as configurações do amor em eça de queirós

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE MESQUITA FILHO FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS CILA MARIA JARDIM AS CONFIGURAÇÕES DO AMOR EM EÇA DE QUEIRÓS: “SINGULARIDADES DE UMA RAPARIGA LOURA” E “NO MOINHO” ARARAQUARA 2003

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Tese brasileira sobre o conto Singularidades de uma rapariga loira de Eça de Queirós

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  • UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JLIO DE MESQUITA FILHO FACULDADE DE CINCIAS E LETRAS

    CILA MARIA JARDIM

    AS CONFIGURAES DO AMOR EM EA DE QUEIRS:

    SINGULARIDADES DE UMA RAPARIGA LOURA E NO MOINHO

    ARARAQUARA 2003

  • 2

    CILA MARIA JARDIM

    AS CONFIGURAES DO AMOR EM EA DE QUEIRS: SINGULARIDADES DE UMA RAPARIGA LOURA E NO MOINHO

    Dissertao apresentada Faculdade de Cincias e

    Letras da Universidade Estadual Paulista Jlio de

    Mesquita Filho, campus de Araraquara, para obteno do

    ttulo de Mestre em Letras (rea de concentrao:

    Estudos Literrios)

    Orientador: Prof. Dr. Luiz Gonzaga Marchezan

    ARARAQUARA 2003

  • 3

    Jardim, Cila Maria As configuraes do amor em Ea de Queirs: Singu- laridades de uma rapariga loura e No moinho / Cila Maria Jardim. Araraquara, 2003. 97f. Dissertao (Mestrado Estudos Literrios) Universi- dade Estadual Paulista, 2003. Orientador: Luiz Gonzaga Marchezan

    1. Literatura portuguesa 2. Queirs, Ea de Queirs 3. Conto portugus 4. Singularidades de uma rapariga loura 5. No moinho 6. Ttulo

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    Aos meus pais e s minhas irms.

    Eugnia, sempre entusiasmada e disposta a novas buscas.

    Fatima, pela leitura atenta e competente.

    Aos meus professores Mrcia Valria Gobbi e Carlos Alberto Iannone (in

    memorian) por me apresentarem a beleza da literatura portuguesa e por serem

    pessoas to generosas.

    Ao meu orientador, prof. Dr. Luiz Gonzaga Marchezan, pela competncia e

    confiana demonstradas durante todo o estudo e, sobretudo, por me permitir a

    liberdade de pensar, refletir, elaborar e, assim, fazer do estudo literrio algo

    prazeroso.

  • 5

    Resumo

    Este trabalho prope o exame de dois contos de Ea de Queirs

    (Singularidades de uma rapariga loura e No moinho, focalizando o

    desenvolvimento da temtica amorosa. Ao considerar que essa uma questo cara

    aos romnticos, aos quais Ea de Queirs dirige crticas virulentas, procura-se

    examinar qual o tratamento dado a ela naqueles contos, publicados no perodo de

    produo literria tradicionalmente considerado como o mais ortodoxo em termos de

    obedincia esttica realista.

    Para o estudo de tal proposta, verificam-se quais procedimentos narrativos o

    escritor utiliza para a configurao do que pretende. Assim, ao analisar narrador,

    personagem, espao e tempo, observa-se que so categorias convocadas, ativadas

    e movidas para e pela ironia, conduzidas para surtir o efeito narrativo desejado.

    Em ambos os contos, assiste-se a uma articulao desses elementos, permitindo a

    concluso de que o sentimento amoroso leva ao dano espiritual e, no caso de No

    moinho, tambm moral.

    Palavras-chave: Literatura portuguesa ; Queirs, Ea de; Conto portugus ; Singularidades de uma rapariga loira; No moinho

  • 6

    Abstract

    This work considers the examination of two short stories of Ea de Queirs

    (Singularidades de uma rapariga loura and No moinho), focusing the study of the

    theme Love. Considering that this is a crucial matter to the Romantic authors, to

    whom Ea de Queirs is so much critical, we try to check how he treats this subject

    in those stories, published in a period considered the most radical in terms of the

    realistic aesthetic obedience.

    For such proposal, the narrative procedures used by Ea de Queirs are

    analised and topics as narrator, characters, space and time are observed to find out

    how the author leads them to the desired narrative effect. In both stories, a joint of

    these elements is attended, allowing the conclusion that the loving feeling takes to

    the spiritual damage and in the case of No moinho, also moral.

    Keywords: Portuguese literature ; Queirs, Ea de ; Portuguese short story ; Singularidades de uma rapariga loura ; No moinho

  • 7

    SUMRIO Resumo .................................................................................................................05 INTRODUO: Leituras da presena do amor: dois contos queirosianos .......... 08 CAPTULO 1: Conto: da tradio ao literrio ....................................................... 12

    1.1 A fortuna crtica dos contos queirosianos................................................16 1.2 Os contos queirosianos: publicao e divulgao ..................................18 1.3 Para a anlise do corpus.........................................................................20

    CAPTULO 2: A esttica realista: um outro olhar (sntese e aspectos fundamentais) ..................................................................22 2.1 O Realismo em Portugal ........................................................................ 23 CAPTULO 3: A figura de Ea de Queirs............................................................ 29 3.1 O cuidado das edies crticas.............................................................. 31 3.2 Evoluo intelectual ............................................................................... 35 3.3 Ea e Machado ..................................................................................... 39 CAPTULO 4: Amor: complexidades do termo .....................................................42 CAPTULO 5: Singularidades de um conto exemplar .......................................... 46 5.1 Categorias narrativas: a servio da construo de sentido..................... 47 5.2 O narrador que conta e escuta............................................................... 47 5.3 A focalizao narrativa: para onde incide a luz ...................................... 50 5.4 O espao influente ..................................................................................54 5.5 Personagens singulares .........................................................................56 5.6 Tempo, somatria de real e memria .....................................................64 5.7 Um sentimento singular ......................................................................... 66 CAPTULO 6: No moinho....................................................................................70 6.1 O narrador que conduz ...........................................................................71 6.2 O espao que influencia .........................................................................72 6.3 Personagens .......................................................................................... 75 6.4 O tempo trabalhado ................................................................................80 6.5 O amor que transforma ...........................................................................84 CAPTULO 7: Arquitetura do melodrama ............................................................. 86 CAPTULO 8: O sentimento amoroso em Singularidades de uma rapariga lourae No moinho .......................................................................89 CONCLUSO........................................................................................................91 BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................93

  • 8

    Introduo Leituras da presena do amor: dois contos queirosianos

    A obra queirosiana vem sendo lida e discutida desde as suas primeiras

    publicaes. Desde seus textos iniciais em peridicos (Gazeta de Portugal, As

    Farpas, Distrito de vora), sua produo recebe um olhar crtico, avaliador, que

    resulta em grandes insultos (basta lembrar o que disse Machado de Assis sobre o

    romance O primo Baslio, no jornal O Cruzeiro) ou em reconhecidos atributos

    lngua portuguesa. Resultam dessa ateno vrias investigaes e concluses a

    respeito, referncias obrigatrias para aqueles que se propem a estudar em maior

    profundidade o autor e sua produo, como para aqueles movidos por curiosidade

    desinteressada.

    No entanto, apesar dos estudos serem considerveis, exponenciais, e exista

    quem pense que tudo j foi dito a respeito do Ea, na voz da professora Beatriz

    Berrini, no comentrio feito na revista Veja1 observa-se que, at por se tratar de

    produo de alto teor, h ramais que se permitem ser analisados, investigados e

    expostos. Ainda de acordo com a professora, na mesma revista, s agora estamos

    comeando a l-lo de verdade. Nesse sentido, dentre a produo queirosiana, os

    contos que tm despertado um interesse menor, ou, em outras palavras, os que

    tm recebido uma focalizao menos intensa. verdade que os estudiosos os

    reconhecem como narrativas exemplares, e, esparsamente, surgem abordagens a

    seu respeito, na maioria das vezes, em modelos comparativos e exemplificadores.

    Tomando como elemento norteador a pesquisa realizada entre a fortuna crtica

    do escritor portugus e a leitura dos textos literrios propriamente ditos, este projeto

    se prope a averiguar a sua criao contista, circundando dois contos

    especialmente: No moinho e Singularidades de uma rapariga loura, examinando a

    construo e os desdobramentos da temtica amorosa neles elaborada.

    Adotando como corpus do estudo a edio de Helena Cidade Moura,

    recomendada por Carlos Reis, atual presidente da Biblioteca Nacional de Lisboa e

    responsvel pelo esplio de Ea de Queirs, efetuaram-se leituras exaustivas dos

    contos, a fim de que todo detalhe fosse apurado e houvesse maior familiaridade e 1 Edio 1664, ago. 2000.

  • 9

    convivncia com aquelas modalidades narrativas. Esse processo condicionou

    algumas observaes que, se naquele momento eram preliminares, foram

    determinantes para que a pesquisa e o prazer da investigao se avultassem.

    Em primeiro lugar, constata-se que a temtica amorosa se coloca disposio

    das narrativas em diversas facetas, seja ela de uma espcie fraternal, carnal,

    maternal ou espiritual. Ao se levar em considerao que o autor , tradicionalmente,

    entendido como o maior e o melhor representante da esttica realista portuguesa,

    torna-se interessante, ao menos esteticamente, examinar qual tratamento dado s

    relaes do tipo sentimentais-amorosas.

    Dentre os treze ttulos que compem a referida edio, quatro apresentam a

    relao amorosa entre seus pares protagonistas. Alm dos dois citados

    anteriormente, acrescentam-se Um poeta lrico e Jos Matias. Porm, nesses

    contos, o amor possui carter diferenciado: ambos apresentam a admirao, a

    idealizao do ser amado e no h proximidade maior entre os casais; essa situao

    permanente e persiste at o trmino da narrativa. Verdade que, em

    Singularidades de uma rapariga loura e No moinho, se pode enxergar ocorrncia

    semelhante, mas que no avana pela estria. apenas um momento primeiro:

    Macrio observa Lusa pela janela antes de envolver-se com ela; Maria da Piedade

    fica hipnotizada ao conhecer o primo Adrio, para mais tarde ter uma aproximao

    efetiva. Portanto, nos dois ltimos, ocorre a realizao amorosa, enquanto que

    naqueles, esse um fato impossvel.

    No processo investigativo a esse respeito, observa-se que h uma organizao

    de ordem interna (isto , dos componentes que estruturam a narrativa) para

    arquitetar os efeitos pretendidos. O tratamento dado s categorias narrativas,

    portanto, propicia o desenvolvimento do tema. A ttulo de exemplificao, por uma

    alterao na ordem do discurso que o leitor informado da herana familiar de

    Maria da Piedade e indica, de certa forma, o que o destino lhe aguarda,

    especialmente se se considerar a esttica na qual o seu criador est inserido.

    Assim sendo, esse estudo, cujo corpus j foi indicado, pretende:

    a) historiar a espcie narrativa conto, aludindo, quando necessrio, s teorias

    crtico-informativas;

  • 10

    b) investigar a esttica literria a qual o escritor se aliou e nela construiu seu

    cnone;

    c) inventariar a produo textual queirosiana e localizar os contos;

    d) evidenciar o processo composicional dos contos que so objetos deste estudo;

    e) salientar a operacionalizao das categorias narrativas, e examinar as

    contribuies para o efeito que se pretende;

    f) observar como a temtica amorosa desenvolvida nas narrativas em foco;

    Para que esses objetivos sejam efetivados, o estudo estrutura-se em oito

    captulos. No primeiro deles, analisa-se o histrico da forma conto e focalizam-se os

    contos queirosianos, no que tange criao, publicao e divulgao.

    O segundo examina, de forma sucinta, a esttica realista e pretende evidenciar

    qual o cnone dessa esttica e o porqu do seu comportamento. Tomam parte

    desse momento, a literatura e a sociedade portuguesas, cujos envolvimentos e

    participaes so apresentados.

    A figura de Ea de Queirs observada no terceiro captulo. Nele, o escritor

    portugus contextualizado no movimento realista e sua produo literria

    localizada. Tambm focaliza-se a publicao dos ttulos dos contos em estudo,

    assim como a ateno que recebe o seu esplio depositado na Biblioteca Nacional

    de Lisboa.

    O quarto captulo faz a leitura das definies e estudos do sentimento amoroso,

    segundo as leituras a esse respeito de Jorge de Sena, Octavio Paz e Denis

    Rougemont.

    Singularidades de uma rapariga loura descrito no quinto captulo: um conto

    singular, em que so examinados e inventariados os procedimentos narrativos

    utilizados para que o amor e seus desdobramentos tome feies especficas,

    produzindo o efeito desejado.

    No sexto captulo estudado o conto No moinho e, nele, o amor que provoca

    o desequilbrio. Esse destino final construdo paulatinamente no decorrer da

    narrativa, apoiado na operacionalizao das categorias narrativas.

    A composio dos contos como estrias melodramticas examinada no

    captulo sete. A estrutura cannica da forma melodrama nelas mantida,

  • 11

    promovendo efeitos impressionistas. Assim, essa modalidade dramtica posta a

    servio de uma inteno esttica.

    No captulo final feita a avaliao da presena do sentimento amoroso nos

    dois contos. Apesar de serem operacionalizados de maneira diferente a concluso

    coincidente. O amor uma iluso temporria que se contrape realidade,

    causando frustrao duradoura.

    O trabalho, portanto, que ora se apresenta, a somatria de estudos

    particularizados que, entretanto, se encontram entrelaados e confluem para a

    pesquisa e, talvez, contribuio acerca da produo contista queirosiana, por

    vezes relegada a segundo plano, embora seja exponencial tambm nessa

    modalidade.

  • 12

    Captulo 1 Conto: da tradio ao literrio

    A modalidade narrativa conto remonta, originariamente, noo de relato e,

    nesse momento, est distante da idia de literariedade. Do contrrio, se essa forma

    obedecesse a uma preocupao esttica, certo que, na mesma poca que se

    explicita a forma potica de compor como na Arte de trobar , houvesse o mesmo

    cuidado. O ato de relatar algum acontecimento inclui personagens bblicos (como se

    constata nos episdios de Rute, Judite, para citar alguns exemplos), passando pelas

    aventuras mitolgicas gregas e egpcias. No Oriente tambm se encontram

    exemplares prximos da arte de contar, que se perpetuaram no mundo das estrias:

    Ali Bab e os quarenta ladres, As mil e uma noites, etc.

    Assim, herdeira das tradies orais, a forma literria conhecida como conto

    atinge maturidade no sculo XIX, quando abandona seus princpios moralizantes,

    herdado das parbolas, fbulas ou historietas populares e/ou tradicionais com as

    quais a forma conviveu. Despontam contistas exemplares que se imortalizam nesse

    tipo de narrativa breve e concisa: Maupassant, Poe, Hoffman, Machado de Assis,

    Ea de Queirs (a cuja produo essa estudo se lana) e outros.

    Aos poucos, a forma foi desenvolvendo-se e confirmando-se como modalidade

    literria. Os estudos crticos tambm se voltaram para ela. Eles apontam,

    tradicionalmente, o sculo XV (e finais do XIV) como o momento em que h a

    preocupao com o fazer artstico do conto, sobretudo a partir de Boccaccio, com

    Decameron (as narrativas no possuem ttulos, mas nmeros). No entanto, esse

    perodo em que se observa um certo prestgio de cultivo conhece o declnio para

    se revigorar no sculo XIX.

    plausvel afirmar que o conto o gnero mais antigo, enquanto popular, e

    bastante moderno, enquanto literrio. Seja como for, a forma resistiu ao tempo e

    ultrapassou limites territoriais. H escritores em toda parte do mundo que veicularam

    (e veiculam) em seus falares e por meio dessa breve narrativa manifestaes

    exponenciais de questionamento da realidade sem, contudo, revelar que o fazem.

    Nota-se, portanto, que o percurso transformador: o simples relato passa a ser

    estudado e analisado microscopicamente por estudiosos de pocas diversas.

  • 13

    Como de resto em outras partes, o sculo XIX extremamente produtivo para

    o conto brasileiro e portugus, e dois nomes entram para a galeria dos imortais:

    Machado de Assis e Ea de Queirs. Independente da nacionalidade, ambos

    utilizam para suas criaes a lngua portuguesa.

    Andre Crabb Rocha (1973, p. 213-214) afirma ser graas a Gonalo

    Fernandes Trancoso, nos Contos e histrias de proveito e exemplo (1575), que a

    lngua portuguesa tem, pela primeira vez, documentada essa espcie narrativa.

    Mesclando a influncia dos novelistas italianos (Boccaccio, Bandello, Sacchetti)

    tradio oral, o autor revela o conhecimento e o interesse por casos jurdicos, e

    os toma como ncleo, por vezes, da sua criao. Reeditados at o sculo XVIII, os

    contos tornaram-se populares e apresentam duas caractersticas que os marcam:

    possuem vivacidade, embora o estilo seja descuidado, e uma gravidade dos termos.

    Por evidenciar aspectos moralizantes, a obra teve aceitao dos meios

    eclesisticos e chegou a ser editada com o aditamento do catecismo (SARAIVA ;

    LOPES, 1969, p. 507-508).

    Como elemento que evolui ao longo da Histria passando da categoria de

    oral e popular ao literrio, permanecendo e solidificando-se , o conto recebe o

    estudo crtico acerca de sua estrutura. Ainda que seja, mais uma vez, no sculo XIX

    a concentrao desses levantamentos especficos, notam-se, no sculo anterior,

    algumas breves observaes, como as dos irmos Grimm, que distinguem o conto

    popular e o culto: A poesia popular sai do corao do todo; a poesia da arte sai da

    alma individual (MORENO, 1986, p. 403).

    Alm do registro geral das manifestaes da forma e da sua consolidao

    enquanto modalidade narrativa, este trabalho procura trazer tona algumas

    definies do termo conto, apontadas por estudiosos ou por escritores que cultivam

    essa espcie.

    Um trabalho clssico o de Andr Jolles, cuja primeira edio data de 1930,

    intitulado Formas simples2. Segundo o autor, h uma distino entre as formas

    simples e as formas cultas da narratividade. As primeiras, tpicas da cultura popular

    (mito, conto, lenda, anedota), caracterizam-se por sua brevidade e pela sua

    2 A edio utilizada para leitura e estudo neste trabalho data de 1976, conforme bibliografia.

  • 14

    simplicidade estrutural. Por outro lado, as artsticas seriam frutos de criaes

    individuais.

    Propp, contemporneo de Andr Jolles, em sua Morfologia do conto

    maravilhoso (1928), estabelece as trinta e uma funes do conto examinando-as nas

    formas simples (narrativas nas fbulas russas). Para ele, o conto possui dois

    momentos na sua transformao: o relato, sagrado, transmitido dos mais velhos

    aos mais novos para, depois, se libertar dessa aura sagrada.

    Como se nota, as definies so superficiais, simples. Mesmo Mrio de

    Andrade (1955, p. 5), autor de contos, no os conceitua precisamente: Em verdade,

    sempre ser conto aquilo que seu autor batizou com o nome de conto.

    Mas, no sculo anterior aos trabalhos citados, Edgar Allan Poe, escritor e

    ensasta, numa resenha crtica da reedio das narrativas de Nathaniel Hawthorne,

    apresenta uma teoria do conto. Nela, observa-se o mesmo princpio da composio

    do poema, demonstrado n A filosofia da composio, de 1846.3. Tanto em uma

    como na outra, o que deve ser buscado, segundo Poe, a obteno do efeito

    desejado. Assim, nada, nenhuma palavra deve se dispersar: tudo deve convergir

    para estabelecer essa unidade de efeito. Para isso, o seu tempo deve ser breve, uno

    e nico. O leitor est sob o poder da leitura durante o ato da sua realizao, no

    devem haver interrupes. Da o carter de narrativa breve para o conto: caso a

    leitura extrapole o tempo de ateno do leitor, perde-se o efeito. Para que a narrativa

    cumpra esse papel, deve-se utilizar a economia dos meios narrativos, obtendo o

    mximo de efeitos com o mnimo de meios. O conto contm um conflito, e todos os

    elementos que estruturam a narrativa contribuem para essa clula dramtica.

    Julio Cortzar, discpulo de Poe, observa o aspecto acima na composio

    dessas narrativas pelo escritor americano. Para Cortzar, esse: compreendeu que a

    eficcia de um conto depende da sua intensidade como acontecimento puro, isto ,

    que todo comentrio ao acontecimento em si deve ser radicalmente suprimido.

    (CORTZAR, 1974, p. 122).

    Ainda de acordo com Poe (1874), a melhor virtude literria a originalidade, e

    o principal elemento dela a novidade. O que causa uma emoo nova

    3 A edio utilizada para este estudo de 1987, como consta na bibliografia.

  • 15

    considerado original. Cabe, ento, criar uma expectativa no leitor que o envolva aos

    poucos e por completo diante do novo. Esse enleio fruto da trama realizada pela

    narrativa que, mais uma vez, se baseia no critrio da economia: No conto vai

    ocorrer algo, e esse algo ser intenso. Todo rodeio desnecessrio sempre que no

    seja um falso rodeio, ou seja, uma aparente digresso por meio da qual o contista

    nos agarra desde a primeira frase e nos predispe para recebermos em cheio o

    impacto do acontecimento. (CORTZAR, 1974, p. 124).

    Tambm Cortzar manifesta a sua teoria do conto, preocupando-se em afirmar

    que, de fato, quase ningum se interessa por essa problemtica. (1974, p. 149).

    Ele ratifica o parecer de Poe sobre a economia estrutural da narrativa: Tomem os

    senhores qualquer grande conto que seja de sua preferncia, e analisem a primeira

    pgina. Surpreender-me-ia se encontrassem elementos gratuitos, meramente

    decorativos. (1974, p. 152).

    Vinculados a essa economia esto os conceitos de intensidade e tenso. O

    primeiro, para Cortzar, trata da eliminao de situaes intermedirias, enquanto

    que o segundo, da aproximao lenta do que conta. Ambos concorrem para o efeito

    desejado. Com a eliminao de acessrios, de momentos que no interessam

    intimamente ao conflito central e com a atmosfera criada pela tenso todas as

    peas se encaixam para formar o quebra-cabea, permitindo a visualizao

    completa do que se pretende.

    Quanto produo contista em lngua portuguesa, dois escritores se destacam

    no sculo XIX: Ea e Machado, como citado anteriormente. Ambos transitam pelas

    modalidades do gnero, mas so marcados na histria da literatura sobretudo pelos

    romances produzidos em diversos momentos de suas carreiras literrias. Aqui e ali

    suas obras se vem estudadas exausto, objetivando alcanar o grau mais

    apurado da compreenso.

    Paralela carreira de romancista, esses autores tambm desenvolveram a

    linha contista. Guardam, portanto, ttulos de romances e de contos. Essa

    coincidncia, no entanto, no se mantm no que diz respeito s atenes sobre o

    legado contista. Enquanto os contos de Machado de Assis recebem estudos de toda

    ordem, os de Ea de Queirs, apesar de serem reconhecidos como significativos,

    poucos so os estudos que se debruam sobre eles.

  • 16

    1.1 A fortuna crtica dos contos queirosianos

    Como uma das etapas deste projeto, fez-se um levantamento acerca da fortuna

    crtica dos corpus de estudo, desde a sua primeira publicao reunida, em 1902,

    pela Lello e Irmos e Livraria Chardron. Essa busca estendeu-se a toda natureza de

    publicao que focalizasse os contos em geral, quer fossem acadmicas ou no:

    teses, ensaios crticos, breves reportagens, peridicos, etc. Alm disso, estabeleceu-

    se contato com instituies portuguesas (como a Fundao Ea de Queiroz, a

    Imprensa Nacional-Casa da Moeda unidas como editoras das edies crticas , a

    Biblioteca Nacional de Lisboa) que indicaram outros caminhos bibliogrficos e

    encontros de estudiosos queirosianos em vrios territrios, cujas publicaes

    registram o rumo (e resultados) das pesquisas em torno do tema deste trabalho.

    Vale registrar a existncia da Fundao Ea de Queiroz, localizada em Tormes

    (regio de Ribadouro), Portugal, e presidida, at o momento, pela senhora Maria da

    Graa Salema de Castro, nora da filha de Ea de Queirs. Tal fundao foi criada

    em julho de 1998 e co-financiada pelo FEDER Fundo Europeu de

    Desenvolvimento Regional e promove e organiza, entre outras atividades,

    congressos sobre o escritor e sua obra.

    Os resultados apontam que os contos no so objetos de estudos especficos.

    So mencionados em inmeros artigos, mas a ttulo de comparao ou apenas

    como exemplificao. Estudiosos tradicionais, como Antnio Jos Saraiva4, lvaro

    Lins5, Joo Gaspar Simes6 apontam os contos como produto literrio de uma

    determinada fase queirosiana, e no recebem anlises mais detalhadas. Em sntese,

    as colocaes apresentadas por esses estudiosos so: Singularidades de uma

    rapariga loura a primeira narrativa realista portuguesa; h contos que so

    exemplos do naturalismo queirosiano; os contos so classificados em trs

    momentos.

    4 As idias de Ea de Queirs. Lisboa: Centro Bibliogrfico, 1946. 5 Vida e obra de Ea de Queirs. Lisboa: Bertrand, 1980. 6 Histria literria de Ea de Queirs. Lisboa: Bertrand, 1959.

  • 17

    Uma nica tese focalizando-os, exclusivamente, desenvolvida por Campos

    (1980), sob a orientao do pesquisador Massaud Moiss. Nela, a autora assinala a

    dificuldade de certos quesitos, como a ausncia de um estudo mais apurado diante

    dos ttulos aqui abordados. Observa-se, tambm, a falta de uma anlise literria

    mais refinada. Outros pontos inventariados (alm de sua proposta de abordagem de

    estudo) e que na atualidade se encontram numa forma mais esclarecedora, so as

    datas das publicaes, os critrios de organizao em volume e a natureza esttica

    deles. Essas questes se no esto totalmente respondidas encontram-se em

    processo para tal. notvel o desenvolvimento das pesquisas acerca da atividade

    queirosiana (literria ou no), sobretudo a partir da entrada de seus manuscritos na

    Biblioteca Nacional (BN) de Lisboa. A decifrao e o estabelecimento das obras, sob

    a responsabilidade do professor Carlos Reis, contnua e envolve diversos

    estudiosos. Assim, em relao ao trabalho acadmico citado, a dvida quanto s

    datas e circunstncias de publicao j se encontra, quase na sua totalidade,

    respondida.

    Na mesma situao est o seu reconhecimento esttico, graas, tambm, s

    prprias opinies de Ea que vm tona pelo trabalho coordenado por Carlos Reis,

    e pela busca incessante de desvendamento do momento literrio no qual se insere

    que, aos poucos e pelas partes, vem, cada vez mais, se mostrando completo,

    permitindo entrelaamentos que possibilitam interpretaes do literrio, de forma que

    ele seja compreendido na sua plenitude. Trabalhos publicados como de Elza Min7,

    que tratam da atividade jornalstica de Ea, colaboram consideravelmente para a

    construo do painel esttico. Nele, a autora rene uma srie de textos que

    esmiuam a importncia dos artigos que Ea enviou para a Gazeta de Notcias, no

    Rio de Janeiro.

    Outro exemplo bastante significativo a publicao da obra completa do

    escritor organizada por Beatriz Berrini. No volume trs, depara-se com a coletnea

    de textos jornalsticos produzidos para peridicos como A Actualidade, Gazeta de

    Portugal e tambm para a Gazeta de Notcias, alm de perfis, prefcios e outros

    tipos de colaboraes. A correspondncia de Ea, em parte indita, compe o

    volume quatro.

    7 MIN, Elza. Pginas flutuantes. Cotia: Ateli Editorial, 2000.

  • 18

    Mas, a respeito dos contos, podem ser citados trs ttulos quanto a estudos

    crticos de maior extenso: Contos de Ea de Queirs, de Maria Eduarda Vassalo

    Pereira (1983); Leitura de um conto de Ea de Queirs: singularidades de uma

    rapariga loura, de Maria Adelaide Coelho e Arlete Miguel (1991) e Introduo

    leitura dos contos de Ea de Queirs, de Henriqueta M. A. Gonalves (1991). O

    primeiro no possui reedio, e a dificuldade de encontr-lo bastante grande.

    No centenrio da morte do escritor, ocorrido no ano 2000, muitos encontros se

    realizaram a fim de que, alm das homenagens, pesquisas e pesquisadores viessem

    luz. Nesses momentos, nota-se a focalizao um tanto mais intensa sobre os

    contos. Tambm edies de toda ordem se fizeram: nos livros, nas telas e nos

    quadrinhos, a produo queirosiana fala, e falar sempre.

    1.2 Os contos queirosianos: publicao e divulgao

    A pedido de Dona Emlia de Castro, Lus de Magalhes e Ramalho Ortigo

    cuidaram das edies pstumas de seu marido. Coube ao primeiro reunir os contos

    num ttulo de mesmo nome em 1902, editado pela Lello e Irmos / Chardron. A

    obra rene, como j mencionado anteriormente, treze ttulos. Esses foram

    publicados em jornais (Ea exerceu por muito tempo a profisso de jornalista)

    Dirio de Notcias, Gazeta de Notcias e tambm em revista (Revista Moderna, de

    Paris). No entanto, documenta-se a existncia de outros, no includos naquela

    coletnea. De acordo com Mnica (2001, p. 64), o caso de Senhor Diabo,

    publicado na Gazeta de Portugal em outubro de 1868.

    Outro conto publicado no mesmo peridico e no mesmo ano O Lume, cujo

    texto consiste num monlogo das chamas de uma lareira. Apresentaria no ms

    seguinte Mefistfeles e, depois dele, encerraria a sua colaborao no peridico.

    Daqueles contidos nos Contos, o primeiro a ser editado Singularidades de

    uma rapariga loura. Escrito por Ea quando morou e trabalhou como cnsul em

    Havana, a narrativa aparece no Dirio de Notcias, em janeiro de 1874, como brinde

    aos senhores assinantes.

  • 19

    Na carta a Eugnio de Castro (editor da srie Biblioteca Internacional) datada

    de 21 de fevereiro de 1896, Ea responde ao editor que prope a continuao (ou,

    talvez, a reedio) de Rapariga loura:

    ... no tornei a ler, nem sequer avistar, essa Rapariga loura, desde que ela apareceu, h mais de vinte anos, no Dirio de Notcias, e estou receando que esse trabalho, assim desenterrado, necessite muita limpeza e muito conserto. (QUEIRS apud PISSARA, 1961).

    Entre as dcadas de 80 e 90, outro conto foi produzido, porm, no foi

    conhecido dos leitores: A catstrofe. O manuscrito autgrafo, composto por

    dezessete folhas e com poucas emendas, encontra-se na Biblioteca Nacional de

    Lisboa. Narra-se a ps-ocupao de um pas por uma potncia estrangeira, que no

    nomeada, a no ser como o inimigo (MNICA, 2001, p. 320).

    O interesse pelas matrias hagiolgicas convive, cronologicamente, com o tom

    satrico dAs Farpas. Assim como Flaubert que publicara La lgende de Saint

    Julien hospitalier em 1875 , Ea produz trs contos sobre santos: So Cristovo,

    So Frei Gil e Santo Onofre.

    em 1880, na Gazeta de Notcias, que No moinho surge para os leitores; e

    sobre o fato no h registros da sua repercusso ou acontecimentos no momento da

    publicao. No mesmo ano saram ainda Um poeta lrico e Civilizao, pelo

    mesmo peridico.

    Cabe dizer que os contos, nos ltimos anos, tm recebido uma ateno maior

    por parte das editoras brasileiras e portuguesas. Em outras lnguas, registra-se a

    publicao de Rarezas de una muchacha rubia8, Singularits dune jeune fille

    blonde9 e Une singulire jeune fille blonde10.

    Ainda que Ea no tenha dado grande importncia a esse tipo de narrativa,

    escrevendo, como afirma lvaro Lins (1959, p. 45), para colaborao remunerada ou

    de amizade, ele foi criador de vrios contos, que o acompanham durante a sua

    evoluo literria e eles mesmos sendo exemplos dessas fases. E, neles, esto

    contidas pginas exponenciais da criao literria.

    8 QUEIRS, Ea de. Rarezas de uma muchacha rubia. Madrid: Aguilar, 1988. 9 QUEIRS, Ea de. Singularits dune jeune fille blonde. Paris: Lage dhomme, 1983. 10 QUEIRS, Ea de. Une singulire jeune fille blonde. Paris: Gallimard, 1997.

  • 20

    1.3 Para a anlise do corpus

    Para que se obtenham os resultados propostos por este estudo, preciso partir

    de pressupostos que sejam balizadores da forma conto. A inteno, portanto, no

    a de inventariar os estudos crticos realizados a respeito do conto, mas a de

    apontar aquele que conduz a anlise dos ttulos que compem o corpus deste

    trabalho.

    Edgar Allan Poe parece partilhar da mesma opinio de Ea quando tenta

    teorizar essa modalidade. O escritor portugus afirma na carta LXXXVII, a Lus de

    Magalhes, que um conto passa depressa e uma vez s, num s nmero

    (PISSARA, 1961, p. 88). A idia de singularidade, unicidade, pretendida por Poe se

    faz presente. Esse princpio basilar do gnero seria a causa do efeito operado no

    leitor, que est submetido, durante o tempo da leitura, ao domnio da narrativa.

    Todos esses elementos associados conduzem intensidade, da qual depende a

    eficcia do conto. Em outras palavras, a histria breve, lida de um s flego, deve

    ser arquitetada de modo tal que desde o seu incio tudo colabore para que o efeito

    obtenha sucesso, por meio de um acontecimento.

    Decorrncia desse produto a sobriedade, o critrio de economia que o

    escritor apresenta. Na perspectiva de Poe, no h necessidade de orbitais em torno

    do ncleo narrativo, a no ser que eles sejam uma contribuio narrativa, um fio

    condutor que culmina no acontecimento.

    Jlio Cortzar (1974, p. 50) afirma que:

    ningum pode pretender que s devam escrever contos aps serem conhecidas sua leis. Em primeiro lugar, no h tais leis: no mximo cabe falar de pontos de vista, de certas constantes que do uma estrutura to pouco classificvel (...).

    De acordo com o escritor e ensasta argentino, o efeito depreendido do conto

    semelhante ao da fotografia. Ela limitada, seu ngulo escolhido e a imagem deve

    ser de tal modo apresentada que atue no outro, de forma eficaz, atingindo

    camadas que vo alm do aspecto sensorial. Assim o conto. O seu momento

    breve, e, portanto, o impacto que causa no leitor deve ser construdo desde os

    seus primeiros momentos. a tenso que, paulatinamente, se estabelece na

  • 21

    narrativa e a sustenta at o seu final; ela que o envolve e a mantm na memria

    dele, que pode se tornar coletiva.

    E, para se tornar coletiva, necessrio que o conto seja introjetado, absorvido

    naturalmente pelo leitor. No se pode tratar, portanto, de algo que seja particular,

    individual. A singularidade deve residir em cada um, mas a abrangncia universal.

    Esse princpio norteia o sucesso ou o fracasso do conto, caso ele no se cumpra.

    Desvinculado do seu criador, ele parte para a recepo, que pode ser acolhedora

    e assim instalar-se (ou no) e, nesse caso, tornar-se apenas um exemplar

    esquecido.

    Os elementos constantes, como aponta Cortzar (1974, p. 157), residem na

    idia, novamente, de unicidade. Baseado nesse ponto que so feitas as

    investigaes em torno dos contos eleitos neste estudo.

  • 22

    Captulo 2 A esttica realista: um outro olhar (sntese e aspectos fundamentais)

    na Frana do sculo XIX que a semente de uma ruptura com o status quo

    comea a germinar; toma fora e vem tona para ser irradiada em outros pases

    europeus. De acordo com Tringali (1994, p. 67), o movimento teve incio com a

    exposio de Gustave Coubert, que afirmara: Eu no posso pintar um anjo, porque

    eu no vi nenhum o verbo ver teria um peso fundamental para a esttica que

    nascia. lanada, tambm, uma srie de artigos, reunidos sob o ttulo Le Ralisme,

    de Champfleury, e um jornal de mesmo nome por Duranty.

    Vive-se um momento histrico delicado. A Europa conhece, de forma bastante

    acentuada, a misria que se desdobra na prostituio e na mendicncia. A

    Revoluo Industrial instaura dois plos adversos e tensionais: o trabalhador e o

    patro. A desigualdade social gritante, e evidente. Segundo a viso realista, a

    esttica que vigora nesse momento torna-se obsoleta, em nada compatvel com a

    situao vigente, afinal, a bandeira romntica a fantasia, o sonho, a no-realidade.

    As investigaes cientficas, que so intensas e intensamente esperadas,

    convivem com esse perodo. Darwin, Michelet, Hegel, Strauss, Renan, Proudhon,

    Taine so nomes que despontam e contribuem para a formao de uma nova viso

    de mundo.

    Com Coubert e sua pintura tem incio o cnone realista, que estender-se- para

    a arte literria: o que se v aquilo que deve ser apresentado. Fazendo-se a

    somatria das contribuies cientficas e intelectuais, a proposta de literatura

    indita, em termos encontra seus contornos. O sentimento (emoo, por exemplo),

    o egocentrismo, o culto pelo eu, a teologia, ficam para o segundo plano. Entram em

    cena a razo, da qual decorrem a objetividade, e a racionalidade que filtram e

    condicionam a criao artstica. O conceito de belo representado pela verdade,

    agradvel ou no, intermediada, no caso da literatura, pela palavra:

    Il dfinit ainsi la reprsentation littraire comme limitation de ces objets de rfrence, mais surtout comme la concordance, suppose constante et assure, entre le mot et lobject. (DICTIONNAIRE des littratures, 1998, p. 1301).

  • 23

    O Realismo chega a momentos radicais, buscando encontrar a verdade

    incontestvel, absoluta, por meio da cincia. Assim, na tentativa de encontrar

    respostas a todas as questes sobretudo para as comportamentais o

    Naturalismo se consolida no mesmo perodo.

    De acordo com seus princpios, o sujeito atuante na histria fruto da

    influncia do meio, do momento e da raa. Essa idia transportada para o

    romance, espao em que se apresenta uma tese cientfica. Para o seu

    desenvolvimento e comprovao, no h acanhamento em trazer luz cenas em

    que se evidenciem as pstulas sociais, sempre de um ngulo cientfico. Embora

    exista a dificuldade em limitar a extenso do Realismo e do Naturalismo, at por

    possurem vrios pontos de contato, um ponto de apoio para que ocorra a distino

    entre eles considerar que

    ... enquanto o Naturalismo implica uma posio combativa, de anlise dos problemas que a decadncia social evidenciava, o Realismo apenas fotografa com certa iseno a realidade circundante, sem ir mais longe na pesquisa. (...) O romance realista encara a podrido social usando luvas de pelica; o naturalista, controlando a sua sensibilidade, ou acomodando-a cincia, pe luvas de borracha e no hesita. (MOISS, 1973, p. 701)

    2.1 O Realismo em Portugal

    Portugal estava estagnado no sculo XIX. Ea de Queirs, num dos seus

    primeiros textos publicados e reunidos nas Prosas brbaras (PISSARA, 1961, p.

    624-630), assim via Lisboa:

    (com) meiguices primitivas de luz e de frescura; que nem cria nem vicia: vai. Possui um frio senso prtico, a preocupao exclusiva do til, uma seriedade enftica, e a adorao burguesa e serena da moeda.

    Diante de um cenrio aparentemente ativo, mas essencialmente adormecido,

    os ares realistas vindos da Frana so bem recebidos. Agruparam-se jovens que,

    desde 1861, davam sinais nos meios universitrios da sua inconformidade com os

    valores cultivados pela sociedade. Um exemplo dessa rebeldia ocorreu em 1862,

    quando o prncipe Alberto visitou a Universidade de Coimbra. Antero de Quental

    escolhido para proferir um discurso em nome dos estudantes, mas esse prefere

    elogiar Garibaldi (MNICA, 2001, p. 29). Nesse mesmo ano, quando ocorre a

  • 24

    premiao aos estudantes, esses do as costas ao reitor e abandonam a Sala dos

    Capelos, local reservado s grandes cerimnias.

    Esses traos culminam no primeiro manifesto contra o romantismo vigente: a

    Questo Coimbr. Apesar de parecer simples o fato desencadeador, na verdade ele

    apenas o cume do iceberg existente. Dois blocos se distinguem no meio

    intelectual: um, que se formava em torno de Feliciano Castilho (aps a morte de

    Garrett e a retirada de Alexandre Herculano para o Vale dos Lobos) e que advogam

    a favor e pelo Romantismo. O segundo justamente oponente ao primeiro.

    Liderados por Antero de Quental, o prncipe da mocidade, os jovens de Coimbra

    que constituem a Gerao de 70 se opem de forma determinada Escola de

    Lisboa. A discusso se solidifica e ganha notoriedade quando Pinheiro Chagas

    publica Poema da mocidade, uma lrica ultra-romntica, cujo posfcio redigido por

    Castilho e destinada ao editor Antnio Maria Pereira. Nele, o autor elogia a obra, e

    se refere s produes de Antero de Quental e Tefilo Braga, j conhecidos no

    mundo das letras, negando-lhes possurem bom senso e bom gosto. A defesa e o

    contra-ataque logo so articulados, num artigo de mesmo ttulo e de muitas ironias.

    Nesse perodo, circulam diversos panfletos, envolvendo partidrios de ambos os

    lados. curioso se no for interessante o caso de Ramalho Ortigo que, se num

    primeiro momento alia-se ao grupo de Castilho (chega at mesmo a duelar com

    Antero), mais tarde integra-se ao grupo de Coimbra, tornando-se companheiro de

    Ea de Queirs. Este no participou do movimento, embora soubesse dele (REIS,

    1999, p. 32).

    A Questo Coimbr trouxe tona a polaridade como produto do momento

    histrico pelo qual passava a sociedade portuguesa. Os jovens de Coimbra

    representam a ruptura com o passado, em vrios setores, enquanto que os

    romnticos, o prprio passado. Em outras palavras, a tradio. Circulava na Europa,

    nesse perodo, o esprito crtico renovador de Victor Hugo, Michelet, Renan e

    Proudhon, opositores do regime ditatorial de Napoleo III (MATOS, 1988, p. 801).

    Insuflados pelo esprito de inovao, o grupo de Coimbra se torna combativo,

    natureza essa que vai extrapolar os limites da Universidade na qual estava inserido.

    Se, inicialmente, a inquietao manifestada em relao ao Reitor Baslio de Sousa

  • 25

    Pinto, pouco depois ela se estende e alavanca mobilizaes importantes, como a

    referida Questo Coimbr.

    Embora ela tenha se desenvolvido em torno da desavena entre os

    estudantes de Coimbra e o grupo formado em torno de Castilho, como apontado

    anteriormente, a mudana pretendida vai alm: No era o romantismo, ou ultra-

    romantismo de Castilho e dos seus apaniguados que se punha verdadeiramente em

    causa (...). Tratava o fundamento da polmica, sobretudo, da conscincia social e

    crtica dos artistas, da sua independncia espiritual. (MATOS, 1988, p. 801).

    A chamada Gerao de 70 tem a inteno no apenas de revolucionar a

    fico plasmada no romance, mas a de causar uma transformao na mentalidade

    da sociedade portuguesa. Como afirma lvaro Manuel Machado (1998, p. 15-16):

    (...) o certo que a chamada Gerao de 70 representa, em Portugal, uma profunda revoluo cultural. At ento, tinham-se criado hbitos de um romantismo demasiadamente limitado aos problemas (e tambm s obsesses) nacionais. Se, apesar das suas limitaes, que so justamente as que se ligam a um certo nacionalismo cultural excessivo, o nosso primeiro romantismo, o da Gerao de 1830, trouxe com Garrett e Herculano qualquer coisa de novo e de perdurvel, a verdade que, por meados do sculo XIX, o que restava desse romantismo pouco era.

    Ainda segundo Machado (1998, p. 15-16), o que vigora no perodo ps Garrett

    e Herculano (historicamente, corresponde Regenerao) uma acomodao dos

    escritores ao sentimentalismo buclico ou fatalista. Diante da situao poltica e

    social portuguesa e das novas propostas de viso de mundo irradiadas, os

    estudantes estavam dispostos a realizar uma revoluo cultural em seu pas.

    Causa maior impacto a ecloso das Conferncias do Cassino Lisbonense,

    patrocinada, tambm, pela Gerao de 70 e preparada nas discusses que esse

    mesmo grupo realizava num Cenculo (da serem conhecidos tambm por esse

    nome), com sede na casa de um deles. Planejava-se reformar a sociedade

    portuguesa. O ano era 1871, ano da Comuna de Paris. Eram claros os objetivos,

    apresentados no programa, cuja propaganda divulgada na Revoluo de

    Setembro, onde trabalhava o irmo de Ea, Alberto de Queirs (MNICA, 2001, p.

    110):

    Ningum desconhece que se est dando em volta de ns uma transformao poltica, e todos pressentem que se agita, mais forte que nunca, a questo de saber como deve regenerar-se a organizao social.

  • 26

    E mais adiante:

    No pode viver e desenvolver-se um povo, isolado das grandes preocupaes intelectuais do seu tempo; o que todos os dias a humanidade vai trabalhando, deve tambm ser o assunto das nossas constantes meditaes.

    Entre os doze assinantes do programa, datado de 16 de maio de 1871, esto

    Antero de Quental, Ea de Queirs, Jaime Batalha Reis, Oliveira Martins, Tefilo

    Braga.

    Diante da clara postura de questionar a realidade, as autoridades do

    importncia considervel ao evento. Cabe a Antero de Quental a abertura das

    Conferncias, com O esprito das conferncias, em que apresenta e desenvolve as

    intenes dos organizadores. Alm dessa, Antero profere a segunda conferncia

    denominada Causas da decadncia dos povos peninsulares, que causa

    significativas repercusses. Nela, apontam-se trs causas: o catolicismo, a

    monarquia absoluta e as conquistas ultramarinas. Naquele momento, Portugal

    convive com as seqelas desses fatores e o conferencista sugere antdotos para

    corrigir esses problemas. Essas solues vm ao encontro das propostas do grupo

    que promove as Conferncias: no mais ignorar a realidade que vigora na sociedade

    portuguesa.

    A terceira conferncia, Literatura portuguesa, apresentada por Augusto

    Soromenho. Essa destoa do comportamento daquelas que j haviam sido

    realizadas. A linha de pensamento a de propor Chateaubriand como modelo

    salvador da literatura portuguesa.

    A nova literatura o Realismo como nova expresso de arte o ttulo da

    quarta conferncia, a cargo de Ea de Queirs (alis, os estudiosos se dividem

    quanto colocao do adjetivo no primeiro sintagma. Adota-se, aqui, a

    apresentao de Beatriz Berrini (2000)). Durante duas horas, o pblico ouve

    atentamente. Trata-se da conferncia mais expressiva dos ideais do Cenculo em

    relao s artes, em especial literatura.

    Vale observar com Berrini (2000, p. 22) que o texto, proferido a 12 de junho de

    1871, no chegou aos dias atuais. Preservaram-se artigos publicados em jornais da

    poca que comentavam a conferncia. Tradicionalmente elege-se o de Alberto de

    Queirs, por parecer o mais completo, publicado um dia aps a fala de Ea.

    notvel a clareza como expe os princpios que devem nortear a arte:

  • 27

    Procurar na sociedade, nas suas lutas, nos seus sofrimentos, nos seus trabalhos, na sua vida ntima, a matria da arte. Estudar os caracteres luz da psicologia, observar os costumes no que eles tm de mais exato, de mais real, e desta maneira aprendermos a conhecermo-nos melhor a ns mesmos, e incitarmo-nos ao aperfeioamento; em uma palavra, o ideal como fim e no como meio. (...) a arte vivendo sobretudo das idias, quando at aqui tinha vivido quase exclusivamente dos sentimentos. Dirige-se especialmente razo, e no sensibilidade como entre os antigos. (BERRINI, 2000, p. 26).

    A partir do discurso queirosiano, ocorrem muitas manifestaes a favor ou

    contra. Vrios comentrios sem assinatura surgem nos jornais, avaliando a postura

    que se prope literatura: algo denunciador, questionador, que levasse reflexo

    sobre os costumes, e no mais o que era praticado at ento. Pinheiro Chagas,

    atingido pela apresentao, d o seu parecer, no Dirio de Notcias, em 19 de junho

    daquele ano.

    Para alm do campo do vosso microscpio h um mundo que as lentes no alcanam, o mundo moral, o mundo das paixes e dos afetos. (...) no tendes nem o sentimento delicado, nem a indignao da alma nobre, e possus apenas a impassibilidade estulta do frio observador. (BERRINI, 2000, p. 37 e 38).

    E defende-se:

    (...) Por isso vs, que no sabeis comover, porque no encontrais a corda que vibra, quando a ferem, em todos os coraes, vos fatigais em descrever com uma minuciosidade pueril os mais leves cenrios do drama que procurais traar, e insistir nas cadeiras e nos vestidos e nos cenrios. (BERRINI, 2000, p. 38).

    Como se v, a conferncia tem grande repercusso. Se isso aconteceu e h

    provas documentais disposio porque ela realizou-se de forma competente,

    de eloqncia eficaz.

    Ainda acontece a quinta e ltima conferncia, por Adolfo Coelho. H o anncio

    da sexta, Os historiadores crticos de Jesus, e outras mais eram previstas. Porm,

    por ordem do ministro do reino, Antnio Jos de vila, o Cassino foi interditado e as

    conferncias canceladas, no sem o protesto dos seus participantes, sem, contudo,

    nada, efetivamente, adiantar.

    As Conferncias do Cassino Lisbonense possuem uma dimenso que

    extrapola os limites de nova proposta esttica. Elas se inserem numa mundividncia

    em que se analisam as injustias e no se conformam com elas: ... tendo a arte

    uma influncia poderosa sobre os costumes e sobre a moral, devia contribuir o mais

  • 28

    possvel para realizar a justia, nica base que devem ter as relaes sociais.

    (BERRINI, 2000, p. 22).

    Dias melhores, apoiados no desenvolvimento das cincias, e na mudana de

    pensamentos, a certeza que se tem nesse momento. necessrio revolucionar. E

    a Gerao de 70 cumpre seu papel. Na opinio de Paulo Franchetti (1997, p. 147):

    ... apenas com a Gerao de 70 que se vai realmente alterar, em ampla escala, a

    forma de pensar a vida da nao e o sentido da sua existncia.

    Para alm desse argumento, h outro que, certamente, merece registro: a

    apario pblica daquele que seria um escritor significativo da escola realista e da

    lngua portuguesa.

  • 29

    Captulo 3 A figura de Ea de Queirs

    Jos Maria Ea de Queirs apresenta-se, oficial e publicamente, como um

    militante intelectual nas Conferncias do Cassino Lisbonense. Mais do que um

    elemento anunciador, foi um cultivador da nova literatura. Antes, porm, da

    produo dos ttulos que a veicularam e pelos quais o escritor se tornou conhecido,

    dedicou-se atividade jornalstica, ora atuando como crtico, ora como escritor de

    folhetins.

    Em 1866, publicado seu primeiro folhetim na Gazeta de Portugal, que causa

    estranheza pelo tom que possui (referncias a Baudelaire, Nerval). Formado em

    Direito, no exerce a profisso, mesmo quando recm-sado da Universidade.

    Permanece ligado ao jornal at dezembro do mesmo ano. Durante esse perodo,

    produz contos para serem publicados semanalmente no peridico, a saber: A

    ladainha da dor, Entre a neve, Os mortos, A Pennsula, Misticismo

    humorstico. Em todos eles, observa-se o intuito de sacralizar a natureza. Para

    Jacinto do Prado Coelho (apud MATOS, 1988, p. 760), o facto de se tratar mais de

    um exerccio literrio da juventude que de um produto de ntima necessidade de

    expresso, no lhes tira lugar destacado na histria da literatura portuguesa. As

    notas marginais foram reunidas por Batalha Reis que conhece nessa poca e

    ser seu grande amigo - sob o ttulo de Prosas brbaras.

    Por intermdio de seu pai, Ea dirige um jornal de oposio, o Distrito de

    vora, numa cidade do interior de mesmo nome. Atua, tambm, como nico redator,

    e o divide em sees, podendo, desta maneira, expressar opinies sobre diversos

    assuntos. Chega a publicar um conto, assinado por A. G. M. (na verdade, Ea de

    Queirs), intitulado O ru Tadeu, que no inteiramente apresentado, pois em

    agosto de 1867 Ea deixa o jornal e a cidade.

    No retorno a Lisboa, passa a se reencontrar com os amigos. Em 1869, a

    convite de Lus de Resende, partem para a inaugurao do Canal de Suez.

    Conhecem o Egito, cujas impresses so publicadas no Dirio de Notcias. Em

    edio pstuma publicada pelo filho do romancista, o autor mostra ter adquirido

  • 30

    matria-prima suficiente para produzir O Egito (ttulo que, conforme estudos da

    Biblioteca Nacional, foi criado postumamente).

    A sua estria como ficcionista se d com O mistrio da estrada de Sintra,

    produzido em parceria com Ramalho Ortigo em 1870, por meio de folhetins,

    apresentados pelo Dirio de Notcias (no mesmo ano, ocorre a publicao em

    volume), cujo diretor Eduardo Coelho. So assinados apenas por iniciais, o que

    colabora para a construo do clima policial que se instala na literatura portuguesa.

    O sucesso imediato: a histria perdura por trinta e um nmeros.

    Nesse momento, a vida de Ea precisa tomar rumos. Esse fato tem relaes

    com sua produo literria.

    Aps ter recebido a herana da av, e de tambm ter tentado, sem sucesso, a

    magistratura, conclui que Portugal no lhe agradava. Bem recebe o anncio de um

    concurso para cnsul, que tinha, como pr-requisito, seis meses de experincia na

    funo pblica (MNICA, 2001, p. 86). Resolve o problema quando consegue ser

    nomeado administrador de conselho de Leiria, lugar que o desgosta, e de onde ser

    exonerado em junho de 1871. nesse ambiente que situado O crime do Padre

    Amaro.

    Com Ramalho Ortigo publica tambm As Farpas (iniciadas em 1871),

    fascculos mensais que tm como subttulo Crnica mensal da poltica, das letras e

    dos costumes. A partir dele, fcil presumir a natureza dos artigos ali contidos que,

    alis, so divididos por assuntos: a vida provincial, as epstolas, os indivduos, o

    parlamentarismo, a religio e a arte, a sociedade, a capital, os nossos filhos, o

    movimento literrio e artstico, aspectos vrios da sociedade, da poltica e da

    administrao (COELHO, 1973, p. 327). Em 1872, com a nomeao para ser cnsul

    em Havana, lugar ao qual nunca se adaptou tratava-se de uma terra estpida

    para onde vim, embrulhado num decreto, impelido por um tratado (QUEIRS apud

    MNICA, 2001, p. 130) , Ea despede-se da publicao, que continuaria

    administrada por Ramalho Ortigo at 1882, sendo lanadas sob o ttulo Uma

    campanha alegre em 1890, contendo apenas os textos queirosianos. Numa carta

    datada de 25 de fevereiro de 1878 a Joaquim Arajo, responsvel pela revista

    Renascena (editada no Porto), assim opina sobre o efeito que elas provocam em

    Ortigo: Tm-lhe dado a disciplina de raciocnio, e observao, a exclusiva f na

  • 31

    cincia, a crtica, uma bela elevao moral, uma forma magistral. (BERRINI, 2000,

    p. 222).

    Acrescentam-se a essas publicaes, cartas que envia a jornais portugueses e

    brasileiros a respeito da vida poltica mundial (reunidas nas Cartas de Inglaterra e

    Cartas de Londres) e bilhetes de um observador do mundo (Bilhetes de Paris, Cartas

    familiares e Ecos de Paris). O que o aproxima definitivamente do pblico e o

    perpetua so seus romances O crime do Padre Amaro (considerado,

    tradicionalmente, como o primeiro romance realista portugus), O primo Baslio e Os

    Maias.

    3.1 O cuidado das edies crticas

    Por ter suas criaes amplamente publicadas, a produo queirosiana sofre

    alteraes, sobretudo em relao aos ttulos pstumos. Quando da sua morte, a

    esposa, Dona Emlia, em carta a Ramalho Ortigo, solicita que ele e Lus de

    Magalhes examinem os papis que ela recolhera e consultem as editoras Lello e

    Irmo e Livraria Chardron. Aceitos os pedidos, ambos passam a realizar a reviso

    daqueles papis.

    A ttulo de curiosidade ou se, porventura, for um dado a ser considerado em

    estudo oportuno , sabe-se que Lus de Magalhes cuida para que as publicaes

    aconteam. Por outro lado, Ramalho no: aps sua morte, em 1915, seus filhos

    encontram manuscritos de A capital, O conde de Abranhos e cartas de Fradique

    Mendes, que so ento enviadas a Jos Maria de Ea de Queirs, filho mais velho

    do escritor, em 1924.

    De posse dos manuscritos, e passando por dificuldades financeiras, o filho

    termina o que era inacabado, imitando o estilo do pai. Declara que toda obra

    pstuma de meu Pai, publicada nessa casa [Lello], organizada por amigos

    dedicados, de acordo com minha me, compunha-se de trabalhos j completos,

    quase perfeitos. (REIS, 1999, p. 189).

    Muitos dos seus escritos se perdem, pois o navio St. Andr que transporta os

    mveis e arquivos da famlia naufraga em 24 de janeiro de 1901, levando, com ele,

    os pertences que estavam em Neuilly, Frana. O que resta fica com a famlia, que se

  • 32

    mantm bastante reservada. Joo Gaspar Simes, um dos primeiros estudiosos do

    autor, tem essa idia atestada por uma carta do filho Antnio:

    claro que possumos, minha irm e eu, cativos, quantidades de papis ntimos do nosso Pai, toda uma vasta correspondncia, notas, manuscritos, e tudo isso, todo esse esplio nosso, muito nosso, exclusivamente nosso. (SIMES, 1980, p. 46).

    Na atualidade cabe Biblioteca Nacional de Lisboa guardar (e analisar

    cientificamente) esse material. A primeira inteno a de preparar a edio crtica

    dos textos queirosianos, isto , restituir a autenticidade possvel ou aquilo que

    seria a vontade final do seu criador.

    Para a realizao dessa empreitada, o esplio de Ea de Queirs, constitudo

    por um conjunto de manuscritos de extenso e natureza muito desiguais, est

    dividido em trs grupos (REIS, 1999, p. 176):

    1. Cartas privadas de Ea de Queirs, sobretudo endereadas sua mulher, antes

    conhecidas apenas parcialmente por meio de fragmentos fornecidos pela filha

    do escritor;

    2. Manuscritos j publicados, de fundamental importncia para corrigir as edies

    pstumas. A Capital, publicado em 1992, o primeiro resultado dessa

    possibilidade.

    3. Manuscritos recentemente publicados (como as edies da professora Beatriz

    Berrini, editora Aguilar) constitudos por materiais de trabalho de Ea, que

    servem s anlises crtica, histrico-literrias do escritor.

    Desses trs grupos, o ltimo grupo interessa diretamente ao preparo das

    edies crticas, pois podem, tanto quanto possvel, apontar a evoluo literria

    queirosiana. Contribuio considervel , tambm, a anlise do processo criativo do

    escritor, j que nesse material h detalhes que so pertinentes ao estudo da

    reconstruo daquilo que seria a sua vontade original.

    Fato notrio na observao desse processo, de acordo com os pesquisadores

    envolvidos no estudo do esplio, a amplitude da dimenso do texto, que acontece

    em muitos casos. Primeiramente, o texto compacto, circunstancial, para depois

    potencializar-se e alcanar outros limites. Exemplo tradicional o conto Civilizao,

    que evolui para o romance A cidade e as serras (obra semipstuma). Mas h outros

  • 33

    casos, registrados at o momento: O mistrio da estrada de Sintra, O crime do

    Padre Amaro, O primo Baslio, O mandarim, A correspondncia de Fradique

    Mendes, A ilustre casa de Ramires e A cidade e as serras.

    Essa observao j havia sido posta em evidncia quando Helena Cidade

    Moura (In: REIS, 1999, p. 178) analisou os manuscritos. Na ocasio, cotejando os

    manuscritos s edies publicadas, apontou a ocorrncia de montagens de

    fragmentos, ttulos criados vontade do editor/organizador, e, por vezes, supresso

    de cenas.

    Jaime Batalha Reis quem primeiro atenta para o trabalho cientfico que a

    produo queirosiana assim como qualquer texto literrio merece. Em carta a

    Lus de Magalhes, datada de 18 de agosto de 1903, salienta que lera a Gazeta de

    Portugal, e que na organizao apresentada da produo e da edio dos textos

    queirosianos no se confirmam os textos publicados em um e outro local.

    O problema levantado por Batalha Reis indica o caminho da necessidade das

    edies crticas, segundo critrios de carter cientfico. Essa linha de pesquisa

    pertence Gentica Textual, que se atribui a finalidade de colocar em ordem e

    tornar legvel o material manuscrito (BERGEZ et al, 1997, p. 20). H quatro

    grandes operaes:

    1. Estabelecimento da documentao

    Faz-se necessrio reunir os diversos manuscritos do autor, sejam eles

    autgrafos ou no. Se eles forem dispersos, preciso pesquisa e negociao para

    colet-las. De posse desses documentos e uma vez que o estudioso o considere

    material satisfatrio, deve-se passar para a verificao da autenticidade dos textos e

    da datao. Esses dois processos so responsveis pela identificao da autoria

    dos textos, da poca em que foram produzidos (se se tratam de esboos ou de

    produes diferentes) e possveis intervenes, de amigos, parentes, editores, e

    responsveis por organizaes. Para a anlise do esplio queirosiano, essa etapa

    amplamente desenvolvida, sobretudo para as obras pstumas (publicadas aps a

    morte do autor), semipstumas (textos que o autor deixou em estado adiantado de

    preparao para a tipografia, mas cuja publicao no assistiu) e textos dispersos,

    em que se incluem os contos, objetos de estudo deste trabalho. Conforme em

  • 34

    momento anterior apontado, a produo literria do escritor portugus vtima de

    deturpaes freqentes.

    Porm, a primeira parte dessa fase no apresenta dificuldades, embora Ea de

    Queirs tenha sido um homem do mundo, vivendo em lugares a que a sua

    profisso e os seus interesses o levaram. Com o esplio depositado dessas obras

    consideradas mais crticas (ainda que boa parte dos papis que registram sua

    atividade no campo da literatura ou do jornalismo tenham sido perdidos com o

    naufrgio do navio), o trabalho cientfico de reunio facilitado. Cabe dizer que a

    partir do ano 2000, a editora Nova Aguilar publica, sob a coordenao de Beatriz

    Berrini, a obra completa do escritor portugus, em que se incluem vrios inditos,

    principalmente no que concerne sua correspondncia.

    2. Especificao das peas

    Uma vez coletados e reunidos os textos, passa-se a classific-los de acordo

    com a sua natureza (romances, ensaios, crnicas, etc.). Os rascunhos merecem

    cuidado parte, pois podem ser elementos concretos da gnese. Identifica-se o

    rascunho pelo seu parentesco com o texto definitivo publicado.

    3. Classificao gentica

    Aps agrupados os rascunhos, comea a sua classificao gentica, isto , as

    diferentes verses da mesma pgina sero analisadas e comparadas (BERGEZ et

    al, 1997, p. 22), a fim de que se perceba a ordem cronolgica da produo e, assim,

    se conhea a evoluo do processo criativo.

    4. Decifrao e transcrio

    Desenvolvidos paralelamente s atividades de anlise, esses dois processos

    so basilares para o estabelecimento de edies crticas. O primeiro se refere

    comparao de flios que sofrem a ao do tempo e apresentam dificuldades de

    leitura, por exemplo. De forma tcnica, por meio do cotejamento entre um esplio e

    outro, possvel recuperar palavras rasuradas ou de dimenses pequenas, quando,

    num momento primeiro, elas ainda no tinham sido rejeitadas.

    Por vezes, esses mtodos no abraam a totalidade dos casos existentes.

    Utilizam-se, ento, outras tcnicas de carter mais exato, como a codicologia, que

    trata do tipo de tinta, papel, filigranas utilizados. Assim, torna-se vivel datar

    cronologicamente determinados textos, dependendo do material em que foi

  • 35

    produzido. H, tambm, a anlise tica, que permite identificar a escrita do autor e

    suas variantes, sendo possvel atestar ou no a autenticidade do texto.

    Completado todo o processo de exame e estabelecimento do cnone, a edio

    crtica, de acordo com aqueles que a coordenam, deve assim se estabelecer (REIS,

    1999, p. 192-193):

    1. Obras de fico, setor que abrange dezesseis ttulos, divididos em dois outros

    grupos: os de obra no-pstumas (comportando sete ttulos: O mistrio da

    estrada de Sintra, O crime do Padre Amaro, O primo Baslio, O mandarim, A

    relquia, Os Maias, Uma campanha alegre) e os de obras pstumas (ltimas

    pginas, A capital, O conde de Abranhos, Alves e Cia, O Egipto, A tragdia da

    rua das flores) e semipstumas (A correpondncia de Fradique Mendes, A

    ilustre casa de Ramires e A cidade e as serras).

    2. Crnicas e textos de imprensa, que sero reorganizados e apresentados de

    forma diferente do que se conhece, quando se seguiu os padres de Lus de

    Magalhes.

    3. Epistolografia, que agrupa dois blocos da correspondncia de Ea: as

    doutrinrias, em que expe a sua viso de mundo sobre temas intrigantes e/ou

    polmicos, e as cartas particulares.

    4. Narrativas de viagens, materiais recolhidos em um nico volume que dizem

    respeito viagem de Ea ao Oriente.

    5. Tradues, que incluem Philidor e As minas de Salomo.

    A anlise do Esplio queirosiano pela cientificidade que sua produo

    certamente requer, segue em estudo obedecendo critrios cientficos. O trabalho

    possui dupla responsabilidade: resgatar aquilo que o criador quis deixar para o

    mundo e transmitir aos leitores de todos os tempos essa herana cultural veiculada

    em lngua portuguesa.

    3.2 Evoluo intelectual

    Sistematizadamente, a tradio dos estudos queirosianos classifica a atividade

    da escrita em trs estgios distintos de acordo com Saraiva e Lopes (1969, p. 897).

  • 36

    Prosas brbaras (coletnea de folhetins publicados na Gazeta de Portugal em

    1866-1867) a melhor representao do primeiro momento. Tendncias de Vitor

    Hugo, Baudelaire, Nerval e Heine so notveis. As imagens criadas revelam

    um Universo povoado de almas; cada ramo, onda ou aragem freme de sensibilidade, e apenas o homem representa uma mancha desarmnica e dolorosa, que s se desvanece com o regresso pacificante, pela morte, ao inconsciente primordial. (SARAIVA ; LOPES, 1969, p. 899).

    Nesse perodo, a fantasia, a imaginao, por vezes impregnada de melancolia,

    comportamentos to prprios do Romantismo, fazem parte de seus textos. Berrini

    (2000, p. 275) aponta a convivncia de dois estilos em muito diferentes. Se um

    aproximava-o da escola romntica, o outro, da observao da realidade. A leitura

    paralela de dois excertos nos quais ocorrem descries evidencia esse processo

    (QUEIRS apud BERRINI, 2000, p. 275-276):

    A manh vinha escura, lenta e lacrimosa, como uma viva hora dos enterros: e pouca luz tnue, os pedaos de gelo, perdurados dos cardos e das urzes, tinham o aspecto de farrapos de mortalhas: sobre as rvores imveis, os pssaros quietos e mudos, eriavam as plumagens aos ventos cortantes.11

    e

    Duzentos anos depois, estes homens que tinham ido, solitrios, num barco apodrecido das maresias, derramaram uma esquadra pica pelo Mediterrneo, pelo Pacfico, pelo mar das ndias, pelo Atlntico, pelos mares do Norte.12

    Embora o seu olhar observador e crtico j despontasse, Ea est distante

    daquilo que seria a sua melhor expresso a esttica realista. No incio das suas

    atividades textuais ele respira os ares que viria a combater.

    A transposio para a segunda fase gradual. No Egito (edio pstuma,

    conforme indicado anteriormente), observa-se um estilo mais filiado ao que

    apresentava os moos de Coimbra, por apresentar detalhes advindos de

    observaes precisas. Vale lembrar que a obra constituda por notas tomadas na

    viagem que Ea realizou ao Oriente no final de 1869.

    11 Gazeta de Portugal, Lisboa, 13 nov. 1866. 12 Gazeta de Portugal, Lisboa, 2 dez. 1866.

  • 37

    justamente na segunda fase que se observa a preciso da escrita do

    escritor, que o consagra. De 1871 (ano das Conferncias no Cassino) a 1880, Ea

    leva ao pblico o resultado fecundo da sua observao aguda, crtica, apurada da

    sociedade portuguesa. Seja nos romances ou peridicos, o escritor vai construindo o

    panorama do sculo XIX portugus, compondo uma revista que pormenoriza o

    ngulo para favorecer o detalhe, pea de extrema importncia para a completude do

    quadro.

    So considerveis as colocaes de ordem esttica que apresenta em

    determinados textos, como os prefcios que escreve para livros de amigos. Em O

    Brasileiro Soares (1886), de autoria de Luiz de Magalhes, Ea, aproveitando-se da

    figura do brasileiro, evidencia uma suposta falsidade romntica. Segundo ele, os

    romnticos aproveitam o momento oportuno para tematizar determinado assunto.

    Para exemplificar, toma o exemplo do emigrante. Este no agrada, pois esse

    labrego, largando a enxada, embarca para o Brasil num poro de galera, com um

    par de tamancos e uma caixa de pinho (QUEIRS apud BERRINI, 2000, p. 52).

    Porm, quando

    este mesmo cavador endinheirado comovia o Romantismo at Elegia, quando ele era ainda o triste emigrante, parando uma derradeira vez na estrada, para ouvir o rudo do aude entre as carvalheiras da sua aldeia; quando ele era o pobre embarcadio, de noite, do mar gemente, encostado borda da escuna Amlia, erguendo os olhos chorosos para a lua de Portugal... Apenas voltava porm, com o dinheiro que juntara carregando todos os fardos da servido o saudoso emigrante passava logo a ser brasileiro, o bruto, o reles, o alvar. (QUEIRS apud BERRINI, 2000, p. 52).

    Nesse prefcio, evidencia-se a viso da esttica que se plasma em solo

    portugus. O olhar agudo, preciso e incisivo capta o cotidiano e o analisa. Se antes

    o emigrante era um ser que interessava ao romntico, depois passa a ser

    repugnante, porque o trabalho despoetizara o triste emigrante (BERRINI, 2000, p.

    52). O emigrante, ento brasileiro, apresentado por Luiz de Magalhes em sua

    obra, traa um novo perfil desse sujeito, analisado por Ea no prefcio do ttulo:

    Querendo estudar um brasileiro, num romance, V. faz isto, que to fcil, to til e que nenhum dos antepassados da literatura quis jamais fazer: abre os olhos, bem largos, bem claros, e vai de perto olhar para o brasileiro, para um qualquer, que passe num caminho, em Bouas, ou que esteja porta da sua casa, na Guardeira, com o seu casaco de alpaca. E imediatamente reconhece que ele, como V. e como o seu vizinho, um homem, um mero

  • 38

    homem, nem ideal, nem bestial, apenas humano: talvez capaz da maior sordidez, e talvez capaz do mais alto herosmo, podendo bem usar um horrvel colete de seda amarela, e podendo ter por baixo dele o mais nobre, o mais leal corao: podendo bem ser ignbil, e podendo, por que no? ter a grandeza de Marco Aurlio! (BERRINI, 2000, p. 55).

    Destoa-se desse prefcio o de Aquarelas, datado de 1888, de Joo Diniz. O

    Romantismo no alvo de crticas incisivas, mas, ao contrrio, fonte de elogios:

    Quando Lamartine vogava no Lago com Elvira, claridade da lua deixava transbordar o xtase que o sufocava no murmrio mais natural e mais cndido: Como s bela! como a noite serena! Como o lago azul! Quando, por seu turno, Mallarm ou Verlaine vo ao lago com Elvira, experimentam decerto a mesma emoo, porque tm a mesma mocidade e Elvira a mesma beleza. Nem por todos os tesouros de Salomo traduziram essa emoo nas formas claras e largas de Lamartine. Isso seria antiquado, retrico e banal. O seu gosto apurado, afinado, vido de modernismo e de originalismo, leva-os a cantar o lago de Elvira, requintando to sutilmente a expresso do seu sentimento, entrelaando-a em tantos lavores e floreios, que o sentimento, j de si depurado e adelgaado, inteiramente desaparece sob este luxo plstico que o afoga. (QUEIRS apud BERRINI, 2000, p. 77).

    A apreciao tecida no comum nos textos at ento conhecidos: menos

    combativo e incisivo em relao ao Romantismo, Ea se aproxima da fase dos

    vencidos da vida.

    Ainda nesse segundo momento da evoluo literria, no poupa as bases

    burguesas. Alm da famlia ser defeituosa na constituio (casamentos por

    convenincia), focaliza a mulher, vtima de uma educao romntica, que a leva ao

    adultrio. Na mesma linha problemtica situa-se o clero, portador de vcios

    escondidos, como o desvio do celibato, a bomia, a corrupo, enfim, a vida

    desregrada no prevista nos padres eclesisticos.

    O lazer burgus tambm vem cena: os sales, por exemplo, so formados

    por personagens frvolas, fteis, que se divertem por meio da satisfao de vcios

    (jogos, bebidas, gula). Esses so frutos das condies culturais, da educao e da

    literatura, que so insistentemente atacados no meio portugus.

    Nos contos eleitos para esse estudo, e diante da breve exposio das

    transformaes da atividade literria queirosiana, possvel enquadr-los nessa

    evoluo. Aps a leitura deles, fcil perceber que ambos pertencem ao segundo

    momento: tratam de personagens cuja formao deteriorada, nos meios familiar e

    educacional, o que leva ao desencadeamento de aes que culminam na

    transformao negativa dos seres ou na desgraa final. Em momento oportuno,

  • 39

    esses exames sero realizados de forma vertical, e verificar-se- como eles se

    vinculam escola realista.

    3.3 Ea e Machado

    Necessariamente, a polmica entre os dois escritores no interessa ao estudo

    que se prope. De qualquer forma, o confronto verbal entre os dois autores

    exponenciais da lngua portuguesa pode levantar alguns questionamentos que

    ratifiquem os princpios queirosianos.

    Como sabido, Machado publica em abril de 1878, nO Cruzeiro, um artigo

    assinado por Eleazar. Na verdade, o texto se divide em duas partes, publicadas em

    momentos diversos: a primeira em 16 de abril e a segunda em 30 de abril. Trata-se

    de uma apreciao dO primo Baslio, que tem duas edies esgotadas no mesmo

    ano de seu lanamento em 1878 (para Machado, esse fato devia-se ao gosto do

    pblico, que no era muito apurado), e que desperta o interesse por O crime do

    Padre Amaro, j publicado em 1876 e alterado para novas vendagens em 1880.

    Machado de Assis engrossa a crtica negativa a respeito dO primo Baslio,

    embora o pblico tenha se entusiasmado com a leitura. Aqueles que criticam a obra

    naquele momento resumem-na em dois adjetivos: realista e imoral. Tal a forma

    como se cristaliza essa caracterizao que o diretor do peridico no qual Machado

    manifestara sua opinio proclama quando julga um poema ser realista srdido como

    uma pgina de Ea de Queirs.

    A primeira parte do comentrio comea por um elogio:

    Foi a estria no romance, e to ruidosa estria, que a crtica e o pblico, de mos dadas, puseram desde logo o nome do autor na primeira galeria dos contemporneos. Estava obrigado a prosseguir na carreira encetada; digamos melhor, a colher a palma do triunfo. Que completo e incontestvel. (MACHADO de ASSIS apud MNICA, 2001, p. 183).

    No entanto, ao prosseguir sua anlise, o escritor brasileiro aponta os defeitos

    do romance, sobretudo por se filiar ao realismo propagado pelo autor do Assomoir.

    Para ele,

  • 40

    O prprio O crime do Padre Amaro imitao do romance de Zola, La faute de lAbbe Mouret. Situao anloga, iguais tendncias; diferena do meio; diferena do desenlace; idntico estilo; algumas reminiscncias; enfim, o mesmo ttulo. (MACHADO de ASSIS apud MNICA, 2001, p. 183).

    Zola no um escritor que Machado aprova. O naturalismo uma realizao

    esttica que julga excessivo, tedioso, obsceno e at ridculo. Ao avaliar o ttulo

    queirosiano, entende que no se conhecia no nosso idioma aquela reproduo

    fotogrfica e servil das coisas mnimas e ignbeis. (MACHADO de ASSIS, 1997

    apud MNICA, 2001, p. 183).

    Mas os problemas do livro que tornam Ea de Queirs conhecido do pblico

    so, tambm, de ordem estrutural da narrativa. As personagens so, Lusa em

    especial,

    um carter negativo, e no meio da ao ideada pelo autor, antes um ttere do que uma pessoa moral. Repito, um ttere; no quero dizer que no tenha nervos e msculos; no tem mesmo outra coisa; no lhe peam paixes nem remorsos; menos ainda conscincia. (MACHADO de ASSIS apud MNICA, 2001, p. 185).

    De acordo com essa crtica, criara-se uma personagem passvel de ser

    seduzida e de seduzir os leitores com facilidade; da a atrao pela narrativa. H

    um certo tom moralista, e a idia de que um bom romance apresenta personagens

    complexas.

    A trama seria falha. A causa das mortes da patroa (Lusa) e da empregada

    (Juliana; alis, para Machado, o carter mais completo e verdadeiro do livro)

    simples por demais. O excesso de detalhes no separaria o acessrio do essencial

    (FRANCHETTI, 1997, p. 51).

    Em 29 de junho de 1878, Ea responde a Machado de Assis:

    Apesar de me ser em geral adverso, quase severo, e de ser inspirado por uma hostilidade quase partidria Escola Realista, esse artigo todavia, pela sua elevao e pelo talento com que est feito, honra o meu livro, quase lhe aumenta a autoridade. (QUEIRS apud MNICA, 2001, p. 186).

    E advoga em favor da escola que defende nas Conferncias do Cassino

    Lisbonense. Diz que gostaria de discutir os pontos abordados, no em minha

    defesa pessoal (eu nada valho), no na defesa dos graves defeitos dos meus

  • 41

    romances, mas em defesa da escola que eles representam e que eu considero como

    um elevado fator do progresso moral da sociedade moderna. (QUEIRS, 1983

    apud MNICA, 2001, p. 186).

    Depois Ea se cala. Apenas no prefcio terceira edio dO Crime do Padre

    Amaro faz alguns reparos, afirmando que seu livro era anterior ao de Zola. E

    responde ao seu crtico incisivamente:

    Com conhecimento dos dois livros, s uma obtuosidade crnea ou m-f nica poderia assemelhar esta bela alegoria idlica, a que est misturado o pattico drama duma alma mstica, ao O crime do Padre Amaro que, como podem ver neste novo trabalho, apenas, no fundo, uma intriga de clrigos e de beatas tramada e murada a sombra duma velha S de provncia portuguesa. (QUEIRS apud MNICA, 2001, p. 187).

    Apesar da resposta, os artigos de Machado de Assis influenciam a opinio

    crtica da poca, e abala a camaradagem entre eles. Amigos em comum de ambos

    esforam-se para que a situao se alterasse, mas de nada adianta. A frieza

    mantida at o fim de suas vidas. (LYRA, 1965, p. 198).

    Ao longo do tempo, a crtica literria se disps a examinar as afirmaes

    machadianas a respeito dos ttulos do escritor portugus. No entanto, no do

    mbito deste estudo aprofundar a polmica, e nem tampouco evidenciar as

    concluses a esse respeito.

    De acordo com Franchetti (2000, p. 51), os textos machadianos no tratam de

    uma avaliao crtica, mas de um texto de natureza combativo. uma leitura

    interessada, em que se observa o medo da influncia do estilo naturalista sobre a

    literatura brasileira. Tal cuidado no traz efeito. Alusio Azevedo escreve obras de

    tom naturalista, e se tornam antolgicas e exemplares da esttica que Machado

    teme, produzidas em solo brasileiro.

  • 42

    Captulo 4 Amor: complexidades do termo

    De alta complexidade so os estudos em torno do que se define por Amor.

    Com o intuito de analisar esse sentimento e a sua manifestao nos contos

    queirosianos em foco, este captulo se prope a evidenciar a teoria sobre a qual

    aquelas anlises so operacionalizadas. Para tal intento, convocam-se ensastas

    que discutem o assunto: Octavio Paz, Jorge de Sena e Denis Rougemont.

    Jorge de Sena13 e Octavio Paz14 concordam em dizer que o termo amor

    ambgo, porque associado s emoes e paixes suscitadas pelo erotismo

    ligadas ao sexo. Paz procura fazer a distino entre os termos, para que eles no se

    confundam entre si e acabem convergindo para a denominao comum de amor.

    Portanto, ainda que sexo, erotismo e amor estejam relacionados, eles correspondem

    a manifestaes diferentes. O primeiro, do qual derivam os outros dois, o mais

    elementar: ocorre entre animais de mesma espcie para a procriao, seguindo

    alguns rituais prprios. Embora comum raa humana, o sexo se aproxima do

    erotismo, mas este vai alm: trata-se da sexualidade socializada e transfigurada pela

    imaginao e vontade dos homens; , portanto, exclusivo da humanidade. Depende

    da criao, da fantasia, e no se destina reproduo.

    Realizadas as distines apresentadas por Paz entre os dois conceitos,

    centraliza-se a luz para a definio (ou, ao menos, estabelecer limites para) do que

    pode ser entendido como amor. Para o ensasta, ele compreendido, to

    simplesmente, como um sentimento que promove a atrao passional entre duas

    pessoas. Assim entendido, encontrado em todos os tempos e lugares, o que entra

    em desacordo com a proposta de Denis Rougemont, no seu O amor e o Ocidente

    (cuja edio original em francs data de 1939). Nele, o autor afirma que tal

    manifestao se origina no Ocidente, precisamente na regio provenal da Frana,

    com as cantigas trovadorescas.

    Como sentimento comum s sociedades, sua ocorrncia tambm comum: a

    existncia de uma imensa literatura cujo tema central o amor uma prova final da

    13 Conforme bibliografia. 14 Conforme bibliografia.

  • 43

    universalidade do tema amoroso (PAZ, 1992, p. 35). Essa idia j era anunciada

    por Dante Alighieri, na Divina Comdia: o Amor o que move o sol e as mais

    estrelas. (ALIGHIERI apud SENA, 1992, p. 26). Jorge de Sena, escritor portugus,

    autor de romances e ensaios, observando essa recorrncia, historia o tema ao longo

    da literatura portuguesa, desde os primeiros registros trovadorescos at meados do

    sculo XX, reunidos no ttulo Amor e outros verbetes (1992). Ensina o ensasta que

    o amor apresenta vrias faces no decorrer da histria literria, ratificando o que

    prope Octavio Paz quanto duplicidade do sentimento amoroso.

    Por se tratar de um tema que percorre a histria, o sentimento amoroso e suas

    decorrncias sempre foram motivos de inquietao para o Homem. Na Antigidade

    Clssica, com Plato, surgem as primeiras reflexes em torno do assunto: Fedro e O

    banquete so dilogos que o discutem. O segundo mais explcito. A fala de

    Aristfanes soluciona o problema da atrao, apontando suas razes: o amor fruto

    do mito de Andrgino, que se divide em feminino e tambm masculino. Ele forte, e

    constitui uma ameaa a Zeus. Por conta disso, ele resolve separ-los e, a partir de

    ento, cada um busca a sua metade complementar. natural, portanto, o desejo de

    encontrar no outro a sua completude, como meio de obter a unidade. Assim, o amor

    platnico um bem supremo, que deve conduzir harmonia dos seres, e no ao

    suicdio e morte.

    Esse mito platnico explica a atrao entre os seres e a unio que da resulta

    deve levar ao equilbrio. No entanto, a observao da Histria mostra que nem

    sempre isso acontece, pois a unidade amorosa pode, tambm, enveredar por outros

    caminhos e resultar no desequilbrio: como todas as grandes criaes do homem, o

    amor duplo: a suprema ventura e a desgraa suprema (PAZ, 1992, p. 187). O

    sentimento amoroso ambguo e paradoxo, porque pode, afinal, ser a causa da

    mais intensa felicidade como da mais intensa dor.

    a partir desse ponto da ambigidade proporcionada pelo amor que este

    trabalho toma as contribuies a respeito do tema para as anlises que se seguem.

    De acordo com Paz, h certas constantes, nas estrias de amor. Esses aspectos,

    que se vem repetidos em todas elas, so responsveis pela dualidade, fato normal

    em ocorrncias amorosas.

  • 44

    O primeiro elemento recorrente a exclusividade. No se admite um amor

    compartilhado por um terceiro elemento, o que implica num acordo recproco,

    acabando por limitar a liberdade. Se ocorre a ultrapassagem desse limite, aquilo que

    anteriormente foi estabelecido se rompe, e se inicia a tenso, provocada pelo

    desequilbrio. Duas foras duelam: exclusividade e liberdade, intimamente ligadas.

    Outra face da exclusividade se apresenta na eleio do sujeito com o qual se

    estabelece a reciprocidade amorosa. No mito de Andrgino, Paz encontra a

    explicao: um s ser capaz de restabelecer a unidade perdida; da o carter

    exclusivo interagindo na trama amorosa.

    Ultrapassado esse primeiro momento, outros elementos entram em cena: o

    obstculo e a sua transgresso. Algo surge como empecilho, impedindo a realizao

    amorosa, o que pode torn-la mais intensa. A distncia entre o desejo de v-la

    realizada e a sua efetivao propicia a superao desse obstculo, seja qual for a

    sua natureza: social, religiosa, geogrfica, racial. Nos poemas trovadorescos esses

    obstculos se traduzem na diferena da camada social a que pertencem a coisa

    amada e o seu amador, na denominao camoniana. Uma vez superado o

    impedimento, ocorre a transgresso, a subverso ao estabelecido.

    Se o obstculo transposto, o prximo provvel aspecto o domnio e a

    submisso entre o par. H um confessionalismo, mesmo que velado, da

    dependncia de um deles em relao ao outro. Essa subordinao pode ser

    constatada na produo dos trovadores (a vassalagem senhoral se transpe para a

    vassalagem amorosa) e recorrente nas tramas narrativas.

    A condio que encerra a teia de relaes constitutivas da imagem de amor a

    perfeita juno entre corpo e alma, sem relevncia de uma ou de outra parte. O

    corpo valorizado (no sentido de ser a forma palpvel, material, do ser), mas sem o

    que o anima, a sua alma, no h pessoa, no h am