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Universidade de Coimbra – Faculdade de Letras
Seminário – Doutora Raquel Vilaça
2011
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As Comunidades do
Bronze Final no Paleo -
estuário do Vouga
Trabalho realizado por:
Luís Fareleira
Docente: Doutora Raquel Vilaça
Ano Lectivo: 2010-2011
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Índice Introdução ................................................................................................................................ 3
O Paleo-estuário do Vouga ........................................................................................................ 4
As Comunidades do Bronze Final: Os dados recolhidos ............................................................. 7
Proposta de um breve esquema teórico .................................................................................. 13
Considerações Finais ............................................................................................................... 18
Bibliografia ............................................................................................................................. 19
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Introdução
O presente trabalho está integrado na cadeira de Seminário, do terceiro ano do
curso de Arqueologia e História, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Durante este segundo semestre, a dita Unidade Curricular debruçou-se sobre as
problemáticas inerentes à metalurgia do Bronze Final, principalmente no território
português, mas também a alguns casos no território espanhol, e até extra – peninsular.
No entanto, este trabalho não se irá debruçar sobre um assunto tão específico
como é o caso da metalurgia, mas será de um carácter mais geral, com vista a tentar
recolher o máximo de informações possíveis, acerca do que se sabe sobre a presença de
comunidades do Bronze Final no Paleo – estuário do Vouga.
De facto há alguma informação sobre o assunto, mas até hoje não conseguimos
encontrar nenhum trabalho que fizesse uma síntese do que se sabe, acto contínuo, o
preenchimento desta lacuna poderá abrir as portas para uma discussão mais construtiva
para toda esta realidade arqueológica. O objectivo será, portanto, o de fazer um
apanhado (ainda que breve, e até algo incompleto) sobre esta realidade geológica (à
cerca do Paleo-estuário do Vouga), cultural e, obviamente, arqueológica.
Pelo que pudemos consultar, e conversar com algumas pessoas que estudam
realidades que se inserem no contexto referido, é muito comum as próprias pessoas
assumirem, com uma relativa certeza, que povos antigos habitaram estas zonas
costeiras, como o caso dos Fenícios em Ílhavo.
Na verdade, o espaço cronológico deste trabalho não se insere na ocupação
fenícia, mas sim no período do Bronze final e nas comunidades que possivelmente
poderiam ter habitado esta região. Mas não nos parecia coerente falar apenas nas
comunidades, omitindo os possíveis contactos que se realizaram, até porque, segundo
alguns investigadores (tal como Raquel Vilaça e Ana Margarida Arruda) apontam o
século IX A.C como o marco inicial dos ditos contactos entre estes povos do
mediterrâneo oriental e os povos indígenas peninsulares.
Após fazer um breve apanhado de todas as informações obtidas sobre Paleo-
estuário e a sua ocupação, tentaremos organizar um esquema teórico, com base noutras
ocupações de carácter semelhante no território português, mas sempre com o
afastamento necessário, visto que cada caso é um caso, e não há duas realidades iguais.
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O Paleo-estuário do Vouga
Para o estudo desta realidade arqueológica na região em questão, é necessário, desde
logo, perceber o ambiente natural e geográfico que rodeava estas populações na época
referida (finais do II milénio A.C, até ao século VIII/VII A.C). De facto, esta
geomorfologia antiga é um dos grandes entraves ao entendimento das dinâmicas de vida
destas comunidades.
No entanto, a nosso ver, só é possível entender estes fenómenos de povoamento
entendendo também o mundo que os rodeava. No caso do Rio Vouga, a situação é
bastante complexa. Sabemos que durante a época moderna, Aveiro teve graves
problemas no que toca ao seu estuário e aos constantes assoreamentos que afectavam
esta boca para o Oceano. De tal forma, que desde o século XVI, obras de grande
envergadura foram planeadas de forma a conter este movimento de terras, o que pode
também explicar a grande ausência de qualquer vestígio arqueológico nesta zona1.
Assim, estamos na presença de uma zona de estudo bastante complexa, embora
já tenham sido publicados alguns estudos que nos podem elucidar sobre a situação mais
antiga. Os primeiros estudos realizados sobre esta temática pertencem a Amorim Girão,
em que de facto se conseguiu ter, pela primeira vez, uma ideia aproximada de como
seria este Paleo-estuário. Entretanto, estudos mais recentes da autoria de Jorge de
Carvalho Arroteia apontam para a possibilidade deste estuário ter “sofrido ao longo dos
séculos profundas alterações” 2. Segundo estudos geológicos, a Foz do Vouga ainda não
teria nenhuma laguna, sendo a linha de terra bastante mais recuada do que é
actualmente. De facto, a sua entrada seria um canal muito mais amplo, e talvez mais
facilmente navegável.
É também nesta zona da foz que se “equilibra o seu perfil até ao oceano”3, bem
como é esta a zona que recebe os afluentes do Vouga, sendo este também um factor
importante no depósito de sedimentos, o que torna todo o seu processo de assoreamento
mais intenso e rápido. No entanto, este factor traz consigo uma boa aptidão agrícola
destas terras, o que por sua vez torna propicia a ocupação humana.
1 A Barra e os Portos da Ria de Aveiro: 1808 – 1932 – Arquivo da Administração do Porto de Aveiro
2ARROTEIA; 1999, pp 23 3 Ibid
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Segundo o mesmo autor, estas condições “propícias ao desenvolvimento da
agricultura, a topografia local, favorecida por uma ampla exposição solar e aos ventos,
bem como a natureza da laguna (de natureza pantanosa mas que, tornados
impermeáveis, prestam-se à cristalização da água salgada”4, contribuíram para um
desenvolvimento da actividade da extracção do sal. Torna-se importante referir este
factor, visto que era, certamente, uma mais valia para estas comunidades, na medida em
que talvez pudesse ter havido uma actividade económica ligada a este produto. Sendo
estes povos mais costeiros, será plausível dizer, na minha opinião, que a pesca seria
também uma actividade importante para a sua própria subsistência. Estaremos talvez
numa zona com bastantes recursos, o que poderia, de certa forma, impulsionar o
desenvolvimento destas comunidades.
Paleo-estuário do Vouga na Época Proto-Histórica5
De facto, ao assumirmos que a Foz teria uma “posição oceânica”6, poderá depreender-se
que esta região teria sido possivelmente navegável. No entanto será difícil precisar esta
informação, visto que através da deposição de sedimentos, poderiam surgir zonas com
pouca profundidade, o que tornaria esta zona de difícil navegação.
Escavações arqueológicas revelaram a existência de povoamento de uma
cronologia mais antiga em Cacia (lideradas pelo IPA, durante os anos noventa) no
4 ARROTEIA; 1999, pp 27 5 ARROTEIA, 1999, pp. 25
6 BLOT, 2003, pp 199
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Cabeço do Vouga (Águeda). É certo que na época romana esta foz do Vouga foi
ocupada, o que talvez possa indicar que, na verdade, toda esta região tenha tido um
acesso relativamente acessível e possível. No entanto, no caso de Águeda, observamos
que, se em tempos tiveram contactos com a costa, forçando as comunidades a
adaptarem o seu modo de vida, e quiçá desfrutarem da possibilidade de contactos com
povos de outros pontos, acabaram por “assumir a interioridade, aparentemente sem
memórias visíveis da relativa litoralidade que desfrutaram no passado”7.
No nosso entendimento, há questões importantes que devem ser levantadas: será
que estamos na presença de uma mudança não só de estuário, mas também de alguns
cursos de água, que tenham possibilitado a ligação entre duas bacias hidrográficas? Será
que a foz do Vouga, mesmo na altura, era propícia à produção de Sal? Será possível
terem existido trocas comerciais neste sentido? Seria a foz do Vouga uma boa zona para
a extracção de matérias primas, como o minério de aluvião? Talvez sejam questões
pertinentes que tenham de ser abordadas num estudo mais profundo sobre esta temática.
7 BLOT, 2003, pp 30
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As Comunidades do Bronze Final: Os dados recolhidos
No que toca ao povoamento do Bronze Final neste paleo-estuário do Vouga, a
investigação arqueológica ainda se encontra num estado bastante inicial. Uma das
grandes questões que impõe sérios problemas e dilemas a estas investigações,
concentra-se no facto da grande dificuldade no que toca à identificação de arqueossitios
que nos possam revelar vestígios sobre estas realidades de povoamento antigo.
No entanto, existem já dois casos que podem ser alvo de uma breve análise.
Infelizmente, sobre estes sítios, muito pouco foi ainda publicado, mas certamente que
no decorrer dos estudos novos dados serão revelados, contribuindo assim para uma
discussão com base em factos mais sólidos.
O primeiro caso a referir será o do povoado da Torre, em Cacia. Este foi
identificado em 1930 por Alberto Souto8, que deu especial atenção à sua ocupação
romana, embora já pusesse em causa a possibilidade de existir uma ocupação anterior.
Foi de facto, durante os anos noventa, que o IPA fez algumas sondagens neste local, e
percebeu-se que este sítio teve igualmente uma ocupação da Idade do Ferro.
Infelizmente, não conseguimos ter acesso aos relatórios de escavação, e os dados que
aqui expomos foram retirados do Endovelico9, a base de dados do IGESPAR.
O Cabeço do Vouga é um grande povoado que está a ser estudado na região do
Paleo-estuário do Vouga, possível de ser visitável e que se encontra em excelente estado
de conservação. Os primeiros trabalhos de estudo foram feitos por António Gomes da
Rocha Madaíl, revelando as estruturas romanas a toda a comunidade científica,
possibilitando o seu estudo. No entanto, “pecam pelas interpretações aduzidas, sem
bases científicas válidas”10
. Nos anos 60, é sob a direcção do Doutor Mário de Castro
Hipólito, que se abre mais uma sondagem e se dá continuidade à escavação de outras
estruturas já a descoberto. No entanto, todos os registos e materiais desta intervenção
perderam-se, e nada se consegue saber sobre o que foi escavado.11
É nos anos 90 que recomeçam os trabalhos arqueológicos, desta vez com
objectivos mais claros, e uma metodologia mais coerente e actual. Ao escavar o sítio,
8 SOUTO, Alberto (1923): “As Origens da Ria de Aveiro” 9 http://arqueologia.igespar.pt/POC/?sid=sitios.resultados&subsid=48942 10 SILVA;2010, pp. 17
11 SILVA;2010, pp. 20
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foi possível de perceber que a ocupação do Bronze Final se situa numa camada
estratigráfica que coincide com o estrato rochoso, logo, este estaria à vista durante esta
ocupação.12
A camada estratigráfica do Bronze Final corresponde àquela que apresenta os sedimentos mais
claros. Corresponde igualmente ao substrato rochoso.
Desta camada foram recolhidos alguns fragmentos de cerâmica, sendo também
possível a reconstrução integral de uma taça deste período. No entanto, todos estes
materiais precisam ainda de um estudo mais aprofundado, visto que nos podem dar
informações importantes sobre esta região. O estudo da proveniência dos barros, do seu
uso, poderá levar a perceber estas comunidades de uma forma mais profunda, recriando
os seus hábitos alimentares, e até quem sabe, rituais. No entanto, além do pouco estudo
a que foram sujeitos, é necessária uma escavação mais alargada, de forma a perceber a
diacronia deste sítio na sua totalidade.
No que toca à sua localização, o Cabeço do Vouga está extremamente bem
localizado. Apesar de hoje em dia não estar intimamente ligado com a zona costeira, na
época do Bronze Final este seria um povoado, não diria portuário, pois isso envolveria
estruturas de apoio adequadas a esse fim, que até agora ainda não foram descobertas,
mas pelo menos intimamente ligado com o mar.
De facto, ao analisar a reconstrução do paleo-estuário do Vouga, é possível
perceber que este se localizava numa zona bastante resguardada dos ventos e até
12 SILVA;2010, pp. 21
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protegida por uma pequena língua de terra. Ainda hoje é possível perceber que a sua
localização se encontra num ponto bastante elevado, e que abaixo do seu nível existe
uma grande planície, ela também propicia à agricultura, que em tempos mais remotos
poderá ter mesmo sido banhada pelo mar.
A norte deste cabeço corre o Vouga, e a Sul o Marnel, que vão acabar por
confluir no mesmo curso de água. Deste modo, a sua posição geográfica poderia, de
certa forma, incentivar contactos entre este povoado e outras comunidades que por ali
habitassem ou passassem.
Durante os trabalhos mais recentes, na camada estratigráfica acima da ocupação
do Bronze Final, foram encontrados alguns materiais que podem indicar contactos com
o exterior: é o caso do fragmento de vaso Fenício/Púnico e algumas contas de colar de
pasta vítrea, datadas do mesmo período.13
Vista panorâmica desde o topo do Cabeço do Vouga – Grande planície que corresponderia à zona
de contacto com a costa
13 Todas as informações e que ainda não estão publicadas, bem como algumas peças ainda por estudar
são aqui referidas graças à gentileza do Arqueólogo Carlos Maia, do projecto da Estação Arqueológica
do Cabeço do Vouga
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Estes dois vestígios ainda não foram estudados de uma forma aprofundada, mas
é realmente possível assistirmos à pintura de bandas brancas de peças do tipo do vaso
apresentado (sendo que o mais comum é o vermelho), bem como algumas contas de
colar de pasta vítrea14
.
De qualquer forma, só um estudo mais aprofundado e preciso é que poderá acrescentar
mais informações importantes para o seu entendimento.
Assim, entendemos que é necessário um estudo bem mais aprofundado sobre o
Cabeço do Vouga, visto que é um sítio com um potencial fantástico, que nos poderá
elucidar sobre algumas destas questões, que ainda nos colocamos acerca do modo de
povoamento do Bronze Final no dito Paleo-estuário do Vouga. Será importante referir
aqui o excelente trabalho que a equipa tem feito, no sentido da conservação do sítio, e
prestar a nossa homenagem a Fernando Silva, que infelizmente já não se encontra entre
nós, mas que deixou um grande trabalho neste estudo do Cabeço do Vouga (e não só),
que merece realmente ser aprofundado e estudado com cuidado.
No entanto, esta ligação dos povos fenícios e a região de Aveiro, tem sido
bastante forte no que toca aos próprios estudos feitos por gentes locais, e parece ser
bastante comum assumir-se, com relativa segurança, que os povos fenícios mantiveram
contactos com os povos indígenas que habitavam Aveiro. De facto, o próprio brasão de
Ílhavo tem representado um navio fenício em memória desse passado.
Curiosamente, foi o mesmo António Gomes da Rocha Madahil que propôs a
criação deste brasão (com alusão à presença fenícia em Ílhavo), e em resposta, Affonso
de Dornellas, arqueólogo e heraldista português, afirma que “Não está provado que os
14
SILVA, 2010, pp. 28,29
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fenícios tivessem fundado Ílhavo, mas está provado que a habitaram e ali deixaram
grossas raízes que ainda hoje se manifestam”15
. Talvez não tenha chegado até nós o
registo arqueológico deste facto, mas na verdade, hoje ainda não existem provas
arqueológicas que possam suportar esta posição.
A Investigadora do Museu Marítimo de Ílhavo, Márcia Carvalho, abordou todas
estas questões e da forma como as várias propostas e argumentos foram postas por estes
estudos e concluí: “Muito diversas e em regra pouco fundamentadas, as teses que
apresentamos levam muitas hipóteses mas nenhuma delas é conclusiva ou apresenta
argumentos científicos suficientemente válidos para sair do campo das suposições e dos
discursos conjecturais”16
. No entanto, a autora defende que “Ainda assim preferimos
adoptar a acepção de “mito” tal como este era entendido pelas sociedades arcaicas e
utilizado para designar uma “história verdadeira” porque altamente valiosa, exemplar e
significativa para a comunidade que o alimenta”17
.
De facto, são estudos como o Cabeço do Vouga, que criam uma relação entre o
passado e o presente. Diremos que se trata de uma consagração à memória, visto que
esta é o elemento vital para a nossa admiração pelo passado. Pessoalmente defendo que,
a partir das concepções do passado, podemos perceber melhor o mundo que nos rodeia,
porque as pessoas que o constituíram eram iguais a nós. O contexto cultural pode mudar
mais ou menos, a visão do mundo que os rodeava podia ser diferente, mas tudo se
converge a uma adaptação do nosso meio ambiente.
Neste prisma é possível dizer que a cultura material ajuda o ser humano a
distinguir a sua própria dimensão cultural, visto que sem os objectos, o indivíduo perde
o Norte. A Cultura – Material faz, por isso, parte de nós próprios, sendo que, o seu
estudo e a sua comparação com outras realidades, torna-nos originais, únicos e mais
seguros do nosso próprio lugar no mundo.
Neste contexto, é nos possível reflectir sobre o valor do passado, visto
que nos últimos séculos assistimos a uma grande ruptura cultural. No entanto, talvez
possamos acreditar que o passado nos dá uma certa sensação de segurança, visto que os
tempos estão em constante mudança. A interpretação do passado é o elo de ligação entre
o que fomos e o que somos, o que havia e o que há, o porquê de hoje em dia as coisas
15 MADAHIL; 1922, pp 94 16 CARVALHO, 2007, pp 24 17
CARVALHO;2007, pp 25
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não serem iguais aos tempos mais remotos. Ao estudar o passado, percebemos que
havia formas diferentes de encarar a existência, e do mesmo modo, provar que o nosso
modo de vida, apesar de confuso e imprevisível, é bem sucedido visto que nós ainda
sabemos quem somos, sem perder a grande base para este modelo: os conceitos de
modernidade e de distanciamento cultural e temporal. É esta noção de historicidade que
nos dá a possibilidade de termos uma identidade própria.
Para Josep Ballart, um dos grandes problemas da nossa sociedade passa por não
saber relacionar o passado com o presente, fazendo com que esta se sinta confusa e até
fora de contexto. Assim, o Património Arqueológico “personifica-se, ganha uma
expressão, em coisas tangíveis, em objectos que se podem ver e tocar”18
. Nesta medida,
os arqueólogos têm o dever de perceber as mensagens codificadas no património,
estudando-o, e mostrando-o à sociedade, revelando os benefícios que o passado lhes
pode trazer. É a nostalgia deste passado que faz com que possamos olhar para a frente
de cabeça erguida, seguros de quem somos. As pessoas do passado são iguais às pessoas
do presente, e serão iguais às do futuro. Logo, o espaço do passado, é também o nosso.
18 BALLART, 1997
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Proposta de um breve esquema teórico
Na minha opinião, o facto de podermos estar na presença de contactos entre
populações indígenas e exteriores como os matérias do Cabeço do Vouga parecem
testemunhar) pode-nos indicar que existia uma ocupação indígena importante, que
poderia realmente atrair estas populações a tentarem perceber a sua região, na busca de
matérias – primas ou mesmo de comércio.
Aliás, temos dois casos paradigmáticos em Portugal: Santa Olaia e Abul (com as
povoações indígenas de Setúbal e Alcácer do Sal). Nesta pequena e breve reflexão vou
tentar expor as suas semelhanças e diferenças, e propor, se possível, um esquema
teórico sobre a situação do Vouga.
Ao compararmos o caso do Cabeço do Vouga e Santa Olaia, podemos observar
situações bastante distintas, mas ainda com alguns paralelismos possíveis. Ambos
parecem ter uma posição geográfica relativamente semelhante: situam-se ambos em
pequenas elevações bastante perto de cursos de água, e com terrenos bastante férteis à
volta (no caso do Vouga, o povoado situa-se a uma altitude maior), se bem que a sua
realidade geográfica de hoje é bastante diferente do que foi, há cerca de três mil anos.
Em termos de espólio, o caso de Santa Olaia apresenta casos claros de influência
fenícia, bem como de uma presença bastante forte: foram encontrados “fragmentos de
potes e, (…) [uma] grande quantidade de vasos – ânforas e potes – de todas as espécies
e facilmente reconstituíveis”19
. Foram também recolhidas cerâmicas de origem grega, o
que mostra o dinamismo deste povoado costeiro, bem como materiais ligados à
metalurgia – desde ventiladores de argila, um fragmento de molde e escórias. Estão
também presentes os conhecidos pratos de cerâmica de engobe vermelho, tão
característico da presença fenícia20
.
Neste sentido, parece que a realidade arqueológica entre Santa Olaia e o Cabeço
do Vouga é perfeitamente distinta, visto que o segundo arqueossítio não apresenta estas
características. No entanto, no que toca ás contas de vidro, a autora refere “Frequentes
são as contas de colar. Normalmente são sem decorações, de pasta vítrea, azul anil
19
PEREIRA; 1993, pp 288 20PEREIRA, 1993
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opaco, em forma de anel. Outras mais raras, são decoradas – oculadas a branco.”
(PEREIRA; 1993, pp. 300). Talvez aqui possamos encontrar algum tipo de paralelismo,
ainda que ténue, que poderá indicar algum tipo de contacto entre as comunidades do
Cabeço do Vouga e comunidades exteriores.
Comparando o mesmo caso do Vouga com Abul e os povoados de Setúbal e
Alcácer do Sal, principalmente com este dois povoados da periferia, poderá já haver
alguns pontos de convergência.
Quanto à localização geográfica de Setúbal, esta localizava-se “numa pequena
elevação então banhada pelas águas da baia”21
, enquanto Abul se localizava numa zona
mais estratégica, no sentido em que estava ligado à Ribeira de São Martinho,
estrategicamente localizado entre Setúbal e Alcácer do Sal, e finalmente numa “via de
acesso ao maciço eruptivo da Serrinha onde são conhecidos vestígios de mineração
antiga”22
. Neste sentido podemos desde logo perceber que Abul se localizava num local
estratégico e premeditadamente escolhido, visto que corresponde a uma feitoria fenícia
de raiz, situação que muito dificilmente se aplicará ao caso do Cabeço do Vouga.
No entanto é interessante observar os possíveis paralelismos entre as cerâmicas
do Cabeço do Vouga, e aquelas de Alcácer do Sal e de Setúbal. Tanto num sítio como
noutro, estão presentes as cerâmicas cinzentas “(«um dos produtos mais característicos
do mundo orientalizante peninsular» no dizer de ALMAGRO-GORBEA, 1991)”23
. Na
verdade, segundo estes autores, este tipo cerâmico começa a ser muito comum a partir
do século VIII, e de facto o seu modo B deste tipo cerâmico “de superfícies negras
cinzento-escuras ou negras, espatuladas” têm nas suas formas mais comuns “o prato ou
taça baixa de bordo com espessamento interno convexo”.24
. É neste povoado que ainda
aparecem cerâmicas pintadas “de bandas, policroma (vermelho, alaranjado, bege,
branco e negro)”25
.
No que toca ao povoado de Setúbal, estão também presentes estas cerâmicas
cinzentas, bem como fragmentos de cronologias mais antigas, remetendo para o Bronze
final. Neste caso é possível de ser observado “taças carenadas com a parede
21 MAYET e SILVA; 1993, pp. 131 22 MAYET e SILVA; 1993, pp. 133 23 MAYET e SILVA; 1993, pp. 129 24 Ibid 25 MAYET e Silva; 1993,pp. 131
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extremamente côncava, (…) por vezes, apresentando o lábio decorado por incisões ou
impressões denteadas”26
.
Taça da Camada do Bronze Final do Cabeço do Vouga – Hipótese de Paralelismo com Alcácer do
Sal e Setúbal
Cerâmica da Camada do Bronze Final de Cabeço do Vouga - Decoração “Impressa Denteada” no
bordo – Hipótese de Paralelismo com Alcácer do Sal e Setúbal
Neste sentido, parece haver algum tipo de paralelismos nos tipos cerâmicos do
Cabeço do Vouga e os casos de Setúbal e Alcácer do Sal. No entanto, todos estes
exemplos, e principalmente o de Abul, apresentam um volume de informações bastante
detalhado, que nos pode dar informações importantes sobre os seus hábitos.
26 MAYET e SILVA, pp. 133
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Na verdade, foi desde os anos setenta que a questão orientalizante tem vindo a
ser estudada de uma forma mais detalhada e profunda. O caso de Abul será um exemplo
disso mesmo. A ocupação fenícia de Portugal confinou-se, quase exclusivamente, ao
litoral. No entanto, a sua exploração parece só ter ocorrido a partir dos “finais do século
VII”27
.
No que toca à sua chegada, a data de IX A.C é aceite para o caso do litoral
português. A autora (Ana Margarida Arruda) defende que esta chegada não foi
acidental, mas sim premeditada e estudada por estas comunidades do Mediterrâneo
Oriental.
Os estudos sobre os hábitos alimentares das comunidades devem ser feitos com
rigor, de forma a perceberem-se as potencialidades dos territórios e das suas práticas.
Esta é de facto uma proposta importante para uma zona tão complexa e mal conhecida
como o Paleo-estuário do Vouga. Neste sentido, torna-se importante este tipo de
estudos, visto que possibilita a comparação de “comportamentos à escala local e
regional e detectar eventuais selecções e adaptações a cenários ambientais
específicos”28
.
Interessante será também a análise da localização geográfica de Abul, e do
próprio Paleo-estuário do Sado e tentar fazer uma comparação com o caso do Vouga.
Localização de Abul no seu Paleo-estuário29
27 ARRUDA; 2008, pp. 15 28 ARRUDA; 2008, pp. 15 29 MAYET e SILVA; 2005, pp. 11
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De facto, ao observarmos os recortes do estuário da Bacia do Vouga, podemos
observar que há alguns locais que se assemelham em termos geográficos ao sítio de
Abul: protegidos dos ventos e dos ataques externos, com contactos estreitos com os rios
e os afluentes mais próximos e com as suas comunidades indígenas. Assumindo que
toda esta zona era navegável, será plausível propor alguma localização para uma
hipotética feitoria fenícia nesta zona?
Paleo-estuário do Vouga com as nossas propostas de uma possível localização de uma feitoria
Fenícia30
De facto, a mim parece-me complicado, visto que o conhecimento arqueológico
da região é ainda muito escasso, mas talvez esta proposta possa vir a ser confirmada por
via de trabalhos de prospecção, visto que, na minha humilde opinião, talvez tenham sido
locais que tenham albergado algum tipo de ocupação no Bronze Final.
30 BLOT, 2003, pp 198
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Considerações Finais
O título do presente trabalho é “As Comunidades do Bronze final no Paleo-
estuário do Vouga”. Pode parecer estranho, e até contraditório, o facto de a grande parte
de discussão deste trabalho se centrar em momentos um pouco posteriores. Na verdade,
pela informação que conseguimos aceder, pareceu-nos que a melhor forma de abordar
este tema seria de tentar perceber as dinâmicas de continuidade do Bronze final para o
Ferro Inicial, pois isso iria de certa forma provar que as comunidades que viveram, no
então estuário do Vouga, tiveram algum grau de complexidade.
De facto, é uma questão que ainda se desconhece quase por completo, e só
trabalhos arqueológicos mais profundos, em alguns sítios, bem como a prospecção
noutros, poderá revelar se, realmente haveria aqui alguma comunidade, deste período, à
volta da zona estuarina do Vouga.
Este breve trabalho de síntese teve por objectivo, não só fazer um apanhado
geral do que se sabe mas também uma concomitante tentativa de propor algumas ideias
com alguma fundamentação lógica, mesmo que admitindo ser essa fundamentação
baseada em factores ainda muito pouco maduros e que, talvez por agora, ainda não se
possam aplicar (se é que se poderão aplicar de todo).
Temos a perfeita noção que este trabalho, para o objectivo que tem, está
certamente incompleto. Mas por outro, sentimos que este foi, de certa forma alcançado,
no sentido em que realizámos um primeiro apanhado sobre esta complexa situação, e
que gostaríamos muito de começar a ver alguma discussão em torno destes assuntos,
visto que a Arqueologia, na região envolvente da cidade de Aveiro, está ainda um pouco
esquecida, e há toda uma riqueza histórica e patrimonial por desvendar.
No entanto, gostaríamos de reafirmar que o projecto arqueológico do Cabeço do
Vouga tem ainda muito potencial, e poderá ser um elemento chave para o entendimento
de toda a dinâmica do Paleo-estuário do Vouga.
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Bibliografia
A Barra e os Portos da Ria de Aveiro: 1808 – 1932 – Arquivo da Administração do
Porto de Aveiro
ARROTEIA, J. (1999): Aveiro: aspectos geográficos e do desenvolvimento.
Universidade de Aveiro.
ARRUDA, A. M. (2008): Fenícios e púnicos em Portugal: problemas e perspectivas. In
J. P. Vita e J. Á. Zamora (eds.): Nuevas perspectivas II: la arqueología fenicia y púnica
en la Península Ibérica (Cuadernos de Arqueología Mediterránea, 18). Barcelona:
Universidad Pompeu Fabra. P. 13-23.
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