as cartas de abelardo e heloísa- entre paixão e razão

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1 AS CARTAS DE ABELARDO E HELOÍSA: ENTRE PAIXÃO E RAZÃO SILVA, Pedro Rodolfo Fernandes da (UFAM) Introdução Passaram-se quase nove séculos do romance entre Abelardo e Heloísa. A história do affair se assemelha a muitas outras aventuras amorosas: a atração, o envolvimento, o flagrante, a gravidez inesperada, o casamento secreto, a separação dos amantes, a punição imposta ao sedutor e, por fim, o recolhimento de ambos na vida monástica. Fim trágico. Mas talvez muito próximo, guardadas as devidas proporções, de outros tantos romances legados pela história. Fosse somente por conta dos elementos elencados acima, provavelmente em nada esse romance se destacasse de tantos outros. Mas há motivos que o fazem único. Motivos estes que tem recebido a atenção de estudiosos de vários ramos da ciência: filósofos, literatos, cientistas sociais, historiadores, etc. Sejam quais forem os interesses e as motivações dos estudiosos, é certo que o romance retratado nas cartas proporciona o conhecimento de um modo de se compreender a relação entre razão e paixão, além de oferecer um excelente retrato de época. As Cartas As origens do romance foram legadas pelo próprio Abelardo em sua Historia Calamitatum (História das minhas

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Page 1: As Cartas de Abelardo e Heloísa- entre paixão e razão

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AS CARTAS DE ABELARDO E HELOÍSA: ENTRE PAIXÃO E RAZÃO

SILVA, Pedro Rodolfo Fernandes da (UFAM)

Introdução

Passaram-se quase nove séculos do romance entre Abelardo e Heloísa. A história

do affair se assemelha a muitas outras aventuras amorosas: a atração, o envolvimento, o

flagrante, a gravidez inesperada, o casamento secreto, a separação dos amantes, a

punição imposta ao sedutor e, por fim, o recolhimento de ambos na vida monástica. Fim

trágico. Mas talvez muito próximo, guardadas as devidas proporções, de outros tantos

romances legados pela história.

Fosse somente por conta dos elementos elencados acima, provavelmente em nada

esse romance se destacasse de tantos outros. Mas há motivos que o fazem único.

Motivos estes que tem recebido a atenção de estudiosos de vários ramos da ciência:

filósofos, literatos, cientistas sociais, historiadores, etc. Sejam quais forem os interesses

e as motivações dos estudiosos, é certo que o romance retratado nas cartas proporciona

o conhecimento de um modo de se compreender a relação entre razão e paixão, além de

oferecer um excelente retrato de época.

As Cartas

As origens do romance foram legadas pelo próprio Abelardo em sua Historia

Calamitatum (História das minhas calamidades), escrita provavelmente em 1132. Com

a intenção de confortar um amigo anônimo que passava por provações, Abelardo narra,

numa espécie de autobiografia, suas próprias desventuras, pois assim aquele ao

comparar suas provações a deste, poderia sentir-se consolado ante as vicissitudes da

vida. A Historia Calamitatum pode ser vista como uma autêntica apologia pro vita sua

ou como um astuto exercício de romance histórico, pois este documento definiu,

inevitavelmente, a percepção do caráter e da personalidade de Abelardo.

Tal texto faz parte de uma coletânea de cartas que compõe a correspondência, que

inclui ainda: uma Consolatio (carta de Heloísa a Abelardo, escrita depois que esta

tomou conhecimento da Historia Calamitatum); uma série de três cartas (de Abelardo a

Heloísa; de Heloísa a Abelardo e novamente de Abelardo a Heloísa); outras três cartas

escritas por Abelardo para orientar Heloísa e demais religiosas sob sua direção no culto

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divino no mosteiro do Parácleto; por fim, uma regra também escrita por Abelardo para a

organização da vida religiosa das monjas sob a autoridade da abadessa Heloísa.

Quanto à datação e o contexto das cartas, as datas mais prováveis são os anos de

1132 a 1137. Heloísa, já no mosteiro do Parácleto, após a História das Minhas

Calamidades chegar às suas mãos, escreve a Abelardo reclamando uma atenção deste

que dispõe de tempo para escrever a um amigo, mas negligencia no cuidado necessário

à orientação das religiosas que reuniu e que lhe são como filhas. Abelardo, por sua vez,

em 1132, era abade no mosteiro de São Gildas, onde passou por outras provações

devido à vida corrupta que os monges, sob sua administração, cultivavam.

Com relação à autenticidade das cartas, parece fora de contestação a autoria da

História das Minhas Calamidades – disso não se segue, necessariamente, que Abelardo

apresenta um relato factual e objetivo da sua experiência ou das suas relações com

Heloísa. As demais cartas, sobretudo as que são atribuídas à Heloísa, foram motivo de

inúmeras controvérsias e, até hoje, não há um consenso sobre tal. Apesar das recentes

pesquisas1 realizadas após a publicação do primoroso estudo de Gilson, este ainda

continua se colocando como muito plausível:

A correspondência de Heloísa e de Abelardo está aí, diante de nós, como um fato que podemos glosar ao infinito e cuja origem se presta às hipóteses mais diversas. Muitas foram feitas e certamente muitas outras serão feitas; porém, a mais convincente e a mais sábia de todas consiste ainda em supor que Heloísa seja autora das cartas de Heloísa, Abelardo, o autor das cartas de Abelardo, e Heloísa, a provável editora do conjunto da coletânea2.

A história do Romance

Em linhas gerais, a história se passa do seguinte modo. Abelardo, por volta de

1115, então com 36 anos aproximadamente, gozava de excelente reputação como

professor em Paris, ao mesmo tempo em que já angariava certas inimizades resultantes

de sua postura intrépida frente a seus antigos mestres, notadamente Guilherme de

Champeaux e Anselmo de Laon. Apesar de ter abandonado completamente a corte de

Marte para se recolher no regaço de Minerva e ter preferido a dialética e seu arsenal em

1 WETHERBEE, 2004, p. 46-7, menciona David Luscombe e Peter Dronke como dois recentes estudiosos que reforçam a autenticidade das cartas.2 GILSON, 2007, p. 196.

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detrimento das armas de guerra3, Abelardo dotou as disputas dialéticas do espírito

beligerante.

Assim, se de um lado se destacou inicialmente na Filosofia e depois na Teologia

por conta de sua perspicácia e argúcia dialéticas, de outro, seus infortúnios foram se

acumulando à medida que o número de seus detratores aumentava.

É neste contexto de glória e fama, mas também de perseguições, que Abelardo

toma conhecimento da existência de uma jovem em Paris, Heloísa, sobrinha de um

cônego que a amava com ternura e que nada havia poupado para lhe dar uma educação

refinada. Afirma Abelardo que ela era bastante bonita e a extensão de sua cultura

tornava-a uma mulher excepcional4.

Utilizando-se de amigos comuns, Abelardo se faz apresentar a Fulberto, tio de

Heloisa, planejando se aproximar da jovem pela qual se sentia atraído. O plano não

encontrou resistência por parte do tio de Heloísa, pois este estava por demais desejoso

em ver a sobrinha progredir nos estudos. Associado a esse desejo, a confiança de

Fulberto era tamanha que em pouco tempo Abelardo tornara-se soberano na instrução

de Heloísa, a ponto de ter acesso à residência da jovem, a qualquer hora do dia ou da

noite, onde as aulas deveriam acontecer. O próprio Abelardo, diante da exacerbada

confiança do tio de sua amada, assim se pronuncia:

A ingenuidade do ancião me deixou estupefato. Eu não me recobrava do meu espanto: confiar assim uma terna ovelha a um lobo esfaimado! Encarregou-me não apenas de instruí-la, mas de castigá-la sem reservas [...]5

Além da intenção e do desejo de Abelardo, a ocasião era a mais favorável

possível. Como não consentir naquilo que a natureza arrasta inexoravelmente? No Scito

te ipsum, Abelardo questiona: “Quem presumirá chamar de culpa a essa deleitação que a

natureza tornou necessária?6 A diferença é que aqui, ele o reconhece7, o consentimento e

a intenção se fizeram presentes.

3 ABELARDO, EP I, 2002, p. 30. Considerando que a tradução aqui utilizada diz respeito ao conjunto das cartas: CORRESPONDÊNCIA DE ABELARDO E HELOISA. Apresentação de Paul Zumthor e Tradução de Luciana Martins. São Paulo: Martins Fontes, 2000; adotar-se-á a seguinte regra: EP I (Epístola I), para a Historia Calamitatum, de Abelardo; EP II, de Heloísa para Abelardo; EP III, de Abelardo para Heloísa; EP IV, de Heloísa para Abelardo e EP V, de Abelardo para Heloísa, conservando-se, na sequência, o ano e a página da referida fonte.4 ABELARDO, EP I, 2002, p. 39.5 Ibidem, p. 41.6 ABELARD, 1971, p. 20.7 ABELARDO, EP V, 2002, p. 140.

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Pelo que segue, as lições entre os enamorados não tardaram a ignorar os livros e

se voltar aos prazeres amorosos, de modo que quanto mais experimentavam esses

prazeres, mas os prolongavam fervorosamente. Nas palavras de Le Goff, “entre o

mestre e a aluna é o amor à primeira vista: comércio intelectual, sem demora comércio

carnal8”. Heloísa é demasiado jovem, muito inocente e extremamente enamorada para

compreender que a chegada de Abelardo sob seu teto é o resultado de cálculos bastante

mesquinhos e que a ele não anima um sentimento da qualidade do dela9.

A situação ficou insustentável. Afirma Abelardo que a paixão voluptuosa que

sentiu o tomou completamente, de modo que negligenciou a filosofia e abandonou sua

escola, causando várias queixas de seus alunos10. Aquele Abelardo racionalista,

dialético, intrépido e beligerante havia baixado a guarda para os prazeres da carne.

Os cursos e os estudos, até então suas únicas paixões, há muito não o entretinham

mais. Pelo contrário, entediavam-no e fatigavam-no. Seu único prazer estava em

entreter-se com Heloísa e em escrever versos cantando a beleza da amada. “Em lugar de

comentar Aristóteles e a Bíblia, ele compõe canções em honra a Heloísa. Enfim, de

filósofo e teólogo, torna-se poeta, e ele próprio tinha bastante discernimento para não

considerar essa mudança como um progresso11”

Tal mudança repentina no comportamento de Abelardo não passaria muito tempo

despercebida. Primeiro os alunos e, apesar da proximidade com os acontecimentos, só

bem depois Fulberto. Recordando São Jerônimo, o qual afirma que “somos sempre os

últimos a conhecer as chagas de nossa casa e, enquanto todos os vizinhos se riem dos

vícios dos nossos filhos, das nossas esposas, somente nós os ignoramos12”, Abelardo

sabia que não tardaria para que a verdade viesse à tona. A consequência do escândalo

foi a separação dos corpos, o que fez com que os corações se aproximassem ainda mais.

Pouco tempo após a descoberta do mal feito, Heloísa escreve a Abelardo

comunicando-o da gravidez. Abelardo, por sua vez, aproveita a ausência de Fulberto e

resolve raptar Heloísa e enviá-la para a casa da irmã dele, na Bretanha, onde nasceria

Astrolábio. Quando o tio da jovem toma ciência do seu rapto, aflige-se a ponto de beirar

à loucura. Abelardo decide então procurá-lo, prometendo reparar sua ação desposando

Heloísa com a única condição de que o casamento fosse mantido em segredo.

8 LE GOFF, 2003, p. 63.9 Cf. PERNOUD, 1973, p. 55.10 ABELARDO, EP I, 2002, p. 42.11 GILSON, 2007, p. 34.12 ABELARDO, EP I, 2002, p. 42.

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A confidencialidade do casamento exigida por Abelardo ensejou as mais variadas

especulações por parte de vários estudiosos. Gilson é um dos que se coloca a refletir

sobre a razão dessa exigência de Abelardo. Em resumo, alega Gilson que

[...] a decadência de sua sabedoria, Abelardo não irá divulgá-la e torná-la de algum modo irrevogável ao estabelecê-la no estado matrimonial? Trata-se, para ele, de escolher entre dois estados, um superior, aquele de clérigo, outro inferior, o de homem casado. O clérigo, podia-se então ler no Corpus juris atribuído a São Jerônimo, devia se dedicar inteiramente ao serviço divino, à contemplação e à oração; ele devia, portanto, afastar-se de todo ruído das coisas temporais. Ora, se Abelardo desposar Heloísa, Heloísa terá direitos sobre ele.13

Assim, para Abelardo o que está em jogo é a aparência que pretendia ostentar de

um estado de vida superior, conforme as concepções de Sêneca e São Jerônimo.

Ressalte-se que Heloísa, ao saber da promessa feita por Abelardo para reparar o mal

causado à imagem de Fulberto, reprovou tal intenção de Abelardo e tentou dissuadi-lo

do feito.

Heloísa sabia que seu tio não se daria por satisfeito com tal ato reparador. Além

disso, aceitar tal situação implicaria em duas ocasiões igualmente nocivas a Abelardo: o

perigo que este corria e a desonra que não deixaria de atrair contra ele. Além disso, ela

estava convicta de que o mundo exigiria dela uma explicação por obscurecer luminar

tão grande14. Ademais, a glória de Abelardo seria a glória de Heloísa. A desonra de

Abelardo, seria a desonra de Heloísa.

De nada adiantaram os argumentos de Heloísa. O casamento se fez como

Abelardo queria e naquilo que era possível. Casaram-se na presença de Fulberto e de

alguns amigos dos nubentes. Na esteira dos acontecimentos, a separação do casal é

novamente imposta, interrompida senão por alguns furtivos encontros.

Como já previsto por Heloísa e, aliás, invocado por ela como argumento contrário

à realização das núpcias, Fulberto, sempre que a ocasião permitia, tornava público o

casamento, violando o juramento de mantê-lo na confidencialidade. Heloísa, por sua

vez, sabendo da intenção de seu tio em prejudicar a reputação de Abelardo pela

divulgação do casamento, negava o ocorrido e protestava peremptoriamente. Tais

13 GILSON, 2007, p. 60. Necessário dizer que o termo clérigo no século XII designa todo estudante, de modo que não é uma ordem religiosa e por isso, o clérigo não estava impedido de contrair matrimônio, mas uma vez casado, não poderia casar-se novamente. O que ocorre é que um clérigo casado é visto como incontinenti e, portanto, não vive um estado de perfeição.14 Cf. ABELARDO, EP I, 2002, p. 44-5.

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atitudes da moça lhe custaram o sofrimento de maus tratos por parte de seu tio. Diante

disso, Abelardo não hesitou em enviar Heloísa a um mosteiro próximo de Paris.

Frente a essa atitude de Abelardo, Fulberto sente-se vítima de um engodo: entende

que Abelardo enviara Heloísa para o convento para se livrar dela. Não tardou para que a

vingança de Fulberto fosse concretizada. Nestes termos descreve Abelardo o castigo

imputado a ele:

Certa noite, um dos meus servidores, comprado a preço de ouro, introduziu-os no quarto retirado onde eu dormia, e eles me fizeram sofrer a vingança mais cruel, a mais vergonhosa e que todo o mundo conheceu com estupefação: amputaram-me as partes do corpo com as quais eu cometera o delito de que se queixavam15.

A vergonha sentida por Abelardo, ele nos diz, foi maior do que a dor causada pela

própria mutilação16. Ele, a glória de Paris, o cavaleiro da dialética, o mais ilustre dos

professores e o mais livre dos amantes, vê-se arruinado em toda sua carreira. Não

encontraria mais coragem para sua atividade docente, pois sua vergonha certamente

seria motivo de muitos risos e desrespeito diante do alunado – afinal, é sabido que os

espaços escolares são também lugares onde os gracejos e as traquinagens ocorrem com

frequência17 - assim como não dispunha mais das condições que a vivência do amor

torna necessária.

As duas paixões de Abelardo estariam impossibilitadas: nem a glória das escolas,

nem os prazeres de Heloísa. Que paixão mais poderia prendê-lo a esse mundo? Sua

decisão é resoluta: retirar-se do mundo, refugiar-se no mosteiro.

Entre Paixão e Razão

Marcados pelos estigmas do casamento e da mutilação de Abelardo, a sequencia

dos fatos permite dizer que, apesar de alguns encontros e da troca epistolar, os amantes

foram separados e condenados a sofrer a ausência um do outro. A partir desse momento,

“os dois amantes entram em revolta contra a moral e contra a opinião pública18”. Se

Abelardo já colecionava infortúnios antes do affair com Heloísa, eles se multiplicarão

durante e após esse fato. E Heloísa, que ainda muito jovem tomou parte nesse romance

15 ABELARDO, EP I, 2002, p. 50.16 ABELARDO, EP I, 2002, p. 51.17 Le Goff, ao tratar dos goliardos e da vagabundagem intelectual no século XII, é incisivo em afirmar que os goliardos, por exemplo, “representam o maior escândalo para os espíritos tradicionais. LE GOFF, 2003, p. 47-52.18 GILSON, 2007, p. 35.

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(é provável que ela tivesse na época entre 17 e 18 anos), também sofrerá infortúnios de

várias ordens.

Abelardo, que é criticado por seus opositores como extremamente racionalista,

como alguém que julgava a razão humana capaz de compreender tudo o que é Deus e,

consequentemente, esvaziar a verdade da fé cristã19, no princípio do romance assume tal

postura, desejando apenas a satisfação sexual com Heloísa20. O amor não o motiva, mas

apenas o prazer. Mas por que Heloísa e não antes uma meretriz?

Abelardo afirma que não apreciava o “comércio grosseiro das prostitutas21”. Ao

mesmo tempo, declara que mantinha uma vida casta antes de envolver-se com Heloísa22.

Pode-se invocar como argumento a favor de tais afirmações o fato de que Abelardo

exigiu que o casamento fosse secreto porque desejava continuar ostentando uma vida

superior, ou seja, uma vida que não desfrutasse dos prazeres libidinosos.

Assim, Heloísa reunia qualidades além daquelas necessárias à satisfação sexual de

Abelardo. Ela representava um novo desafio que ele, no auge da sua presunção, tinha de

conquistar e o qual julgava que não lhe seria tarefa nada difícil, pois que brilhava pela

reputação, juventude e beleza, e julgava que não havia mulher junto a quem seu amor

temesse recusa23.

A fama de Heloísa era conhecida por muitos. Pedro, o Venerável, que acolheu

Abelardo em Cluny quando este marchava em direção à sede do catolicismo com

intenções de reverter a sentença imposta pelo concílio de Sens em 1140, testemunha a

admiração que devotava à jovem amante de Abelardo:

Eu mal acabava de transpor os limites da adolescência, e não era nem mesmo jovem, quando tomei conhecimento da reputação, não ainda de sua vida religiosa, mas de teus nobres e louváveis estudos. Ouvia-se então falar desta extraordinária raridade: uma mulher ainda envolvida nos laços do século e que se entregava, entretanto, completamente ao estudo das Letras e da Sabedoria sem que nada, nem os desejos do mundo, nem suas vaidades, nem seus prazeres, pudesse desviá-la do louvável desígnio de aprender as Artes Liberais24.

19 “Petrus Abaelardus christianae fidei meritum evacuare nititur, dum totum quod Deus est, humana ratione arbitratur se posse comprehendere”. SANCTI BERNARDI Abbatis Clarae-Vallensis, Epistola Cxci ad Innocentium ex Persona Domini Archiepiscopi Remensis. Patrologiae Latina tomo CLXXXII, col 337.20 “Meu amor, que nos arrastou a ambos no pecado, chamemo-lo de concupiscência, não de amor”. ABELARDO, EP V, 2002, p. 147.21 ABELARDO, EP I, 2002, p. 39.22 Cf. ABELARDO, EP I, 2002, p. 42.23 Idem, ibidem.24 Pedro, o Venerável, Epístola XXVIII, Patrologia Latina, t. 189, col. 347ss. IN: GILSON, 2007, p. 148.

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Heloísa se afigurava como bem mais do que uma possibilidade de satisfação

sexual: era luxúria, vaidade, glória e fama reunidas na mesma oportunidade. Que outro

troféu poderia almejar espírito tão orgulhoso e conquistador? Esse foi o provável

motivo da atração de Abelardo por Heloísa. Segundo Gilson, “não há o menor traço de

paixão romântica no seu caso; nada mais que luxúria, como ele próprio reconhece, e

orgulho25”.

Essa inclinação à luxúria associada à razão da glória que acrescentaria a sua

reputação foi, indubitavelmente, a causa do romance sob a perspectiva de Abelardo.

Mas e Heloísa? Que intenções ela tinha ao envolver-se com Abelardo? O que a

motivou? Será possível encontrar nas motivações de Heloísa elementos de paixão e

razão? Se sim, serão eles da mesma qualidade das motivações passionais e racionais de

Abelardo?

Desde o primeiro encontro com Abelardo, Heloísa confessa o amor exclusivo que

lhe terá até o último suspiro. Amor violento que nada o debilitará, porque Heloísa é de

uma naturalidade absoluta26. Ela nunca omitira a real motivação de seu envolvimento

com Abelardo:

Deus o sabe, jamais procurei em ti senão a ti mesmo. Era somente tu que eu desejava, não aquilo que te pertencia ou aquilo que representavas. Não esperava nem casamento nem vantagens materiais, não pensava nem em meu prazer nem nas minhas vontades; buscava apenas, bem o sabes, satisfazer teus desejos27.

Esta manifestação do mais puro amor de Heloísa coloca-a em outro nível de

sentimento com relação ao de Abelardo. Se Abelardo a amou, certamente não deixou

também de calcular a glória e depois a degradação de sua imagem com o casamento – e

por isso o exigiu confidencial. Heloísa, porém, amou Abelardo de tal modo que não

relutou em momento algum em fazê-lo feliz e bem-sucedido, pois sabia que da

felicidade de Abelardo dependia a sua. Heloisa é “a grande amorosa de estilo francês,

com essa estranha avidez de justificação racional, ou sofística28.” Mas do que Heloísa

precisaria se justificar? Que crime cometeu esta que parece somente ter amado?

Heloísa não se perdoa do único crime que cometeu: desposar Abelardo. Ela, que

sabia tão bem quanto Abelardo o que representava o casamento com relação ao estilo de

25 GILSON, 2007, p. 32.26 PERNOUD, 1973, p. 55.27 HELOÍSA, EP II, 2002, p. 95.28 GILSON, 2007, p. 117.

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vida de um filósofo, confessa que preferiria ser uma meretriz a ser esposa de Abelardo e

motivo de sua ruína:

O nome de esposa parece mais sagrado e mais forte, entretanto o de amiga sempre me pareceu mais doce. Teria apreciado, permiti-me dizê-lo, o de concubina ou de mulher de vida fácil, tanto me parecia que, em me humilhando ainda mais, aumentaria meus títulos a teu reconhecimento e menos prejudicaria a glória do teu gênio29.

Mesmo sabendo do que representava o casamento e após opor-se veementemente

a ele, Heloísa submete-se a essa imposição de seu amado. Carregará esse fardo para o

resto de sua vida e amargará o fato de estar casada, mas impossibilitada de usufruir seus

direitos conjugais com Abelardo30.

A vida de Heloísa, depois que conhecera Abelardo, fora agradar-lhe, atendê-lo em

todas as suas vontades. A segunda grande prova de amor que Abelardo exigiu de

Heloísa foi o ingresso dela na vida religiosa. Precedendo a Abelardo na vida monástica,

Heloísa novamente apresenta sua renúncia a si e ao mundo para viver por amor a

Abelardo.

Emasculado e impossibilitado de viver a plenitude do amor, Abelardo castra

Heloísa impondo-lhe o véu monástico. Numa análise de gênero do papel da mulher na

Idade Média e diante do sofrimento de Heloísa, talvez se pudesse colocá-la contra

Abelardo, assumindo a defesa da primeira e o ataque ao segundo. Porém, aquilo que

Heloísa legou em suas cartas, longe de permitir tal análise, sugere bem o contrário: “Em

todos os estados a que a vida me conduziu, Deus o sabe, foi a ti, mais do que a ele, que

temi ofender; foi a ti, mais do que a ele, que procurei agradar31”.

Gilson, imbuído do espírito que perpassa toda a correspondência de Abelardo e

Heloísa, sabedor da psicologia dos amantes e da moral que os envolve, nestes termos se

expressa quanto à possibilidade de uma leitura diferente daquela que corresponde ao seu

sentido próprio:

É verdade que Heloísa sofreu muito, e sofreu por Abelardo, mas duas coisas ao menos são certas: que ela faria novamente dez vezes aquilo que fez, com o risco de subir dez vezes o mesmo calvário, e que experimentaria como a pior injúria se se desejasse engrandecê-la rebaixando Abelardo32.

29 HELOÍSA, EP II, 2002, p. 95.30 Pela instituição sacramental do casamento, um passa a ter direito sobre o corpo do outro, de modo que não somente Heloísa não poderia ter direito sobre Abelardo, porque este estava impossibilitado de atender às exigências das relações conjugais, como também a própria Heloísa desejava uma vida para ambos compatível àquela ideologia que se tinha acerca do estilo de vida dos intelectuais.31 HELOÍSA, EP IV, 2002, p. 121.32 GILSON, 2007, p. 27.

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Se no início do romance é Abelardo que corteja Heloísa para alcançar a satisfação

de seus prazeres, agora é o amor cortesão que se manifesta com toda sua força e beleza

em Heloísa. Alguém poderá perguntar: será isso justo? Injusto? O amor não parece ser

necessariamente uma questão de justiça, ao menos não no sentido da participação

equitativa nos prazeres e infortúnios dos quais padecem os amantes.

Porém, justiça seja feita! Se a postura de Abelardo foi, no início, a de um lobo

esfaimado por devorar sua presa – postura reafirmada na carta à Heloísa em que

confessa que seu amor foi concupiscência33 - ele também expiou em sua vida os males

que cometeu e, ainda que não da mesma forma que Heloísa, é muito provável que a

tivesse amado, tanto assim que uma vez impossibilitado fisicamente de viver o

casamento, exigiu dela o amor casto obrigando-a ao ingresso na vida religiosa. Além

disso, quando abade no mosteiro de São Gildas, sabendo que Heloísa e suas irmãs

religiosas foram expulsas do mosteiro onde residiam, empenhou-se em ampará-las de

modo a proporcionar-lhes as instalações do mosteiro do Parácleto, onde outrora havia se

recolhido com alguns alunos para escapar das perseguições dos monges da abadia de

São Denis.

Seja como for, pela leitura e análise das cartas de Abelardo e Heloísa percebe-se

que a paixão e a razão se fizeram presentes como duas forças que marcaram

indelevelmente suas vidas e os projetou na história como um romance único.

Conclusão

O dramático romance entre Abelardo e Heloísa, legado pelas cartas que

escreveram, figura como um dos mais belos textos em que o amor cortês se manifesta.

Paixão e razão não se dissociam no caso de Abelardo e Heloísa. Abelardo, se

inicialmente se deixa envolver no romance por interesses meramente libidinosos, não

muito depois dá mostras de amor por Heloísa, ainda que ao seu modo e não

necessariamente ao modo que Heloísa esperava e como muitos leitores gostariam de

encontrar – mas às vezes é necessário assistir a essa trama como expectador e não como

diretor que pretende mudar o roteiro.

Heloísa, por sua vez, encarnou o amor. Dedicou sua vida toda a esse sentimento

que nutria por Abelardo. Não se lhe opôs em momento algum, pois mesmo no episódio

33 Cf. nota 19 supra. Ressalte-se que nessa carta, supostamente a última de Abelardo a Heloísa de cunho pessoal, Abelardo assume diante de Heloísa toda a culpa das desventuras que sofreram e se mostra conformado com a sorte que teve.

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do casamento, atendeu à vontade dele. Amou Abelardo por ele mesmo, sem esperar

nada em troca, nenhum reconhecimento qualquer. Nem mesmo o de Deus ao ingressar

na vida religiosa, pois ela é taxativa em afirmar que Deus não a poderia recompensar

por algo que fez somente pelo amor de Abelardo34, não obstante sua vida como abadessa

ter sido elogiada por muitos de seus contemporâneos como de grande piedade.

Heloísa não esconde nada: tudo o que pensa e sente, explicita nas cartas. Seu amor

por Abelardo, sua conversão e até sua piedade religiosa, ela o disse, não passavam de

hipocrisia, de modo que o hábito religioso (vestimenta) não poderia suplantar o hábito35

da religiosa.

Abelardo e Heloísa experimentaram com intensidade os sofrimentos impostos

pelas vicissitudes de suas vidas marcadas pela paixão e pela razão. Apesar disso e talvez

por causa disso, entregaram-se vivamente a esse romance imortalizado na história e na

literatura.

Desse modo, pode-se concluir com Gilson afirmando que

[...] a paixão que devia dominar a vida inteira de Heloísa parece ter sido total desde o início. Essa paixão não devia, aliás, tardar a ganhar o próprio sedutor. Pois, após a sedução de Heloísa, Abelardo não é mais o frio calculista que fora inicialmente. Esses dois amantes foram amantes felizes36.

Referências

34 HELOÍSA, EP IV, p. 99.35 A propósito da distinção entre o hábito como vestimenta e o hábito como simulação (hipocrisia), cf. o interessante artigo de: FINDLEY, 2006, pp. 248-275.36 GILSON, 2007, p. 34.

Page 12: As Cartas de Abelardo e Heloísa- entre paixão e razão

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