os Estados mais poderosos do capital
avanado serviu ao interesse tanto de tornar os movimentos de massa subservientes ao Estado burgus nacional
quanto de fortalecer as posies de negociao daquele tipo de Estado em relao aos Estados e entidades
corporativas do capital avanado. Foi essa competio setorial entre capitais atrasados e avanados, realizada
diferencialmente no mundo, devido em parte prpria histria colonial, que era agora advogada como o cerne de
lutas anti-imperialistas, enquanto o Estado burgus nacional era ele prprio reconhecido como representante das
massas. AHMAD, Aijaz. Teoria dos trs mundos: fim de um debate. In. Linhagens do presente. Ensaios. So
Paulo: Boitempo, 2002. p.173. 10 MAIRA, Luis. La vigencia estrategica del proyeto trilateral y las tendencias a la internacionalizacion politica de
America Latina. In._________. America Latina y La crisis de hegemonia norte-americana. Lima, Peru:
Desco/Centro de Estudios y promocion del desarollo, 1982. p.195. 11 Idem, p.195.
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marcado por ditaduras militares, o livro, fruto de uma iniciativa de intelectuais latino-americanos
e colaboradores estadounidenses, trazia uma perspectiva a partir do Terceiro Mundo, focando nas
modificaes que uma plataforma trilateralista traria para o continente.12 Um ano depois, nos
EUA, o segundo livro a condensar diversas contribuies sobre o tema foi o da cientista poltica
americana Holly Sklar, publicado em 1980.13 O livro de Sklar, reunindo numerosos autores, a
maioria estadounidenses, e diversas temticas relacionadas ao trilateralismo, era bastante
heterogneo do ponto de vista terico, assim como o primeiro. O terceiro e ltimo grande estudo
sobre a Comisso foi feito por Stephen Gill, autor do campo das Relaes Internacionais que,
juntamente com outros intelectuais que, seguindo as proposies de Robert Cox, trouxe as idias
de Antonio Gramsci para suas anlises. Publicada exatamente uma dcada depois do livro de
Sklar, a obra de Gill sobre a Comisso Trilateral focava na discusso sobre a hegemonia
americana.14 Muitos artigos importantes a que nos referiremos ao longo do texto foram
produzidos desde ento, porm nenhum outro estudo de flego foi levado a cabo.
Comeando do comeo: quem a Comisso Trilateral?
O atual Comit Executivo da Comisso Trilateral (janeiro de 201515) composto, pela
parte europia, por Jean-Claude Trichet, presidente do Banco Central Europeu entre 2003 e 2011
(incluindo portanto o perodo da Troika); Vladimir Dlouhy, Ministro da Indstria e Comrcio
da Repblica Tcheca entre 1992 e 1997, economista e conselheiro internacional do Goldman
Sachs16; e Michael Fuchs, diretor de uma srie de associaes empresariais na Alemanha, entre
elas a Confederao dos empregadores alemes, e chefe do CDU-CSU17 (coalizo poltica de
Angela Merkel, majoritria) no Parlamento Alemo.
Do escritrio norte-americano, o presidente Joseph Nye, professor de Relaes
Internacionais de Harvard18; Jaime Serra, figura chave na implantao do Nafta no Mxico; e
John Manley, figura de destaque do Partido Liberal no Canad, tambm diretor da Canadian
Council of Chief Executive (CCCE), uma das maiores organizaes empresariais do pas.
David Rockefeller, magnata do petrleo e presidente do Chase Manhattan Bank, o
fundador e presidente honorrio; tambm so presidentes honorrios o irlands Peter Sutherland,
12 ASSMAN et all,. Op. Cit. O livro uma compilao de obra de dois tomos e 18 autores: ASSMAN, Hugo (Ed.)
Carter y La logica del imperialismo. Costa Rica: Editorial Universitaria Centro-americana (EDUCA), 1978. 2 tomos. 13 SKLAR, Holly (org.). Trilateralism: managing dependence and democracy. Boston: South and Press, 1980. 14 GILL, Stephen. American Hegemony and the Trilateral Commission. Cambridge: Cambridge University Press,
1990. 15 Retirado da pgina oficial da entidade, www.trilateral.org. Acessado em 07 de abril de 2015. 16 Tentou ser candidato presidncia em 2013 pela Civic Democratic Alliance, mas no conseguiu ter a candidatura
homologada. 17 Siglas em alemo para Unio Democrata Crist e Unio Social-Crist, conhecidas no Bundestag como a Unio. 18 Veremos no captulo 3 sobre o perfil de Nye.
http://www.trilateral.org/
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atual presidente da Goldman Sachs e diretor da British Petroleum, e primeiro presidente da
Organizao Mundial do Comrcio (1993-1995); o francs Georges Berthoin, figura de peso no
processo de unificao europia; Paul Volcker, presidente do FED americano entre 1979 e 1987 e
conselheiro para recuperao econmica de Barack Obama; Mario Monti, ex-primeiro ministro
italiano e conselheiro da Goldman Sachs e Yotaro Kobayashi, ex-presidente da Fuji-Xerox e
nome conhecido no mundo empresarial japons.
No quadro de membros regulares, tambm se encontram Lucas Papademos, ex-Primeiro-
Ministro da Grcia, (vice-presidente do Banco Central Europeu de 2002 a 2010 e membro da CT
desde 1998); Jorge Braga de Macedo, ex-ministro das Finanas de Portugal; e Marek Belka, ex-
primeiro-ministro, Ministro das Finanas e atualmente Presidente do Banco Nacional da Polnia,
e ainda Diretor do Departamento Europeu do FMI.
Do quadro americano so membros a ex-secretria de Estado Madeleine K. Albright,
Santiago Levy, diretor do Banco Interamericano de Desenvolvimento, Andrew Liveris,
presidente da Dow Chemical; Roy MacLaren, ex-ministro do Comrcio Internacional do Canad;
John Negroponte, ex-diretor da National Intelligence e ex-embaixador dos EUA na ONU, em
Honduras, Mxico, Filipinas e Iraque (um dos principais nomes no planejamento e execuo da
invaso ao Iraque em 2003).
So membros da CT inmeras figuras de proa do primeiro mandato de Barack Obama,
entre eles, o Secretrio do Tesouro; dois Secretrios de Estado; o porta-voz da Cmara dos
Deputados; o Secretrio de Defesa; o Comandante-em-chefe do Comando do Pacfico (a maior
diviso militar do pas); o Presidente Executivo do Federal Reserve Bank of New York; o
presidente e um diretor do Conselho Econmico; o Diretor de Planejamento de Polticas do
Departamento de Estado e Presidente do Council on Foreign Relations para no mencionar
aqueles que so figuras influentes no Estado, mesmo sem ocupar cargos oficiais.19 Alguns
personagens centrais de governos recentes do Mxico, como o Secretrio de Comrcio e
Desenvolvimento Industrial; o ministro da Sade; o Secretrio de Transportes e Comunicaes, e
o diretor do fundo mexicano do NAFTA (e secretrio de finanas do Mxico entre 1984 e 1996,
no auge da neoliberalizao do pas),20 esto na Comisso.
Do significativo elenco europeu, faziam parte da liderana da CT, em outubro de 2013,
alm dos j mencionados, os Primeiros-ministros da Finlndia, Romnia e Irlanda; o Presidente
da Repblica da Bulgria; o Presidente do Banco Nacional da Hungria; o Presidente do Conselho
19 Respectivamente, C. Fred Bergsten; Strobe Talbott e Madeleine K. Albright; Thomas S. Foley; Graham Allison;
Adm. Dennis B. Blair; William C. Dudley; Austan Goolsbee e Lawrence H. Summers; Richard N. Haass e John D.
Negroponte. 20 Respectivamente, Herminio Blanco Mendoza; Julio Frenk; Luis Tllez Kuenzler e Jaime Serra.
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de Diretores do Banco Nacional da Dinamarca; o Ministro de Estado e Diretor do Banco
Nacional da Blgica; o ministro da Defesa da Noruega; o secretrio-geral da Conveno Europia
e tambm membro da Cmara dos Lordes da Inglaterra; e a ministra de Assuntos Europeus e
Internacionais da ustria.21 Representando o Pacfico e a sia, da lista de 2013 constavam os
presidentes das maiores corporaes japonesas e asiticas, como Fuji-Xerox, Sony e Nippon; o
dono do maior grupo de mdia da Coria do Sul, o JoongAng Media Network, e ainda, o
conselheiro-snior do Banco de Tokyo-Mitsubishi (o maior do Japo) e o Secretrio de Finanas
das Filipinas.22
Atualmente, a comisso criou a figura dos trienium participants para receber em seus
encontros regulares participantes de outras reas. Em 2013, constavam como trienium
participants Jacob A. Frenkel, presidente do JP Morgan Chase International, e ex-presidente do
Banco de Israel; El Hassan Bin Talal, presidente do Clube de Roma, moderador da World
Conference on Religion and Peace, e presidente do Arab Thought Forum, de Am (Jordnia);
Ricardo Hausmann, professor de Harvard, ex-ministro venezuelano de Planejamento e membro
do conselho do Banco Central da Venezuela (1993-1994), economista-chefe do Banco
Interamericano de Desenvolvimento (1994-2000); Sergei Karaganov, editor de Russia in Global
Affairs, Moscou; Andnico Luksic Craig, vice-presidente do Banco do Chile, Santiago; Rsd
Saracoglu, presidente da Makro Consulting, Istambul, ex-ministro de Estado e membro do
Parlamento turco, e ex-presidente do Banco Central da Turquia; Roberto Egydio Setubal,
presidente e chefe executivo do Banco Ita S.A. e Banco Ita Holding Financeira S.A., So
Paulo; entre outros.23
Parece fora de dvida, s com esta lista prvia, que a comisso consegue reunir, de fato,
nomes que esto no cerne da poltica e das decises estatais nos pases centrais certamente um
nmero representativo deles comparece aos encontros e acompanha as atividades da comisso.24
Ainda que consideremos a atuao da comisso como mera troca de idias intra-elites, percebe-se
que ela tem capacidade de reunir representantes significativos em posio de exercer forte
influncia em seus respectivos pases e nos organismos internacionais. Esta influncia, no
entanto, no deve nem de longe ser percebida como alardeia a literatura conspiracionista, e sim
dentro do contexto da histria dessa organizao.
21 Respectivamente: Esko Aho, Mugur Isarescu e John Bruton; Petar Stoyanov; Gyrgy Surnyi; Nils Bernstein; Luc
Coene; Grete Faremo; Lord Kerr of Kinlochard; e Ursula Plassnik. 22 Respectivamente, Yotaro Kobayashi, Hong SeokHyun, Toyoo Gyohten e Roberto F. de Ocampo. 23 Cargos ocupados quando da publicao da lista, em maro de 2013, destacados pela prpria comisso; lista
acessada em www.trilateral.org, 30 de maro de 2013. 24 Evidentemente, com isso no se est dizendo que tudo passa pela comisso, somente que ela se conserva como um
importante lcus de debates intra-classes dominantes.
http://www.trilateral.org/
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O que a Comisso Trilateral e o trilateralismo
Se pudssemos apontar quatro fatos concretos impulsionadores da elaborao do
trilateralismo e da criao da Comisso Trilateral, estes fatos, em ordem cronolgica, mas no de
hierarquia, seriam:
1. Os movimentos estudantis e populares, greves e agitaes urbanas que varreram o
mundo capitalista avanado e que tiveram seu cume em 1968-1969, rompendo com a
relativa calmaria poltica que se seguiu estabilizao econmica e a implantao das
variantes de estados de bem-estar social aps a Segunda Guerra Mundial;
2. A ruptura unilateral, pelo governo Nixon, do padro ouro-dlar, em agosto de 1971,
juntamente com outras medidas que visavam corrigir o dficit da balana de
pagamentos americana; os chamados choques de Nixon foram institudos sem
consultas internacionais e enfureceram os parceiros comerciais dos EUA, que se
aproveitavam da posio internacional do dlar. Embora este fosse um processo
cumulativo, que j vinha ocorrendo, as atitudes do governo foram consideradas pouco
favorveis manuteno da estabilidade do sistema monetrio internacional; nos
EUA, o escndalo de Watergate25 geraria ainda mais dissenso intra-capitalista naquilo
que ficou conhecido como grande crise de confiana que prossegue at o fim da
dcada;
3. A derrota dos EUA no Vietn, que aprofundou a mesma crise de confiana e fez
pender a correlao de foras internacionais, demandando do stablishment de
segurana nova abordagem estratgica;
4. O embargo da OPEP26 em 1973 com a conseqente elevao dos preos do petrleo,
que sinalizava uma mudana num dos mais importantes regimes internacionais de
commodity, afetando, a partir de uma posio poltica unificada de pases produtores
de petrleo do Terceiro Mundo, toda a indstria dos pases capitalistas avanados, em
especial Japo, Europa Ocidental e os EUA.
Segundo Richard Falk, um pensador liberal reformista, a formao pblica da Comisso
Trilateral foi virtualmente um partido para fora (coming out party) para as classes dominantes.
25 Revelado pela imprensa, consistiu na revelao de uma srie de episdios na qual o presidente Nixon e sua equipe
mais prxima instruiu a instalao de escutas na sede do Partido Democrata, no edifcio Watergate, e suas sucessivas
tentativas de encobrir essa e outras aes dos chamados plumbers (encanadores) de Nixon. 26 Organizao dos Pases Produtores de petrleo. Criada nos anos 1960, visando uma articulao entre os pases
exportadores dessa estratgica matria-prima, com vistas a obter melhores condies de negociao no comrcio do
produto.
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Sua criao teria refletido a convico desses lderes de que seu estilo encoberto e indireto de
dominar era insuficiente para atender a nova agenda de desafios nos principais pases capitalistas
do mundo. Assim, tornou-se necessrio para a classe dominante americana exercer uma
influncia direta sobre o processo administrativo e faz-lo no esprito de uma classe dominante
transnacional preocupada em manter o capitalismo mundial saudvel.27
A principal ameaa imediata que levou formao da Trilateral foi o medo das crescentes
tenses entre os Estados capitalistas da Amrica do Norte, Europa Ocidental e Japo acerca da
diviso dos mercados e acesso a matrias-primas. A estrutura de comrcio e investimento poderia
conduzir a uma era de competio destrutiva, ao nacionalismo econmico, e possivelmente
prpria guerra. Havia tambm uma preocupao crescente com o Terceiro Mundo, centrada na
vulnerabilidade diante das presses da OPEP, e que estendia-se ao objetivo de criar uma fenda
nos reclamos por uma Nova Ordem Econmica Internacional.28
Em pouco tempo, os trilateralistas se moveram de suas preocupaes administrativas
acerca da economia mundial para proclamar, tambm, a crise da democracia em casa que, na
viso de Falk, consistia de uma variedade de demandas por reformas de ativistas
indisciplinados que estaria minando a coerncia ideolgica requerida para reconciliar o
capitalismo maduro-senil (mature-to-senil) com a existncia de procedimento democrtico.
Os policy-makers americanos, impactados pela derrota no Vietn, reconheceram que os
EUA no eram capazes de sustentar as redes econmicas, polticas e militares necessrias para
manter o sistema imperial no Terceiro Mundo. Mais do que isso, os EUA estavam encarregados
de uma fatia desproporcional dos custos militares, enquanto a Europa Ocidental e o Japo
estavam apenas investindo em atividades produtivas e aumentando suas vantagens
competitivas.29 Claramente, os EUA estavam arcando com os custos da dominao do Terceiro
Mundo, enquanto a Europa e o Japo colhiam os frutos.
27 FALK, Richard. Preface. In SHOUP, Laurence H. The Carter presidency and beyond. Power and Politics in the
1980s. California: Ramparts Press, 1980. p.7. Um dos principais mritos deste trabalho de Shoup, segundo Falk, era
o de mostrar como esse setor dominante das classes dominantes nos EUA no podem ser confundidos com a imagem
reacionria da direita tradicional, que alis, os acusa de comunismo e coisas afins. Afinal, a direita tradicional
prope um set de polticas que promovem os interesses e valores do capitalismo nacional, favorecendo
protecionismo, baixos impostos, a eliminao dos programas de welfare, e o nacionalismo old style. Idem, p.10. 28 A Nova Ordem Econmica Internacional era um conjunto de propostas elaboradas no mbito na Assemblia
Geral das Naes Unidas ao longo de 1974, impulsionada por pases do Terceiro Mundo com vistas a garantir
melhores condies de negociao com os pases centrais em diversas reas como estabilidade no preo de matrias-
primas, acesso aos mercados dos pases desenvolvidos, transferncia tecnolgica, regulao de corporaes
transnacionais, entre outros. 29 Em 1970, os EUA estavam gastando 8% de seu Produto Nacional Bruto com gastos em defesa, enquanto o Japo
gastava apenas 0,8%. PETRAS, James. The Trilateral Commission and Latin American Economic Development.
In. _________. Class, State and Power in the Third World. With case studies on class conflict in Latin America.
Londres: Zed Press, 1981. p.87.
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O antigo sistema de poder inquestionvel dos EUA dentro do mundo capitalista se erodia,
mesmo que os EUA continuassem, comparativamente, o pas capitalista mais poderoso. Nesse
sentido, como resume Petras, A Comisso Trilateral foi um esforo de criar uma liderana
coletiva para coordenar e sincronizar as polticas entre as potncias capitalistas como um modo
de minimizar a frico interna e maximizar os ganhos no Terceiro Mundo. 30
A preocupao da CT procuraria ser dupla: uma espcie de exerccio voluntrio de
ultraimperialismo no centro,31 que supriria o declnio do domnio norte-americano; e uma
cooptao ou transformismo das elites dos estados semi-perifricos e perifricos (incluindo os
Estados em que imperavam os regimes ditos comunistas). Mas, sobretudo, de acordo com Ren
Armand Dreifuss,
(...) a Comisso Trilateral pretendia inaugurar uma nova fase de transnacionalizao, que
prescindiria num grau ainda maior de certos aspectos da intermediao poltico-ideolgica e
econmica dos Estados nacionais, alicerando esse enfoque e sua prtica na coordenao e controle
poltico atravs da ao privada do empresariado transnacional.32
Mais do que apenas recomendar polticas especficas, Essas elites transnacionais seriam
responsveis pelo rule-making (a criao de regras do jogo), isto , o estabelecimento de
parmetros, regras, padres e procedimentos33, de forma bastante coerente, alis, com o vis
institucionalista34 de muitos dos intelectuais participantes da comisso.
Cabe-nos principalmente indagar sobre o lugar que a Trilateral e o trilateralismo, dentro
daquilo que chamaremos, a partir de Dreifuss, de elites orgnicas transnacionais, ocupou como
possibilidade de resposta s crises de diversas ordens que se cruzaram no perodo em tela.
O que pretende este trabalho
No pretendemos neste trabalho avaliar em que medida o vasto e heterogneo conjunto de
propostas concretas da CT foi posto em prtica; muito dificilmente encontraremos nos
documentos institucionais das outras instituies as quais a Trilateral influenciou o
reconhecimento de uma influncia da comisso, embora em alguns casos possamos afirmar a
relao direta entre as elaboraes da comisso com projetos especficos de algumas agncias
como FMI e Banco Mundial. Pretendemos, ao invs, destacar a relao entre diagnstico terico
30 PETRAS, Op. Cit., p.88. 31 O conceito de imperialismo, seu debate subjacente e proposies como a de ultraimperialismo, so discutidos no
captulo 1. 32 DREIFUSS, Ren A. A Internacional Capitalista. Estratgias e tticas do empresariado transnacional (1918-1986).
2 edio. Rio de Janeiro: Espao e Tempo, 1987, p.87. 33 Idem, p.87. 34 Chamamos de vis institucionalista, aqui, apenas a preocupao central com a construo e fortalecimento das
instituies polticas. Sobre as diferentes vertentes recentes do institucionalismo, ver HALL, Peter & TAYLOR,
Rosemary C.R. As trs verses do neo-institucionalismo. Lua Nova, n.58, 2003, p.193-223.
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e prognstico poltico, entre o conjunto terico-ideolgico identificado de alguma forma com o
trilateralismo e as propostas concretas da Comisso Trilateral de forma a localizar o lugar das
idias da Comisso Trilateral no mundo das elites orgnicas transnacionais, nos anos 1970.
Destacamos, assim, o papel da Comisso tanto como propositora de projetos como de lcus de
formao intra-classes dominantes.
Assim colocado, este trabalho rejeita tanto as concepes identificadas com a direita anti-
globalista e anti-liberal, que acusa a Trilateral de querer formar um governo mundial acima das
naes; quanto vises difusamente crticas globalizao e Nova Ordem Mundial, que,
igualmente, superdimensionam o poder efetivo de entidades como a Trilateral, compartilhando de
alguma forma a mesma viso de fundo obscurantista. Nesse sentido, importante retomarmos
aqui a distino tradicional entre projeto e processo, alertando que o foco de nosso trabalho est
no projeto, no porque este tenha alguma prioridade essencial, mas por uma questo de recorte
analtico35. Tambm no pretendemos afirmar que a Trilateral seja uma entidade mais importante
que as outras do gnero, e sim basicamente assinalar suas particularidades, especialmente de seu
arcabouo poltico-ideolgico.
Nosso objetivo analisar a entidade e o trilateralismo em seus prprios termos, e entender
como seu surgimento esteve relacionado com um contexto de crise econmica, poltica e social
que marcou a virada dos anos 1960 para os anos 1970, impactando decisivamente na maneira
como as elites orgnicas mais internacionalizadas pensavam questes como o sistema monetrio
internacional, os regimes polticos democrticos e as prprias instituies internacionais. nfase
ser dada, portanto, relao entre as teorias defendidas pelos intelectuais orgnicos ligados
entidade e o diagnstico/terapia por ela propostos.
Periodizao
A delimitao temporal aqui adotada abarca do ano de 1973, data de fundao da
comisso, a 1979, ano em que uma srie de eventos leva a uma guinada nas elites orgnicas,
principalmente nos EUA, com a crise do governo Carter. A ocupao sovitica no Afeganisto e
35 Utilizaremos a definio de projeto estratgico de Argumedo, para quem os projetos estratgicos constituem as
grandes linhas articuladoras de uma viso de mundo em suas diversas expresses, os objetivos ideolgicos mais
abrangentes e fundantes, a partir dos quais se vo definindo as metas especficas e as formas de implementao de
um determinado modelo de sociedade no econmico, no social, no militar, no comunicacional, no governamental,
dentro das distintas realidades nacionais ou regionais e no cenrio internacional. Um projeto estratgico expressa
assim dos modos mais amplos de vertebrao da ideologia e os interesses econmicos e culturais de determinados
setores sociais, tanto como os princpios doutrinrios que estabelecem os objetivos e eixos de alianas nacionais e
internacionais. Constitui a sistematizao de uma proposta representativa, sentida como prpria, por um conjunto de
fraes sociais cujos interesses ainda que contraditrios podem organizar-se dentro de um contexto de relaes
antagonismos, enfrentamentos ou alianas com outro ou outros blocos poltico-sociais. ARGUMEDO, Op. Cit.,
p.33.
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a crise dos refns no Ir, ambas em dezembro de 1979, fortaleceram os setores conservadores que
vinham crescendo ao longo de toda a dcada, e fizeram com que os temas de segurana voltassem
ao centro do debate pblico, estimulando um revanchismo de carter blico, profundamente anti-
comunista e anti-Terceiro Mundo. Esse sentimento seria o caldo de cultura para vitria
acachapante do ex-ator republicano Ronald Reagan na disputa pela presidncia em fins de 1980.
Ao mesmo tempo, a revoluo nicaragense parecia ressuscitar mais um fantasma cubano na
Amrica Central, assim como a revoluo de Maurice Bishop em Granada, tudo no mesmo ano
em que a VI Conferncia dos Pases No-alinhados ocorria em Cuba, elegendo Fidel Castro como
seu presidente.
Em outubro de 1979, outro evento que alteraria drasticamente os rumos do capitalismo
mundial foi lanado por Paul Volcker, economista indicado por Carter para a presidncia do
Federal Reserve (o sistema que cumpre o papel de Banco Central, nos EUA) em julho do mesmo
ano, tambm membro da CT: o chamado choque Volcker. Este consistiu no aumento sbito das
taxas de juros praticados pelo FED, o que gerou uma reao em cadeia de enxugamento de
crditos e nos anos 1980 desencadearia a crise da dvida em numerosos pases do Terceiro
Mundo. Ainda no incio do ano, a lder conservadora Margareth Thatcher venceu o Partido
Trabalhista de James Callaghan, cujo gabinete se arrastou por longa crise, e assumiu o posto de
primeira-ministra em 4 de maio. Essas duas vitrias eleitorais abririam afinal um caminho para o
avano do neoliberalismo no mundo desenvolvido, anos aps seus primeiros laboratrios
sangrentos na Amrica Latina, especialmente no Chile e na Argentina.
Alm disso, existe uma cronologia prpria da histria da Trilateral, profundamente
relacionada a esta conjuntura. Neste ponto, seguiremos a cronologia proposta por Luis Maira,
segundo a qual os anos iniciais da comisso podem ser distinguidas tanto pela prioridade
estratgica dada ao Terceiro Mundo ou URSS, quanto prpria composio da comisso. De
1973 a 1977 predomina a viso globalista das corporaes, a perspectiva de ampliar a detnte
com o mundo sovitico com vistas a abrir esta parte do mundo para os negcios. a prpria
vitria de Carter que gera um movimento, em 1977, de ingresso, na comisso, de uma srie de
personagens republicanos e mais fortemente ligados ao complexo industrial-militar.36 De 1977 a
1979, ter-se-ia dentro da comisso duas posies bem diferentes, que embora tivesse, claro,
diversos pontos em comum, divergiam acerca da poltica em relao URSS ao sistema
36 Entre eles, George Bush (pai), William Scranton (governador da Pensilvnia), James Thompson, governador de
Illinois, e Arthur Burns, um dos principais especialistas republicanos em assuntos econmicos e financeiros.
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internacional como um todo. Segundo Maira, depois disso a comisso teria perdido sua relativa
homogeneidade poltico-ideolgica inicial.37
Fontes
O principal conceito deste trabalho o de elite orgnica, o qual apresentaremos no
primeiro captulo. Mas, em nosso entendimento, este conceito precisa estar acoplado categoria
imperialismo, que em nosso ver permanece atual, como tambm desenvolveremos no primeiro
captulo.
A parte principal de nosso corpo de fontes composta pelos documentos disponveis no
stio eletrnico da prpria instituio (www.trilateral.org), distribudos em trs categorias:
relatrios de Task Forces, (foras-tarefas, isto , grupos especialmente dedicados a analisar um
assunto especfico); os boletins de regularidade variada (Trialogues); e relatrios de encontros
anuais. No perodo compreendido, analisamos o total de 21 Trialogues e 20 Task-Force Reports
compreendidos entre 1973 e 1979, sistematizados nos apndices. Os Trialogues tm por objetivo
tanto repercutir os debates dentro da comisso em seus encontros, como convidar figuras de fora
da comisso para opinar sobre seus relatrios (muitas vezes opinies bastante diversas quelas
apresentadas pelos comissionrios).
Note-se que os Task-Force Reports so formalmente assinados somente pelos autores
convidados pela comisso para elabor-los, e configuram estudos mais densos com anlises e
propostas sobre o tema em questo. Trabalhamos tambm com aquilo que era chamado pela
comisso de processo trilateral, isto , o perodo normalmente extenso (no mnimo alguns
meses) em que os autores dos Task-Force Reports, os comissionrios e outros especialistas se
encontram para discutir as verses preliminares publicao e discusso nos mbitos dos
encontros peridicos formais da comisso.
O segundo conjunto do corpo de fontes compe-se das obras (livros, artigos, etc.), dos
intelectuais ligados Trilateral, entre eles, Zbigniew K. Brzezinski,38 Joseph Nye e Robert
Keohane, passando pelas obras de autores que foram trazidas ao debate destes intelectuais
orgnicos, como Daniel Bell. O debate acadmico em torno das proposies desses autores deve
tambm ser considerado, por isso faremos tambm incurses a alguns peridicos norte-
americanos no qual estes debates circulavam, especialmente a revista Foreing Affairs (peridico
ligado ao Council of Foreign Relations), mas tambm imprensa internacional de forma geral.
37 MAIRA, Op. Cit., p.210-215. 38 BRZEZINSKI, Zbigniew. Entre duas eras. Amrica: Laboratrio do mundo. Rio de Janeiro: Artenova, 1971.
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Diviso dos captulos
Este trabalho estar dividido em duas partes. Na primeira, procuramos apresentar e
debater o que a Comisso Trilateral e o trilateralismo em seu nascimento, sua relao com
outras entidades das elites orgnicas, a partir de uma problematizao deste conceito.
No primeiro captulo, debateremos as contraposies existentes entre as concepes
liberais clssicas em relao ao sistema internacional e s organizaes internacionais. Daremos
destaque ao debate dentro do marxismo, que compreende desde o debate do imperialismo, das
proposies clssicas s interrogaes contemporneas sobre a validade dessa categoria,
sublinhando a questo terica do ultraimperialismo. Apresentaremos sucintamente as matrizes
de pensamento provenientes do marxista sardo Antonio Gramsci e do politlogo Nicos
Poulantzas, destacando as contribuies recentes elaboradas por autores que se colocam de
alguma forma nessas matrizes. Por fim, trabalharemos o conceito de elite orgnica formulado
pelo cientista poltico uruguaio Ren Dreifuss, retomando um pouco a histria do conceito de
elite desde Mosca e Pareto, a Gramsci e Ralph Miliband.
No segundo captulo, apresentaremos um pouco da histria das entidades privadas das
elites orgnicas dos pases centrais no sculo XX. Ser dado destaque s primeiras redes de
entidades que tinham pretenses transnacionais, e a relao entre o Projeto para os anos 1980
do Council of Foreign Relations (CFR) e a criao da Comisso Trilateral. Tambm faremos um
painel sobre o ativismo corporativo do perodo, dando nfase sua corrente cosmopolita liberal, e
localizando os distintos matizes da ideologia da obsolescncia do Estado-nao.
No terceiro captulo, analisamos as razes da Comisso Trilateral em seus aspectos
formais e poltico-idegicos. Procuramos entender a sntese trilateralista que surgiu da mescla
entre o pensamento estratgico de Z. Brzezinski, o principal fundador prtico da Trilateral, e o
conceito de interdependncia, tal como desenvolvido pelos tericos de Relaes Internacionais
Joseph Nye e Robert Keohane, eles mesmos colaboradores da entidade.
Na parte II deste trabalho, abordamos os temas trabalhados pela comisso no perodo em
tela. A diviso entre os captulos na parte II corresponde s trs grandes temticas trabalhadas
pela comisso no perodo: as questes econmicas, especialmente monetria, do petrleo e a
chamada crise alimentar (captulo 4); a questo democrtica nos pases centrais concentrada na
elaborao e debate do famoso documento The crisis of Democracy, de Samuel Huntington,
Michel Crozier e Joji Watanuki, juntamente com a questo democrtica no Terceiro Mundo,
especialmente no debate sobre a campanha dos direitos humanos do mandato do trilateralista J.
Carter (captulo 5); e a reforma das instituies internacionais, articulada ao debate sobre a
relao entre o mundo trilateral e o bloco socialista (captulo 6). Nesses captulos,
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procuraremos dar voz s prprias elaboraes da entidade, entendendo como estavam
relacionadas a uma forma de resposta das elites orgnicas transnacionais conjuntura de crises
que mencionamos no incio desta Introduo.
Palavras iniciais
A histria da Comisso Trilateral parece singular na trama das contradies e das lutas
intra-classe do capitalismo contemporneo. O presente trabalho nasceu do interesse em, a partir
de Marx, contribuir para a pesquisa relativa configurao das classes dominantes no capitalismo
contemporneo no plano internacional, em particular acerca das formas de organizao e atuao
poltica atravs de entidades privadas que podemos definir, latu sensu, como aparelhos privados
de hegemonia, nos termos de Antonio Gramsci.
O objetivo principal , essencialmente, contribuir para o estudo de como os representantes
de determinadas fraes capitalistas se organizam nessas entidades, e como esses agentes
pensaram, pensam e agem sobre determinadas questes-chave do capitalismo contemporneo,
como a questo das crises, da democracia e do funcionamento do sistema interestatal.
Com isso no pretendemos deslocar a centralidade do conflito entre capital e trabalho ou
sobrepor a este conflito as disputas inter-capitalistas ou inter-imperialistas, mas sim tentar
entender em que medida estas ltimas se desenvolveram neste contexto histrico marcado, alis,
pela forte presena dos subalternos no cenrio poltico mundial.
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Captulo 1 Imperialismo, Estado e elite orgnica: um debate
introdutrio
A proliferao de entidades e agncias internacionais39 ao longo das dcadas de 1970 e
1980 ocupou muitos historiadores e cientistas sociais. O historiador ingls Eric Hobsbawm no
deixara escapar o tamanho do problema, destacando em sua Era dos Extremos a multiplicao,
nesse perodo, de organizaes internacionais de variados tipos, mas com destaque para aquelas
cuja ao transcendia o escopo dos Estados Nacionais. Segundo Hobsbawn,
organizaes cujo campo de ao era efetivamente limitado pelas fronteiras de seu territrio,
como sindicatos, parlamentos e sistemas pblicos de rdio e televiso nacionais, saram portanto
perdendo, enquanto organizaes no limitadas desse jeito, como empresas transnacionais, o
mercado de moeda internacional e os meios de comunicao da era do satlite, saram ganhando. O
desaparecimento das superpotncias, que podiam de qualquer modo controlar os Estados-satlites,
iria reforar essa tendncia. (...) A simples necessidade de coordenao global multiplicou as
organizaes internacionais mais rpido do que nunca nas Dcadas de Crise [1970 e 1980]. Em
meados da dcada de 1980, havia 365 organizaes intergovernamentais e nada menos que 4615
no-governamentais, ou seja, acima de duas vezes mais que no incio da dcada de 1970. 40
J faz algum tempo tambm que o tema das Organizaes No-Governamentais
Internacionais (ONGIS, na sigla adotada pela Unio das Associaes Internacionais, a UIA) so
tema relevante dentro da disciplina de Relaes Internacionais, por exemplo. Se definidas
meramente a partir de seu carter internacional e no-estatal, as associaes privadas
internacionais, seja com objetivos humanitrios, cientficos, polticos, etc, existem pelo menos
desde o sculo XIX.41 A clssica diviso feita dentro dessa disciplina entre liberais e realistas
marcou esse debate sobre as organizaes internacionais. Se para os realistas as organizaes
internacionais refletem o poder das potncias, para os liberais, especialmente em sua vertente
institucionalista, elas podem, atravs do estabelecimento de normas e regras, contrariar os
interesses das potncias e assim ajudar a gerar estabilidade no sistema.42 Dentro das Relaes
39 Utilizaremos o termo entidade para organizaes de carter privado, como a Trilateral; e agncias para
organizaes de carter intergovernamental, como o sistema de agncias da ONU, o FMI, etc. 40 HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos. O breve sculo XX (1914-1991). So Paulo, Companhia das Letras, 1995.
Respectivamente, as passagens esto na p. 413 e na p. 419. Note-se que Hobsbawn localiza as dcadas da crise
como as de 1970 e 1980, periodizao diferente da que ser adotada aqui. Na mesma passagem, Hobsbawn afirma
que Quando a economia transnacional estabeleceu seu domnio sobre o mundo, solapou uma grande instituio, at
1945 praticamente universal: o Estado-nao territorial, pois um Estado assim j no poderia controlar mais que uma
parte cada vez menor de seus assuntos. Discutiremos este ponto mais frente neste captulo. 41 Segundo Herz & Hoffman, um marco fundamental na histria das ONGIS foi a Conveno Mundial anti-
escravista, de 1840. HERZ, Monica & HOFFMAN, Andrea Ribeiro. Organizaes Internacionais: definio e
histria. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 2004. p.35. 42 Costuma-se apontar como principal oposio, no campo das Relaes Internacionais, aquela entre realistas e
liberais. Enquanto no realismo, apoiado em Hobbes e Maquiavel, parte-se da aplicao do princpio da essncia
ruim da natureza humana para o sistema internacional (que seria por natureza anrquico e composto por Estados
unitrios, coesos e hierrquicos), no liberalismo, apesar da existncia da anarquia, os Estados so concebidos de
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Internacionais, no entanto, apesar de terem conquistado espao algumas correntes crticas,
geralmente no se considera o largo debate desenvolvido a partir da perspectiva marxista.
O fato que, para pensar no que significa uma organizao internacional do tipo que a
Trilateral, ou qualquer outra, necessrio em primeiro lugar discutir o sistema internacional no
qual ela se insere; preciso, tambm, mapear o pensamento em que esta organizao vai fincar
razes. Neste captulo, discutiremos criticamente as matrizes tericas de alguns aportes
conceituais fundamentais na anlise do trilateralismo e da Comisso Trilateral, que se relacionam,
em primeiro lugar, com a histria do posicionamento liberal em relao ao sistema internacional,
assim como de seus crticos.
Porm, a histria do pensamento crtico s teorias liberais sobre o mesmo sistema
internacional tambm longa, nela destacando-se as teorias marxistas do imperialismo. Como
veremos, alis, um debate que cerca a interpretao sobre a Trilateral , inevitavelmente, aquele
que remete ao ultraimperialismo de Karl Kautsky. Por isso, neste captulo tambm
apresentaremos sucintamente alguns momentos do debate marxista sobre o imperialismo, de
modo a contextualizar tanto o debate clssico do imperialismo, iniciado na virada para o sculo
XX, quanto o debate contemporneo.
Dois autores que destacamos no marxismo, e que tiveram vrios de seus conceitos
apropriados no debate mais recente sobre o imperialismo e o sistema internacional so Antonio
Gramsci e Nicos Poulantzas. O primeiro, embora no tenha elaborado especialmente o sistema
internacional, teve diversos de seus fecundos conceitos apropriados por autores que tencionaram
de pensar o tema. De Poulantzas, reteremos a relao que o autor apresenta entre
internacionalizao do capital e internacionalizao do Estado esta ltima, fundamental para
compreender as ideologias burguesas sobre o fim do Estado-Nao, as quais apresentaremos no
final do captulo 2. Alis, as teorias explicativas do Estado so algo que permeia qualquer
interpretao sobre o sistema internacional, e por isso nos remeteremos a elas.
Finalmente, pretendemos apresentar o conceito de elite orgnica, de Ren Dreifuss, que
adotamos para nossa prpria anlise da Comisso, nos detendo em sua apresentao e
problematizao. As matrizes deste conceito, como veremos, esto tambm em Gramsci e
Poulantzas.
Vale assinalar mais uma vez que no nossa inteno apresentar a totalidade destes
longos e complexos debates. Nosso recorte bibliogrfico deste captulo, necessariamente
subjetivo em algum grau, visa explicitar o quadro conceitual usado para este trabalho, utilizando
maneira similar mas podem cooperar uns com os outros e assegurar a paz. Embora no pretendamos nos aprofundar
nessa questo, note-se que a raiz de ambas as concepes pode ser considerada liberal, na medida em que transpem
para o sistema internacional as noes do direito natural clssicas do liberalismo histrico.
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como critrio a contribuio direta ou indireta em relao ao tema das organizaes e do sistema
internacionais, alm, claro, de seu prisma terico. Vale sempre lembrar que, no registro terico-
epistemolgico em que nos inserimos, nenhuma das vises que sero aqui abordadas
axiologicamente neutra; todas elas incorporam uma viso de mundo, ou nos termos do
historiador catalo Josep Fontana, uma economia poltica, no sentido de portar tanto uma viso
do passado e do presente e um projeto de futuro, seja ele de preservao do status quo, seja ele
contrrio a este status quo.43
1. O sistema internacional na perspectiva liberal clssica
O liberalismo clssico, a partir da idia de contrato social e dos direitos naturais do
homem, prezava pela a dos indivduos livres pela felicidade e pela riqueza, e essa busca
individual produziria um resultado coletivamente positivo.44 A razo humana, em suma, poderia
fazer com que as instituies da sociedade garantissem o equilbrio e a auto-regulao.
O Estado, no caso, seria o principal mecanismo para garantir a defesa de direitos
fundamentais, como o direito propriedade. No entanto, a relao do liberalismo com o Estado
seria sempre um tanto ambgua, considerando-o como uma espcie de mal necessrio, a ser visto
com desconfiana, especialmente suas possveis tendncias autoritrias.45
De acordo com a sntese da historiadora Snia Regina de Mendona,
O conceito de Estado na matriz liberal parte de dois princpios-chave. O primeiro, que seu
estudo deve decorrer do direito e o segundo, que esse direito, fundamento do prprio Estado,
pertence ao domnio da natureza, assim como os demais fenmenos sociais. Em teoria, os homens
abririam mo de sua liberdade e suas prerrogativas individuais em nome de um governante
exterior e acima deles que refrearia as conseqncias funestas do estado natural (...) O Estado
assumia, assim, um aspecto ambivalente. Por um lado, ele regulava a todos da mesma forma, de
modo neutro e acima dos interesses particulares que haviam prevalecido at ento. Dessa forma,
tornava-se uma espcie de Sujeito, pairando acima e fora da sociedade como um todo tornando-
se Estado e governo naturalmente sinnimos.46
43 Sobre tal uso do conceito de economia poltica, ver FONTANA, Josep. Histria anlise do passado e projeto
social. Bauru (SP): Edusc, 1998. Em relao ao tema da neutralidade axiolgica do conhecimento em cincias
humanas, nos referenciamos nas posies expressas em LOWY, Michel. As aventuras de Karl Marx contra o Baro
de Munchausen. Marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. So Paulo: Cortez, 2003; DUAYER,
Mario. Anti-realismo e absolutas crenas relativas. Margem Esquerda, n.8. So Paulo: Boitempo, 2006; e
CARDOSO, Ciro Flammarion. Um historiador fala de teoria e epistemologia. Ensaios. Bauru: Edusc, 2005. 44 Segundo a clssica proposio de Locke, por exemplo, o ser humano, seguindo seus instintos, isto , sua essncia
natural por mais hedonista que esta possa ser leva boa convivncia e prosperidade geral, com manuteno
completa da liberdade. Haveria, aqui, um mecanismo da prpria sociedade civil capaz de transformar vcios
individuais em virtudes pblicas (mecanismo este que, para Adam Smith, seria o mercado). 45 Vale lembrar que, embora o termo liberalismo s aparea no inicio do sculo XIX, o contexto de nascimento do
pensamento liberal justamente o da crtica iluminista aos regimes absolutistas na Europa. Estamos tratando de
liberalismo aqui neste sentido histrico, e no no sentido poltico-ideolgico particular que nos EUA o termo
assume. A noo de autoritarismo tambm tem uma historicidade prpria. 46 MENDONA, Snia Regina. Estado. (verbete) In. CALDART, R.S.; PEREIRA, I.B.; ALENTEJANO, P.;
FRIGOTTO, G. (orgs.). Dicionrio da Educao no campo. Rio de Janeiro/So Paulo: EPSJV/Expresso Popular,
2012. Nas palavras de Fontes, abandonando as formas saturadas de pensamento religioso que perduravam na
reflexo sobre a origem do poder poltico (embora j existissem diversas manifestaes de pensamento laico sobre o
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Uma das principais funes do Estado, a garantia da segurana dos cidados contra
ameaas externas, poderia entrar em contradio com as aspiraes polticas desses mesmos
cidados, na medida em que a guerra provoca uma situao na qual o poder estatal reforado.
Nesse sentido, seria do interesse geral que o sistema internacional se tornasse cooperativo ao
invs de conflituoso, e a histria do pensamento liberal no quesito das relaes entre os Estados
girou, em grande parte, em torno questo de como atingir esse objetivo.
Segundo Joo Pontes Nogueira e Nizar Messari, embora do ponto de vista das teorias
propriamente de RI s se possa falar em uma teoria liberal a partir do sculo XX, mais
especificamente aps a Primeira Guerra Mundial, fato que todo o debate dos liberais, mesmo
em suas vertentes mais recentes e menos otimistas, remete aos fundamentos e aos dilemas de
alguns autores liberais clssicos.
Messari e Nogueira destacam trs pontos fundamentais entre aqueles que foram
historicamente prezados pelos liberais na busca por um sistema internacional harmnico. O
primeiro deles a defesa do livre comrcio. O pensamento liberal, desde o sculo XIX, defende a
idia de uma incompatibilidade fundamental entre o comrcio e a guerra. Partindo do pressuposto
daquilo que economista poltico ingls David Ricardo (1772-1823) chamou de vantagens
comparativas, o comrcio internacional beneficiaria todas as naes, e, como elemento central
para a prosperidade, tambm possibilitaria a criao de laos intensos entre as sociedades,
diminuindo sua propenso a guerrear entre si.47 nesse sentido que os liberais seriam crticos do
mercantilismo e do protecionismo, encarando-os como polticas que favoreciam apenas os grupos
interessados em aumentar o seu prprio poder econmico atravs do Estado, e assim ampliando
sua tendncia guerra.48
exerccio do poder, como Maquiavel), Hobbes a explicaria a partir dos dolorosos atributos que definiu como
naturais da humanidade, e que a impeliriam a conter-se, a dominar-se atravs de um acordo to ou mais violento
do que a violncia que o pacto deveria conter. Tratando-se de um contrato, era, portanto, realizado entre homens e
sem intervenincia de princpios ou agentes externos humanidade. Esse acordo, decorrendo de uma natureza
humana agressiva e marcada pela escassez (a fome e a insegurana), outorgaria a um dentre os homens (o Soberano)
o atributo singular do exerccio da violncia e deveria assegurar a pacificao entre eles pela demarcao ntida de
um nico poder que deveria pairar e exercer-se sobre todos. FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo.
Teoria e Histria. Rio de Janeiro: Edufrj/EPSJV, 2010. p.124 47 RICARDO, David. Princpios de Economia Poltica e Tributao. So Paulo: Nova Cultural, 1988 [1817]. 48 Segundo Maurcio C. Coutinho, o mercantilismo pressupunha um Estado forte (hobbesiano, se quisermos), que
garante a ordem poltica e a livre concorrncia internas, ao mesmo tempo em que se projeta para o mundo, nos
interesses do Rei e da Nao (que aqui coincidem); e por isso defendia, grosso modo, uma poltica protecionista,
para fora, e uma poltica liberal, para dentro. Nessa viso, o modelo mercantilista, mesmo sendo amplamente
baseado num forte protecionismo, no fundamentalmente contraditrio com o liberalismo, muito embora tenha sido
na crtica s posies mercantilistas que se fortalecera o liberalismo econmico. Para Coutinho, partir de ento que
a reflexo econmica passar lentamente de uma cincia do bom governo, enquanto disciplina administrativa, de
preocupao com a boa fiscalidade, etc, para o tema da riqueza da nao entendida j em termos privados. Em
suas palavras, os economistas mercantilistas, ou ao menos os de formao filosfica e cientfica mais forte,
assumiram os pressupostas da filosofia jusnaturalista e das cincias da natureza que viriam a caracterizar a economia
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O segundo ponto diz respeito a outra idia forte do liberalismo: a repblica como antdoto
guerra entre as naes, expressa por Kant. Para Kant, a repblica moderna, entendida como um
regime de governo no qual h a representao de diversos interesses coletivos, consolidado por
um estado de direito, era uma forma de governo que dificultava a entrada de um pas numa
guerra. A origem das guerras estaria, assim, nas formas imperfeitas de governo; sua crtica era
dirigida especialmente contra os Estados monrquicos absolutistas, que como tais no deviam
satisfaes a seus povos em decises de poltica externa.
Embora Kant e os liberais de seu tempo no tivessem nenhum apreo por aquilo que se
convencionaria chamar de democracia no sculo XX, o discurso liberal sobre esse regime
frequentemente defende o mito de uma linha continua de defesa da democracia.
Tratado pelo discurso liberal corrente como praticamente sinnimos, a verdade que a
relao entre democracia e liberalismo mais problemtica do que parece, como o demonstraram
cabalmente autores como Crawford B. Macpherson,49 Ellen M. Wood50 e Domenico Losurdo.51
Autores fundadores da tradio liberal como John Locke, Immanuel Kant e Benjamin Constant52
se opuseram fortemente extenso dos direitos polticos aos grupos sociais sem propriedade e
mulheres, quando hoje qualquer definio minimamente aceita para o regime democrtico inclui
a extenso do direito ao voto ao conjunto dos cidados maiores de idade. Movimentos capitais
para a extenso dos direitos polticos como o Cartismo na Inglaterra entre 1838-1848, e a
primeira onda do feminismo, o sufragismo, so em geral obliteradas nas narrativas laudatrias do
liberalismo. Sem mencionar que questes como a participao cidad no processo poltico so via
de regra enquadradas como ameaa democracia por alguns liberais, como J. L. Talmon, que
chegou a enquadrar Jean-Jacques Rousseau para quem a participao cidad era cara como
precursor do totalitarismo.53
De acordo com a nova verso dessa proposio, os Estados democrticos tendem a manter
relaes pacficas entre si, e, quanto mais naes caminhem para regimes democrticos, a
probabilidade das guerras automaticamente diminuiria, j que a deciso de partir para a guerra
seria muito mais difcil em regimes nos quais o poder est baseado na representao de mltiplos
poltica clssica. (...) No obstante e em grau diverso no conseguiram libertar-se inteiramente da forte presena
do Estado nacional, e de um conceito de riqueza monetria bastante permevel ao estabelecimento da confuso entre
poder nacional e progresso. COUTINHO, Mauricio Chalfin. Lies de Economia Poltica Clssica. So Paulo:
Hucitec; Campinas (SP): Ed.Unicamp, 1993, p. 35. 49 MACPHERSON, C.B. A democracia liberal. Origens e evoluo. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. 50 WOOD, Ellen M. Democracia contra