as duas línguas do brasil

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AS DUAS LNGUAS DO BRASIL (qual mesmo a lngua que falamos?) As lnguas diferem muito pouco no que diz respeito a suas capacidades expressivas (ver o ensaio O rock portugus). Mas, como evidente, diferem muitssimo quanto a sua importncia cultural, poltica e comercial. Temos, por um lado, lnguas como o ingls, o espanhol, o russo, o chins, o francs (e, mais modestamente, o portugus) que servem a vastas comunidades, sendo intensivamente utilizadas na poltica, na TV e na imprensa, na cincia, na literatura etc. Elas so chamadas, um tanto preconceituosamente, lnguas de civilizao. Por outro lado, existem lnguas de interesse puramente local, como o xavante e o caxinau entre os ndios brasileiros, a maioria das lnguas africanas, muito dialetos locais da Europa e da sia, e assim por diante. Essas lnguas nem sempre so faladas por comunidades diminutas: embora algumas s tenham algumas centenas de falantes, outras (como o haussa, na Nigria, e o quchua, no Peru e na Bolvia) tm vrios milhes. O que as ope s lnguas de civilizao que no so usadas intensivamente em toda a gama das atividades da vida moderna. I quchua, no que pesem seus muitos falantes, no veculo utilizado na grande imprensa nem em obras cientficas, e tem uma literatura bastante restrita. O caso mais extremo dessa limitao o das lnguas realmente desprovidas de tradio escrita. Estas podem possuir uma ortografia, em geral de inveno recente, mas o corpo de material escrito nelas muito pequeno e restrito a certas reas de interesse: alguma literatura regional, tradues da Bblia feitas com vistas catequese, e pouco mais. Tais lnguas se chamam grafas (literalmente, sem escrita; mas j vimos que essa privao no precisa ser absoluta.) o caso do xavante, do changana (falado em Moambique), do bergamasco (falado em Brgamo, no orte da Itlia), de muitas pequenas lnguas da ndia. Existe uma verdadeira multido de lnguas grafas pelo mundo afora. Em geral, elas convivem com uma das lnguas de civilizao, que seus falantes utilizam quando tratam de assuntos fora das necessidades do dia-a-dia. Dessa forma, um cidado de Brgamo, quando conversa com a famlia, poder exprimir-se em Bergamasco mas, ao tratar de negcios, falar italiano; ao assistir televiso, estar ouvindo italiano; e seu jornal de domingo estar escrito em italiano. Pode haver discusso entre os especialistas quando que uma lngua deve ser considerada grafa. Muitos sustentam que o maia, lngua indgena do sul do Mxico, no grafo, j que existem textos nessa lngua h vrios sculos. No precisamos entrar nessa briga; creio que qualquer um pode ser diferena ntida entre uma lngua que serve a todas as necessidades da vida moderna e uma que no o faz. A esta ltima chamaremos grafa. Vamos mudar de assunto agora; mais tarde, tentaremos junt-lo ao que foi dito acima. Nosso segundo tema seguinte: Que lngua se fala no Brasil? Mas ser que vale a pena fazer essa pergunta? Todo mundo (e todo o mundo) sabe que a lngua do Brasil o portugus. Alm do mais, uma lngua de civilizao, segundo a definio que vimos. Basta pegar um jornal, ligar a TV, passar os olhos nas prateleiras de uma livraria, salta vista que o portugus a lngua do Brasil. No h dvida de que a lngua de civilizao que nos serve o portugus. Alm do mais, ela no est nem um pouco em perigo de perder essa posio privilegiada: apesar do que se fala dos progressos do ingls em certas reas, o portugus continua firme como o veculo de todos os aspectos da cultura brasileira. A imensa maioria da populao (incluindo os universitrios) incapaz de se exprimir, e mesmo de ler, em

qualquer outra lngua. Logo, como se pode ter dvida sobre a posio do portugus na comunidade brasileira? Mas notem que eu no perguntei qual era a lngua de civilizao do Brasil. Perguntei qual era a lngua de civilizao do Brasil. Perguntei que lngua se fala no Brasil. Explicando melhor: ser que falamos a mesma lngua que escrevemos e lemos? Muita gente tem opinio sobre isso; mas para formar nossa prpria opinio vamos colher alguns dados. Digamos que estamos usando um binculo durante o jogo de futebol e um amigo tambm queira dar uma olhada. Ele chega e diz: - Me empresta ele a um minuto. importante observar que essa uma forma correta de falar naquele local e naquele momento. E que qualquer pessoa poderia utilizar uma frase como essa (no apenas as chamadas pessoas incultas). A frase acima faz parte do repertrio lingstico de todos os brasileiros; em uma palavra, assim que ns falamos. Podemos escrever diferente (por exemplo, empreste-mo um minuto), mas falamos daquele jeito. Imaginemos outra situao: uma senhora est na confeitaria encomendando salgadinhos; diz ela: - Voc pode fazer eles pra sbado? A festa vai ser domingo, mas domingo eu no posso vim aqui, porque o bairro que eu moro muito longe, e meu marido vai no jogo e vai levar o carro. A eu busco eles no sbado, se voc tiver de acordo. Imagine a pessoa falando, e ver que essa fala perfeitamente natural. Mas escrita ela choca um pouco, porque est cheia de traos que no costumamos encontrar em textos escritos: a preposio pra (em vez de para); o infinitivo vim (em vez de vir); a construo o bairro que eu moro (em vez de o bairro onde/em que moro); a regncia vai no jogo (em vez de vai ao jogo); as expresses fazer eles (em vez de faz-los) e busco eles (em vez de busco-os ou mesmo, Deus nos livre!, busc-los-ei); o verbo tiver (em vez de estiver). Agora, uns exemplos tirados da morfologia. A estrutura do verbo na lngua que falamos bem diferente da que se encontra na lngua que escrevemos. Assim, h formas que nunca aparecem na fala, como: o mais-que-perfeito simples (fizera, gostramos, fora); o futuro do presente (farei, gostaremos, ir). Na lngua falada em Minas, tambm raramente ocorre o presente do subjuntivo (faamos, gostem, v); essas formas so, entretanto, usuais no Norte e Nordeste do Brasil. O verbo falado difere do verbo escrito em outros detalhes. Assim, escreve-se (ou, mais exatamente, as gramticas mandam que se escreva) quando eu te vir. Mas na fala essa expresso difcil de entender; falamos quando eu te ver. As gramticas afirmam que no presente o verbo vir tem a forma vimos: ns vimos aqui toda semana. Na fala, claro, s se usa viemos, seja presente, seja passado.

Na fala, o pronome ns cada vez mais substitudo por a gente, e, paralelamente, as formas de primeira pessoa do plural (fizemos, gostamos, amos) vo caindo em desuso. H pessoas que no as usam praticamente nunca. Querem mais? Na fala, a marca de plural no precisa aparecer em todos os elementos do sintagma. Assim, formas como esses menino levado (ou mesmo, pelo menos em Minas, ques menino levado!) existem na fala de todas as pessoas. Na escrita, naturalmente, a marca de plural sempre obrigatria em todos os elementos flexionveis: esses meninos levados. Mais um exemplo: o imperativo se forma de maneira distinta na fala e na escrita. Falando, dizemos: vem c, mas escrevemos: venha c (no Nordeste, esta forma tambm a falada). Outro: na fala, colocamos com toda liberdade o pronome oblquo no incio da frase: me machuquei na quina da mesa. Escrevendo, tem de ser: machuqueime na quina da mesa. Mais outro: falando, nem sempre usamos o artigo depois de todos(as): todas meninas tm relgios, na escrita, deve ser: todas as meninas. Acho que no necessrio continuar. As diferenas so muitas, como todos sabemos. Elas constituem uma das dificuldades principais que enfrentamos na escola, ao tentar produzir textos escritos. Alis, por que temos tanta dificuldade em escrever textos em portugus? No a nossa lngua materna? A resposta simples, mas pode surpreender alguns: no, o portugus (que aparece nos textos escritos) no a nossa lngua materna. A lngua que aprendemos com nossos pais, irmos e avs a mesma que falamos, mas no a que escrevemos. As diferenas so bastante profundas, a ponto de, em certos casos, impedir a comunicao (que criana de cinco anos entende empreste-lho?) Em outras palavras, h duas lnguas no Brasil: uma que se escreve (e que recebe o nome de portugus); e outra que se fala (e que to desprezada que nem tem nome). E esta ltima que a lngua materna dos brasileiros; a outra (o portugus) tem de ser aprendida na escola, e a maior parte da populao nunca chega a domin-la adequadamente. Vamos chamar a lngua falada no Brasil de vernculo brasileiro (ou, para abreviar, simplesmente vernculo). Assim, diremos que no Brasil se escreve em portugus, uma lngua que tambm funciona como lngua de civilizao em Portugal e em alguns pases da frica. Mas a lngua que se fala no Brasil o vernculo brasileiro, que no se usa nem em Portugal nem na frica. O portugus e o vernculo so, claro, lnguas muito parecidas. Mas no so em absoluto idnticas. Ningum nunca tentou fazer uma avaliao abrangente de suas diferenas; mas eu suspeito que so to diferentes quanto o portugus e o espanhol, ou quanto o dinamarqus e o noruegus. Isto , poderiam ser consideradas lnguas distintas, se ambas fossem lnguas de civilizao e oficialmente reconhecidas. Mas sendo as coisas como so, tendemos a pensar que o vernculo simplesmente uma forma errada de falar portugus. S que, para que o vernculo fosse errado, teria de existir tambm uma forma certa de falar; mas no Brasil no se fala, nem se pode falar portugus. Imaginem o seu companheiro de estdio de futebol dizendo: - Empreste-mo um minuto. Ou ento uma mocinha dizendo para a melhor amiga:

- Se eu a vir amanh, devolver-lhe-ei estas velhas fitas de vdeo. evidente que essas pessoas ficariam, no mnimo, com fama de pedantes. As duas lnguas do Brasil tm cada uma seu domnio prprio e, na prtica, no interferem uma na outra. O vernculo se usa em geral na fala informal e em certos textos escritos, como em peas de teatro, onde o realismo importante; j o portugus usado na escrita formal, e s se fala mesmo em situaes engravatadas como discursos de formatura ou de posse em cargos pblicos. Assim, o certo (isto , o aceito pelas convenes sociais) escrever portugus e falar vernculo. No pode haver troca: errado falar portugus. No sei se gosto dessa situao; mas um fato arraigado em nossa cultura e temos de conviver com ele. Agora, uma observao: o vernculo a lngua materna de mais de cento e cinqenta milhes de pessoas, que o utilizam constantemente e no conhecem outra lngua. Mas no se escreve a no ser em ocasies particulares, no aparece na grande imprensa e no tem grande tradio literria; alm disso, no reconhecido como lngua oficial. Isso faz do vernculo uma lngua grafa, como as que examinamos na primeira parte do deste ensaio. No s isso, mas com toda probabilidade a maior lngua grafa do mundo. J houve tentativas, ou pelo menos sugestes, de que se passasse a escrever em vernculo no Brasil. Mrio de Andrade passou vrios anos escrevendo uma Gramatiquinha da fala brasileira, que nunca chegou a publicar, e que concebia como parte de um projeto mais amplo, de redescoberta e definio do Brasil (Edith Pimentel Pinto, em sua edio da Gramatiquinha). Como se sabe, Mrio utilizava uma linguagem muito mais prxima do vernculo do que o portugus escrito atual. Como disse ele: No pensem que vou defender Portugal e me tornar simptico pros portugas nacionalistas no. No entanto, isso no vingou, pelo menos at o momento. Continuamos a escrever em portugus e a considerar o vernculo uma maneira errada de falar. Pessoalmente, no tenho grandes objees quanto a se escrever em portugus, mas acho importante que se entenda que ele (pelo menos no Brasil) apenas uma lngua escrita. Nossa lngua materna no o portugus; mas acho importante que se entenda que ele (pelo menos no Brasil) apenas uma lngua escrita. Nossa lngua materna o vernculo brasileiro isso no um slogan, nem uma posio poltica; o simples reconhecimento de um fato. Assim, no se cogita de substituir o portugus pelo vernculo na escrita. Mas, nos ltimos anos, tem havido um aumento notvel de interesse pelo vernculo como lngua a ser estudada. O meu amigo e colega Ataliba de Castilho coordena hoje um grupo de lingistas que vem realizando um trabalho muito interessante de descrio da estrutura do vernculo. H esperanas, portanto, de que, dentro de alguns anos, se possa dispor de gramticas adequadas da nossa lngua materna, por tanto tempo ignorada, negada e desprezada.

Mario A. Perini