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As Cores da Infâmia Albert Cossery Este livro foi digitalizado por Sandra Leonor Ferreira em Setembro de 2008 para uso exclusivo de deficientes visuais. Contracapa: O que mais alegrava Ossama era contemplar o caos. De cotovelos apoiados no corrimão da passagem aérea cujos pilares metálicos rodeavam a praça Tahrir, ruminava ideias atrevidamente contrárias aos discursos propagados pelos pensadores oficiais, os quais garantiam que a perenidade de um país estava subordinada à ordem. O espectáculo que tinha diante dos olhos condenava sem apelo essa afirmação imbecil. Desde há algum tempo que aquela construção, imaginada por engenheiros humanistas para evitar aos infelizes peões os perigos da rua, lhe servia de observatório panorâmico, reforçando a sua íntima convicção de que o mundo poderia continuar indefinidamente a viver na desordem e na anarquia . Badanas: Não há nada de mais imoral do que roubar sem riscos. É o risco que nos diferencia dos banqueiros e dos seus émulos que praticam o roubo legalizado com a cobertura do governo. ALBERT COSSERY Albert Cossery, em As Cores da Infâmia, continua a perseguir a imbecilidade dos grandes deste mundo, para ele uma fonte de inspiração inesgotável. O seu riso é o de alguém que serenamente descobriu «a face ignóbil e grotesca dos poderosos da terra». Deste escritor egípcio de língua francesa, que nasceu no Cairo em 1913 e vive desde 1945 em Paris, num quarto de hotel, a Antígona já publicou Mendigos e Altivos, Mandriões no Vale Fértl e A Violência e o Escárnio, livros que segundo Georges Henein, seu compatriota egípcio, «têm o mérito de valorizar um não sei quê que se deixa dificilmente captar e que consiste numa espécie de alongamento particular e caprichoso da duração do tempo, alongamento em cujo coração o oriental saboreia a sua vida», Já para Henry Miller, a obra de Cossery constitui «uma surpresa total. É o género de livros que precede as revoluções e engendra a revolução, se é que as palavras possuem algum poder».

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Page 1: As Cores Da Infâmia

As Cores da InfâmiaAlbert Cossery

Este livro foi digitalizado por Sandra Leonor Ferreira em Setembro de 2008 para uso exclusivo de deficientes visuais.

Contracapa:O que mais alegrava Ossama era contemplar o caos. De cotovelos apoiados no corrimão da passagem aérea cujos pilares metálicos rodeavam a praça Tahrir, ruminava ideias atrevidamente contrárias aos discursos propagados pelos pensadores oficiais, os quais garantiam que a perenidade de um país estava subordinada à ordem. O espectáculo que tinha diante dos olhos condenava sem apelo essa afirmação imbecil. Desde há algum tempo que aquela construção, imaginada por engenheiros humanistas para evitar aos infelizes peões os perigos da rua, lhe servia de observatório panorâmico, reforçando a sua íntima convicção de que o mundo poderia continuar indefinidamente a viver na desordem e na anarquia .

Badanas:

Não há nada de mais imoral do que roubar sem riscos. É o risco que nos diferencia dos banqueiros e dos seus émulos que praticam o roubo legalizado com a cobertura do governo.

ALBERT COSSERY

Albert Cossery, em As Cores da Infâmia, continua a perseguir a imbecilidade dos grandes deste mundo, para ele uma fonte de inspiração inesgotável. O seu riso é o de alguém que serenamente descobriu «a face ignóbil e grotesca dos poderosos da terra». Deste escritor egípcio de língua francesa, que nasceu no Cairo em 1913 e vive desde 1945 em Paris, num quarto de hotel, a Antígona já publicou Mendigos e Altivos, Mandriões no Vale Fértl e A Violência e o Escárnio, livros que segundo Georges Henein, seu compatriota egípcio, «têm o mérito de valorizar um não sei quê que se deixa dificilmente captar e que consiste numa espécie de alongamento particular e caprichoso da duração do tempo, alongamento em cujo coração o oriental saboreia a sua vida», Já para Henry Miller, a obra de Cossery constitui «uma surpresa total. É o género de livros que precede as revoluções e engendra a revolução, se é que as palavras possuem algum poder». Para Cossery, «não fazer nada é uma actividade interior», daí ter sido preciso esperar quinze anos por este último romance, onde são abordados todos os seus temas predilectos: ódio aos nababos, ironia em relação ao poder e desejo de ver triunfar as únicas criaturas credoras da sua consideração: aquelas que perceberam que a vida é outra coisa, e nada tem a ver com a posse de bens materiais. Este último livro do autor egípcio, mestre da preguiça e ocioso impenitente, vem lembrar uma evidência demasiado esquecida, a de que «nada é trágico nesta terra para uma pessoa inteligente», nem sequer a canalhice e a estupidez. As Cores da Infâmia, prosseguindo a gesta dos anti-heróis das ruelas do Cairo, conta a história de um ladrão inteligente e irónico que encontra na carteira de um promotor imobiliário sem escrúpulos uma carta que prova a sua responsabilidade no desabamento de um prédio de aluguer, causando a morte de pobres inquilinos.

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Esta obra foi publicada com a ajuda do Ministério da Cultura francês, no âmbito do apoio à tradução.

Título original LES COULEURS DE L'INFA\MIE Autor Albert Cossery Tradução Ernesto Sampaio Capa Antígona (rua do Cairo, anos 30)Fotocomposição Alfanuméríco Impressão IAG ~ Artes Gráficas Copyright © 1999 Editions Joelle Losfeld, département de Mango Littérature Antígona para a língua portuguesa, 2000 1.ª edição portuguesa Abril de 2000 Antígona Editores Refractários Apartado 4192 - 1503-001 Lisboa E-mail: [email protected] http://www.antigona.pt Depósito legal n.º 149766/00 ISBN 972-608-120-3

Page 3: As Cores Da Infâmia

I A MULTIDÃO HUMANA que deambulava ao ritmo descuidado de um vaguear estival pelos passeios intransitáveis da cidade milenária de Al Qahira, parecia acomodar-se com serenidade e até com um certo cinismo, à degradação incessante e irreversível que a rodeava. Dir-se-ia que todos estes passeantes estóicos sob a avalanche incandescente de um sol em fusão mantinham, na sua vagabundagem infatigável, uma benévola cumplicidade com o inimigo invisível que minava os alicerces e as estruturas de uma capital outrora resplandecente. Impermeável ao drama e à desolação, esta chusma de gente carreava uma espantosa variedade de personagens pacificadas pela sua ociosidade; operários sem trabalho, artesãos sem clientela, 7 intelectuais desinteressados da glória, funcionários administrativos expulsos das repartições por falta de cadeiras, diplomados pela universidade vergados ao peso da sua ciência estéril, enfim, os eternos trocistas, filósofos amorosos da sombra e da quietude que dela emana, para quem a deterioração espectacular da sua cidade tinha sido especialmente concebida para lhes aguçar o sentido crítico. Hordas de migrantes vindas de todas as províncias - cheias de ilusões dementes sobre a prosperidade de uma capital transformada em formigueiro - tinham -se aglutinado com a população autóctone e praticavam um nomadismo urbano de um pitoresco desastroso. Nesta ambiência selvaticamente perturbada, os carros avançavam como se fossem engenhos sem condutor, sem ligar às luzes dos semáforos, transformando assim para o peão qualquer veleidade de atravessar a rua num gesto suicidário. Ladeando as artérias deixadas ao abandono pelos serviços de conservação e limpeza, imóveis prometidos a próximos desabamentos (e cujos proprietários há muito que tinham varrido do espírito qualquer sobranceria de possidentes) exibiam nas 8

varandas e terraços convertidos em abrigos precários os trapos coloridos da miséria como se fossem bandeiras de vitória. A vetustez destas habitações evocava a imagem de futuros túmulos e dava a impressão, neste país altamente turístico, de que aquelas ruínas indecisas haviam adquirido por tradição valor de antiguidades e permaneciam por consequência intocáveis. Em certos sítios, o rebentamento de um cano de esgoto formava um pântano tão largo como um rio, onde as moscas pululavam e de onde saíam eílúvios de inomináveis fedores. Miúdos nus e sem vergonha achavam graça em salpicar-se uns aos outros com esta água putrefacta, único antídoto contra o calor. Eléctricos cobertos de cachos humanos como num dia de revolução abriam lentamente passagem sobre as linhas atravancadas pela massa constrangedora de uma populaça há muito tempo treinada na estratégia da sobrevivência. Contornando obstinadamente todos os obstáculos e ciladas erguidos no seu caminho, esta populaça que nada repelia e que nenhum objectivo parecia atrair exclusivamente, prosseguia o seu périplo nos meandros da cidade investida pela decrepitude 9

no meio dos silvos das buzinas, da poeira, do lixo e dos charcos sem denotar o menor sinal de agressividade ou de protesto; a consciência de estar simplesmente viva parecia aniquilar nela qualquer outra consideração. De longe em longe chegava, difundida pelos altifalantes, como um rumor do além, a voz dos pregadores às portas das mesquitas. O que mais alegrava Ossama era contemplar o caos. De cotovelos apoiados no corrimão da passagem aérea cujos pilares metálicos rodeavam a praça Tahrir, ruminava ideias atrevidamente contrárias aos discursos propagados pelos pensadores oficiais, os quais garantiam que a perenidade de um país estava subordinada à ordem. O espectáculo que tinha diante dos olhos

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condenava sem apelo essa afirmação imbecil. Desde há algum tempo que aquela construção, imaginada por engenheiros humanistas para evitar aos infelizes peões os perigos da rua, lhe servia de observatório panorâmico, reforçando a sua íntima convicção de que o mundo podia continuar indefinidamente a viver na desordem e na anarquia. Com efeito, apesar do tumulto confuso que reinava na vasta 10

praça, nada parecia alterar o humor da população e a sua vigorosa aptidão para os sarcasmos. Ossama estava persuadido de que não havia nada mais caótico do que as guerras; contudo, duravam anos a fio e acontecia que generais notoriamente ignaros ganhassem batalhas, já que o choque é por essência um grande produtor de milagres! Sentia-se encantado por viver no meio de uma raça de homens aos quais nenhum destino iníquo tinha o poder de abalar a facúndia e a alegria. Em vez de irromper em vitupérios contra as arrelias impostas pela monstruosa degradação da sua cidade, comportavam -se de maneira afável e civilizada, como se não atribuíssem qualquer importância a incómodos materiais que só em almas mesquinhas podiam suscitar aflição. Esta atitude digna e orgulhosa maravilhava Ossama, pois era reveladora da total incapacidade dos seus compatriotas para conceber a tragédia. Era um jovem que andava pelos vinte e três anos, e sem ser de uma beleza fatal, nem por isso deixava de possuir um rosto atraente e olhos negros onde rebrilhava uma centelha de perpétuo divertimento, como se tudo o que via 11 e ouvia em seu redor fosse infalivelmente de natureza burlesca. Com incomparável elegância, vestia um fato de linho bege, uma camisa de seda natural enfeitada com uma gravata de um vermelho vivo e sapatos castanhos em pele de gamo. Esta andaina inadaptada à canícula não se devia a qualquer riqueza pessoal nem ao gosto de dar nas vistas, mas unicamente à obrigação que tinha de se precaver contra os riscos inerentes à sua profissão. Ossama era ladrão; não um ladrão legalista do estilo ministro, banqueiro, negocista, especulador ou promotor imobiliário, mas um modesto ladrão de rendimentos aleatórios, cujas actividades - sem dúvida por proporcionarem benefícios limitados - em todos os tempos e latitudes têm sido consideradas como uma ofensa à regra moral dos ricaços. Dotado daquela inteligência realista que não deve nada aos professores universitários, depressa compreendera que vestindo-se com elegância, à maneira dos larápios encartados do povo, conseguiria escapar aos olhares desconfiados de uma polícia para quem todo o indivíduo de aspecto miserável era automaticamente suspeito. Ninguém ignora que os pobres 12

são capazes de tudo. Desde tempos imemoriais, é esse o único princípio filosófico admitido e caucionado pelas classes possidentes. Para Ossama, este princípio ultrajante derivava de uma impostura, posto que se os pobres fossem capazes de tudo, não eram os seus caluniadores que iam impedi-los de ser ricos. Donde decorria que se os pobres persistiam no seu estado, era simplesmente porque não sabiam roubar. Na época em que ele próprio vivia como um honesto cidadão, aceitando a indigência como uma fatalidade, tivera de sofrer as suspeitas que os seus andrajos despertavam nos comerciantes e nos membros tacanhos da autoridade policial. Nesse tempo, sentia-se tão vulnerável que não ousava aproximar-se de certos bairros da cidade onde brilhavam os privilegiados da fortuna, com medo que o suspeitassem de más intenções. Só mais tarde - com a consciência finalmente iluminada acerca da verdade deste mundo - é que decidira ser ladrão e adoptara para exercer tal ofício de maneira respeitável os atributos visíveis dos seus superiores na corporação. Enfarpelado a partir de então com a roupagem adequada, podia frequentar sem dificuldade13

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os meios faustosos onde habitualmente se pavoneavam os seus mestres em rapinas e roubá-los por sua vez com elegância e em completa segurança. É bem verdade que esses furtos não passavam de uma recuperação mínima relativamente às quantias fabulosas que aqueles criminosos sem escrúpulos amontoavam, desprezando a miséria do povo. Deve dizer-se que a ambição de Ossama de modo nenhum consistia em ter uma conta no banco (acto vergonhoso por excelência), mas apenas em sobreviver numa sociedade regida por piratas sem estar à espera de uma hipotética revolução, continuamente adiada para o dia seguinte. O seu carácter jovial predispunha-o mais ao humor e às facécias do que aos imperativos de sombrias e longínquas vinganças. Pensou que já tinha admirado o suficiente o sucesso dos seus compatriotas em desembaraçar-se do caos e preparava-se para deixar aquele observatório quando o seu olhar, sempre em busca de um pormenor divertido, foi atraído por uma cena que se desenrolava num abrigo que servia de estação aos eléctricos. Um grupo de mulheres rechonchudas, carregadas 14

com um número incalculável de cestos e de sacos, discutiam com um homem ainda novo e de compleição avantajada, envergando uma camisola interior esfarrapada e uma espécie de trapo sujo enrolado na cintura, semelhante a uma estátua académica simbolizando a miséria. Estas ninfas monumentais acabavam aparentemente de descer de um eléctrico e pareciam manter com o homem da vestimenta sumária não se sabe que estranhas tratações que a distância e a cacofonia ambiente tornavam infelizmente inaudíveis. Ossama concentrou-se para tentar adivinhar a natureza da discussão quando de súbito esta terminou de maneira inesperada. Viu o homem tomar sob a sua protecção o mulherio assustado pela agressão permanente dos carros, erguer o braço para o céu como que a invocar o nome de Alá e escoltá-las na travessia da rua, saudado por um coro de buzinas, até ao abrigo de um passeio. Ali chegadas sãs e salvas, as mulheres desataram os lenços e cada uma deu uma moeda ao seu salvador, o qual, havendo retomado o fôlego, propunha já os seus serviços aos numerosos peões que hesitavam à beira do passeio, ainda sob o 15

efeito do choque de semelhante proeza. Ossama sentiu vivamente todo o burlesco contido numa cena destas, única no seu género. Passador de ruas! Um novo ofício ainda mais temerário que o de ladrão, porque implicava o risco de morte violenta, e que jamais ousaria imaginar nas especulações mais loucas sobre o engenho do seu povo. O homem que para subsistir tinha inventado esta espantosa função merecia a sua admiração e a sua amizade eterna. Gostaria de felicitá-lo e até de escrever ao governo a pedir que o condecorassem como exemplo de uma nova geração de trabalhadores. Aquele descobridor de empregos até então inusitados entre os desempregados endurecidos da capital submersa tinha incontestavelmente direito a uma medalha; mas Ossama desconfiava de todos esses ministros corrompidos com assento no governo, que de modo algum estavam em condições de apreciar uma iniciativa que não apresentava nenhuma astúcia susceptível de enriquecê-los, e decidiu deixá-los na ignorância de um fenómeno tão cativante. Lançou um último olhar sobre o homem andrajoso, um olhar cheio de ternura fraternal, 16

depois encaminhou-se para a escadaria que ia dar à rua Talaat Harb, desceu-a cautelosamente (os degraus estavam cobertos de uma espessa camada de poeira prejudicial aos seus sapatos) e encontrou-se no passeio da direita, nesse momento à sombra. Imediatamente uma doçura voluptuosa propagou-se em todos os seus membros ao contacto de um ar morno e viscoso, mas bastante refrescante comparado com o forno de onde saía. As roupas pareceram-lhe de uma consistência mais leve e retomou o seu passo de jovem pródigo e despreocupado para se misturar com a multidão. Com avidez, prestava atenção aos discursos dos transeuntes que caminhavam a

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seu lado, apanhando de passagem incríveis conversas onde a ironia e as invectivas contra a hierarquia dominante explodiam a cada instante, ilustrando essa mistura de insolência e de orgulho que a miséria concede aos seus eleitos. Ouvindo-os, parecia que cada um dos interlocutores se prevalecia de uma ascendência faraónica. A pretensão de todos aqueles maltrapilhos a uma nobreza imaginária seduzia agradavelmente o espírito de Ossama, para 17 quem a mais ostensiva das pobrezas constituía o sinal indubitável da verdadeira grandeza. Ao longo da rua, as lojas ostentavam nas montras a panóplia completa da sociedade de consumo, uma sociedade ainda muito fechada, mas absolutamente determinada a lucrar com as suas pilhagens. Viam-se toda a espécie de utensílios electrodomésticos, aparelhos de rádio, televisores, frigoríficos, jóias de alto preço, cortes de pano e de seda em abundância, tapetes persas, a última moda em toaletes femininas, luxuosas limusines de cromados cintilantes e, supremo absurdo, agências de viagens que expunham fotografias de paisagens nevadas, numa espécie de exotismo invertido. A maior parte da multidão permanecia indiferente a estas armadilhas primitivas, na maioria importadas do estrangeiro a fim de satisfazer a voracidade de uma tribo de gananciosos. Só raros indivíduos, fosse por fadiga, fosse por curiosidade infantil, se detinham para contemplar aqueles objectos que perturbavam o seu entendimento, perguntando a si próprios porque desonestidade do destino eram tão pobres num país tão rico. 18

O café Cosmopolita, que noutros tempos devera o renome ao nível social e intelectual da sua clientela, via-se agora invadido por montes de gente sem estatuto particular e degenerava lentamente no sentido da marginalização e do opróbrio. Tinha perdido a sua gloriosa esplanada aos poucos laminada com o correr dos anos pela maré devastadora dos passantes - e já só conservava meia dúzia de mesas no exterior, ao abrigo de um beco demasiado estreito para tentar quem passava. Ossama sentou-se a uma mesa no beco poupado pela multidão, pediu uma limonada e pôs-se a vigiar o passeio fronteiro, onde se erguia um velho prédio que conservava ainda alguns vestígios da sua sumptuosa arquitectura, à maneira de uma cortesã curtida pelos anos, que apesar das rugas deixa ainda entrever alguns magros vestígios da sua beleza desaparecida. Esta decadência de um edifício outrora opulento não tinha, deve dizer-se, nada que pudesse reter a atenção de Ossama, a não ser o portão de ferro forjado encimado por uma placa de mármore negro, onde estava gravada a letras douradas a inscrição «Clube dos notáveis», dando assim a entender às populações que não recrutava os 19

seus membros entre a canalha. Este antro da aristocracia mercantil já várias vezes tinha sido para o jovem a fonte de frutuosas recuperações individuais. Como o proclamava a tabuleta, os membros deste clube não eram só notáveis pelas suas riquezas mal adquiridas; eram-no também por veicularem nas suas carteiras uma porção, naturalmente ínfima, dessas riquezas de que Ossama tinha a gentileza de os aliviar no decorrer de um imperceptível encosto. A operação era divertida e fácil, e a ela acrescia ainda o prazer do jogador, posto que nunca sabia qual ia ser a sua próxima vítima, nem o montante da quantia recuperada. Na verdade, Ossama era um ladrão passavelmente fútil, mais preocupado com o lado divertido e incerto da aventura do que com os benefícios financeiros. A sua concepção cínica e mistificadora do roubo livrava-o da atitude sombria e ansiosa do ladrão vulgar, obnubilado pela estúpida moral dos ricaços. Com o coração tomado de uma alegre excitação, vigiava a entrada do clube como se desta fosse surgir a mulher divinalmente bela e lasciva imaginada pelos homens ociosos nas suas divagações eróticas. 20

Não foi este género de mulher ideal, mas uma rapariga de apenas dezassete anos que surgiu a seu lado e disse numa voz tímida, quase queixosa:

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-Posso sentar-me ao pé de ti? Ossama conhecia aquele tom de voz e voltou-se para observar a jovem, franzina e frágil no seu curto vestido de algodão estampado e com as suas jóias de pacotilha a rebrilhar ao sol. Um instante depois foi tomado de pânico; a intromissão da jovem ia comprometer-lhe os planos e além disso arrastá-lo para uma conversa inútil e enternecedora, prejudicial ao seu optimismo. Mas depressa sorriu e disse com o humor de um amante ulcerado pela incompreensão da sua bela: - Claro que podes, Safira. Para que são todos esses formalismos comigo? Assim entristeces-me. - Não queria incomodar-te. - Nunca me incomodas. Por Alá, será que não sabes? A jovem sentou-se, com os olhos de súbito iluminados por um brilho de gratidão. Sentia-se que ver Ossama era para ela uma felicidade, 21 talvez a única. A sua cara maquilhada sem excesso traía pela palidez o abuso da má alimentação e a complexidade de uma existência sem atractivos. Essa cara que exprimia a dor de uma pobreza imutável, mas sobretudo a resignação e a vergonha, não exercia sobre Ossama nenhuma sedução; contudo, ele mostrava-se sempre amistoso e compassivo para com a jovem. Não ignorava que ela dava voltas na sua cabeça a um projecto sentimental que o envolvia pessoalmente e contra o qual tentava defender-se, fazendo-se passar por uma criatura transviada e sem futuro. - É incrível! - exclamou de repente Safira, como se um acontecimento miraculoso a tivesse deixado extasiada. - Hoje, ao sair de casa, tinha a certeza de que iria encontrar-te. Não é maravilhoso? - Sinto-me tão contente como tu - respondeu Ossama, não deixando de suspeitar que a rapariga tinha percorrido toda a cidade à sua procura. - Acredita em mim: bendigo o acaso que me pôs no teu caminho. Adoptando este tom exageradamente caloroso, Ossama só pensava em estabelecer entre 22

ele e a jovem um clima de honesta e afectuosa camaradagem. Infelizmente, essa cordialidade tingida de malícia contribuía, apesar do exagero, para encorajar Safira na sua modesta demanda de um amor partilhado. Ela vivia com a mãe nos fundos de uma cave do bairro de Choubrah, no isolamento e na mais completa indigência. Para angariar as piastras quotidianamente necessárias ao seu sustento no caos, Safira só dispunha dos únicos meios oferecidos a todos os proletários dos regimes de fome, quer dizer, insistir na procura de empregos inexistentes e morrer de inanição, ou prostituir-se a qualquer preço, pois era ainda demasiado ingénua para atribuir o justo valor à dádiva do seu corpo. Ossama tinha dormido com ela na noite do primeiro encontro, e Safira tinha pedido como retribuição uma quantia tão módica que esta ausência de venalidade numa prostituta o deixara surpreendido e embaraçado. Relações sexuais confinando quase com a gratuitidade deviam forçosamente ocultar qualquer armadilha, e ele desde então abstivera-se de renovar tal momento de desvario, sem no entanto recusar a sua amizade à rapariga. 23

Ela parecia estar agarrada a ele como um afogado se agarra a um argueiro - considerando-se Ossama, nesta emergência, ainda mais débil do que um argueiro - talvez porque o via sob o aspecto de um réprobo igualmente infeliz. Sabia pelo jovem que ele era um ladrão, portanto à sua maneira um pária vivendo à margem da sociedade, e isso parecia-lhe, na sua lógica de rapariga ignorante, o elemento primordial de uma ligação amorosa. O que nela ofuscava o espírito de Ossama e tinha uma influência nefasta sobre o moral dele era a sua complacência, a sua predisposição para a resignação. Havia tanta amargura nisso, tantas queixas acumuladas no seu olhar que paralisava nele qualquer vontade de se rir. Na verdade, a compaixão que sentia

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pela jovem não o deixava vê-la sob o ângulo da irrisão e condenava-o à visão de uma realidade à qual negava imperiosamente os aspectos trágicos. Em certos momentos, ela entregava-se aos arroubos e facécias próprios da sua idade, e logo a seguir tomava bruscamente um ar severo, quase desvairado, como se imagens escabrosas da sua vida lhe ressurgissem de súbito na memória nos 24

seus pormenores mais ignóbeis e ensombrassem aquele curto instante de entusiasmo juvenil. Ao mesmo tempo que dava os parabéns à rapariga pelo seu aspecto, Ossama não deixava de espreitar pelo canto do olho a entrada do clube, na esperança de que o dia não fosse acabar na morosidade e no vazio. Tal manejo não escapou a Safira, que fez menção de se levantar, dizendo num tom humilde e repassado de sofrimento: - Deves estar com certeza à espera de alguém, por isso vou-me embora. Terei talvez ocasião de voltar a ver-te. -Pela saúde da tua mãe, deixa-te estar tranquila. Não estou à espera de ninguém. - A propósito da minha mãe, posso dizer-te que ela gosta muito de ti. Ainda ontem me disse que rezava para que Alá te guardasse e fizesse com que nunca fosses apanhado pela polícia. Não achas generoso da sua parte? - O quê? Falaste de mim à tua mãe? - Quando me perguntou de onde tinham vindo estes belos sapatos - estendeu as pernas e fez cintilar na sombra do beco um magnífico 25 par de sapatos de verniz ornamentados com fivelas em metal prateado -, não pude conter-me e confessei-lhe que tinhas sido tu quem mos oferecera. Ficas zangado? - E também lhe disseste que eu era ladrão? - Não te zangues. Sabes, com a vida que tem levado desde a morte do meu pai, a minha mãe anda um pouco desarranjada da cabeça. Não é capaz de estabelecer qualquer diferença entre os ofícios. Se lhe dissesse que eras banqueiro, para ela era o mesmo. - Que Alá nos proteja! Então porque não lhe disseste que era banqueiro? - perguntou Ossama numa voz calma, se bem que levemente irritada. - Não sei - gemeu Safira, que dava a impressão de estar a conter as lágrimas. Talvez por me sentir orgulhosa de ti. És o único ladrão que conheço. Ossama não lhe perguntou se conhecia muitos banqueiros, visto ainda se sentir estupefacto com a habilidade da jovem para contornar a evidência. Aquela infeliz ia levá-lo direitinho à forca, se não encontrasse remédio para o erro que tinha cometido ao revelar-lhe as suas actividades.26

Era ainda a compaixão que se encontrava na origem desta odiosa história; tinha-lhe comprado o par de sapatos no dia em que se sentira fortemente comovido por ela lhe aparecer com umas alpergatas esburacadas. E além disso com a ideia insidiosa de que aqueles sapatos de um modelo tão frívolo iriam permitir a Safira reclamar, no comércio galante que mantinha, quantias à medida da sua distinção. Agora lamentava esse gesto de opulência, do qual podia esperar alguma gratidão, mas que se tinha transformado numa ameaça para a sua carreira. Por intermédio desta amorosa desmiolada, depressa todas as polícias da capital estariam a par do seu subterfúgio. Vestir-se com elegância para simular respeitabilidade não ia servir-lhe de nada se não abafasse logo de início tão má publicidade. Estas reflexões amargas não duraram naturalmente mais do que o tempo de alguns suspiros, não afectando a sua convicção de que neste mundo nada é trágico para um homem inteligente. De acordo com a sua ética tolerante e jovial, não estava nada inclinado ao ressentimento, e no seu foro íntimo riu-se ao pensar que tinha dito à rapariga ser um ladrão na certeza de afastá-la de si.27

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Essa confidência, porém, em vez de afastá-la, mais não tinha feito do que realçar o seu prestígio aos olhos de Safira, persuadida sem dúvida pelo exemplo de riquíssimas personagens popularizadas pelos jornais de que a profissão de ladrão era sinónimo de uma posição social elevada. Ela não tinha deixado de persegui-lo, acumulando os encontros pretensamente fortuitos e os olhares sorrateiramente lânguidos. Enquanto conhecedor da mentalidade feminina, Ossama teve de admitir que se tinha lamentavelmente enganado: qualquer imbecil sabia que as mulheres eram imunes a considerações morais quando se julgavam apaixonadas. Durante um momento ficou silencioso, com um sorriso irónico a aflorar-lhe os lábios, como se estivesse a fazer pouco de si mesmo. Não podendo um sorriso e um silêncio assim significar outra coisa senão uma crítica muda ao seu encontro, Safira tentou fazer-se desculpar, dizendo numa voz um pouco trémula: - Talvez tenha cometido uma falta grave. Perdoa-me. 28

- Não, não tem nada de grave. Não fiques preocupada por minha causa. No fundo, a tua mãe parece-me ser uma pessoa muito sensata. Agradece-lhe da minha parte as suas orações. Quem sabe, talvez vá ter necessidade delas. - Isso que dizes da minha mãe é a sério? - Fica sabendo que alguém que não estabelece nenhuma diferença entre um banqueiro e um ladrão não pode ser catalogado como doido. É o único critério para avaliar a saúde mental de um indivíduo. Não há outros. Omitiu, no entanto, revelar à rapariga que tal critério era de sua própria invenção. Se bem que ela acreditasse em tudo o que Ossama lhe dizia, esta avaliação da loucura, baseada num critério tão simplista, pareceu apesar de tudo insuficiente a Safira para estimular o estado psíquico de sua mãe. - Tens a certeza? - inquiriu nervosamente. - Pela minha honra! - jurou Ossama, levando a mão ao peito a fim de provar a sinceridade do seu diagnóstico. -Fico muito contente. Tinha medo de vê-la tornar-se completamente doida. Trouxeste a alegria ao meu coração. 29 Ele distinguiu um real alívio no rosto da jovem e sentiu acender-se o desejo de ensinar a sua concepção do mundo àquela neófita exemplar. Mas esse impulso foi de curta duração. Vulgarizar um conceito tão subversivo em benefício de uma criatura irrecuperável como Safira era o mesmo que oferecer pérolas a uma velha agonizante. - Diz-me lá - continuou ele no tom de uma conversa divertida -, falas muitas vezes com a tua mãe? Ossama pretendia sobretudo manter o diálogo e não dar à companheira a impressão de que ela o aborrecia. Apesar de tudo, as desgraças da jovem fascinavam-no realmente, como se todas as iniquidades por ela sofridas - toda aquela herança de antepassados imemoriais _ tivesse raízes em plagas longínquas e não no seu meio imediato. Desde que ascendera ao paraíso dos ladrões, ela já não ouvia o canto queixoso nem os gritos de uma população resignada que continuava a acreditar no mito do paraíso celestial. Escutar Safira era ouvir o eco enfraquecido mas sempre vivaz dos tempos antigos, em que ele próprio perecia sob o 30 triunfo da impostura. Sem o confessar a si mesmo, esperava ouvi-la queixar-se e lamentar-se, abrindo assim ao seu coração os caminhos perdidos da infância, com todo o cortejo de misérias e de infâmias que a sua nova sabedoria tinha relegado para o plano das peripécias irrisórias. Contudo, esta vaga aspiração à nostalgia não o desviava da sua principal preocupação, que era a entrada do clube, ocultada intermitentemente da sua vista pelas vagas de transeuntes. Até ali não

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vira mais do que criados em trajo aparatoso que vinham por sua vez respirar o ar sobreaquecido da rua e lançar um olhar de reprovação sobre a interminável procissão dos excluídos do clube no seu deambular despreocupado ao sol. Sem dúvida que os membros do clube - os senhores notáveis abriam naquele momento o apetite ingurgitando os seus álcoois predilectos, ao mesmo tempo que fomentavam novas e suspeitas transações. Mas a hora do almoço aproximava-se e Ossama sabia que nenhum daqueles filhos de um cão perdia um repasto; arredondar a barriga era o único trabalho a que se entregavam com competência e honestidade. 31

- Sim, falo com a minha mãe, mas não muitas vezes. Dá-me pena vê-la misturar tudo nas nossas discussões. No fim, fico com vertigens. -Discutem sobre quê? Safira fez uma pausa antes de responder. Olhou Ossama com uma ousadia que não lhe era habitual e disse, num tom quase trocista: - Em tua opinião, os pobres podem discutir acerca de quê? Aquilo era um golpe baixo, uma manobra pérfida da jovem, e por um instante Ossama sentiu-se mortificado com a sua falta de tacto. Estava certo de que as duas mulheres só podiam falar de dinheiro - especialmente da falta de dinheiro - e decidiu eliminar prontamente aquele capítulo espinhoso através de uma fórmula divertida. - Bem sei que os pobres só podem falar de dinheiro, mas falar de dinheiro nunca enriqueceu ninguém. Seguiu-se um riso do género simpático e contagioso, com o fito de convencer a rapariga a segui-lo na via da jovialidade. - Mas Safira recusava obstinadamente rir-se; pelo contrário, a troça intempestiva de Ossama só 32

contribuíra para ficar mais triste com a frivolidade da atitude do jovem em relação à pobreza. - O dinheiro, para mim, não conta - disse ela. - De que serve o dinheiro se não houver um pouco de amor na vida? Baixou os olhos e ficou imóvel com uma expressão de susto na cara, como se estivesse à espera de um sismo. Ossama não se deixava enganar; era-lhe fácil entender que tal mensagem lhe dizia respeito e que devia fazer de conta que não era o seu destinatário. A malícia feminina, mesmo nesta adolescente mal saída da puberdade, sempre o divertia, tão fácil que era como arma, boa quando muito para envolver ingénuos ou cretinos. Apesar de tudo, não deixou de ser tocado pelo confessar daquela frustração e tomou a mão da rapariga, num gesto amistoso e consolador. Mais uma vez a compaixão que sentia pela sua companheira lhe apareceu como uma tara extremamente perigosa para a sua liberdade. - Falas de amor com a tua mãe? - Com quem queres que fale? É a única pessoa a quem posso confiar-me. Ela, pelo menos, ouve-me. 33 Ossama admirou o estratagema da jovem que o atacava sem o nomear, sabendo muito bem que ele havia de reconhecer-se por aquela alusão à sua indiferença. Sob uns ares de vítima inocente, usava a manha própria do seu sexo para conseguir os fins que pretendia e que consistiam em aprisioná-lo nas malhas de uma intriga mesquinha. Mas como querer-lhe mal? Tudo aquilo não passava de conversa fiada sem inconvenientes duráveis. A sua indulgência para com as insinuações da obstinada amorosa devia-se sobretudo à excessiva juventude de Safira e às suas astúcias absolutamente inoperantes. O que jamais suportaria de uma mulher adulta, aceitava-o perfeitamente da rapariga que experimentava à sua custa a sem-razão e as ambiguidades atribuídas por eminentes psicólogos ao mistério feminino. Como Ossama nunca tinha descoberto em nenhuma mulher o mais pequeno mistério, os artifícios da pobre Safira não lhe provocavam

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habitualmente nenhuma perplexidade, mas apenas uma vaga piedade em relação à estupidez universal. - Mas eu também te dou ouvidos - protestou ele por pura bondade e a fim de não afligir 34

demasiado a jovem pela sua constante recusa em compreender. - É verdade, ouves-me mas é para troçar de mim. Ainda no outro dia, quando te disse que andava à procura de trabalho, respondeste-me que não procurasse porque com a minha má sorte me arriscava a encontrá-lo. E depois desataste a rir-te. Ao vê-lo rir-se com frequência quando ela lhe descrevia certos aspectos da sua vida lamentável, Safira tinha forjado do jovem uma imagem conforme à sua atitude desenvolta, quer dizer, a de um ser egoísta e frívolo, desdenhoso dos sofrimentos alheios. Por outro lado, para não contrariar essa exuberância blasfema, tentava por vezes rir-se ela própria das suas desgraças, talvez com a ideia supersticiosa de esconjurar a má sorte. - Aborreço-te com as minhas histórias disse ela com um sorriso forçado. - Fala-me antes das tuas proezas. São de certeza mais divertidas do que as discussões que tenho com a minha mãe. Também eu gostava bem de me tornar uma ladra. Infelizmente não tenho a tua coragem; acho que me faria prender ainda antes de tentar. 35 - Escuta, Safira, enganas-te, não tenho coragem nenhuma - respondeu Ossama, com fingida lassidão. - Disse-te que era ladrão, mas tratou-se de uma brincadeira da minha parte. Lamento que tenhas acreditado nisso. Não se deve tomar sempre a sério tudo o que digo. O rosto da rapariga crispou-se horrivelmente, como perante o anúncio de uma traição imperdoável. O ofício crapuloso do jovem tinha-a levado a acreditar que a sua própria ruína não constituía um obstáculo às relações amorosas entre dois seres igualmente pervertidos pela miséria. Mas se Ossama já não era o ladrão que pretendera ser, como poderia apaixonar-se por uma pequena prostituta de nada. De olhos marejados de lágrimas, ela olhava o rapaz como se fosse um renegado que se passara para o inimigo de classe. -Que tens? - perguntou Ossama, com um assomo de remorso na voz. - Ofendi-te? A jovem olhou-o em silêncio, mais por pudor do que por causa da cólera que a sufocava. Não podia explicar a Ossama que a sua mentira a privava do único bem gratuito de que os miseráveis podiam usufruir nesta terra. 36

- Foi então uma brincadeira! - exclamou por fim com amargura. - Disse-te aquilo para te divertir. Lamento, mas não faças disto uma tragédia. Pelo contrário, devias estar feliz por saber que eu não sou um ladrão. - Feliz porquê? Se não és ladrão, como podes frequentar (ela não disse amar) uma rapariga como eu? No fim de contas, não passo de uma prostituta. - Mas o que tu és não me interessa. Alguma vez te recusei a minha companhia? Mesmo que tivesses morto alguém, para mim serias sempre respeitável, e até é possível que te estimasse ainda mais. - Não quero matar ninguém. - Fazes mal. Muita gente merece ser assassinada. Há alguns anos, não pensava em mais nada senão em suprimir a maioria desses canalhas. Mas agora prefiro que vivam o maior tempo possível: dão-me vontade de rir. - Podes dizer-me quem são os tais canalhas? -Um dia saberás, ou se calhar nunca. Em todo o caso, acredita em mim: não só existem, como ainda proliferam no mundo inteiro. 37

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Safira pareceu perturbada e até assustada com esta afirmação enigmática. Embora estivesse acostumada às manias dele, a raiva de Ossama contra pessoas que ela não conhecia tinha-a mergulhado na maior das confusões. De rapaz distante e alegremente trocista, o seu companheiro transformara-se subitamente num personagem inédito, portador de uma ideologia sanguinária. Depois de se ter pretendido ladrão, será que se ia agora travestir de assassino? -Por Alá! Não te entendo. Tudo o que dizes me desconcerta. Ris-te de tudo e nada parece inquietar-te. Vejo-te vestido como um príncipe e no entanto andas a pé, no meio da multidão, sem medo de te sujar. Podes explicar-me este mistério? - Se, conforme tu dizes, visto como um príncipe, é porque por morte de meu pai herdei todos os seus fatos - explicou Ossama com a calma de um mentiroso inveterado. Era um funcionário importante e devia apresentar-se sempre de maneira irrepreensível. Em memória dele, também eu me quero mostrar sob uma aparência decente para não o decepcionar no túmulo.38

Custa-me falar deste acontecimento, mas para que possas ter uma ideia clara de quem eu sou não hesitei em revelar-to. Tomou o ar entristecido que todo o homem deve adoptar ante a recordação de certos mortos. Aparentemente, a jovem parecia satisfazer-se com a sua explicação, e no entanto a expressão dela permanecia resolutamente triste; a origem da elegância de Ossama não tinha modificado em nada a sua condição de amorosa traída. Tornava-se claro para ela que o momento já não era de brincadeiras e jogos de sedução. A decência exigia que se fosse embora e deixasse o rapaz a evocar sozinho a memória do pai, esse funcionário importante de fatos admiravelmente talhados, que irrompera na conversa deles e cujo fantasma continuava a subjugá -la. - Bem, vou-me embora. Espero que nos voltemos a ver - disse ela, com uma expressão de temor. - Claro que sim. Serás sempre bem-vinda. Ossama voltara a encontrar o seu optimismo. Sentia-se contente com a narrativa apócrifa sobre a proveniência dos fatos, história que 39 podia voltar a servir noutras circunstâncias e que até mesmo a um polícia obtuso pareceria plausível. Deixando a rapariga entregue aos preparativos da partida, o seu olhar vagueou sobre a multidão sempre densa, à espreita de uma brecha naquela muralha humana que lhe permitisse avistar a porta escancarada do clube. Tinha a intuição de que aquele dia lhe destinava um magnífico presente, como que uma espécie de recompensa depois do deprimente encontro com Safira. Esta levantou-se com lentidão, como se não quisesse distrair Ossama das suas divagações, depois afastou-se lentamente, passando da sombra do beco ao sol da rua, fazendo rebrilhar pela última vez as jóias de pacotilha que ostentava, antes de desaparecer na multidão. Deixado sozinho, Ossama soltou um suspiro de moribundo que volta à vida. Depois de cada encontro com Safira, ficava com a impressão de ter sido sangrado e, coisa mais dramática, de se tornar mais atento aos sofrimentos humanos. Sacudiu-se e esforçou-se por esquecer este fúnebre episódio. Liberto de qualquer entrave devido à galantaria, esticou o pescoço e fixou 40

os olhos, agora sem reticências, no passeio em frente. Ao fim de alguns momentos, a sua esperança foi finalmente cumprida. Com efeito, como que correspondendo à expectativa dele, embora tardiamente, um homem acabava de aparecer à soleira do venerável portal e permanecia imóvel, cego pela fulgurante claridade da rua. Era um espécime precioso da confraria dos notáveis, um homem de cerca de cinquenta anos, alto e de corpulência avantajada, envergando um fato azul marinho cingido às suas redondezas e refegos, um trajo que correspondia àquela espécie de uniforme preferido dos seus colegas, todos diplomados na mesma escola de alta delinquência. Tinha na mão um rosário de âmbar que manejava nervosamente, como se tentasse aplacar uma dor de dentes ou os ardores de uma úlcera no estômago. Apesar de um físico

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suficientemente repugnante para conseguir enjoar até uma cabra lúbrica, tudo nele ressumava opulência e roubo em grande escala. O seu rosto de traços inchados pela gordura de sumptuosas comezainas estava contudo isento dessa astúcia e segurança dos finórios da sua têmpera; toda a soberba lhe estava 41 naquele instante cruelmente diminuída por uma inquietação tenaz ligada a alguma calamidade de ordem privada, que Ossama atribuía à perda de dinheiro ou à traição de uma amante. De pé à entrada do clube, agitava-se em todos os sentidos, com o olhar a explorar para além da multidão a amálgama de carros, na esperança evidente de atrair sobre a sua notável pessoa a atenção do motorista. Com a majestade de um senhor habituado a dominar a canalha, Ossama levantou-se e atravessou a rua com passo autoritário, contando com os atavios distintos para refrear o ardor belicoso dos automobilistas na sua corrida para o nada. Atingiu o passeio fronteiro exactamente no instante em que o carro do homem se detinha à altura da porta do clube. O cavalheiro, que aguardava aquela chegada com o desespero de um asno abandonado pelo dono no meio de um tumulto, atirou-se brutalmente para cima do lento desfile de passeantes pacíficos, atraindo sobre si as mais desrespeitosas maldições e injúrias. Durante este curto mas desagradável trajecto, chocou com Ossama, o qual com uma destreza de mago o aliviou da 42

carteira. Naqueles apertos, o homem não deve ter sentido nada porque se precipitou para o carro com a vivacidade célere de alguém que tenta escapar a um linchamento. A curiosidade e não a expectativa de uma prisão improvável lançou Ossama na procura de um táxi. Tinha pressa em examinar o produto do furto e conhecer o nome da vítima, parecendo-lhe esse nome, sem saber bem porquê, beneficiar de uma detestável notoriedade. O homem devia ter cometido qualquer malfeitoria grandiosa que explicava o estado de moroso abatimento em que o tinha visto à saída do clube. Ao mesmo tempo que pensava com júbilo no que ia descobrir, Ossama esforçava-se por captar a atenção de um motorista de táxi no torvelinho da circulação. Fazer parar um táxi no meio de todos aqueles veículos dotados de movimento perpétuo tinha algo de expedição guerreira, sobretudo desde que os estupores dos motoristas contraíram o hábito de só deixar embarcar os clientes oriundos da península arábica, reconhecidos pelas suas vestimentas tradicionais e pelo excedente de mulheres pertencentes aos seus haréns. Estes potentados 43 do deserto tinham fama de distribuir dinheiro como outros distribuem amendoins, o que fazia deles o alvo predilecto de toda a população comerciante. Ossama maldizia estes invasores a cheirar a petróleo que pela ostentação das riquezas monopolizavam em seu proveito todos os serviços nos hotéis, círculos de jogo, cabarés e até as infelizes bailadeiras do ventre que viam neles a salvação. O desfile de carros a rolar continuamente apesar das crateras e dos montes de terra causados pelos eternos trabalhos públicos - dir-se-ia que participavam numa corrida de obstáculos - exortava-o à prudência. Foi só aproveitando um ligeiro abrandar do tráfico, devido ao desfalecimento de um autocarro que soçobrou sob a massa de viajantes, que decidiu colocar-se deliberadamente na trajectória de um táxi obrigado pela multidão a renunciar provisoriamente ao dogma da velocidade. O motorista do táxi, chocado com esta maneira incivil e suicida de apelar aos seus préstimos, apostrofou-o furibundo, como se Ossama tivesse insultado os seus ascendentes mais afastados e os seus descendentes ainda por nascer. 44

- Maldita seja a tua mãe! Quase te atropelava! Se queres morrer, vai afogar-te no rio. -Deus providencia tudo - respondeu calmamente Ossama. - Aliás, nada me mete medo: trago

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comigo um amuleto. O motorista tivera tempo de constatar a elegância de Ossama e a expressão do seu rosto havia-se suavizado com a perspectiva de uma corrida exageradamente dispendiosa. À falta de um príncipe saudita, este jovem também podia dignificar a sua viatura novinha em folha. Tinha horror à gente do povo que a fretava aos magotes e lhe sujava os bancos, engolindo pastéis como se o carro fosse um lugar de festividades. - E onde queres ir com o teu amuleto? -A cidade é grande. Leva-me para onde quiseres. - Pois bem, às tuas ordens, monsenhor e que Alá nos proteja. Ossama subiu para o táxi, fechou a porta e instalou-se confortavelmente nos estofos que cheiravam a carro novo. Como se quisesse dar ao seu nobre cliente uma demonstração de virtuosismo, o motorista agarrou-se ao volante 45 e disparou a máquina à velocidade de um foguete. Este agir bárbaro em nada inquietou Ossama, já que se inscrevia nas normas da histeria colectiva. Com a alma em paz, tirou do bolso a carteira de que acabava de se apoderar e abriu-a com a delicadeza de um amante rasgando o sobrescrito da missiva da sua querida. Era uma carteira em pele de crocodilo, sem dúvida de um preço inconfessável, e que exalava um forte perfume a corrupçào: Continha uma carta; Ossama retirou-a e leu o nome do destinatário no sobrescrito previamente aberto com um corta-papel, pois estava hermeticamente fechado. A carta, ao cuidado do clube dos notáveis, era dirigida a um homem cujo nome há uma semana que conhecia grande fama por causa de um escândalo abominável. Este riquíssimo promotor imobiliário era perseguido pela justiça enquanto responsável pela morte de meia centena de inquilinos de um prédio de rendas limitadas, construído pela sua empresa e que desabara pouco depois de ter sido inaugurado com grande pompa por uma delegação governamental. Perplexo com a coincidência' Ossama retirou a carta do sobrescrito 46

e pôs-se a lê-la. A carta manuscrita, em papel com o timbre do Ministério das Obras Públicas, parecia emanar de um cúmplice aterrado com as conseqüências judiciárias da hecatombe. Avisava o destinatário, num estilo mordaz e repassado de humor involuntário, que não contasse mais com a sua colaboração tanto presente como futura, enquanto houvesse entre eles aqueles cinquenta cadáveres, posto que não era seu propósito enriquecer os cangalheiros. Quanto à comissão que o outro lhe devia pela sua última intervenção junto do ministério envolvido, prescindia dela, não podendo de maneira nenhuma manter o menor contacto com um homem decididamente mais apto para construir túmulos do que prédios, mesmo de renda limitada. Em resumo, tratava-se de uma carta de ruptura total de um larápio a quem a ideia da prisão privava de qualquer cortesia para com um acólito desconsiderado. Era assinada pelo próprio irmão do ministro das Obras Públicas, irmão indigno e muito popular entre os traficantes mais duvidosos da capital. Embora se considerasse um privilegiado da fortuna, Ossama esperava tudo menos este 47 magnífico achado. Releu a carta varias vezes com feroz satisfação até ao momento em que compreendeu que tinha entre as mãos uma bomba e ignorava como fazê-la explodir. 48

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II O TÁXI DEPÔS OSSAMA nas imediações do bairro de Sayeda Zenab. Fora nascido e criado neste bairro popular e não convinha, por simples decência, exibir-se a sair de um táxi perante uma população que o conhecera descalço e esfarrapado. Em boa verdade, o jovem só voltava a esta aglomeração piolhosa para visitar o pai, antigo operário que ficou cego por causa de um golpe de cassetete que um polícia lhe desferiu na cabeça durante os tumultos que se seguiram ao aumento do preço de certos produtos alimentares indispensáveis à sobrevivência da totalidade dos cidadãos. Isto tinha-se passado antes da revolução dos militares e, desde então, vivia recluso num alojamento no primeiro andar de uma casa a cair aos bocados, 49

mas mantida de pé graças às repetidas orações dos locatários. Sem nunca formular a menor queixa ou a mais pequena maldição contra os responsáveis pela sua enfermidade, o velho Moaz deixava correr calmamente os dias, já que a revolução confirmara nele a certeza de que o seu sacrifício tinha pelo menos servido para a instauração de uma sociedade mais justa para os trabalhadores. A cegueira não lhe permitia aperceber-se do que tinha acontecido a esta revolução, e Ossama que, esse sim, tinha olhos, abstinha-se de informá-lo, não desejando desesperar o velho por causa de uma peripécia há muito tempo esquecida. A multidão era mais dispersa do que nas grandes artérias do centro porque o bairro não convidava a passeios. Em vez de montras atraentes pelo conteúdo e aspecto florescente, só se viam estaminés de artesãos, de vendedores de legumes, de restaurantes de favas e outros negócios semelhantes do género pobretanas. Muitos destes foragidos do trabalho amontoavam -se à sombra protectora das esplanadas dos cafés como se tivessem ricos rendimentos e assim se dessem ao luxo de não quererem saber 50

das horas nem da alta dos preços. Os gemidos de amor de uma cantora que emanavam de várias telefonias ao mesmo tempo afogavam nas suas voluptuosidades sonoras a barulhenta desordem da rua. À sua passagem, Ossama recebeu as saudações de muitos comerciantes espantados com o seu bom aspecto e a opulência da roupa que envergava, respondendo aos cumprimentos com suave modéstia. No bairro, e sobretudo na rua onde morava o pai, toda a gente sabia do seu êxito nos negócios e não perdia ocasião de felicitá-lo. Foi cheio de palavras de louvor que chegou à casa de futuro incerto visivelmente na mesma desde a sua última visita. Deteve-se e inspeccionou com o ar de um moribundo diante do futuro mausoléu a fachada escorada por madeiros que pareciam tão arruinados como as paredes que era suposto susterem. Ossama era temerário, mas não ao ponto de se deixar morrer por leviandade, e sobretudo com a vergonha póstuma de virem a exumar o seu corpo debaixo dos escombros associado a cadáveres de baixa condição. Teria sido um ultraje à sua inteligência. Muitas vezes pedira ao pai que se mudasse para 51

uma casa mais sólida, mas o velho Moaz recusava-se obstinadamente a deixar o sítio a pretexto de que em toda a parte seria para ele a mesma noite escura. Não ver as primícias de uma catástrofe próxima justificava a sua determinação de não as ter em conta. Ossama imaginou que em certos casos a cegueira podia tornar-se um privilégio. Pediu ao céu que velasse pelo equilíbrio precário da casa durante o tempo da sua visita, depois entrou e subiu a escada com passo prudente e retendo a respiração, com medo de que o seu sopro não viesse a favorecer um desabamento prematuro. Felizmente que só era preciso subir um andar e depressa chegou à porta do alojamento paterno. Era uma porta que nunca estava fechada à chave. Ossama abriu-a cautelosamente e penetrou numa divisão disposta em sala de estar que evocava a de um honrado funcionário na reforma.

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O velho Moaz estava sentado diante da janela aberta, numa poltrona em madeira dourada e veludo vermelho, com o rosto inclinado para o rumor inextinguível da rua que para ele parecia constituir o único laço que ainda o ligava aos 52

homens. A sua atitude cheia de nobreza, aliada à magnificência da cadeira que ocupava, fazia lembrar um monarca caído que para o exílio só tinha conseguido trazer o trono, símbolo da autoridade perdida. A intromissão de Ossama na saleta não modificou em nada a expressão embevecida do velho ouvindo os ruídos discordantes do tráfico e os pregões coloridos dos vendedores ambulantes. Sem se voltar, o velho perguntou: - És tu, Zakiya? - Aqui só estou eu, meu pai. O cego virou a cara para o filho e fixou-o com a intensidade de quem procura o seu caminho nas trevas, como se nele tentasse distinguir os sinais da alegria ou da tristeza. Os seus olhos tinham conservado o aspecto normal, porquanto só o nervo óptico tinha sido tocado na altura da famosa cassetetada. Apesar disso, o velho Moaz tinha adquirido ao longo dos anos aquela máscara de gravidade e profunda sabedoria que se costuma observar nos cegos de órbitas vazias e que fascina de maneira angustiante a maioria dos dotados de vista. Ossama perguntava muitas vezes a si próprio se a 53 cegueira tornava o homem mais profundo ou se essa ideia não passava de uma estúpida superstição. Nunca tinha conseguido analisar convenientemente o fenómeno. - Bem-vindo sejas, meu filho. Estava a pensar nos benefícios da revolução. Tenho a impressão de que há mais movimentos, mais actividades no bairro. Ouço as pessoas rirem-se e interpelar-se com graça, como se para elas a vida se tivesse tornado uma coisa agradável. Alivia-me constatar em cada dia que a felicidade já não é apanágio dos poderosos. Ossama sentou-se numa cadeira junto do pai e olhou pela janela. O cego tinha razão, apenas com uma diferença: aquilo que lhe parecia ser uma efervescência devida às conquistas da revolução não passava do resultado do crescimento irresistível da população. Com certeza se tinha esquecido de que os compatriotas, para além de todas as considerações ideológicas, sempre tinham conservado o sentido de humor. Dir-se-ia que o golpe de matraca não só o tinha cegado, como ainda lhe obscurecera a memória. Como habitualmente, Ossama furtou-se a qualquer discussão sobre os méritos de uma 54

revolução que só existia no espírito do pai. Achou mais saudável desviar a conversa para um tema mais trivial e informou-se acerca da ausência da horrível Zakiya, a mulher a dias, que tomava as suas liberdades para com as horas de trabalho. - Zakiya ainda não chegou? - Não vai tardar. É uma boa mulher e trata de mim com muita humanidade. Ossama tinha de concordar que a casa estava limpa, os móveis sem pó e a túnica do pai lavada e cuidadosamente engomada. Mas isso não o impedia de suspeitar que a boa mulher alimentava propósitos maritais em relação ao enfermo. Com todo o dinheiro que dava para o tratamento do velho, ela sem dúvida devia tomá-lo por um banqueiro ou um fabricante de moeda falsa. Além disso, possuía a figura rebarbativa de uma mulher sucessivamente repudiada por todos os maridos que conseguira arranjar à custa de sortilégios. A ideia de tê-la por madrasta era-lhe de tal maneira repugnante que não hesitou em pôr o pai em guarda - através de um juízo estético - contra as manigâncias de uma fêmea a quem até um cego dava jeito. 55

- Nela, só há uma coisa que não me parece bem. É feia demais.

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- Quero lá saber da sua fealdade. Se fosse bela, era a mesma coisa. Esqueces, meu filho, que sou cego. Esta chamada à evidência mergulhou Ossama numa amarga divagação. Tinha momentos em que se distraía relativamente à doença do pai. Mas daí até acreditar que este último podia preocupar-se com o encanto ou o desencanto da mulher a dias ... Pensou resgatar-se da gafe que cometera dizendo sem mais demoras qual era o motivo da sua visita. - Pai, perdoa-me por não ter vindo mais cedo. Estou afogado em trabalho. Ainda hoje tive que discutir durante horas com um promotor imobiliário, um homem de importância nacional e muito duro nas negociações. Tratava-se de uma grande encomenda de cimento. Acabei por fechar negócio e assim pude trazer-te algum dinheiro. Ossama puxou da carteira em pele de crocodilo que tinha sacado ao promotor imobiliário e tirou de lá algumas notas de dez libras que depôs sobre os joelhos do pai com um certo 56

embaraço, como se este lhe pudesse adivinhar a proveniência. Tinha por vezes a sensação de que o cego não se deixava enganar acerca da sua ascensão social e durante alguns segundos ficou a espiar o rosto paterno, pensando poder captar-lhe algum sorriso cúmplice. Mas a cara austera, enobrecida pela desgraça, não revelou nenhum sinal de conivência. Tranquilizado sobre este ponto e com o dever filial cumprido, restava-lhe ainda convencer o velho a deixar aquela casa da morte certa antes que fosse demasiado tarde. Este tema de conversa, retomado em cada uma das suas visitas, tinha pelo menos a vantagem de lhe atenuar a preocupação com a perspectiva de uma próxima mudança. Era-lhe cada vez mais penoso aventurar-se naquela ratoeira de pedras e madeiras podres prestes a engoli-lo ao menor abalo. - Tenho de falar contigo, meu pai. - Estou a ouvir-te, filho. Tens preocupações? - Tenho, e das grandes. Preocupa-me a tua segurança. É urgente que deixes esta casa. Pode desabar a qualquer momento: basta a passagem de uma carroça demasiado carregada ou a gritaria57

de uma comadre a invectivar a progenitura. Peço-te que confies em mim. O velho Moaz ergueu a mão como que a sustentar a casa e a prevenir uma catástrofe eminente. - Estamos entre as mãos de Alá, meu filho. Nada podemos contra a sua vontade. Se esta casa tem de vir abaixo um dia, é porque ele assim o decide. Quanto a mim, já te disse que não quero deixar este bairro. É aqui que hei-de viver até à minha morte. Não quero morrer no estrangeiro. - Mas não se trata de partir para o estrangeiro. Apenas te proponho alojar-te numa casa capaz de resistir ainda alguns anos ao desabamento. Até neste bairro não faltam casas dessas. Eu ocupo-me da mudança. Desse modo, não tenho que me preocupar contigo enquanto trato de assuntos de grande importância para o país. Queres prejudicar a nação com a tua teimosia? - Se prejudico o país, que ele me perdoe. Mas tu não devias atormentar-te por minha causa. Encontro-me no fim da vida e que importa a maneira de morrer. A este respeito, 58

tenho que te pedir um favor. Gostava que me comprasses algumas cadeiras, talvez uma dúzia. Sê bom e pensa nisso. Não há pressa, mas de qualquer modo, quanto mais cedo melhor. Conto contigo. Tu és um bom filho. Ossama ficou alguns segundos perplexo, perguntando-se se o pai divagava ou se tinha a intenção de dar uma festa para celebrar o aniversário da revolução. Não ousava interrogá-lo com medo de ouvi-lo confiar-lhe um projecto desse género. De certeza que a casa não iria aguentar muito tempo, assaltada como seria pela massa dos convidados. Mas quais convidados? As únicas relações do pai eram Zakiya, a mulher a dias. Dar-se-ia que ela tivesse alcançado os seus fins e que o velho estivesse a pensar em mobilar faustosamente a casa na previsão do casamento? Esta

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suposição alarmou de tal maneira Ossama que ele exclamou, como num pesadelo: - Cadeiras! Para que é que precisas de uma dúzia de cadeiras? - Estou a pensar nas pessoas que hão-de vir ao meu enterro. Não devem ficar de pé. Seria uma falta de cortesia. 59 - Quais pessoas, meu pai? Parece que conheces muita gente. - Os meus antigos camaradas de fábrica. Não se esqueceram com certeza da nossa luta comum. Foi por causa dessa luta que recebi o golpe de matraca que me tirou a vista. Até pode dar-se que o governo revolucionário envie um dos seus ministros. Esta poltrona que me ofereceste e que ficará livre com o meu passamento pode ser para ele. Poderá sentar-se nela sem se sentir deslocado. Como vês, tenho tudo previsto para que o meu enterro decorra decente e dignamente. Ossama por pouco não desatou às gargalhadas imaginando um membro do governo instalado naquela poltrona em madeira dourada e veludo vermelho como se estivesse no gabinete ministerial, mas foi tomado de compaixão pela inconsciência do cego e reprimiu a hilariedade. Com que então o velho Moaz, depois de tantos anos, julgava ainda que os seus antigos camaradas de fábrica se lembravam da bravura dele durante os tumultos e que o governo o considerava um mártir da repressão monárquica. Semelhante crença na conduta dos homens 60

merecia o respeito devido a uma criatura alienada. - Claro - disse ele. - É certo que o governo te deve pelo menos uma medalha pela tua gloriosa atitude debaixo da monarquia. Vou falar disso a um dos meus amigos altamente colocado na administração. Uma condecoração não lhes custará nada e poderão finalmente lavar-se da vergonha de te haver ignorado durante tanto tempo. Ossama estava resolvido a comprar-lhe ele próprio uma medalha, mas o cego abanou a cabeça em sinal de recusa e o seu rosto, habitualmente sereno, crispou-se como sob o efeito de uma excessiva repugnância pelas honrarias. - Não quero medalha nenhuma. Agradeço a Alá ter-me dado um filho como tu. Se me honram e respeitam no bairro, é por causa do teu sucesso nos negócios. Se o governo tivesse que conceder uma medalha a alguém, seria a ti, meu filho. Morria contente se soubesse que o governo revolucionário atribuía importância aos teus talentos. Ser condecorado pelo governo em recompensa dos talentos era uma ideia sublime que 61

Ossama avaliou como o cúmulo da irrisão. É verdade que todos os governos do mundo não eram sovinas na distribuição de distinções honoríficas aos grandes valores que apoiavam o seu poder, mas era absolutamente improvável que pensassem em oferecer uma dessas ninharias a um modesto ladrão à margem da sua época. Seja como for, a sua exclusão dos favores governamentais não impedia Ossama de se felicitar cada vez que tornava mais magros, pelos seus talentos de carteirista, os lucros fraudulentos de um desses chacais medalhados ou não. Ficou um momento em silêncio, rejubilando interiormente, ainda sob a influência desta cómica e interessante conversa com o pai. Este último atribuiu esse silêncio à aflição que o filho devia sentir perante a sua recusa de se mudar daquela casa, certamente usada pelo tempo, mas de duração garantida pela fé dos inquilinos. Como homem sábio e confiante na providência, acabou por dizer: - Esta casa, meu filho, foi construí da há mais de cem anos. Porque haveria de vir abaixo agora? A maioria das casas do bairro são ainda mais velhas. 62

Além disso, há aqui outros inquilinos que não têm nenhum sítio onde se refugiar. Seria eu o único a escapar do desastre? Se o céu o ordenar, partilharei o destino dos meus vizinhos.

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Ossama sabia o pai misericordioso para com o semelhante, mas a sua intenção de se imolar com todo o grupo dos inquilinos ultrapassava a simples piedade; revelava um tenebroso orgulho, um último desafio à injustiça. Aquilo perturbou tanto o jovem como a aparição de uma mulher preciosa e nua numa região desértica. O velho Moaz não tinha portanto perdido tudo: conservava na sua noite perpétua o único luxo do pobre, esta dignidade que outrora o tinha lançado na luta contra a opressão. Só que este orgulho escondido como um tesouro debaixo das feições complacentes de um velho no fim da vida, não ia agora servir-lhe de escudo contra um desastre natural inscrito desde sempre nas paredes de uma casa vetusta. Tudo isto era bastante pungente, mas Ossama não sentia nenhuma atracção por este modo de suicídio colectivo e democrático. Tendo a sua visita atingido o tempo necessário à decência, preparava-se para partir quando algumas pan cadas de uma sonoridade medonha foram desferi das na porta.63

Ressoaram nos ouvidos de Ossama como estalidos sinistros, prelúdio ao desabamento da casa. Deu um salto na cadeira e preparava-se para levar o pai para a rua, quando a entrada de Zakiya o deteve. A mulher, que para anunciar a sua chegada não se importava de demolir a porta, teria cerca de quarenta anos, era uma matrona de formas gigantescas, dotada daquela fealdade angustiante que faz lembrar as caras dos condenados a arder nas chamas do inferno. A rudeza de maneiras e a mania de maltratar os objectos que tinham a pretensão de se encontrar no seu caminho tornavam-na uma espécie de auxiliar do perigo que pairava sobre a casa. Com um gesto um nadinha mais violento, uma tal mulher podia abalar uma fortaleza. Não é preciso dizer que a sua presença na saleta não augurava nada de bom para a segurança de Ossama, reforçando o desejo do rapaz de deixar o mais depressa possível um sítio que de súbito se tornara catastrófico. Zakiya foi primeiro depositar um saco de vitualhas a um canto da cozinha, depois virou-se 64

para Ossama, exclamando numa voz forte, de entoação viril: - Ora aqui está o mais belo, o mais ilustre dos príncipes! Que Alá te proteja, excelência. Precipitou-se sobre Ossama como um vampiro sedento de sangue e apoderou-se da mão dele para beijá-la. Mas o jovem retirou prontamente a mão e recuou, horrorizado com um contacto tão abominável. - Pois bem, já que estás aqui, posso ir-me embora. Hoje tenho muito que fazer. Trata bem do meu pai, se não corto-te a garganta. Mal se viu na rua, Ossama sentiu os mesmos sintomas de alegria que sente um condenado à morte agraciado no último momento. Estugou o passo, desejoso de se afastar o mais longe possível da casa sinistrada. Liberto finalmente do temor de sofrer a mesma sorte dos cinquenta inquilinos do imóvel construído pelo infame promotor, reencontrou o humor e a ironia cáustica em contacto com a multidão que evoluía naquele bairro popular aberto a todos os milagres. A sua ética proibia-lhe exercer o ofício contra miseráveis, e por isso pensava sobretudo na carta cuja divulgação devia acabar 65 de maneira espaventosa com a reputação ja fortemente abalada do destinatário e com a do cúmplice - o irmão do ministro - presentemente ignorada do público. Maravilhando-se com o facto de deter uma tal prova contra o irmão de um membro eminente do governo, nem por isso deixava de estar desesperado com a sua incompetência em servir-se dela. Tomado por um decreto divino o depositário de um escândalo de nível ministerial, sentia-se obrigado a promover a sua divulgação no país inteiro e mesmo além fronteiras, no propósito de instruir outros povos menos informados acerca do carácter celerado dos seus dirigentes. Mas como fazer arrancar um projecto tão ambicioso? Propor a carta a um jornal era uma solução fácil e comportava sem dúvida um risco para a sua pessoa. Seria muito ingénuo se viesse a apresentar-se com uma bomba daquelas a algum chefe de redacção, receoso por natureza de perder o seu lugar. Estando

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todos os jornais em poder do dinheiro, o caso acabaria por ser abafado, e ainda por cima iria valer-lhe um processo movido contra ele próprio por juizes obedientes e corruptos, familiares dos grandes 66

gatunos. A desconfiança inata de Ossama em relação a todas as categorias sociais forçava-o a procurar uma fórmula ainda não experimentada e que lhe permitisse permanecer no mais completo anonimato. Após ter reflectido em vão nos mais diversos meios, compreendeu que nunca chegaria a nada sozinho e que se encontrava na necessidade de partilhar com alguém este segredo que com o passar das horas se tornava cada vez mais difícil de assumir solitariamente. Não com não importa que espécie de indivíduo, mas com um espírito liberto das contingências, sem mulher nem filhos, e não tendo qualquer emprego a salvaguardar. Tirando a gatunagem, que não se preocupava com política e preferia por princípio as trevas da clandestinidade aos sóis doentios da fama, não conhecia ninguém que correspondesse a esta descrição. Impelido por uma esperança estúpida, pôs-se a observar as pessoas à sua volta, tentando descortinar, naquele formigueiro de seres decididamente indiferentes ao seu problema, o génio desconhecido que saberia aconselhá-lo. Por todo o lado só havia os rostos subalternos de uma populaça submetida 67 a necessidades mais urgentes e mais concretas e para quem um escândalo político - financeiro a mais ou a menos não tinha nenhuma hipótese de alterar a sua visão do mundo. Depressa se cansou da sua tentativa ridícula e acelerou o passo, decidido a sair daquele bairro sórdido que não podia trazer nenhum conforto à sua solidão amarga de mensageiro da vergonha. Afligido com a impotência em instruir os compatriotas de um escândalo tão saboroso, Ossama mergulhou apressadamente - em detrimento do belo fato que envergava - na multidão andrajosa, reconhecendo de súbito, sentado na esplanada de um café, o inigualável Nimr, seu mestre na profissão. O homem tinha a cabeça rapada e usava uma barba espessa que lhe escondia metade da cara, mas esta modificação ilusória da fisionomia, visando despistar uma polícia demasiado familiarizada com as suas feições, não podia enganar Ossama que conservava do antigo mestre a imagem inapagável do seu primeiro encontro. Há alguns meses que não punha a vista em cima de Nimr; apesar da sua destreza proverbial e justamente por causa dessa reputação, o mestre estava frequentemente na prisão.68

Com a alegria de uma criança que volta a encontrar um brinquedo perdido, aproximou-se do homem ocupado em sorver um copo de chá com todo o cuidado, como alguém sem dinheiro que se concede um prazer efémero e raramente renovável. - Deus esteja contigo, Nimr! Alá escutou a minha oração. Andava à tua procura, meu digno mestre. Nimr ergueu a cabeça e contemplou Ossama com o olhar de quem abomina palavras adulteradas. - Filho da puta! Como é que podias andar à minha procura se sabias que eu estava na prisão? Não tens vergonha de mentir ao teu antigo mestre? E antes de mais nada, que andas tu a fazer neste bairro de piolhosos? Ossama via o mestre camuflado em adepto de uma confraria religiosa e sentia-se um pouco responsável por essa aflitiva conversão. A súbita piedade de Nimr tinha toda a aparência da desordem mental que se sucede ao relaxamento profissional. Achou assim proceder bem ao reanimar com uma afirmação totalmente mentirosa a consciência de um homem 69 que circunstâncias infelizes tinham precipitado no misticismo. - Andava à tua procura, sim. Juro pela minha honra. Os jornais que leio todas as manhãs informaram-me da tua libertação sem no entanto mencionar onde residias agora. Mas eu sabia

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que te havia de encontrar nestas paragens. Não sendo o mestre fanático de jornais por razões de analfabetismo, Ossama não temia ser desmentido apesar da enormidade da mentira. Nimr parecia pesar a veracidade desta explicação inverificável e aconteceu-lhe que a vaidade levou a melhor sobre a desconfiança. Era alguns anos mais velho do que Ossama e gozava de uma autoridade indiscutível entre o pessoal da corporação. Podia-se contar no seu activo a formação de toda uma geração de carteiristas que pululavam na cidade abençoando-lhe o nome. Vestido com parcimónia de andrajos no limite da decência, olhava com desdém a elegância desleal do aluno preferido. Durante muito tempo, essa elegância incompatível com a sua moral de proletário emancipado chocara-o como uma deslealdade. Desde que 70

frequentava os bairros finos a fim de localizar as suas vítimas entre os grandes ladrões da capital, o jovem tinha -se afastado da sua esfera de actividade e ele lamentava, não sem algum rancor, a perda de um elemento que prometia tanto. A inteligência de Ossama no ofício que ele lhe ensinara parecia ter ultrapassado o seu ensino e isso, para um mestre que se julgava inultrapassável na sua especialidade, era imperdoável. - Devo confessar que não deixas de ser um traidor de bela aparência. Mas não posso felicitar-te. Com os teus métodos sacrílegos, traíste-me. A mim e a toda a corporação. - Traí-te como? Roubo os ricos, quer dizer, os ladrões. Isso é traição? - Ensinei-te a roubar e agora vais usando o teu talento nos bairros finos, renegando o meio de onde vieste e desprezando o teu educador. Nós não somos da mesma laia. Agora já só te resta comprar um carro desportivo. Talvez então te possa admirar. De momento, pareces-me um pavão todo orgulhoso com as suas penas. - Antes de seres preso, já te tinha explicado a razão de usar estas roupas. Operando em 71

certos meios, vestido como estou, ninguém ousa confundir-me com um ladrão. Eliminei assim todos os riscos. - É isso mesmo que te reprovo. Não há nada de mais imoral do que roubar sem riscos. É o risco que nos diferencia dos banqueiros e dos seus émulos que praticam o roubo legalizado com a cobertura do governo. Não te inculquei a minha arte para te tornares um ladrão de cinema cuja única preocupação é não desagradar ao seu público. Longe de se sentir ulcerado com as acusações do antigo mestre, Ossama sorria por saber que toda aquela diatribe não passava de um modo retorcido de celebrar o seu reencontro. Nimr era demasiado orgulhoso para deixar passar a ocasião de manifestar a sua cólera contra tudo o que atentasse contra as regras sagradas da sua arte. Ossama nunca tinha esquecido o estado de abatimento físico e mental em que se encontrava quando conheceu aquele que iria ser o seu mestre e o seu apoio durante todo o tempo da sua aprendizagem. Alguns anos antes, pretendendo ajudar o pai enfermo, tinha abandonado os estudos, achando que munido do 72

conhecimento supremo - ler e escrever - lhe seria possível encontrar um trabalho bem remunerado. Mas depressa teve que mudar de ideias: ninguém precisava do seu saber. Sucessivamente paquete, engraxador, vendedor de amendoins, criado, conheceu o suplício dos necessitados em busca do pão quotidiano. Depois sucedeu-se um longo período de desemprego, durante o qual a mendicidade foi a sua única ocupação e fonte de rendimentos. Provação dolorosa, porque com um corpo sem defeitos nem nenhuma tara visível, mendigar revelou-se uma indústria pouco lucrativa. Ossama encontrava-se em desvantagem relativamente a todos os estropiados - cegos ou manetas - que praticavam com ostentação aquele ofício real, isento de impostos. Num momento de delírio, pensou em cortar um braço ou uma perna a fim de agradar aos piedosos esmoleres atraídos pelas chagas e pelos corpos diminuídos. Finalmente, esfomeado

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e à beira do suicídio (era tão fácil morrer lançando-se debaixo das rodas de todos aqueles carros com pressa de esmagar alguém), sentara-se na berma de um passeio, ruminando a sua 73 má sorte, à espera da passagem de um autocarro ou de um camião carregado de melancias, garantia de uma morte infalível. Foi então que um indivíduo de aspecto jovial e o ar descontraído de um senhor da gatunagem, vendo-o na delicada posição em que se encontrava - a circulação intensa dos carros tornava a berma do passeio tão perigosa como os rebordos da cratera de um vulcão em plena actividade -, lhe lançou com magnanimidade uma moeda de vinte piastras. Este indivíduo não era outro senão Nimr, o qual acabava de confiscar a bolsa de um gordo negociante de farinha e, como era seu costume, distribuía um pouco da fortuna ilícita aos pobres, dando assim ao seu ofício essa coloração social geralmente atribuída aos bandidos lendários. Ficou estupefacto quando viu Ossama apanhar a moeda e devolver-lha, dizendo-lhe, com o acento despreocupado de um homem na agonia, que já não precisava de dinheiro. Perante este miserável que desprezava a sua esmola, Nimr farejou um caso trágico de extrema complexidade e sentou-se junto de Ossama com o interesse de um arqueólogo que descobre uma múmia falsa num museu. 74

A princípio, o jovem não respondeu às suas perguntas, a ideia do suicídio continuava a pairar-lhe no espírito e este desconhecido que julgava pouco recomendável e ainda por cima incapaz de auxiliá-lo exasperava-o com a sua indiscrição. Mas a solicitude de Nimr acabou por lhe suavizar a dor, estabelecendo-se um laço de fraternidade entre ele e o homem que depressa iria ensinar-lhe como se libertar da fatalidade. Num monólogo pontuado de suspiros, Ossama traçou o seu longo calvário de postulante do trabalho e a sua estéril experiência de mendigo prejudicado pela ausência de danos corporais. Acrescentou que tinha tomado a decisão de se suicidar e que esperava, sentado naquele passeio, a passagem de um veículo suficientemente pesado para lhe garantir uma morte rápida. Fascinado por tanta honestidade na desgraça, Nimr ajudou-o a levantar-se e levou-o logo a comer um prato de favas num restaurante da vizinhança. Enquanto Ossama se recompunha com esta comida revigorante, contou ao protegido a vida maravilhosa que levava, uma vida de liberdade assente na universalidade do roubo. Era, por assim dizer, carteirista desde a 75

mais tenra infância e tornara-se um profissional de alto nível, capaz de ensinar a sua arte aos mais ineptos dos seus concidadãos. De vez em quando, acontecia-lhe ser detido pela polícia, mas a prisão não o incomodava muito; pelo contrário, para ele era o equivalente de uma cura de repouso. Saía de lá cheio de entusiasmo e de ardor, pronto a retomar a sua actividade como um banal funcionário depois de umas férias por motivo de doença. Depois de ter feito estendal da sua gloriosa carreira, declarou a Ossama que estava disposto a comunicar a sua mestria a um rapaz como ele, que sabia ler e escrever, coisas invulgares na corporação formada por elementos iletrados e sem opinião política. Cada vez mais cativado por aquele recruta excepcional, Nimr desenvolveu em proveito do jovem a sua teoria acerca do roubo enquanto justa recuperação de uns trocos pelos pobres, num mundo em que os grandes gatunos prosperavam impunemente no topo da escala social. A princípio fascinado pelo que acabava de ouvir, Ossama não levou muito tempo a perceber (tendo o prato de favas produzido no seu cérebro a mesma agudeza de 76

discernimento que produz uma bola de haxixe de boa qualidade) a simplicidade deste discurso que reduzia a nada, como enganadores e apócrifos, todos os valores admitidos por uma multidão de escravos. Cheio de gratidão e reconfortado por esta nova ética flamejante, aceitou a proposta do seu salvador sem suspeitar que um dia se havia de tornar mais hábil do que o futuro mestre

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numa profissão tão velha como a humanidade. Durante todo um inverno, Nimr ensinou-lhe a adquirir essa leveza de dedos que faz a reputação do pianista virtuoso e do carteirista insuspeito. Depois largou-o na natureza, feliz por haver cometido uma boa acção que seria contada a seu favor no dia do juízo final. Ossama não foi indigno desse ensino acelerado e voltou a ver com frequência o professor durante os anos em que trabalharam nos mesmos sectores da capital. Nimr, por seu lado, congratulava-se por ter adivinhado no pupilo as qualidades essenciais para o exercício daquele ofício furtivo que exige, além de agilidade, uma consciência revolucionária. Mas quando Ossama imaginou vestir-se de príncipe encantado para penetrar nas esferas reservadas 77

aos grandes gatunos, as ocasiões de se encontrarem tornaram-se cada vez mais raras. Nimr, que persistia em surripiar o ganho nos bolsos geralmente pouco guarnecidos dos seus contemporâneos, só com muita dificuldade conseguia escapar às intervenções de uma polícia conservadora e destituída de qualquer fantasia. Convidado obrigatório da administração penitenciária passava frequentemente muitos meses sem ver o seu discípulo genial. Nimr conservava sempre aquele ar rabugento do homem ultrajado nas suas convicções. Contava manter-se ainda muito tempo nessa disposição hostil, mas ao fim de alguns momentos o sorriso malicioso de Ossama acabou por cansá-lo do seu amuo fingido. Era evidente que o jovem não fazia nenhum caso dos seus sermões; pior ainda: achava-os divertidos. -Perdoo-te - disse ele -, porque te considero como sendo meu filho. Um bom filho da puta, mas apesar de tudo meu filho. Espero que não tenhas esquecido o meu ensino desde que trabalhas no meio de pessoas distintas. - Sempre procedi como tu me ensinaste. Só há uma coisa nova: as pessoas distintas distinguem-se sobretudo pelo tamanho das carteiras.78

Roubo-as e respeitam-me. Até os polícias com quem às vezes me cruzo me saudam com deferência. - Não duvido disso. São pessoas demasiado estúpidas para lerem a profissão na tua cara. - E como poderiam fazê-lo? Estou paramentado com todos os ornamentos da prosperidade. Julgam-me rico. Neste meio, já se sabe que só os pobres são ladrões. É uma superstição que remonta à Antiguidade e que convém perfeitamente aos meus negócios. - Ora aí está para que serve a instrução. Compreendo muito bem que um rapaz inteligente como tu não podia contentar-se com vulgares ratonices. Por Alá!, és o ladrão do futuro. Pode dizer-se que os teus anos de escola convieram perfeitamente à tua ambição. - A escola só me ensinou a ler e a escrever. Esta magra instrução constituiu para mim o caminho mais seguro para morrer de fome na honestidade e na ignorância. Foste tu o primeiro a abrir-me os olhos sobre a podridão universal. Haver compreendido que o único motor da humanidade era o roubo, é essa a 79

verdadeira inteligência. E no entanto tu não foste à escola. Desde que te encontrei, roubo com a consciência tranquila e o coração contente. Direi mesmo mais. Tenho a sensação de que com a minha actividade contribuo para a prosperidade do país, visto que gasto o dinheiro subtilizado aos ricos em diversas lojas que sem mim e os meus semelhantes iriam à falência. Este breviário de civismo pareceu a Nimr que ultrapassava, e de longe, o seu estrito ensino. O pupilo tinha varrido de uma penada os preconceitos ligados à profissão e havia forjado uma filosofia que enobrecia o ladrão, erguendo-o ao nível de militante nacionalista. Nimr não acreditava no que ouvia, mas reflectindo melhor acabou por admitir a justeza daquela versão transcendente do roubo. Era verdade que os ladrões faziam circular o dinheiro, o qual sem a sua

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indústria ficaria sempre nos mesmos bolsos. Uma situação deplorável de que sofreria gravemente o comércio do país. Deslocando o dinheiro de um bolso para o outro, o roubo, com esta transferência unilateral, permitia reanimar um mercado em pleno marasmo. 80

Chegado aos confins deste raciocínio realista, Nimr sentiu-se extenuado e desejoso de repousar o pensamento debilitado por alguns meses de prisão. Pôs-se a contemplar Ossama com os olhos de um turista perscrutando a Esfinge à espera de uma última revelação. Não sendo a humildade o seu forte, Ossama via-se transformado em estátua de ouro maciço por ter confundido o antigo mestre com a sua análise do roubo enquanto virtude patriótica. - Se quisesse, podia tornar-me ministro anunciou com o ar de alguém que hesita em aceitar um emprego numa mercearia. - Pela minha honra! - exclamou Nimr. Os teus sucessos endoideceram-te. Que Alá te livre de semelhante projecto. - Eu não sou doido e a coisa não é assim tão impossível. Escuta, vou confessar-te algo de incrível. Há horas que ando à procura de alguém para falar do assunto. Tu me dirás o que pensas. Voltou-se para lançar um olhar sobre a escassa clientela do café, expulsou com um insulto, englobando toda a sua família, um 81

pequeno apanhador de beatas que rondava a mesa, depois, inclinando-se para Nimr, contou-lhe com a excitação de um portador de bombas principiante a história da carta encontrada na carteira do promotor imobiliário, autor de um genocídio executado a partir do seu escritório contra cinco dezenas de inquilinos. - Podes crer que o ministro está implicado neste escândalo. Quem nos garante que não é cúmplice do irmão? Se assim for, porque razão um gatuno tão competente como eu não seria candidato a um ministério? Por exemplo, o das Finanças; era o que me convinha mais. - Tens razão - aprovou Nimr -, mas tu não és dotado para a mentira. Para ser ministro, é preciso mentir todos os dias, incluindo os feriados. - É um hábito que posso adquirir. Sob a tua direcção, hei-de lá chegar, meu caro mestre. Desataram a rir-se, despertando com as suas gargalhadas um velhote adormecido num banco encostado à parede do café, o qual lhes administrou um sermão sobre a juventude impudica que não respeitava o sono dos trabalhadores. O ataque deste velho que descansava 82

das suas fadigas de antigo trabalhador só teve como efeito aumentar o júbilo deles. Nimr esperou que o homem voltasse a adormecer para pôr Ossama em guarda contra o perigo de conservar uma carta tão comprometedora. - Essa carta é uma funesta aquisição. Que pretendes fazer dela? -, Ainda não sei. Preciso de um conselho. Mas não conheço ninguém, não contando contigo, em quem possa confiar. - Tudo o que posso aconselhar-te é que queimes a carta. Quanto mais depressa, melhor. Deixa que esses filhos de um cão se devorem uns aos outros. Que nos importa um escândalo a mais ou a menos? - Seja como for, não penso queimá-la. Pelo menos, espero extrair dela algum divertimento. - Que espécie de divertimento? - perguntou Nimr, com ar espantado. Ossama não respondeu; perguntava a si próprio se o acaso que o escolhera para ser emissário de um escândalo não iria sugerir-lhe uma solução divertida. Enquanto aguardava uma tal gentileza da parte do acaso, observava com condescendência o povo soberano a remexer-se 83

ao sol, indiferente à actualidade mundial e particularmente ao seu problema. Numa mesa vizinha,

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estalou uma discussão entre dois operários infelizes, provavelmente desempregados. Pelas invocações à sua ascendência respectiva, Ossama percebeu que não querendo um deles pagar a despesa do outro, este último encrespou-se, negando que o companheiro pertencesse a uma família mais afortunada do que a sua. A disputa concluiu-se finalmente por um pacto de amizade estipulando que cada um pagaria a sua própria despesa. Resolvido o caso, desapareceram do café. - Por Alá! - exclamou Nimr -. Com a sua ridícula discussão, estes cretinos fizeram-me lembrar do homem que poderá aconselhar-te. Talvez porque o comportamento desses dois piolhosos certamente que haveria de encantá-lo. É o homem mais extraordinário que conheço, mas para quê falar-te dele. O melhor é ires vê-lo e ouvi-lo. - Muito gostaria de saber como é que pudeste conhecer um homem assim? - Conheci-o na prisão. Pode parecer-te incrível' mas há muitos homens cultos a apodrecer 84

no cárcere por delito de opinião. São revolucionários que querem mudar a sociedade. - Desconfio da maioria desses revolucionários. Acabam sempre em políticos que defendem a sociedade vilipendiada no passado. - Não é o caso deste homem. Pelo contrário, ele trabalha para a extinção de todos os políticos. É um escritor e um jornalista reputado. Nos seus escritos, não se ocupa de outra coisa senão de ridicularizar todos os poderes e as personagens grotescas que assumem esses poderes. Num dos seus artigos, garantiu que o presidente de uma grande potência estrangeira era um débil mental e um ignorante. O que valeu ao nosso governo um incidente diplomático dos mais graves.' Por esta última incursão foi condenado a três meses de cadeia e a uma pesada multa. Repito que se trata de um homem extraordinário, único no seu género. Mesmo sob tortura, gracejava com os carrascos. -Mas torturaram-no porquê? - Os polícias queriam saber quem o tinha informado da debilidade mental do presidente em questão. Estavam persuadidos de que sozinho não teria podido sabê-lo. 85

- Por Alá todo poderoso! - disse Ossama, rindo-se às gargalhadas. - Não falta sentido de humor a estes polícias. - Como podes atribuir humor a tais torcionários? Podes acreditar que estavam sérios. Constatei-o nas marcas dos golpes que o homem recebeu. Durante dias, tudo fizeram para conhecer o nome do informador. Só para se divertir, ele citou-lhes o nome de um jornalista muito devotado ao poder. Isso acalmou-os e acabaram por deixá-lo em paz. Ossama ficou tão entusiasmado com esta história que uma estada na prisão lhe pareceu de urgente necessidade a fim de preencher uma lacuna na sua visão do mundo. - Invejo esse homem - disse ele. - Gostava tanto de estar no seu lugar. Uma vizinhança tão próxima com a estupidez enriquece prodigiosamente o espírito. Nimr ficou hesitante sobre o sentido destas palavras. O antigo discípulo cada vez o surpreendia mais pela eloquência da sua linguagem. Aflorou-o a suspeita de que Ossama, para atingir tal grau de inteligência, devia fumar haxixe. 86

- E a ti - prosseguiu Ossama -, também te torturaram? - Eu sou apenas um ladrão, e não se torturam aqueles que nos permitem ganhar a vida. O salário dos polícias depende da gente da minha espécie. Nunca me passou pela cabeça derrubar o poder estabelecido e estou contente com todos os governos. Nenhum regime político me impedirá de roubar. Estou certo de que sempre poderei exercer a minha profissão. E esta certeza não existe em nenhuma outra categoria de trabalhadores. Alguma vez viste um ladrão no desemprego? - É muito bem pensado - admitiu Ossama.

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- Só há uma coisa: e se eles te submetem à tortura para saber quem te ensinou a roubar? Foram sacudidos por um riso frenético, entrecortado de exclamações injuriosas contra todos os torcionários e contra quem, por trás deles, lhes movia os cordelinhos. O irascível velhote adormecido no seu banco abriu os olhos, olhou tristemente os risonhos, mas, sem dúvida por cansaço, não fez nenhum comentário. Alguns mirones tinham parado diante do café para admirar aquela enérgica demonstração de hilaridade, como se 87

estivessem a assistir a um espectáculo de marionetas. Ossama recomendou-lhes que fossem ver a bailadeira do ventre que se exibia num cabaré da moda situado na estrada das Pirâmides, o que era um modo irónico de expulsá-los para longe da vista. Depois voltou-se para Nimr: - Onde é que se pode encontrar esse homem? Segundo o que me disseste, é alguém de que ando à procura desde sempre. Já o considero meu irmão. Sabes onde mora? - Com certeza. Mora na Cidade dos Mortos. Quando saí da prisão, fui lá vê-lo. Herdou um mausoléu dos pais e é aí que reside, visto não dispor de nenhuns recursos. Os editores e os jornais recusam-lhe os textos por ordem do governo, e ainda deve uma multa de várias centenas de libras. Andam à procura dele para lhe confiscar os bens. Como o mausoléu é o único bem que lhe resta, vai ter que pôr à venda os mortos que lá estão enterrados. Tenho a certeza de que espera impacientemente essa penhora. - Quando é que se pode visitá-lo? - A qualquer hora do dia. Só sai à noite. Podemos lá ir agora mesmo se os teus afazeres o permitem. 88

- Não tenho intenção de trabalhar esta tarde. Aliás, a esta hora os meus clientes estão a dormir a sesta. Levantaram-se ao mesmo tempo e tomaram o caminho mais curto, através de vielas lamacentas cheias de lixo, detritos domésticos acumulados ao longo dos anos como testemunhos de existências anteriores. Ossama, estranhamente, não se sentia nada repugnado por aquele ambiente que infligia à sua elegância horrível prejuízo. Saltitava sobre viscosas poças de água, pisava com um passo vivo abomináveis imundices sem se alarmar com os salpicos que lhe desonravam a bainha das calças e os belos sapatos em pele de gamo. Todo o seu pensamento estava virado para o irmão desconhecido, o profeta do escárnio que vivia num cemitério. 89

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III

NÃO ERA POR GOSTO das estelas funerárias, nem para perfazer conhecimentos metafísicos no decurso de subtis conversações com os mortos, que o letrado Karamallah tinha escolhido domicílio neste cemitério de renome mundial desde que milhares de sem-abrigo aqui se haviam instalado sem pedir autorização a ninguém. Aliás, ninguém se preocupou com esta deslocação de miseráveis para um lugar reservado ao repouso eterno, excepto talvez alguns defuntos atrabiliários e inimigos do género humano. Para Karamallah, a escolha de tão austera residência tinha por origem o despotismo de um governo impermeável ao humor e ferozmente hostil a toda a informação de algum modo relacionada com a verdade. 91

Condenado à prisão e proibido de publicar por insultos a um chefe de estado estrangeiro, vira-se privado, ao sair da prisão, de toda a actividade literária rentável e, ainda por cima, perseguido diariamente por uma chusma de credores mal educados. Se bem que confiante no inelutável desfecho de todas as tragédias, pareceu-lhe divertido assestar um golpe fatal nos seus opressores, desaparecendo sem deixar morada. Num momento de extrema euforia, lembrou-se de que possuía em herança um bem inalienável ao abrigo dos meirinhos e dos predadores da justiça. Esta herança, infelizmente improdutiva, não era outra senão o mausoléu familiar, erguido neste célebre cemitério que se tornara em poucos anos um sítio turístico para estrangeiros fartos de vestígios faraónicos. No dia seguinte a ter esta iluminação, Karamallah deixou o seu apartamento no centro da cidade e, com a ajuda de um carroceiro conhecido, fez transportar alguns móveis para o mausoléu e aí se refugiou à espera de que os seus aborrecimentos se diluíssem no imenso infortúnio universal. Um dos princípios da sua filosofia era que os problemas se resolvem por si mesmos se 92

não se lhes prestar atenção. Longe de desmoralizá-lo, o facto de morar num cemitério enchia-o de felicidade, como se fosse o início de uma aventura maravilhosa. Agradava-lhe viver no meio de uma população rebelde, vivos e mortos confundidos na mesma ignorância de qualquer autoridade. Nesta atmosfera de civilidade e de condolências obrigatórias, tinha pelo menos a certeza de escapar aos horríveis imbecis que o perseguiam nas esplanadas dos cafés para lhe dar conta das suas contrariedades domésticas. Tinha, enfim, a satisfação de não dever nada ao canalha de um senhorio. Após tantos anos de viver separado dos pais, Karamallah experimentava o prazer de se reencontrar com os seus, mas sem os diferendos e as discussões que sempre surgem em qualquer reunião entre vivos. O mausoléu não brilhava pela magnificência, e desse modo afastava a inveja e a suspeita relativamente ao locatário. Teria desagradado a Karamallah viver num edifício demasiado sumptuoso, e assim prestava homenagem ao arquitecto que tinha concebido este monumento fúnebre com a imaginação tacanha de 93

um funcionário policial. De pé à soleira do compartimento que servia normalmente de sala de recepção às famílias chorosas, Karamalah, enquanto fumava um cigarro, contemplava ao longe o monte Mokatam cujos contrafortes afogados numa névoa de calor pareciam o último horizonte que se lhe propunha à vista. Um dia, pensava ele, iria viver lá para cima, numa cabana, assim como um eremita que observaria a humanidade com serenidade e compaixão. Mas aquilo não passava de um projecto idealista, porque sabia que não podia afastar-se dos homens e das suas torpezas. Meditara sem cessar sobre a cobardia dos povos e a sua submissão ao impudor de governantes iníquos. Este obséquio para com os tiranos, que confinava muitas vezes com a devoção, provocava nele um perpétuo espanto, ao ponto de chegar a acreditar que a maioria dos humanos só aspirava à escravidão. Durante muito tempo, perguntara a si próprio por que

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estratagema esta enorme empresa de mistificação organizada pelos proprietários pudera estender-se e prosperar em todos os continentes. É preciso dizer que Karamallah pertencia a essa categoria de 94

verdadeiros aristocratas que rejeitaram como hábitos sujos todos os valores e dogmas instituídos por infames figurões ao longo dos séculos a fim de perpetuar o seu domínio. Deste modo, a persistência do poder de tais cães exalando o seu mau cheiro sobre o planeta não lhe alterava em nada a alegria de existir. Pelo contrário, as suas acções estúpidas e criminosas eram para ele uma fonte inesgotável de temas divertidos. Ao ponto de por vezes confessar a si próprio que lamentaria, por motivos de satisfação pessoal, o desaparecimento de tal súcia, com medo do aborrecimento que haveria de distilar uma humanidade desembaraçada da sua podridão. O cemitério estagnava numa calma precária cuja causa era a hora sagrada da sesta. As próprias crianças, embrutecidas pelas imprecações maternas, tinham cessado as brincadeiras ruidosas e a sua insolência obscena. De vez em quando, como o eco de um sofrimento indizível' chegavam às rajadas no ar ardente os lamentos das carpideiras, zelosas mercenárias da dor. Alguns milhafres voavam no azul por cima dos túmulos, aves de rapina infelizes, 95

reduzidas a procurar o alimento nos caixotes do lixo da miséria. Um velho de barba branca, arrastando preso a uma corda um burro raquítico' passou diante do mausoléu e saudou Karamallah com um leve aceno de cabeça, digno de um monarca no exílio. Sem dúvida um carreteiro sem trabalho que andava a passear com o seu burro para exibir ao mundo a sua coragem perante a adversidade. Mas o que perturbou Karamallah foi o olhar do burro; um olhar cheio de tristeza e ao mesmo tempo acusador, como se o dono fosse o responsável pela sua decadência. Lançou fora o cigarro e voltou ao compartimento, para junto da sua visitante. A jovem, sentada à secretária do mestre, copiava aplicadamente as notas que tinha tomado durante o seu encontro da tarde. Esta estudante de dezanove anos, de seu nome Nahed, tinha projectado escrever uma tese sobre a filosofia do escárnio de Karamallah e as suas múltiplas disputas com um poder incuravelmente ignaro. O mestre, a quem horrorizava tudo o que se parecesse com um diploma - caminho garantido para a escravidão -, deixara-se convencer 96

por delicadeza, dado que a rapariga não era bela, e sentia-se incapaz de recusar fosse o que fosse a um ser sem beleza. Mesmo que se tratasse de uma coisa tão extravagante como uma tese sobre a sua obra. Desde há perto de um mês que ela vinha todas as tardes rebuscar no mais profundo do seu pensamento com o mesmo delírio febril com que uma doente interroga o médico. Queria sempre saber mais, como se depois disso tivesse que morrer. Karamallah respondia às suas interrogações febris com gentileza e muito divertido. A tentativa da jovem de oficializar uma filosofia que preconizava outra realidade, diferente da instaurada pelos distribuidores de diplomas, parecia-lhe uma fantasia muito perigosa para o seu futuro. Tudo o que lhe ensinava acerca da sua concepção do mundo era radicalmente oposto ao que se inculcava nas escolas e nas universidades. Estava certo de que esta estranha obra a que a jovem se entregava lhe valeria, se tivesse que sair da clandestinidade, no mínimo o ser arquivado na polícia como elemento subversivo a vigiar atentamente. Contudo, a despeito deste cepticismo absoluto, desejava-lhe que tivesse 97

êxito na sua louca iniciativa de especular sobre o imponderável, o que significava que ela tinha sempre uma hipótese de cair sobre examinadores incultos ou simplesmente cegos. Compreendia a ambição dela de pretender libertar-se do seu meio medíocre através da aquisição prestigiosa de

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um diploma. Para todos os excluídos do banditismo legal, o pergaminho representava uma espécie de relíquia sagrada, mesmo que não servisse para nada, a não ser para meter no caixão depois de morrer de fome. Karamallah conhecia agora suficientemente a rapariga para lhe atribuir um destino fora do vulgar. Em cada uma das visitas, ela trazia-lhe pequenas prendas, objectos de valor indeciso e de que ele não precisava para nada. Suspeitava-a de roubá-los em diversas lojas da cidade, dado que era oriunda de uma família muito pobre. Estas ofertas de aspecto inocente e praticamente inutilizáveis começavam a preocupá-lo por causa dos perigos em que a jovem incorria. Ele não era contra o roubo, actividade que gozava de aprovação internacional, apenas condicionada pelo nível das quantias roubadas. Mas deixar-se apanhar e arriscar a prisão por 98

furtos tão medíocres, era a armadilha idiota por excelência. Ele próprio teria certamente escolhido o ofício de ladrão se desde muito novo não houvesse tido a sorte de compreender que podia lutar contra a impostura através de meios mais satisfatórios para o espírito do que a clássica bomba artesanal. Em todo o caso, era preciso pôr termo a este deboche de rapinas antes que o mausoléu não viesse a tornar-se um armazém de receptador. O caso era delicado. Como falar à rapariga sem lhe revelar a inquietação sobre a proveniência de todas estas pequenas prendas de que ela o cumulava? Aproximou-se dela e pôs-lhe com força a mão no ombro, como se quisesse despertá-la de um sonho sem sentido. Nahed parou de escrever e voltou-se para ele a sorrir. O seu sorriso ainda conservava um pouco dessa aflição original, comum a todos os deserdados. Por vezes, parecia a Karamallah que o rosto dela adquiria uma espécie de beleza fugitiva por efeito de uma alquimia tão complexa como o mistério da criação. Teria sido incapaz, por preguiça ou leviandade, de adivinhar a beleza oculta daquela rapariga? 99

Era verdade que no primeiro encontro que tiveram, pouco olhara para a pobre estudante, com receio de que ela não viesse a aperceber-se do mau estar que ele sempre sentia perante uma mulher feia. Agora, com risível apreensão, perguntava a si próprio se devia atribuir aquela mudança incrível à atmosfera do mausoléu, ou mais precisamente aos seus discursos heréticos. Que Nahed tenha desabrochado em contacto com os seus textos, era uma hipótese abusiva e inaceitável para a sua inteligência. Ela tinha-lhe contado uma história com toda a evidência verídica, e que merecia ser longamente meditada. Um dia em que estava doente e decidida, por desgosto de tudo, a deixar-se morrer, uma amiga trouxera-lhe um dos livros de Karamallah. Para agradar à amiga que lhe havia recomendado essa leitura, pegou no livro e começou a ler sem grande entusiasmo. Só mais tarde, terminada a leitura e o livro fechado, é que sentiu em todo o corpo um bem-estar extraordinário. Já não se sentia doente nem desejava morrer. Abandonou o leito animada por uma ardente vontade de viver e, vestindo o seu vestido mais bonito, saiu para a rua a clamar a sua felicidade e libertação. Pensava ter aprendido alguma coisa de uma gravidade excepcional, sem saber ao certo o quê, mas do que tinha a certeza era de que a sua visão do mundo tinha mudado para sempre. Depois, ao cabo de alguns momentos, acrescentou: era como no dia seguinte a uma revolução, quando o tirano está morto e as pessoas nos sorriem sem nos conhecer porque se sentem felizes. Karamallah, esse, sabia que a morte do tirano não significava o fim da tirania, mas para não desesperar a jovem renunciou a demolir essa ingénua imagem da revolução. -Agora vou-me embora - disse Nahed. Já abusei do teu tempo precioso. - Não te aflijas com isso. Não sou daqueles que se entregam a trabalhos muitas vezes inúteis, julgando cumprir a sua parte de um ritual obrigatório. O único tempo precioso, minha querida Nahed, é o que o homem consagra à reflexão. Isto é uma destas verdades indecentes que os mercadores de escravos abommam. - É no entanto espantoso que a verdade não entre pelos olhos dentro de todos os homens! 100

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- Desengana-te. A verdade é conhecida de toda a gente, mas uma coisa conhecida de toda a gente não possui nenhum valor de troca. Estás a ver os patifes que controlam a informação a vender verdades ... Na melhor das hipóteses, toda a gente se ria deles. Por uma razão bem simples. A verdade não tem nenhum futuro, ao passo que a mentira é portadora de grandes esperanças. Nahed desatou a rir-se. Ria-se frequentemente na companhia dele, como que a mostrar-lhe que havia assimilado o seu ensino e considerava agora a vida com intenção de ser sua instigadora e não dócil instrumento. Karamallah foi de novo apanhado por um lampejo fugaz que iluminou o rosto da jovem. Observando-a, ele via-lhe os olhos subitamente cheios de gratidão para com o artífice invisível da sua comovente transfiguração. - Cada vez que venho aqui, tiras-me um peso de cima. Sinto-me sempre mais leve ao deixar este cemitério que para mim se tornou um lugar mágico, onde tudo parece tão fácil. Karamallah deu alguns passos na direcção da porta, observou a alameda deserta ao sol, depois voltou para junto da jovem e disse, no tom de quem diz uma graça: - Sabes que um burro famélico, conduzido pelo dono ao matadouro, me acaba de lançar um olhar acusador? -Estás a brincar comigo, mestre! Como sabes que se tratava de um olhar acusador? - Porque me basta ver uma velha caminhando com dificuldade, um homem atingido por uma horrível enfermidade ou apenas uma criança a chorar, para me sentir culpado do que lhes acontece. Não concedendo eu próprio nenhuma importância à desgraça, acho que a dos outros me surge como uma denúncia permanente da minha desenvoltura. Mas deixemos o burro entregue ao seu destino. E falemos um pouco de ti. Já há algum tempo que penso dizer-te que não és obrigada a trazer-me tantas prendas cada vez que vens ver-me. Não sei que fazer com toda esta riqueza. Assim a tumba vai parecer um museu. - Mas tu és rico, mestre. Todo o ouro da terra não te pode enriquecer mais. Aquilo a que chamas prendas não passam de pequenos sinais de amizade contra o esquecimento. Sei que vais 102 103

outra vez rir-te de mim, mas com todo o respeito que te devo, confesso que tenho medo de desaparecer da tua memória no instante em que tiver terminado o meu trabalho. -Porque havia de esquecer-te? Serás sempre bem-vinda onde eu viver, aqui ou noutro lado. De onde te veio uma ideia tão idiota? Nahed hesitou em responder, as suas feições crisparam-se e o rosto dela retomou o aspecto sem graça, como que em apoio de uma penosa confissão. - Pois bem - disse ela, furtando-se ao olhar de Karamallah - sei que só gostas de raparigas muito novas e muito bonitas. E também sei que sou velha e feia. É por isso que julgava que não tinhas vontade de voltar a ver-me. Acabou a frase e fixou-o nos olhos, à espera do seu veredicto. Primeiro a estupefacção, depois, como uma dor que lentamente vai aumentando de intensidade, o remorso assaltaram Karamallah sem o menor aviso. O remorso de uma crueldade inconsciente. Será que tinha ferido a jovem com uma atitude distante e talvez mesmo traído o seu desagrado sem se dar conta disso? 104

Ela arriscara-se a ser presa para lhe deixar uma recordação sua, e isso era uma coisa que Karamallah não podia apagar com nenhuma espécie de ironia. - Desculpa-me - disse ele com o ar de um comediante que não sabe bem o papel - se nunca te dirigi cumprimentos a propósito do teu aspecto físico. Essa maneira servil de seduzir uma mulher sempre me desagradou, mas já que quiseste abordar o assunto, não quero deixar de te dizer que és mais do que bela: a tua cara aparentemente vulgar tem qualquer coisa de enigmático e por

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vezes perturbador que nenhuma das bonitas raparigas que tu suspeitas que eu amo não possuirá nunca. Estás satisfeita? E acreditas em mim? - Acredito em tudo o que dizes, mestre. Mesmo quando pareces estar a brincar ... Interiormente, Karamallah felicitou-se. Acabava de escapar a uma dessas armadilhas que só as mulheres sabem inventar e de que nenhuma filosofia antiga ou moderna alguma vez conseguiu analisar o mecanismo. Ter conseguido evitá-la de maneira tão brilhante levou-o a resolver sem mais delongas uma questão de 105

decoro há muito tempo em suspenso entre ele e a jovem. Ela irritava-o especialmente pelo seu comportamento de discípula submissa e respeitosa. Karamallah desprezava os elogios de uma sociedade que só respeitava trafulhas. Qualquer reverência em relação à sua pessoa era por ele sentida como um insulto disfarçado. No fundo, não via nada nem ninguém que merecesse a menor veneração. Neste cemitério, invadido e degradado pela miséria dos vivos, só os mortos, discretos e silenciosos, tinham direito ao seu respeito. - Nahed, minha filha, não me deves nenhum respeito. Toda a gente se julga respeitável ou aspira a sê-lo. Faz-me o favor de não me confundir com essa massa de tarados. Desde que Karamallah lhe havia assinalado o encanto ambíguo do seu rosto, Nahed ficara com os olhos fixos no vazio, parecendo contemplar-se num espelho imaginário. O pedido de Karamallah arrancou-a a esta sublime contemplação. - Nunca te confundirei com ninguém. Mas faltar-te ao respeito seria uma insolência da minha parte. - É isso exactamente o que pretendo. Que sejas insolente. Talvez assim as nossas conversas fossem um pouco mais animadas. O teu respeito cansa-me e faz-me sono. Nahed levantou-se, pegou nos seus cadernos e meteu-os numa pasta em falso couro, depois inclinou-se cerimoniosamente diante de Karamallah, inaugurando com esta paródia os primórdios da sua jovem insolência. Trazia um vestido de algodão negro, sem mangas, vestimenta emblemática para se aventurar num cemitério. Karamallah tinha querido dizer-lhe que não era preciso vestir-se de luto para aceder ao seu mausoléu, depois pensou que talvez a rapariga só tivesse aquele vestido e absteve-se de fazê-lo. Acompanhou-a até à porta e ficou a vê-la afastar-se, silhueta negra e frágil na brutal claridade do sol, balançando a pasta como uma arma contra os abusos da fatalidade. Karamallah ia retirar-se para o mausoléu, quando viu chegar dois homens pela alameda poeirenta. Apesar da vã metamorfose que sofrera, reconheceu um deles como sendo Nimr, o célebre carteirista, antigo e divertido conhecimento do tempo da prisão. Nimr vinha 106 107

acompanhado de um homem novo vestido à última moda que caminhava com um ar sonolento, como um sonâmbulo cheio de pressa de voltar para a cama. Era evidente que estas duas personagens tinham intenção de o visitar, pois não eram precedidas de nenhum cortejo fúnebre. Assim, ficou à espera dos dois homens com a tranquilidade de uma tarde cheia de surpresas e de agradáveis discussões. Nimr tinha-o divertido muito durante a sua estada na mesma cela. Embora iletrado, tratava-se de um verdadeiro sábio que falava com autoridade da sua carreira movimentada de ladrão sem sorte e de educador emérito da juventude delinquente. Mas quem seria aquele jovem de aspecto excêntrico, e por que razão obscura Nimr, entrado na clandestinidade, se expunha na companhia de um indivíduo capaz de amotinar as populações locais pelo seu aspecto rutilante? Confrontado com este enigma, Karamallah já não duvidava das delícias que uma visita assim lhe ia proporcionar. Os dois homens estavam agora diante dele, e Nimr inclinou-se como se quisesse depor em oferenda ao mestre o seu crânio rapado. Para ele, Karamallah encarnava a verdade suprema, essa verdade combatida por todas as nações do mundo como se fosse um vírus contagioso. Ficou

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alguns instantes curvado, depois levantou a cabeça e disse num tom melancólico, com a voz de um homem maltratado pelo destino: - Perdoa-me vir incomodar-te, mestre! Mas trata-se de um caso excepcional. Em primeiro lugar, permite-me que te apresente um dos meus antigos discípulos que venceu de maneira brilhante num ofício injustamente conspurcado. - Ter-me-ia apercebido disso sozinho - ironizou Karamallah. - Era preciso ser cego para não notar essa vitória. Para mim, acolher a juventude triunfante é sempre um dia feliz. - De que estás à espera para saudar o mestre, filho de um cão! - ordenou Nimr, decidido a provar o seu ascendente sobre os antigos discípulos, mesmo que se encontrassem no cume da sua arte. Ossama aproximou-se e apertou a mão de Karamallah com a ansiedade de alguém vindo consultar um oráculo. - Já devias saber que nunca me incomodas, meu caro Nimr - prosseguiu Karamallah. - 108 109

Posso mesmo dizer-te que estava à espera de uma visita como a tua. Neste momento, a actualidade está desesperadamente desprovida de acontecimentos retumbantes. Nem escândalos financeiros, nem guerra civil, nem assassinatos políticos. É o vazio total. Dir-se-ia que todos os patifes estão mortos ou partiram para férias. Mas entrem, não fiquem aí. Dou as boas-vindas a ti e ao teu glorioso discípulo. Karamallah encolheu-se para deixar passar os visitantes. Ossama hesitou um instante, depois atravessou rapidamente a soleira do mausoléu com a impressão de entrar definitivamente noutro universo. Estava fortemente impressionado com a cortesia e à-vontade com que Karamallah os convidava a penetrar num túmulo. Dir-se-ia um príncipe a receber no seu palácio uma delegação que lhe vinha trazer as últimas notícias do reino. Nimr, que não parecia nada deslocado naquele alojamento de improviso, não o tinha enganado ao descrever Karamallah como um ser excepcional. O jovem reconhecia sem dificuldade que não só o personagem era notável, como ainda evoluía numa realidade maravilhosamente adaptada à sua medida. Jamais imaginara que haveria de encontrar-se um dia num lugar assim, sob o olhar de um desconhecido astuto e no entanto terrivelmente próximo. Porque tinha aceitado com tanta facilidade acompanhar Nimr naquela expedição? Não teria sido antes ele que arrastara o antigo professor e não o contrário? Convenceu-se de que forças estranhas à sua razão o tinham conduzido até ali para um encontro de uma importância capital. Semelhante perspectiva proporcionou-lhe uma inquietante felicidade. - Sentem-se - convidou-os Karamallah, apontando-lhes o divã que lhe servia de leito. Ele próprio foi sentar-se na cadeira da sua secretária. Ossama respirava com desconfiança. Temia o odor dos cadáveres sepultados nas proximidades e sobretudo ser contaminado por supostos micróbios que infectariam o compartimento. Levou algum tempo a habituar-se à situação. Os poucos móveis que via em seu redor e os muitos livros amontoados em cima da secretária tranquilizaram-no pela sua banalidade. No fim de contas, aquele compartimento assemelhava-se a qualquer quarto num apartamento 110 111

na cidade. Esqueceu o cemitério e a presença dos mortos para estudar o anfitrião com os olhos de um órfão que escolhe um pai entre vários pretendentes à adopção. O homem que ele observava devia ter à volta de cinquenta anos, apesar de um sorriso de criança maliciosa e de um rosto glabro ostentando um permanente contentamento, como se algum decreto divino o tivesse investido para sempre de uma felicidade exclusiva. Vestia apenas um roupão de seda amarela e tinha os pés nus dentro de umas babuchas de couro vermelho. Ossama era obrigado a admitir que Karamallah, a despeito desta simplicidade de vestuário, conservava mais lhaneza e altura do que ele próprio, com toda a sua panóplia de fatos pagos a alto preço aos melhores alfaiates da capital.

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A partir desta constatação, sentiu-se vagamente infeliz. Vamos lá ver então que caso excepcional é esse - disse Karamallah, fitando os visitantes com o ânimo alegre de alguém que se prepara para receber o anúncio de uma herança. - Trata-se de uma história que aconteceu ao meu brilhante discípulo aqui presente respondeu Nimr num tom professoral, esque- cendo que não se referia a um jovem ladrão estagiário. - Tendo-me dado parte da sua preocupação e incerteza, pensei naturalmente que tu eras a única pessoa capaz de aconselhá-lo. Trata-se de um caso que exige um espírito esclarecido, visto que comporta inúmeros perigos ... Numa palavra, trata-se de uma bomba! - Estou a ouvir com toda a atenção requerida - disse Karamallah, sinceramente encantado com este início. Ossama tinha-se recomposto rapidamente da sua derrota perante a superioridade estética de Karamallah, mas continuava perplexo. Tentava compreender porque motivo o sábio parecia tão interessado numa história de que ignorava ainda praticamente tudo. Lembrava-se de que à chegada o anfitrião os tinha acolhido como se há muito tempo os esperasse para dar início a estranhas festividades. -Vamos, conta a tua história ao mestre ordenou Nimr ao antigo discípulo. - E sê humilde, não te gabes muito das tuas incursões na bela sociedade. Conta-lhe apenas o que me disseste. 112 113

Para Ossama, tinha chegado o momento de contar a sua aventura em proveito do mestre, e fê-lo de maneira fria e precisa, mas não sem emitir alguns pormenores sobre a moralidade da vítima, o chamado Suleyman, promotor imobiliário e autor de sucesso, pelo menos no capítulo das catástrofes magistrais. - Mostra-me essa carta - pediu Karamallah, cada vez mais seduzido. Não se tinha enganado: a tarde anunciava-se prodigiosamente divertida. O jovem apressou-se a tirar a carta do bolso e estendeu-lha com toda a confiança devida à inteligência. Karamallah pegou na carta e começou a lê-la. À medida que ia avançando na leitura, o seu rosto exprimia um contentamento intenso, dando a impressão de que estava a ler a apaixonante missiva de uma amorosa impúbere e de nobre ascendência. Isto durou um longo momento e os visitantes ficaram com a ideia de que o mestre não conseguia cansar-se do prazer que uma tal carta lhe proporcionava. - Esta carta é mel - disse finalmente Karamallah, num assomo de entusiasmo. - É certo que não diz nada acerca do tal promotor de 114

ruínas cuja reputação de crápula é notória. Em compensação, não sabia que o seu cúmplice, o irmão desencaminhado do ministro, bem conhecido nos meios da vigarice generalizada, era capaz de redigir uma tal obra-prima de humor negro. Tenho aqui com que me alegrar durante vários dias. Nimr ficou um momento na expectativa, depois adoptou o ar decepcionado do ladrão que, tendo roubado uma jóia considerada de grande valor, se apercebe de que se trata de pacotilha. A conclusão de Karamallah sobre um caso tão grave não tinha nada de extraordinário e não era de molde a fazer valer o seu prestígio junto do antigo discípulo. Tanto desejara mostrar a este último que conhecia pessoas instruídas, sábios capazes de resolver os problemas mais complexos, mas apesar do conteúdo explosivo da carta não conseguira mais do que divertir o mestre. Fosse como fosse, não perdeu a esperança e dirigiu a Ossama, um tanto perplexo com a incompreensão, uma mímica que procurava dizer-lhe que tivesse paciência. - Esperamos, mestre, que nos digas o que se deve fazer desta carta - arriscou Nimr. - 115

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Vamos enterrá-la neste cemitério ou lançá-la sobre a cidade como uma bomba? Não achas que os jornais dariam bom dinheiro por uma cópia desta carta? Trata-se de um grande escândalo. - Nimr, meu irmão, és uma sumidade no teu ofício, mas permite-me que te diga que esta carta não vai provocar nenhum escândalo, grande ou pequeno. O banditismo nas altas esferas da sociedade é uma peripécia admitida em todas as nações do mundo. O povo já está habituado e até aplaude esse género de proezas. A minha opinião é que é preciso encontrar outra coisa. Algo de original e sobretudo divertido. É inútil oferecer semelhante presente aos imbecis. Guardemo-lo para nós. - O que é que propões? - Ainda não sei. Este caso é tão grotesco que devia inspirar-me alguma solução grandiosa. E a mais desopilante possível. Esta declaração reconfortou Ossama que até então estava preocupado por causa da falta de seriedade que Karamallah atribuía à sua história. Por fim, o mestre tinha-se comprometido - é verdade que à sua maneira - a encontrar uma solução para o problema posto pela carta; uma solução divertida que deveria tê-lo chocado, mas que estranhamente lhe pareceu atractiva e não destituída de uma ferocidade destruidora. Assim, a visita àquele longínquo cemitério, ao fim de uma longa caminhada por vielas lamacentas, não iria terminar num fracasso. Começava a sentir o efeito indizível do seu anfitrião, sem poder explicar tanta soberba e tanto júbilo interior num homem que vivia num mausoléu. Como é que um ambiente tão macabro podia produzir, não contando com a indiferença, esta vitalidade excessiva ao serviço do humor? Aquilo era bem o sinal de uma inteligência que evoluía num espaço liberto de todos os ineptos preconceitos que ensombram a vida dos homens. E de súbito teve consciência da sua estupidez, ao não ter sabido descortinar o lado irrisório dos sofrimentos que lhe tinham amargurado a juventude. Karamallah era com certeza o profeta de um combate original contra os agentes oficiais da impostura. Karamallah sorria de satisfação com a perspectiva que lhe era oferecida de desencadear 116 117

uma crise de importância nacional. Sempre confiara no acaso. Há pouco, recebendo os visitantes, tinha a certeza de que iam trazer-lhe da tumultuosa capital versões inéditas da estupidez humana susceptíveis de diverti-lo. Mas não estava à espera de um tal festim. - Gostava de encontrar esse Suleyman disse ele. - Parece-me até que uma conversa com tal homem seria interessante e divertida. Uma verdadeira festa do espírito. - Que queres tu dizer? - perguntou Nimr, inquieto. - Um homem capaz de aniquilar cinquenta pessoas defraudando-as nos materiais de construção, só para acumular mais dinheiro, não te parece suficientemente interessante? - Mestre, mata-me, mas por Alá, explica-te! - Escuta, esse homem representa toda a infâmia universal. Até agora, só conhecia dele o retrato nos jornais. Com esta carta providencial, tenho talvez a ocasião de vê-lo de perto. O contacto com a infâmia ensina-nos sempre alguma coisa. -Que pode ensinar-te este homem sem honra? -Meu caro Nimr, esse é mais um preconceito que deve ser lançado para o lixo. Fica sabendo que a honra é uma noção abstracta, inventada como sempre pela casta dos dominadores para que o mais pobre dos pobres possa orgulhar-se de possuí-la. Trata-se de um haver fantasma que não custa nada a ninguém. - Mas então - exclamou Nimr - acabas de despojar-me da única coisa vendável que ainda possuía. Encontro-me ainda mais pobre do que antes de vir aqui. - Confesso que não vejo relação entre o meu enunciado da honra e a tua súbita pobreza. - Pois bem - explicou Nimr -, muitas vezes tenho ouvido as pessoas dizer que a sua honra não estava à venda. Pensava que mais dia menos dia alguém viria propor-me que lhe vendesse a minha honra. Acabas de privar-me da mais rentável transação da minha vida. - Não fiques preocupado. Podes sempre vender a tua honra. Nem toda a gente está ao corrente do

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verdadeiro valor da honra. Somos poucos a sabê-lo. Fica tranquilo. - Estou de acordo contigo - disse Ossama, saindo da sua reserva. - Aprendi muitas coisas 118 119

em tão pouco tempo que vou partir daqui mais rico, embora sem honra. Mas que importa a honra se pude conhecer um homem como tu. Karamallah olhou para ele como se o visse pela primeira vez. Tinha-se deixado ofuscar por aquela carta oportunamente submetida à sua sagacidade, ao ponto de se esquecer de quem lha tinha fornecido. Este jovem ladrão, infeliz discípulo de Nimr, soubera escapar ao miserabilismo do seu educador e iniciar uma estratégia no modo de vestir que lhe permitia roubar aos ricos. Instintivamente, tinha sido capaz de aproveitar a falha de uma sociedade baseada nas aparências. Era algo que merecia a sua estima. - Sei que posso contar contigo - disse ele ao seu jovem visitante, com esse impulso fraternal que reservava aos da sua raça. - Para começar, podemos utilizar esta carta para exercer pressão sobre Suleyman, obrigando-o a aceitar um encontro dos mais mundanos num café da cidade. É sempre proveitoso dialogar com este género de personagens. É assim que se aprende que a infâmia não tem limites nem fronteiras. - Estou às tuas ordens - respondeu Ossama. - Que devo fazer? - Volta cá amanhã. Estabeleceremos juntos um plano de guerra alegre contra esse sinistro promotor de escombros. - Estou perfeitamente à vontade nessa espécie de guerra - prometeu Ossama. Nimr ergueu os braços para o tecto, como se invocasse os favores do céu, mas aquilo não passava de um gesto natural perante o insuportável. Estava indignado com a conivência impudica e inexplicável entre Karamallah e o seu antigo discípulo. 120 121

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IV

ATEF SULEYMAN, o promotor de anódinos genocídios urbanos, não trazia o sinal da infâmia gravado na testa, mas esta negligência da natureza não impedia os inúmeros inquilinos dos prédios construí dos pela sua sociedade imobiliária de amaldiçoá-lo a toda a hora do dia e da noite, sem contar com certos extremistas que exigiam a sua morte imediata. Infelizmente, estas invectivas de uma populaça acintosa, desprovida de cultura económica, e portanto incapaz de apreciar as belezas do capitalismo, jamais atingiam o seu destinatário. Este vivia faustosamente no bairro residencial de Zamalek, alguns quilómetros distante das novas cidades conquistadas ao deserto, onde ele exercia a sua lucrativa indústria. 123 Desinteressado da perenidade dos monumentos faraónicos, Suleyman pretendia ser o promotor da era das construções efémeras - emblema da modernidade _ que não legavam à posteridade senão entulho e poeira. Em linguagem clara, casas descartáveis. O desabamento prematuro da sua última produção tinha-se revelado de um modernismo particularmente fasto, dado que entre o entulho e a poeira jaziam os cadáveres de cinquenta criaturas humanas chegadas ao fim da sua medíocre existência sem qualquer aviso prévio. Embora pouco dado a superstições, Suleyman nunca se esquecia, ao elaborar os seus orçamentos que suplantavam toda a concorrência, de contar com a fatalidade. Esta catástrofe desastrosa para a sua reputação intrigara-o por ser tão repentina. Que género de fatalidade seria então para se comportar tão precipitadamente sem se preocupar com os estragos ocasionados pela sua intempestiva imperícia? Não podia esperar uma altura mais conveniente para atacar com perfídia um prédio com a pintura ainda fresca, inaugurado por um ministro havia apenas três meses? Tratava-se de uma fatalidade suspeita, provavelmente ligada a uma conspiração organizada por inimigos ultrajados com o seu êxito. Sempre acreditara no adágio popular segundo o qual a riqueza era como o mel: atraía as moscas. No caso presente, tratava-se de moscas venenosas que já por várias vezes haviam distilado o seu veneno na primeira página de um jornal independente e ainda por cima - raridade mundial - incorruptível. Acusado de desvios de dinheiro e de fraudes de toda a espécie, Suleyman - tal como todos os seus iguais - apresentava a sua honra como um alibi irrecusável, dando a entender que à hora em que estas práticas delituosas tiveram lugar, se encontrava na companhia da sua honra. Denotando um tipo de má fé que ultrapassava largamente as normas admitidas na profissão, suscitava a admiração e a inveja dos concorrentes mais moderados. A procura obsessiva do perturbador de um programa imobiliário dedicado à sua glória não atenuava em nada a cólera de Suleyman contra o cúmplice, o irmão do ministro. Esse indivíduo cobarde e estúpido que tinha ousado enviar-lhe uma carta de ruptura cheia de graves insinuações, actualmente nas mãos de um desconhecido. 124 125

Neste momento, esse filho de uma tinhosa devia estar escondido em casa da amante, uma velha dançarina do ventre, toda estragada, que ele mantinha principescamente com o dinheiro que lhe dava em pagamento de importantes serviços mais ou menos lícitos. Na verdade, a transformação de uma das suas mais belas realizações em ruínas de guerra, assim como as cinquenta vítimas supostamente inocentes, não passavam de um episódio, é certo que penoso, mas não ao ponto de lhe prejudicar os negócios. Uma hecatombe é sempre seguida, mais cedo ou mais tarde, por outra hecatombe ainda mais espectacular. Nada podia evitar uma desgraça decidida pelo destino, pensava Suleyman, de súbito tocado pela sabedoria. E era sempre possível esperar desse destino um descarrilamento de comboio ou um incêndio num estádio. Esta última possibilidade tinha a sua preferência, por causa da grande massa de degenerados que frequentavam esse género de sítios. O número de resíduos humanos carbonizados contar-se-ia por milhares, o que tornaria os seus cinquenta mortos completamente ridículos.

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Abandonando estas especulações sem vergonha sobre improváveis acidentes mortíferos de classe internacional, Suleyman voltou ao seu principal problema, a bem dizer o único, o da famosa carta. A divulgação, de qualquer maneira que fosse, deste papel com o timbre do ministério, representaria o final de uma colaboração muito proveitosa com eminentes funcionários que Abdelrazak, usando do seu parentesco com um ministro, conseguira desviar do caminho recto e encaminhar para estradas sinuosas, mas pavimentadas com pedras preciosas. Prometeu a si próprio que uma vez recuperada a carta iria procurar a casa da amante aquele detestável filho de uma zarolha, e depois mimá-lo e talvez levá-lo a um bordel que abrira recentemente, onde a mais velha das pensionistas não devia ter mais de dezasseis anos. Aquilo havia de compensá-lo da sua dançarina do ventre cheia de pregas e com certeza que o tornaria mais maleável. Suleyman não tinha alternativa e estava pronto a recorrer a toda a espécie de baixezas para fazer Abdelrazak voltar atrás na decisão de romper a sua cumplicidade. Iria até ao ponto de declarar-lhe que o tornaria seu 126 127

herdeiro, o que seria uma descarada mentira, porque a fonte do ódio que sentia em relação àquele tratante não estava perto de secar. Não era homem para esquecer que esse indivíduo lhe havia escrito uma carta impertinente, redigida num estilo digno de um carroceiro, com a intenção de desonrá-lo. Na sua infelicidade, tinha de reconhecer que Abdelzarak era um elemento essencial ao funcionamento destas redes de corrupção sem as quais nenhuma espécie de negócios, pelo menos para ele, era concebível. Se aceitasse trabalhar na construção de maneira honesta, os lucros da sua sociedade desceriam ao nível dos de uma fábrica de bilhas. O desconhecido, na ocorrência um jovem que se dizia estudante - sem especificar em que matéria - telefonara-lhe a marcar um encontro num célebre café do bairro popular de EL Huseini, que devia a reputação à sua clientela, mistura de intelectuais e mendigos filósofos, e também de simples actores da vida sem especialidade aparente. Suleyman havia-se sentado noites inteiras na prestigiosa esplanada daquele café, na época em que ainda estava a preparar as suas futuras proezas no domínio do roubo planificado e legalista. O jovem pretendia ter encontrado uma carta com o seu endereço no passeio da rua Rifaat Harb, apanhando-a com o propósito caridoso de entregá-la ao destinatário. Não falava da carteira e prometia entregar-lhe a carta quando se encontrassem. Esperava sem dúvida receber algum dinheiro contra a entrega, o que Suleyman estava disposto a conceder-lhe sem discussão. Havia, no entanto, qualquer coisa de duvidoso naquele encontro, dadas as cláusulas estranhas e obrigatórias que continha e que até a um recém-nascido suscitariam a maior das desconfianças. Em primeiro lugar, tinha que ser de noite, como nas reuniões de conspiradores, depois naquele bairro popular, terreno propício às manobras equívocas. Porém, muito mais inquietante era a presença de uma pessoa que o pretenso estudante dizia estar interessada em conhecê-lo e falar-lhe. Falar-lhe de quê? Mais uma testemunha neste caso e em breve toda a cidade, sempre à procura de motivos de gozo e de chacota, ficaria a saber tudo sobre o milagre da sua fortuna. Com que intenção diabólica 128 129

teria o jovem posto a tal pessoa ao corrente do assunto? Esta questão não deixava de persegui-lo, à maneira desses enigmas que há séculos perduram sem solução. Assim como uma mulher feia não se torna mais feia com a idade, o bairro de El Huseini não tinha sofrido degradações suplementares com o passar dos anos. Depois de ter estacionado o carro bem longe do local do encontro, Suleyman caminhava na noite iluminada pelas luzes dos cafés, das barracas e dos archotes dos vendedores ambulantes muito mais do que pelos candeeiros da iluminação pública perdidos no fundo de vielas lamacentas. Parecia-lhe ter deixado este bairro na véspera, de tal modo reconhecia certos tugúrios de paredes escalavradas, certas rachas ornamentando os passeios, sobretudo uma delas - sempre em actividade - que por

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pouco não o estropiara em tempos longínquos e esquecidos. Por outro lado, o que o surpreendia e era novo e insensato para a sua compreensão, era a atmosfera de alegria que sentia à sua volta, uma alegria que parecia desafiar a imagem normalmente pitoresca e sombria da miséria. E no entanto não era dia de festa. Toda aquela gente que se interpelava ruidosamente, se atirava piadas e se ria às gargalhadas, como se o simples facto de estar viva bastasse para a sua felicidade, irritava-o profundamente. Apressou o passo, não querendo comprometer-se nesta orgia de gritos e de ditos alegres, pois achava tão tonitruante bom humor uma espécie de ofensa à alegria delicada dos ricos. Numa loja de barbeiro, um homem de sandálias estava a ser barbeado por um jovem aprendiz em calções de banho. A visão daquele pobre diabo entregando-se ao prazer luxurioso de refrescar o rosto a uma hora tão tardia aumentou a irritação de Suleyman e inspirou-lhe diversas suposições sobre os motivos do infeliz. O homem estava a fazer a barba antes de ir encontrar-se com uma amante desmiolada - forçosamente desmiolada numa espelunca qualquer das redondezas. Outra suposição - esta gentilmente macabra -, o homem tinha sido avisado de que ia morrer durante a noite e desejava apresentar-se às portas do paraíso com um aspecto limpo e sedutor. O comportamento absurdo deste esteta das alfurjas continuou a intrigá-lo até ao 130 131 momento em que foi abordado por um rapaz com cerca de dez anos, envergando uma túnica cor de açafrão acabada de estrear, e que parecia muito impaciente por saber que horas eram. Suleyman olhou o miúdo com evidente repulsa, e da sua boca saíram palavras semelhantes a escarros. -Por que queres saber as horas? Tens algum encontro marcado? - Não - respondeu o garoto. - Não tenho encontro nenhum. - Então de que te serve saber que horas são? - Perguntei por perguntar. Ando à procura do meu pai. - Não compreendo. Que relação tem o teu pai com o meu relógio? -Eu vou-te explicar. O meu pai abandonou-nos, a mim e à minha mãe, quando eu era muito pequeno. Não o conheço. A minha mãe diz que ele vai voltar um dia destes e que é muito rico. Por isso, cada vez que vejo um homem como tu, vestido como os ricos, penso que talvez seja ele. - Que fazia o teu pai? - Era ladrão - respondeu o rapaz, com orgulho. - Desaparece já daqui, meu malandro! Não sou teu pai. - É pena. És o vivo retrato dele. Suleyman tentou dar-lhe um pontapé, mas o miúdo fugiu e desapareceu na multidão. Começava a ser insuportável, esta caminhada nocturna por lugares nauseabundos que há muito tempo expulsara da sua memória para só se recordar dos cenários faustosos dos grandes hotéis e dos álcoois bebidos em volta de luxuosas piscinas. Pensou de novo em Abdelzarak, responsável pela sua aflição, e desejou ver-lhe a mãe aos oitenta anos de idade prostituir-se num bordel para leprosos. E isso, comparado com o que pensava reservar-lhe no futuro, não passava de um voto simpático. Deteve-se subitamente para ouvir uma voz vinda não se sabe de onde, mas que conhecia desde a infância. Um aparelho de rádio difundia as canções aduladas da cantora mítica cuja voz acompanhará ainda por muito tempo os homens nas suas derivas e nos seus amores impossíveis. 132 133

O café dos Espelhos tinha perdido a maior parte da dimensão histórica que já possuíra e a sua esplanada só ocupava agora uma pequena parcela do passeio. Escapados do desastre, alguns espelhos cheios de manchas de bolor nas suas molduras douradas permaneciam ainda pendurados nas paredes, como que para fornecer ao café a prova da sua identidade. Suleyman, que já estava à espera daquela decadência, não ficou escandalizado. Esforçou-se por assumir um

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ar amável e despreocupado antes de encontrar o jovem desconhecido que lhe telefonara. Este tinha-lhe garantido que o reconheceria facilmente: sendo um fervoroso leitor de jornais, muitas vezes lhe admirara a foto na primeira página a propósito de um escândalo financeiro ou de uma inculpação por assassinatos premeditados. A informação, apesar do seu cariz anedótico e vagamente insolente, tinha tranquilizado Suleyman quanto ao meio social do jovem e quanto ao seu grau de instrução. Se o rapaz sabia ler, saberia comportar-se de maneira honesta e respeitosa perante uma pessoa mais velha. Suleyman acreditava muito na instrução, se bem que ele próprio não tivesse recebido nenhuma. Via já o desconhecido submisso e admirador, inteiramente à sua disposição. Penetrou na esplanada do café de cabeça bem erguida e expressão autoritária, como quem vai tirar uma fotografia de imprensa com vista a uma publicidade imobiliária. Ossama tinha-o avistado e preparava-se para lhe fazer sinal, mas Karamallah impediu-o, segurando-lhe o braço. O mestre pretendia observar de longe, apenas por alguns momentos, o infame em circulação, o seu porte e aparência no meio de um público particularmente imbuído de falta de respeito em relação à fortuna. Teve direito a um espectáculo surpreendente. Suleyman inspeccionava a esplanada com os olhos de um patrão que vinha contratar trabalhadores desempregados e se apercebia de que tinha à sua frente um bando de madraços, os quais não achavam nada de melhor para fazer do que fumar narguilés, jogar ao trique-traque ou vociferar contra o governo no meio de grandes gargalhadas. Todas as pessoas que se entregavam à moleza e à ociosidade pareciam ter o condão de exasperá-lo. Dava a impressão de um homem que tinha caído no 134 135 fundo de um buraco e aguardava a chegada de improváveis salvadores. Finalmente, Ossama pôs-se de pé e convidou-o a vir sentar-se à sua mesa. A vista do jovem confirmou em Suleyman a boa impressão que tinha relativamente à sua educação e nível social. Visto de perto, o pretenso estudante estava elegantemente vestido, e o homem mais velho sentado a seu lado também não lhe ficava atrás em matéria de elegância. Mas havia qualquer coisa naquela apresentação que não deixou de despertar a sua desconfiança. A verdade é que os dois elegantes que tinham obtido a sua aprovação estavam acompanhados de um terceiro homem, de cabeça rapada e provido de uma barba negra que lhe ocultava metade do rosto. Este personagem trazia uma túnica de seda crua aberta no seu grosso pescoço e uns óculos escuros que lhe davam um ar de assassino de comédia. Era de temer que este convidado inesperado pudesse vir a perturbar a entrevista idílica que Suleyman tinha imaginado. Precisava urgentemente de saber por que motivo a presença deste intruso que destoava da assembleia tinha sido julgada indispensável. Se era na qualidade de observador neutro, podiam ter escolhido melhor. Com este espinho atravessado na cabeça, Suleyman avançou para a mesa onde o esperavam os terríveis parceiros de um jogo hilariante. - Sê bem-vindo! - exclamou Karamallah. - Que honra! Senta-te. Hoje é um dia fasto! Permite que me apresente, excelência! Chamo-me Karamallah e estes aqui são o professor Nimr e o nosso jovem amigo Ossama, a quem devemos a imensa felicidade de poder estar contigo. Uma celebridade da tua importância não precisa de se apresentar. És conhecido no mundo inteiro, ou será que me engano? - És muito amável, não mereço tantos elogios - respondeu Suleyman, que não tirava os olhos de Nimr. - Posso saber, se não sou indiscreto, que matérias ensina o professor Nimr? - Com certeza. Tenho o prazer de te informar que o professor Nimr ensina sociologia. Embora neste momento esteja em férias, por causa de um desgosto de amor. - Sociologia, dizes? Já ouvi falar disso. Que ciência é essa? - A sociologia - prosseguiu Karamallah é a ciência da sobrevivência em sociedade. 136 137

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O professor Nimr ensina aos jovens a maneira de se safarem na vida. - Que Alá o proteja! É um homem de bem. Não tive a sorte de encontrar alguém como ele na minha juventude. - Eu acho, pelo contrário, que tiveste muita sorte -afirmou Karamallah, como quem profere uma sentença. - Ora essa, porquê? - inquiriu Suleyman, surpreendido com aquela vidência um pouco tardia. - Porque nenhum dos seus alunos fez fortuna. Foi por isso que disse que tiveste sorte. - É muito triste. Deve com certeza haver uma razão para esse fracasso generalizado. Suleyman tinha ido mais longe do que desejaria, mas as circunstâncias não lhe ofereciam nenhuma espécie de escapatória. O seu interlocutor conduzia a conversa e teria sido inconveniente da sua parte não o seguir nos seus enunciados um tanto precipitados. Estava-se ainda no princípio do encontro e precisava de se mostrar amável, compreensivo e até capaz de generosidade. Para esse fim, tinha trazido consigo uma quantidade de dinheiro judiciosamente calculada que previa pôr em cima da mesa no momento oportuno para activar a transação. No seu espírito, nada tinha mudado, os negócios continuavam, só os parceiros é que eram diferentes. - Eu sei - tornou Karamallah -, que o meu amigo Nimr me desculpará, mas sempre me pareceu que faltava virulência ao seu ensino. Pregava a virtude aos alunos, o desdém pelo dinheiro e a modéstia no respeitante à sua participação no futuro do mundo. Podes dizer-me, excelência, tu que conheces os escolhos e as dificuldades do comércio, se é possível enriquecer com a virtude? Faço-te esta pergunta fundamental que remonta aos tempos mais antigos porque foi com o propósito de a fazer que estava interessado em encontrar-me contigo. Suleyman observou os três companheiros, um após outro, esperando deles um sinal, uma indicação que o guiasse na via da resposta adequada. Mas estes antes pareciam estar a divertir-se com a sua hesitação. - A coisa é um bocado complicada - disse ele finalmente, como que a desculpar-se. 138 139 - Resposta sublime! - exclamou Karamallah. - Estou-te muito agradecido. Mas de ti não esperava menos, excelência. A surpresa de Karamallah não era fingida; estava verdadeiramente surpreendido com a persistência e a amplidão de um pensamento inepto que julgava incapaz de florescer em terras ensolaradas. Assim, a velha ideia emitida por ilustres pensadores originários das regiões frias, segundo a qual o mundo seria complicado e absurdo, tinha atravessado os oceanos e as fronteiras para vir aninhar-se no cérebro de um abominável escroque das margens do Nilo. Esta vilania consistente em negar a simplicidade edémica do mundo servia os interesses dos poderosos, posto que justificava todas as dificuldades sofridas pelas massas ignorantes. Karamallah erguia-se com toda a força do seu amor pela vida contra esta perniciosa desinformação. - A tua excelência pode falar-nos do seu êxito pessoal - sugeriu Ossama. - Devo confessar-te que para mim é algo que releva da magia. - Um sucesso tão belo - declarou Karamallah. - Infelizmente estragado por uma pavorosa catástrofe. Sinto-me desolado por ti. Tratou-se com certeza de má sorte. Ou tens outra explicação? - Podes acreditar que também estou desolado. Mas nada se pode contra as catástrofes naturais. É uma maldição que não poupa ninguém. Por isso não me queixo. - Catástrofes naturais - admirou-se Karamallah. - Que queres dizer? - Que Alá te livre de semelhante situação. Mas quem pode estar à espera de um tremor de terra numa bela noite de verão tranquila? Pois bem, a terra tremeu, criando em redor da cidade El Nasr um insondável mistério. Nunca se saberá porquê nem como fui vítima deste capricho da natureza. - Um tremor de terra. Onde? - inquietou-se Nimr, que tirou os óculos para apreender o acontecimento com uma visão mais nítida.

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- Não precisas de te alarmar - aconselhou Karamallah. - Escapámos a esse tremor de terra porque não nos deu a honra de passar na nossa vizinhança. Considero que em relação a nós procedeu com falta de tacto. Este discurso divertido de Karamallah pareceu a Suleyman cheio de subentendidos e como 140 141

que uma refutação maliciosa do belo conto que acabava de contar. - Como? Vocês não estavam ao corrente? disse ele, tomando o ar de quem está consternado com a incrível ignorância dos seus interlocutores a propósito de uma notícia tão aterradora. - É verdade que a cidade El Nasr fica suficientemente afastada para que não se possa ouvir o que lá se passa. Além disso, o governo comunicou aos jornais o seu desejo de não se fazer muito barulho à volta do incidente. Quanto menos a população soubesse, melhor. Mas eu julgava que pessoas com a vossa instrução deviam ter ouvido falar do caso em certos círculos de intelectuais maldizentes, sempre à procura de escândalos. - Não - disse Karamallah -, como vês, até pessoas com a nossa instrução não estavam ao corrente. Entretanto, acabas de nos alegrar o coração. Fico contente por saber, assim como os meus companheiros, que a causa real do desabamento do prédio ficou a dever-se a uma catástrofe natural e não a falhas na construção. Os mártires imolados debaixo dos escombros só poderão acusar a desabrida natureza. -Juro pela minha honra que é a pura verdade - garantiu Suleyman. - Aliás, isso foi certificado por dois peritos que mandei vir do estrangeiro para eliminar qualquer denúncia de fraude. Examinaram o entulho, analisaram o ar em redor do sítio e concluíram que se tratava de facto de um tremor de terra. Dou muita importância à conclusão desses cientistas porque me custaram muito dinheiro. - Constato - comentou Ossama -, que os tremores de terra têm sempre lugar nas regiões mais pobres do globo. É caso para a gente se perguntar se a natureza não tem horror aos pobres. - Isso prova apenas que o comportamento da natureza para com os pobres é tão ignóbil como o dos homens - admitiu Karamallah -, mas estas são ideias frívolas que em nada devem interessar o nosso eminente convidado. Não é preciso dizer que Karamallah rejubilava com este encontro que tinha organizado na esperança de aprender qualquer coisa de inédito sobre a ignomínia em toda a sua glória. Sentia-se afogado de admiração pelo cinismo inventivo do homem do prédio fulminado. 142 143

Este achado de um sismo selectivo tomando o seu prédio por alvo merecia ser anotado como um progresso decisivo na longa história da abjecção humana. Karamallah só temia não conseguir dominar os seus sarcasmos ao ponto de contrariar Suleyman e vê-lo pôr termo àquele festim do espírito. Suleyman - recorrendo como sempre à sua honra - julgava ter enganado Karamallah e os amigos, e olhava-os com a bazófia de alguém que tinha sido declarado inocente por peritos estrangeiros. O seu desprezo ou a sua inconsciência em relação à capacidade das pessoas para assimilar as mentiras que dizia garantiam-lhe uma perfeita serenidade na existência. Ninguém lhe tinha falado da carta e ele não compreendia o silêncio que se observava a tal respeito, como se houvesse algo de duvidoso no assunto. Ignorava que Ossama - seguindo as instruções do mestre - só devia abordar o problema o mais tarde possível, a fim de fazer durar o prazer. Por isso, o jovem sentia a urgência de relançar a conversa quando Suleyman se antecipou. Tinha decidido de repente que já era tempo de se ocupar da escandalosa missiva, obra de um imbecil notório, dirigindo-se directamente a Ossama, presumível detentor da coisa. - Será preciso lembrar-te que estou aqui para falar de um certo assunto? Estou pronto a aceder a qualquer proposta da tua parte para a entrega dessa carta.

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- Qual proposta? - perguntou Ossama. Não tenho nenhuma proposta a fazer-te. - Temo que não me compreendas. Repito que estou pronto a pagar uma quantia razoável. Só tens que fixar um preço. Não tenhas receio. Eu sou um homem muito compreensivo. - Como podes acreditar que o nosso jovem amigo se rebaixaria ao ponto de aceitar dinheiro de ti! - indignou-se Karamallah. A tua única desculpa é ignorar tudo acerca das suas origens. Ossama é um príncipe, foi criado entre sedas e alimentado a mel. Mas é demasiado modesto para fazer ostentação do seu título. Prefere ser um simples cidadão. -Desculpa-me, não podia adivinhar murmurou Suleyman, verdadeiramente afectado com o seu lapso. - Seu pai, o príncipe Mohsen, foi obrigado a exilar-se após a revolução - prosseguiu 144 145

Karamallah, a quem esta nova biografia de Ossama parecia divertir infinitamente. - Mas a história tornou-se triste quando se soube do suicídio do príncipe. Não podendo viver longe do seu país, acabou por se matar. Vítima da sua própria mitomania, Suleyman estava disposto a acreditar em tudo quanto lhe dissessem. Dirigiu-se portanto a Ossama com todo o respeito devido a um descendente de uma família real, mesmo dissolvida. - Mas se não se trata de dinheiro, trata-se de quê? Era isso que queria saber. - Ora, trata-se de nada - respondeu Ossama, o qual, eleito príncipe pela graça de Karamallah, tentava impregnar-se do seu novo papel. - Na verdade, enquanto estudante de arquitectura, desejava sobretudo aproveitar este encontro para discutir contigo, promotor célebre e cujas maravilhosas construções são a glória do nosso país, um problema muito actual que divide a universidade neste momento. Devem construir-se prédios de duração ilimitada ou de duração média, limitada a alguns anos? Quantos? Dez, vinte? Ninguém está de acordo quanto a este ponto. Esperava que com a tua experiência me podias esclarecer e talvez dar-me alguns conselhos, qualquer coisa que desse para me evidenciar junto dos meus condiscípulos. - Nós não estamos na época dos faraós disse Suleyman, lisonjeado por haver sido reconhecido como um perito em arquitectura. - Se te interessa tanto conhecer a minha opinião, digo-te que é preciso construir edifícios de duração limitada, se não será a ruína e o fim do negócio imobiliário. - Porquê? - interrogou Ossama, bastante interessado, como se não quisesse perder a mais pequena palavra daquela lição magistral. - Enfim, é pura lógica. Se constróis edifícios para durar eternamente, chegará o momento em que deixa de haver terrenos disponíveis para construir outros. Repara nas pirâmides. N este país, não passa pela cabeça de ninguém construir uma pirâmide. O lugar está tomado há quatro mil anos. Mas no estrangeiro erguem pirâmides. É mesmo a grande moda da arquitectura moderna. Mais do que contentamento, um orgulho de criminoso endurecido animava Suleyman 146 147

depois desta lição de modernidade ministrada a um futuro arquitecto. Começava a sentir-se à vontade apesar da escuridão que continuava a planar sobre o destino da carta. Príncipe ou não, achava Ossama suficientemente sedutor para poder ser o filho que ele não tivera. Isso levou-o a pensar na família, na mulher, que se tornara tão gorda como uma cantora de ópera à força de comer guloseimas, na sua filha Anissa, que lhe chamava ladrão e recusava o seu dinheiro a pretexto de que o tirava do bolso dos pobres. Onde queria que fosse tirá-lo? Ela dizia que andava a estudar direito para processar os tipos da sua espécie e enviá-los para a prisão. Todos estes anos passados a amontoar uma fortuna economizando no cimento para ouvir dizer semelhantes idiotices à sua única herdeira era coisa que deixaria mortificado até um assassino. Mas esta breve estada do pensamento no seio dos seus não deixou nele nenhum vestígio de amargura; as

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palavras de uma mulher permanecerão eternamente vazias de sentido. Voltou ao objecto inicial da sua presença no café, mas desta vez com uma abordagem nova, agradável à sua vaidade. Tinha chegado a convencer-se de que a lentidão e as ambiguidades que presidiam a este encontro nada tinham de malévolo, correspondendo antes ao desejo ardente dos seus companheiros no sentido de prolongar a conversa só pelo prazer de o ouvir falar. Um prazer que ele próprio partilhava. Não hesitando nem por um instante, retomou o curso da sua exposição sobre a vantagem das construções efémeras, mostrando assim que não era hostil a uma troca de ideias educativa. - Estava portanto a dizer que certos imóveis devem desaparecer a fim de deixar espaço a novas construções. - Desaparecer como, com os inquilinos lá dentro? - insinuou perfidamente Karamallah. - Certamente que não. Nós não somos selvagens. -Vossa excelência pode então explicar-me como prever e evitar esse desaparecimento? -É uma questão de dosagem. Trata-se de calcular com o maior rigor a profundidade dos alicerces, a espessura das paredes, e sobretudo há que não desperdiçar cimento, não o gastar à toa como se fosse caroços de melancia. 148 149

- És um homem extraordinário - comentou Karamallah. - Como pude eu viver até agora sem te conhecer? Bem, pelo menos essa lacuna já está reparada. - Não passo de um simples servidor da nação. - A nação ser-te-á reconhecida - predisse-lhe Karamallah. - Desde que os sismos dêem provas da sua eficácia longe dos teus edifícios. - É o que peço todos os dias nas minhas orações - afirmou Suleyman. Em volta deles, as discussões e a euforia geral iam-se amplificando à medida que a noite avançava e o ar da esplanada se impregnava do fumo perfumado do haxixe misturado com o tabaco dos narguilés. Ossama não possuía o rigor nem o autodomínio de Karamallah e tinha dificuldade em conter-se. Parecia-lhe, como num sonho aterrador, que não ia poder abafar por muito mais tempo uma explosão de riso. Estava encarregado de uma missão que devia culminar numa apoteose fulminante para o homem das construções precárias e que exigia da sua parte uma atitude compatível com a sua posição de estudante recentemente investido de responsabilidades principescas. Até ao momento em que teria de revelar a Suleyman a sorte destinada à sua carta, estava-lhe vedado abandonar-se às alegrias da ironia. A sua juventude inflamada incitava-o a não retardar mais esse momento, e perguntava a si próprio se Karamallah tinha aprendido o suficiente deste dignitário de uma ordem celerada, ou então se pretendia saciar-se com todas as cores da infâmia. Como se Suleyman tivesse adivinhado o embaraço de Ossama e o seu desejo de acabar com aquilo, dirigiu-se directamente ao jovem. - Então, príncipe, e se falássemos da carta - propôs ele num tom amável, mas decidido. - Presumo que a trazes contigo. - Bem - respondeu Ossama -, pode-se dizer que a trago comigo. Trago-a até de uma maneira que nunca serias capaz de adivinhar. - Mostra-ma então - pediu Suleyman, com algum nervosismo. Parecia suspeitar que alguma coisa de insólito se preparava contra si e que essa coisa iria irremediavelmente quebrar a sua serenidade de cidadão intocável. - Não é assim tão simples - disse Ossama de maneira evasiva, como se falasse para uma 150 151

criança que o aborrecia com as suas perguntas. - Porque estás tão apressado? A nossa companhia não te agrada?

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Suleyman fez um esforço sobre si próprio e pareceu reflectir. A conversa com o príncipe tornava-se cada vez mais opaca e sentia as suas faculdades mentais vacilar perante tantas furtadelas e tantos enigmas repetidos. - Seja como for, é preciso que acabemos por nos entender. Não tenciono ficar aqui toda a noite, apesar de todo o prazer que a vossa companhia me proporciona. Sou um homem de negócios e não posso perder tempo. Peço-te que finalmente me digas o que exiges para me dar essa carta. - Já te disse, não exijo nada. Esta carta, andará sempre comigo, como uma espécie de amuleto. Depois de a ter encontrado, já não temo mais nada. Julga por ti próprio. No dia em que a apanhei do passeio, um táxi que rolava, como é seu hábito, na esperança de suprimir alguns transeuntes, por pouco não me atropelou. Compreendi então que tinha sido salvo de uma morte atroz pela magia que esta carta exalava. - Que imprudência! Proíbo que te armes em extravagante à custa da minha carta. Ossama abriu a camisa e exibiu um estojo de couro que trazia preso ao pescoço por uma fina corrente de prata. - A tua carta está aqui. Ainda sou muito novo para possuir uma honra credível. Por isso, já que tens uma honra legalizada e reconhecida por todas as autoridades, conto contigo para me servir de alibi se as coisas me correrem mal. A cólera apoderou-se de Suleyman, cujo rosto começou a ficar inchado e a adquirir uma coloração esverdeada; dir-se-ia um balão enchido por um sopro de ar vindo do inferno. Inclinou-se sobre a mesa e disse, num tom que ameaçava, para além de Ossama, todos os revoltados do planeta: - Diz-me, príncipe, não serás por acaso um ladrão? Ossama levantou-se, inclinou-se cerimoniosamente e disse numa voz humilde e cheia de contrição: -Comparado contigo, excelência, um ladrãozinho de nada! 152 153

Nimr desatou a rir-se, um riso que não se parecia com nenhum outro, um riso revolucionário, o riso de alguém que acaba de descobrir a face ignóbil e grotesca dos poderosos deste mundo.

FIM

TV20080903