as brumas não são eternas

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AS BRUMAS NÃO SÃO ETERNAS

um amor octogenário

P. A. Marangoni

2016

© 2016 pedro marangoni

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http://arquivosdepamarangoni.blogspot.com.br/

[email protected]

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Transcorreram céleres os 80 anos desde meu nascimento. Mas só agora medito mais frequentemente sobre isso, só agora quando tudo está quase parado, tudo parece penosamente em câmera lenta como num filme, um filme de terror…

Considerando o tempo de vida de meus falecidos pais ainda teria uma década pela frente, mas definho. Sei que ainda consigo andar, mas não me deixam. Ainda posso falar, mas para quê? Para me ignorarem como a uma criança ou pior, mandarem-me calar? De meu, só meu, inalcançável pelos inimigos tenho a mente que luta para se manter lúcida a cada dia, cada minuto. Uma cidadela ainda segura. Fora dela tudo são brumas onde prudentemente devo permanecer com o mínimo de movimentação possível, sem interferir, acatar sem protestar para fugir ao castigo. Sou um objeto frágil, obsoleto, portanto descartável. Quem são os inimigos a quem a bruma favorece? São aqueles que me enxergam como um alvo a ser espoliado e outros mais jovens, cheios -por enquanto- de vigor que investidos de autoridade dada por tempo passado em uma sala de aula e não pela vida, ignoram meus pedidos de socorro e apenas sorriem com ar de comiseração e que não entendem que estão cursando, na Universidade da Vida, o estágio para a velhice e todos os que a morte não surpreender antes receberão seu diploma, serão o que hoje sou. Meu corpo é um invólucro jogado de um lado para o outro, massa que deve se apresentar inerte, que todos esperam que esteja inerte, que não atrapalhe a velocidade inútil da sociedade em sua desabalada corrida sem rumo. Rosa, minha esposa, meu porto seguro, afortunada, partiu repentinamente da vida, ainda vigorosa, dona de si, não conheceu a solidão. Não tivemos filhos, que por amá-los, não os colocamos neste mundo pérfido para que, pagando um aluguel exorbitante imposto pela sociedade, vivessem este momento de consciência estéril semeada no tempo infinito chamada de vida humana.

Agora, em meus momentos de covardia, sinto saudades dos filhos que não tive, dos netos que estariam ao meu redor. Egoísmo de alguém que enfraquece. Recupero-me logo. Reflito, somo, subtraio, rumino, regurgito, torno a engolir: lançá-los no mundo para tê-los como muleta física, espiritual? A natureza não é romântica ou sensível aos nossos problemas de ser pensante. A natureza é simplesmente fria, dura, sem elucubrações inúteis. Eu e Rosa imaginávamos ingenuamente um fim quase simultâneo depois de uma longa vida em perfeita simbiose. Velhos casais passam junto por alegrias e tristezas, verões e invernos, se alimentam dos mesmos frutos, bebem da mesma água, respiram do mesmo ar, tornam-se mais e mais semelhantes. Um fim a dois, mãos dadas, se apagando aos poucos com uma troca terna de olhares. Não foi assim. Minha flor, minha Rosa, murchou repentinamente. Após ela, a angústia e o deliberado abandono prometiam um fim rápido, talvez alguns meses mais, daria tempo para alcançá-la. Não, não foi assim…

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E com o corpo encolhendo, a alma se contraindo, fujo para dentro de mim, regurgito meus pensamentos e torno a engoli-los infinitas vezes.

Sem Rosa, minha companheira por meio século, sou metade. Nos conhecemos crianças ainda. Passamos, com a autenticidade infantil a planejar o futuro, sonhar juntos, sem que houvesse um formal compromisso entre nós. Natureza seguindo seu curso, agindo sem regras artificiais criadas pelo contraditório cérebro humano. Cada necessidade, cada desejo em seu tempo. Eu era seu par, seu homem, ela, minha mulher, minha fêmea. Não saberíamos descrever um ao outro. Rosa é bonita, é feia? João é elegante, atraente? Não tínhamos, não precisávamos, nunca sentimos essa necessidade de parâmetros, de nos medirmos, de comparação, ajustar-se em padrões… nenhuma mulher, nenhum ser humano valia mais para mim que Rosa, que me aceitava docemente, em mim se encaixava e juntos formávamos um ser, por isso, talvez, sem necessidade de se procriar. Manter-se em vida só é válido a dois, mãos dadas no verão, enrodilhados no inverno, rindo, chorando, envelhecendo juntos. Agora vegeto. Tenho minha casa, recebo mensalmente um pagamento que a sociedade, aos poucos, apostando em minha morte, vai devolvendo em pequenas prestações meu investimento de trabalho como cidadão. Chama-se aposentadoria, e com ela continuo a pagar impostos, comida e meu cuidador.

A decisão de ter alguma ajuda profissional a tomara poucos meses depois de enviuvar, mais por necessidade de ter alguém para conversar que de alguém para me auxiliar no dia a dia. Eu e Rosa éramos independentes e sobreviventes, sem mais parentes neste mundo. Com uma vida bem vivida, colhíamos os frutos de um trabalho de regularidade e honestidade. Mas Rosa foi embora mais cedo que o esperado e as brumas vieram. O sol perdeu seu brilho. A vida estancou em nossa casa com o pequeno -e sempre bem cuidado- jardim, sem muros. O parque próximo ainda se mantinha intacto, um oásis na selva urbana esperando pelas caminhadas, mas o bairro, dos mais antigos da cidade, paulatinamente se transformara em área comercial. As famílias conhecidas se extinguiram ou se deixaram levar pelo canto de sereia da especulação imobiliária, venderam suas casas e se mudaram, mas não haviam feito maior diferença, pois éramos um casal que se preenchia totalmente, compúnhamos toda uma multidão...

Repentinamente a multidão ficou silenciosa e reduzida a apenas um ser... Esmagado pelo nada ao meu redor, passei a longa noite no mudo velório, apenas eu e ela, mais ninguém, com a sensação de que estava sendo deixado para trás indevidamente, que devia fazer algo, que devia me apressar, estava perdendo meu lugar em um evento vital para mim. Assustado, perguntava repetidamente à Rosa, apertando sua mão fria, o que seria de mim sem ela. Pedia que me viesse buscar logo. Pela manhã, quando o último tijolo foi colocado na abertura do túmulo e o coveiro se afastou, quedei-me num deserto, perdido. Ali fiquei preso ao chão sem me mover por algumas horas, certamente sob o

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olhar indiferente dos funcionários do cemitério, acostumados com a dor alheia que não os atinge, há mais covas para abrir, mais dias para viver, todos são imortais até que a hora chega... depois, buscando coragem e arrastando os pés, lentamente voltei para casa, descuidado, lágrimas atrapalhando a visão do mundo que sem respeito teimava em continuar, no íntimo desejando ser atropelado ou cair morto na calçada. Mas a fria e insensível vida colocou-me defronte à porta e como um zumbi, dolorosamente girei a chave e entrei.

Fechei a porta como se ela fosse aquele último tijolo que emparedara Rosa, sem volta.

Estava com 78 anos, lúcido e dono de meus atos, mas deixei de me comunicar, sem vontade mesmo para coisas essenciais como ir ao supermercado, padaria, aquecer a comida. Sentia-me um quadro na parede e no fundo isso desejava, apenas ser uma foto na parede ao lado de Rosa. Meu viver, refletia, já fora vivido o suficiente. Mas teoricamente ainda teria uns dez anos pela frente, muito tempo para permanecer estático. Era preciso reagir, respirar fundo, tentar recuperar algum brilho, conversar, conhecer novas pessoas ou acelerar o fim. Acalentava uma ideia suicida que ia e vinha, solução prática, raciocínio inevitável, mas que mancharia de forma violenta uma vida a dois tão suave. Rosa não aprovaria. Mas, nos momentos mais desesperadores, a simples ideia do suicídio foi como um interruptor na parede que acionei e o quarto escuro da vida, insuportável e impalpável onde me encontrava perdido iluminou-se e ao lado da porta trancada pude ver que havia uma chave dependurada – a morte pelas minhas próprias mãos- que me permitiria sair imediatamente dali. Só dependia de mim. Encarei a possibilidade já de forma racional, sereno, e aliviado da angústia sufocante. Sabia que se a dor principiasse a transbordar de meu limite, poderia girar aquela chave e escapar. E, paradoxalmente, a opção do suicídio me manteve vivendo...

Com a mesma intermitência insistente, ruminava e lamentava sobre a decisão de não termos tido filhos, pensando na companhia e no auxílio que eles ou netos agora trariam amenizando meu sofrer, éramos tão um que não passava por nossas mentes viver muito sem o outro, apenas alguns meses no máximo. Mas era difícil não pensar que poderia existir um ser jovem que fosse a soma de nós dois e em quem eu visse, eu sentisse, o prolongamento da vida de minha companheira, na aparência, no comportamento, na personalidade... agora, na viuvez, essa ausência de quem nunca existiu fazia doer mais a solidão. Muitas vezes chegava à exasperação num aumento da angústia ao pensar que todas as pequenas coisas que eram caras à Rosa e que estavam pela casa, nas gavetas, no guarda-roupa, sobre os móveis, acabariam em mãos estranhas e insensíveis quando de minha morte, apagando o último vestígio de um casal...

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Passei a temer a chegada da noite, resistia ao sono porque o despertar era cruel, segundos entre a esperança de um sonho mau e a cruel verdade. Acordava muitas vezes a qualquer hora da madrugada, nunca o sono era contínuo. E vinha a tortura, o braço lançado ao lado procurando encontrar o corpo quente e macio, a minha metade, e suspirar aliviado do pesadelo...

Mas o lado estava vazio, o lado agora frio…

Permanecia deitado tentando ouvir o sino de uma igreja próxima na esperança que já estivesse próximo à alvorada e poderia dar por terminada a noite e começar mais um dia, ou, menos uma penosa noite. Mas quase sempre eram duas ou três as batidas e depois o silêncio que trazia mais agonia; sabia que teria que se levantar da cama onde as lembranças e a dor da solidão eram mais pungentes, lancinantes. A camisola preferida de Rosa ainda estava debaixo do travesseiro dela, cuidadosamente dobrada como ela fazia todas as manhãs, ainda tinha seu cheiro, seu perfume… não poucas vezes mergulhei o rosto naquele vestígio da companheira, respirando fundo, sentindo o tecido macio de encontro à pele e desesperava-me mais ainda. Saltava da cama, rápido, como se pudesse fugir da angústia, deixá-la para trás… ia para a cozinha procurando ter fome, mas não havia vontade de nada; ia para a sala, abria um livro, duas ou três páginas e lá vinham lembranças se imiscuindo entre as frases e interrompiam a sequência da leitura. Levantava-me, andava pela casa, num vazio total, sem depressão ou ansiedade, a sensação era de nada, de vazio, de vácuo, de falta. O espaço cresceu, meu corpo diminuiu, caracol numa concha imensa, cérebro encolhido numa enorme caixa craniana. Cama demasiadamente larga, sofá comprido demais… parava em qualquer lugar, estático, como um objeto e ali ficava por vários minutos tentando não existir, inanimado, às vezes encostava em um batente de porta, uma parede, como se buscasse um contato carinhoso. Sensação de ter sido deixado para trás, esquecido, abandonado. Algo estava muito errado, irreal. Não era para estar ali, não era para continuar vivendo, o erro seria meu? Teria porventura que fazer alguma coisa para me apressar, Rosa ia à frente, não podia deixar que ela se perdesse, distanciasse demasiadamente. Que fazer, que fazer? Procurava capturar momentos felizes, ficar com eles, usá-los, mas impossível, eles fogem continuadamente, tudo parece ter passado em segundos, tornam-se impalpáveis num presente silencioso, mudo e cego que tateia um futuro inexistente… Minhas lembranças de alegria, de prazer, são como um raio, claro, intenso, mas momentâneo; em um instante passam, escorregam da mente por mais que se tente segurá-las; a chuva miúda da angústia, da tristeza, cobre de cinzenta bruma todo o horizonte da memória e a vida torna-se um chão molhado que demora a secar… Evitava, acovardado, voltar para a cama e ao amanhecer, corpo e alma em frangalhos, dormitava num sofá, esgotado.

Menos uma noite…

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Meu deplorável estado mental ainda assim não permitiu que me entregasse à fuga fácil do álcool, calmantes, antidepressivos, remédios para dormir. Considerava-os apenas máscaras que não moldam o rosto por detrás delas. A realidade não é amiga, não dá descontos, não marca no caderninho para que paguemos posteriormente quando estivermos melhor. Temos que enfrentá-la no ato gostando ou não ou aturá-la, submeter-se. Não há como fugir de algo que é onipresente.

Por algumas vezes, na sala, sentado no cantinho do sofá de três lugares que parecia imenso e observando as poltronas vazias, procurava preenchê-las mentalmente com conhecidos, amigos de trabalho, mas ninguém se encaixava ali como uma companhia agradável ou íntima que eu pudesse entrar em contato, convidar, voltar a conviver socialmente. E a denominação “sala de visitas” parecia zombar de mim, escarnecer de um velho lançado no meio de um deserto: somos uma metade que só se ajusta com uma outra precisa, igual. Mais que essa metade já não soma nem completa; menos, claudicamos num caminho que nos repele, mesmo não levando a lugar nenhum...

Numa manhã estática, muda, morna, depois de uma madrugada em claro observando a cidade aconchegada debaixo do manto da escuridão e do silêncio dormindo a sono solto, sem mais ponderar dirigi-me a uma agência de empregos em busca de um acompanhante de idosos. O que se seguiu ainda me confunde devido ao turbilhão de acontecimentos e, ainda em recuperação, deixarei que me ajudem a contar...

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CONTINUA.

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