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AS AMANTES EM “OS LUSÍADAS”: ALGUNS COMPORTA- MENTOS FEMININOS DISCREPANTES DO PARADIGMA CRISTÃO NO ÉPICO DE CAMÕES ELOÍSA PORTO CORRÊA (FFP-UERJ) RESUMO: Os comportamentos das figuras femininas históricas do é- pico de Luís de Camões, “Os Lusíadas”, são tanto mais exaltados pelo Gama, em sua narração ao Rei de Melinde, quanto mais se aproximam do comportamento de Maria, mãe de Jesus, modelo de perfeição feminina cristã, paradigma de comportamento da mulher, segundo o Cristianismo. Vênus, deusa do amor e da beleza, na narração do Poeta, é o avesso de Maria, um antimodelo com o qual se identificam al- guns comportamentos execrados nas personagens femininas hu- manas da obra, ainda que ela própria e as outras entidades mito- lógicas femininas não sejam julgadas ou execradas pelos narrado- res, até porque a trama dos deuses não é do conhecimento de per- sonagens humanos, nem dos narradores Vasco e Paulo, só do Poeta, narrador central do épico. O Poeta, quem narra os episó- dios mitológicos, não condena o comportamento ousado, sensual e nem os fingimentos de Vênus e das ninfas, discrepantes do pa- radigma cristão, provavelmente por não fazerem parte do univer- so cristão e terreno, e também porque auxiliam os portugueses na Expansão Marítima empreendida na obra.

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AS AMANTES EM “OS LUSÍADAS”: ALGUNS COMPORTA-

MENTOS FEMININOS DISCREPANTES DO PARADIGMA CRISTÃO NO ÉPICO DE CAMÕES

ELOÍSA PORTO CORRÊA (FFP-UERJ)

RESUMO:

Os comportamentos das figuras femininas históricas do é-

pico de Luís de Camões, “Os Lusíadas”, são tanto mais exaltados

pelo Gama, em sua narração ao Rei de Melinde, quanto mais se

aproximam do comportamento de Maria, mãe de Jesus, modelo

de perfeição feminina cristã, paradigma de comportamento da

mulher, segundo o Cristianismo.

Vênus, deusa do amor e da beleza, na narração do Poeta, é

o avesso de Maria, um antimodelo com o qual se identificam al-

guns comportamentos execrados nas personagens femininas hu-

manas da obra, ainda que ela própria e as outras entidades mito-

lógicas femininas não sejam julgadas ou execradas pelos narrado-

res, até porque a trama dos deuses não é do conhecimento de per-

sonagens humanos, nem dos narradores Vasco e Paulo, só do

Poeta, narrador central do épico. O Poeta, quem narra os episó-

dios mitológicos, não condena o comportamento ousado, sensual

e nem os fingimentos de Vênus e das ninfas, discrepantes do pa-

radigma cristão, provavelmente por não fazerem parte do univer-

so cristão e terreno, e também porque auxiliam os portugueses na

Expansão Marítima empreendida na obra.

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Enquanto o Poeta não condena os comportamentos apre-

sentados pelas figuras femininas mitológicas, Vasco da Gama na

sua função de narrador, condena os comportamentos de algumas

figuras femininas históricas ousadas e transgressoras do paradig-

ma de Maria, como Leonor Teles e Teresa, sensuais. Desta forma,

o épico não reproduz simplesmente a ideologia cristã dominante

mas, através da mitologia greco-latina, mostra-se dialético, ino-

vador e muito menos convencional do que se poderia esperar de

uma obra que passou pelo fulminante olhar inquisitorial.

Os comportamentos das figuras femininas históricas do é-

pico de Luís de Camões, “Os Lusíadas”, são tanto mais exaltados

pelo Gama, em sua narração ao Rei de Melinde, quanto mais se

aproximam do comportamento de Maria, mãe de Jesus, modelo

de perfeição feminina cristã, paradigma de comportamento da

mulher, segundo o Cristianismo.

Vênus, deusa do amor e da beleza, na narração do Poeta, é

o avesso de Maria, um antimodelo com o qual se identificam al-

guns comportamentos execrados nas personagens femininas hu-

manas da obra, ainda que ela própria e as outras entidades mito-

lógicas femininas não sejam julgadas ou execradas pelos narrado-

res, até porque a trama dos deuses não é do conhecimento de per-

sonagens humanos, nem dos narradores Vasco e Paulo, só do

Poeta, narrador central do épico. O Poeta, quem narra os episó-

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dios mitológicos, não condena o comportamento ousado, sensual

e nem os fingimentos de Vênus e das ninfas, discrepantes do pa-

radigma cristão, provavelmente por não fazerem parte do univer-

so cristão e terreno, e também porque auxiliam os portugueses na

Expansão Marítima empreendida na obra.

Enquanto o Poeta não condena os comportamentos apre-

sentados pelas figuras femininas mitológicas, Vasco da Gama na

sua função de narrador, condena os comportamentos de algumas

figuras femininas históricas ousadas e transgressoras do paradig-

ma de Maria, como Leonor Teles e Teresa, sensuais. Desta forma,

o épico não reproduz simplesmente a ideologia cristã dominante

mas, através da mitologia greco-latina, mostra-se dialético, ino-

vador e muito menos convencional do que se poderia esperar de

uma obra que passou pelo fulminante olhar inquisitorial.

Enveredar pelos caminhos da ficção é sempre uma aventura

desejável, prazerosa e apaixonante, porém de certo modo presun-

çosa, transitória e arriscada, como qualquer aventura crítica, ainda

mais em se tratando de mares já tão navegados, como são os do

épico de Camões, sobre o qual foram produzidos incontáveis títu-

los críticos, por variadíssimos caminhos investigativos, durante

séculos e gerações de leituras encantadas, atentas e minuciosas.

Por outro lado, toda essa grandiosa fortuna crítica legada por ge-

rações e séculos de leitura a “Os Lusíadas” nunca será capaz de

esgotar por completo as possibilidades de entrada crítica nessa

obra tão encantadora, vasta, complexa e desafiadora, que se abre

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sempre a novas possibilidades de mergulho num mar fundo inqui-

etante e convidativo de questões portuguesas problematizadas,

não apenas do tempo das caravelas, mas também de um modo de

ser português que não se encerra naquele tempo, e mesmo de

questões complexas, atemporais e universais do ser humano ou da

humanidade.

O trabalho consistirá numa análise comparativa entre al-

gumas figuras femininas mitológicas (Vênus, Tethys e as ninfas,

incluindo a nereirda Thetis, neta de Tethys) que integram a narra-

ção diretamente feita pelo Poeta, e algumas figuras femininas

históricas (Leonor Teles e Teresa) que integram a narração feita,

entre os cantos III e V, a pedido do Rei de Melinde, pelo “valero-

so Capitão” Gama, que “conta diligente”, “da terra” sua, “o clima

e a região”, “do mundo onde mora”, “da antiga geração / e o prin-

cípio do Reino tão potente, / Cos sucessos das guerras do come-

ço”, “que são de preço” e “dos rodeios” no “Mar irado, / Vendo

os contumes bárbaros, alheios (OL, II: 109-110)”.

O paradigma de comportamento feminino adotado durante

a análise será o da mãe de Jesus, modelo de conduta feminina

para os povos ocidentais cristãos, sobretudo em Portugal, nação

européia sempre fervorosa em seu Catolicismo, principalmente

naquela época de Inquisição. A bíblica Maria certamente pautou

os comportamentos das mulheres portuguesas desde as primeiras

dinastias portuguesas, sempre cristãs, ainda mais num épico con-

cebido durante o século XVI, submetido à aprovação inquisitorial

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e escrito para exaltar a Expansão da “Fé e do Império”, promovi-

da pelo povo português, grande herói épico coletivo, representado

por Gama.

Segundo a socióloga portuguesa Silvana Mota Ribeiro, em

seu artigo “Ser Eva e dever ser Maria: paradigmas do feminino no

Cristianismo”, “podem ser identificados dois paradigmas do fe-

minino que, ao longo do tempo, vêm enquadrando a percepção

social das mulheres, contribuindo para a criação dos seus modelos

de auto-representação”: Maria e Eva, a primeira mulher e a mãe

de Cristo, “mulheres centrais na tradição católica que curiosamen-

te possuem características antagônicas”.

Estes dois paradigmas seriam, para a estudiosa, modelos de

representação que as mulheres, “secularmente, tendem a aceitar

como naturais e não como histórica e socialmente construídos”

pelos cristãos, “fixando imagens, continuamente sujeitas a pro-

cessos de sedimentação, do que a mulher é (Eva, imperfeita) e do

que deveria ser (Maria, perfeita)”, ainda que os comportamentos

femininos não possam ser nunca reduzidos a meras conseqüências

de um discurso teológico.

No épico de Camões, o modelo de perfeição feminina tam-

bém é Maria, mas aquela que poderia ser um antimodelo, no lugar

da “Eva, a primeira mulher”: Vênus, não é julgada nem condena-

da pelo Poeta e, muito menos, pelo Gama, já que nem figura na

sua narração. Desta forma, o modelo cristão de comportamento

feminino, Maria, é reforçado na fala do Gama, enquanto Vênus

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reina para além do plano terreno, fora das humanas vistas, defen-

dendo os portugueses e não lhes legando nenhum pecado original,

ousada e curiosamente. Sem falar na Ilha dos Amores, onde nin-

fas e outras entidades mitológicas femininas, “que Vênus indus-

triou para a sedução dos nautas”, são o galardão dos vitoriosos

expansionistas, levando o leitor à famosa pergunta, ressaltada

pela professora Cleonice Berardinelli, como o censor inquisitorial

“manteve isso?”.

A Bíblia, livro basilar e balizador das religiões cristãs – se-

gundo seus escritores ou profetas, inspirado por Deus, Criador do

homem e da terra –, cita Maria, como a virgem mãe de Jesus Cris-

to, filho de Deus e Messias por Ele enviado. Pouco tempo antes

da data do casamento com José, um emissário de Deus, o anjo

Gabriel, teria aparecido para Maria, anunciando que, por um mi-

lagre de Deus, ela seria a mãe do Messias (“Ora, o nascimento de

Jesus Cristo foi assim: estando Maria, sua mãe, desposada com

José, sem que tivessem antes coabitado, achou-se grávida pelo

Espírito Santo”, Mateus 1:18) ao que se submeteu e conformou,

mesmo sabendo que poderia sofrer com isso:

No sexto mês, foi o anjo Gabriel enviado, da parte de Deus, para uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com certo homem da casa de Davi, cujo nome era José; a virgem chamava-se Maria. (...) Então, disse Maria ao anjo: Como será isto, pois não tenho relação com homem al-gum? Respondeu-lhe o anjo: Descerá sobre ti o Espírito San-to, e o poder do Altíssimo te envolverá com a sua sombra; por isso, também o ente santo que há de nascer será chamado Fi-lho de Deus. (...) Então, disse Maria: Aqui está a serva do Se-

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nhor; que se cumpra em mim conforme a tua palavra. E o an-jo se ausentou dela. (Lucas 1:26-38)

Sempre disposta a sacrificar-se pelos outros, cumpriu a

vontade de Deus (“Então, disse Maria: A minha alma engrandece

ao Senhor, e o meu espírito se alegrou em Deus, meu Salvador”,

Lucas 1:46-47), acompanhou o Filho durante o Calvário, perma-

necendo com Ele junto da Cruz, sofrendo sempre resignadamente:

“E junto à cruz estavam a mãe de Jesus, e a irmã dela, e Maria,

mulher de Clopas, e Maria Madalena.” (João 19:25)

Submissa, abnegada e penitente, Maria viveu para Deus,

para a religião, para o filho, para os outros, não para si: “Tendo

acabado o vinho, a mãe de Jesus lhe disse: Eles não têm mais

vinho. Mas Jesus lhe disse: Mulher, que tenho eu contigo? Ainda

não é chegada a minha hora. Então, ela falou aos serventes: Fazei

tudo o que ele vos disser.” (João 2:3-5).

Maria se demonstra, quase sempre, mansa, pacífica, passi-

va, introspectiva, meditativa, calada, ouvindo mais do que falan-

do, pedindo sempre mais pelos outros do que por si mesma: “Ma-

ria, porém, guardava todas estas palavras, meditando-as no cora-

ção.” (Lucas 2:19).

Sua forma de resistência é, quase sempre, a oração a Deus,

para que Ele interceda e aja por ela: “Todos estes perseveravam

unânimes em oração, com as mulheres, com Maria, mãe de Jesus,

e com os irmãos dele.” (Atos 1:14).

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A ação de Maria é, quase sempre, forma de penitência para

si e de levar consolação e alento ao outro, cumprindo, em ambos

os casos, a vontade de Deus (e do Filho), que é a sua vontade:

“seja feita a Vossa Vontade”.

A mãe de Jesus é a mulher ideal porque abdica de sua por-

ção humana e carnal, porque divina e idealizada na Bíblia, repre-

sentando sofrimento contido, pobreza, abnegação, caridade, dedi-

cação ao próximo, passividade, submissão à figura masculina

(Deus, marido, filho...), fervor religioso, conformação, assexuali-

dade, afetividade...

Maria é exatamente o que se espera da mulher lusíada, que

abra mão de sua porção carnal em prol da espiritualidade, da ma-

ternidade, da família. Ela deve retirar-se da ação e da vida, exis-

tindo apenas para servir a Deus e ao próximo: pai, marido, fi-

lhos... Por isso deve ser casta, religiosa, submissa, penitente, cari-

dosa, abnegada, transcendente. Da mulher espera-se, pois, que

abdique das características que fazem dela humana: sexo, orgu-

lho, vaidade, ambição, indignação...

Em “Os Lusíadas”, as mulheres que mais se aproximaram

do comportamento da mãe de Jesus são as mais louvadas: cristãs

fervorosas, abnegadas, penitentes, boas esposas, boas filhas e

mães dedicadas. Conseqüentemente, as mulheres do Restelo, Le-

onor Sepúlveda e D. Felipa são as mais exaltadas, seguidas da

Formosíssima Maria.

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As esposas históricas (humanas) que foram maculadas pela

infidelidade conjugal ou pela concupiscência, por isso já se dis-

tanciam mais do padrão cristão da Maria, tornando-se assim as

mais execradas. Entre aquelas que foram amantes, destaca-se Inês

de Castro que, por sua fidelidade ao príncipe, seu “puro amor”,

sua delicadeza, sua preocupação maternal com os filhos, seu so-

frimento, expiação e “morte crua”, acaba defendida no épico e

escapa à execração.

Entretanto, Teresa (que é vista de maneira mais positiva em

“Mensagem”, de Fernando Pessoa, no século XX) e, ainda mais,

Leonor são severamente condenadas em “Os Lusíadas”, pelo

narrador Vasco da Gama, por causa de seus comportamentos dis-

crepantes ao padrão cristão. Ambas colocaram a coroa e a sobera-

nia portuguesa em risco, por causa da sede de poder e de bens,

sem falar no fato de não ter a primeira abdicado em favor do filho

(motivo de ter sido chamada “Ó Progne crua, ó mágica Medéia”

no épico) e o fato de a segunda, Leonor Teles (comparada a Cleó-

patra e a “um vulto de Medusa”), ter abandonado o marido para

viver com o Rei Fernando, contrariando a vontade do povo e bur-

lando as leis católicas (“pecado / De tirar Lianor a seu marido”),

fato que rendeu a ela o ódio popular.

As personagens femininas serão mais ou menos exaltadas

também em função do serviço prestado à Pátria Portuguesa, ao

Rei, à Igreja Católica, entre outros fatores:

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Vênus maior distanciamento do padrão cristão Tethys Ninfas (e Thetis) Leonor Amantes Teresa Inês Maria Felipa Esposas Leonor Sepúlveda Mulheres do Restelo

maior aproximação Virgem Maria do padrão cristão

Por ora, as figuras femininas que mais se distanciam do pa-

drão cristão, ou seja, as mitológicas e as humanas execradas darão

matéria a este trabalho, ficando as figuras exaltadas pelo Gama e

os comportamentos que mais se aproximam do modelo feminino

cristão para outra oportunidade.

Amantes sobrenaturais.

Ao contrário do que prega a religião católica para o com-

portamento feminino, Vênus vive intensa e impulsivamente, de

nada se privando. Serve-se fartamente da carnalidade e da huma-

nidade, apesar de ser uma deusa. Não se reprime sexualmente,

tendo vários amantes e filhos fora do casamento, é passional,

impulsiva, explosiva, ambiciosa, vaidosa, etc.

Mas Marte, que da Deusa sustentava Entre todos as partes em porfia, Ou porque o amor antigo o obrigava, Ou porque a gente forte o merecia, De antre os Deuses em pé se levantava:

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Merencório no gesto parecia; O forte escudo, ao colo pendurado, Deitando pera trás, medonho e irado; (OL: I,36)

Insubmissa, caprichosa, mimada, dissimulada e manipula-

dora, chega a usar sua sensualidade a serviço de seus “interesses

políticos” ou como arma para convencer o pai a acatar seus capri-

chos.

E, por mais namorar o soberano Padre, de quem foi sempre amada e cara, Se lh'apresenta assi como ao Troiano, Na selva Ideia, já se apresentara. (...) Cum delgado cendal as partes cobre De quem vergonha é natural reparo; Porém nem tudo esconde nem descobre O véu, dos roxos lírios pouco avaro; Mas, pera que o desejo acenda e dobre, Lhe põe diante aquele objecto raro. Já se sentem no Céu, por toda a parte, Ciúmes em Vulcano, amor em Marte. E mostrando no angélico sembrante Co riso üa tristeza misturada, Como dama que foi do incauto amante Em brincos amorosos mal tratada, Que se aqueixa e se ri num mesmo instante E se torna entre alegre, magoada, Destarte a Deusa a quem nenhüa iguala, Mais mimosa que triste ao Padre fala: (...) “Mas moura enfim nas mãos das brutas gentes, Que pois eu fui.” E nisto, de mimosa, O rosto banha em lágrimas ardentes, Como co orvalho fica a fresca rosa. (...)

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As lágrimas lhe alimpa e, acendido, Na face a beija e abraça o colo puro; De modo que dali, se só se achara, Outro novo Cupido se gerara (OL: II 35-42)

É a “mestra experta”, professora nas artes do sexo, da pai-

xão e da luxúria. Constitui-se, portanto, num modelo de concu-

piscência”: a amante ideal.

Nesta frescura tal desembarcavam Já das naus os segundos Argonautas, Onde pela floresta se deixavam Andar as belas Deusas, como incautas. Algüas, doces cítaras tocavam; Algüas, harpas e sonoras frautas; Outras, cos arcos de ouro, se fingiam Seguir os animais, que não seguiam. Assi lho aconselhara a mestra experta: Que andassem pelos campos espalhadas; Que, vista dos barões a presa incerta, Se fizessem primeiro desejadas. Algüas, que na forma descoberta Do belo corpo estavam confiadas, Posta a artificiosa fermosura, Nuas lavar se deixam na água pura.

(OL: IX, 64-65)

Mostra-se negligente na criação e na educação dos filhos,

já que deixa Cupido vagar nu, cometendo travessuras com seu

arco e ainda explora-o e envolve-o em seus “atos pouco canôni-

cos”.

Ali quer que as aquáticas donzelas Esperem os fortíssimos barões (Todas as que têm título de belas,

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Glória dos olhos, dor dos corações) Com danças e coreias, porque nelas Influirá secretas afeições, Pera com mais vontade trabalharem De contentar a quem se afeiçoarem. Tal manha buscou já pera que aquele Que de Anquises pariu, bem recebido Fosse no campo que a bovina pele Tomou de espaço, por sutil partido. Seu filho vai buscar, porque só nele Tem todo seu poder, fero Cupido, Que, assi como naquela empresa antiga A ajudou já, nestoutra a ajude e siga.

(OL: IX, 22-23)

Vênus usa qualquer um que puder em suas tramas, como

faz com as ninfas:

“- Estas obras de Baco são, por certo (Disse), mas não será que avante leve Tão danada tenção, que descoberto Me será sempre o mal a que se atreve.” Isto dizendo, dece ao mar aberto, No caminho gastando espaço breve, Enquanto manda as Ninfas amorosas Grinaldas nas cabeças pôr de rosas. Grinaldas manda pôr de várias cores Sobre cabelos louros a porfia. Quem não dirá que nacem roxas flores Sobre ouro natural, que Amor enfia? Abrandar determina, por amores, Dos ventos a nojosa companhia, Mostrando-lhe as amadas Ninfas belas, Que mais fermosas vinham que as estrelas. (...) Desta maneira as outras amansavam Subitamente os outros amadores;

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E logo à linda Vénus se entregavam, Amansadas as iras e os furores. Ela lhe prometeu, vendo que amavam, Sempiterno favor em seus amores, Nas belas mãos tomando-lhe homenagem De lhe serem leais esta viagem.

(OL: VI: 86-91)

Ama demais aos portugueses, no épico, e não mede conse-

qüências para proteger seus amores da vez, é intensa, mas é

egoísta, avaliando tudo pelo lado da vantagem. Até a afeição aos

portugueses que pode parecer, a primeira vista, uma demonstra-

ção sincera de afetividade, revela-se como um jogo de interesses.

Na verdade, Vênus defende-os visionando possibilidades futuras

de aumento na sua idolatria e na difusão do culto de sua imagem

entre os humanos através das terras conquistadas pelos lusitanos.

Sustentava contra ele Vénus bela, Afeiçoada à gente Lusitana Por quantas qualidades via nela Da antiga, tão amada, sua Romana; Nos fortes corações, na grande estrela Que mostraram na terra Tingitana, E na língua, na qual quando imagina, Com pouca corrupção crê que é a Latina Estas causas moviam Citereia E mais, porque das Parcas claro entende Que há-de ser celebrada a clara Deia Onde a gente belígera se estende. Assi que, um, pela infâmia que arreceia, E o outro, pelas honras que pretende, Debatem, e na perfia permanecem; A qualquer seus amigos favorecem.

(OL: I, 33-34)

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Assim, Vênus mostra-se o contraponto da Virgem Maria. O

avesso dos padrões cristãos de mãe, de esposa, de filha e de mu-

lher. A Deusa mostra-se como uma espécie de conjunto dos ví-

cios femininos e humanos.

A Tethys, avó das ninfas, é a amante do Gama na ilha dos

amores e aquela que lhe descortina o conhecimento sobre a Má-

quina do Mundo e o futuro dos portugueses. Assim, aproxima-se

mais de Vênus do que as ninfas, tanto por tratar-se de uma esposa

(de Oceano) infiel; quanto por ser uma deusa (em algumas inter-

pretações a própria Vênus materializada), logo mais poderosa e

sábia do que as outras entidades mitológicas.

üa delas, maior, a quem se humilha Todo o coro das Ninfas e obedece, Que dizem ser de Celo e Vesta Filha, O que no gesto belo se parece, Enchendo a terra e o mar de maravilha, O capitão ilustre, que o merece, Recebe ali com pompa honesta e régia, Mostrando-se senhora grande e egrégia.

(OL: IX, 85)

Observa-se, entretanto, que seu comportamento é menos

extravagante e egoísta do que o da passional filha de Júpiter. Te-

thys demonstra-se mais serena, companheira e menos dissimulada

do que Vênus, talvez porque a situação não desperte nela outros

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interesses. O fato é que o relacionamento do casal baseia-se em

certo companheirismo e amizade.

Que, despois de lhe ter dito quem era, Cum alto exórdio, de alta graça ornado, Dando-lhe a entender que ali viera Por alta influição do imóbil fado, Pera lhe descobrir da unida esfera Da terra imensa e mar não navegado Os segredos, por alta profecia, O que esta sua nação só merecia, Tomando-o pela mão, o leva e guia Pera o cume dum monte alto e divino, No qual üa rica fábrica se erguia, De cristal toda e de ouro puro e fino. A maior parte aqui passam do dia, Em doces jogos e em prazer contino. Ela nos paços logra seus amores, As outras pelas sombras, entre as flores. Assi a fermosa e a forte companhia O dia quási todo estão passando Nüa alma, doce, incógnita alegria, Os trabalhos tão longos compensando. Porque dos feitos grandes, da ousadia Forte e famosa, o mundo está guardando O prémio lá no fim, bem merecido, Com fama grande e nome alto e subido.

(OL: IX, 86-8)

Ela não se presta apenas a saciar a fome sexual do Gama,

também a de conhecimento e a de afeto são satisfeitas pela aman-

te. Entretanto, essa afeição não é profunda, não é um amor verda-

deiro, mas uma parceria, uma amizade, um companheirismo,

aliados à paixão carnal.

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Assim, Tethys demonstra-se uma amante com todos os fer-

vores que apetecem um relacionamento sexual, mas apresenta

alguns traços de envolvimento sentimental com o parceiro, que a

afastam um pouquinho da Vênus egoísta, fútil e volúvel.

As ninfas são ainda aprendizes nas artimanhas do amor e

do sexo. Entretanto, como a avó Tethys, obedecem aos desígnios

da deusa da beleza e do sexo.

E pera isso queria que, feridas As filhas de Nereu no ponto fundo, D'amor dos Lusitanos incendidas Que vêm de descobrir o novo mundo, Todas nüa ilha juntas e subidas, (Ilha que nas entranhas do profundo Oceano terei aparelhada, De dões de Flora e Zéfiro adornada); Ali, com mil refrescos e manjares, Com vinhos odoríferos e rosas, Em cristalinos paços singulares, Fermosos leitos, e elas mais fermosas; Enfim, com mil deleites não vulgares, Os esperem as Ninfas amorosas, D'amor feridas, pera lhe entregarem Quanto delas os olhos cobiçarem.

(OL: IX, 40-41)

São insubmissas ao homem e ativas, diferentemente do pa-

drão marial, já que são as verdadeiras caçadoras no ritual amoro-

so, as verdadeiras sedutoras, apesar de deixarem o homem se

julgar o dono das iniciativas.

Assi lho aconselhara a mestra experta:

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Que andassem pelos campos espalhadas; Que, vista dos barões a presa incerta, Se fizessem primeiro desejadas. Algüas, que na forma descoberta Do belo corpo estavam confiadas, Posta a artificiosa fermosura, Nuas lavar se deixam na água pura. (...) Fugindo as Ninfas vão por entre os ramos, Mas, mais industriosas que ligeiras, Pouco e pouco, sorrindo e gritos dando, Se deixam ir dos galgos alcançando De üa os cabelos de ouro o vento leva, Correndo, e da outra as fraldas delicadas; Acende-se o desejo, que se ceva Nas alvas carnes, súbito mostradas. üa de indústria cai, e já releva, Com mostras mais macias que indinadas, Que sobre ela, empecendo, também caia Quem a seguiu pela arenosa praia. Outros, por outra parte, vão topar Com as Deusas despidas, que se lavam; Elas começam súbito a gritar, Como que assalto tal não esperavam; üas, fingindo menos estimar A vergonha que a força, se lançavam Nuas por entre o mato, aos olhos dando O que às mãos cobiçosas vão negando; Outra, como acudindo mais depressa À vergonha da Deusa caçadora, Esconde o corpo n'água; outra se apressa Por tomar os vestidos que tem fora. Tal dos mancebos há que se arremessa, Vestido assi e calçado (que, co a mora De se despir, há medo que inda tarde) A matar na água o fogo que nele arde. Qual cão de caçador, sagaz e ardido,

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Usado a tomar na água a ave ferida, Vendo [ò] rosto o férreo cano erguido Pera a garcenha ou pata conhecida, Antes que soe o estouro, mal sofrido Salta n'água e da presa não duvida, Nadando vai e latindo: assi o mancebo Remete à que não era irmã de Febo.

(OL: IX, 65-74)

São fingidas, porque simulam pudores e desinteresses que

não sentem, incandescendo mais o jogo sexual. Entretanto, não

são tão manhosas quanto à mestra Vênus, pois elas não estão ape-

nas usando os homens para obterem vantagens, realmente apaixo-

naram-se, devido às flechadas que sofreram do Cupido. Estão,

neste momento, desfrutando de sua sexualidade sem segundas

intenções a não ser o próprio deleite. Assim, elas são capazes de

manifestar sentimentos sinceros, diferentemente da egoísta Vê-

nus, e assemelhando-se à avó neste ponto, só que sem o saber

vasto que esta tem para oferecer ao parceiro.

No entanto, é difícil saber quando fingem e quando são sin-

ceras, são capazes de fingir com facilidade, como a professora

Vênus, por vezes usando sua sensualidade por interesse, sobretu-

do para ajudar a mestra:

Abrandar determina, por amores, Dos ventos a nojosa companhia, Mostrando-lhe as amadas Ninfas belas, Que mais fermosas vinham que as estrelas. Assi foi; porque, tanto que chegaram À vista delas, logo lhe falecem

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As forças com que dantes pelejaram, E já como rendidos lhe obedecem; Os pés e mãos parece que lhe ataram Os cabelos que os raios escurecem. (...) Desta maneira as outras amansavam Subitamente os outros amadores; E logo à linda Vénus se entregavam, Amansadas as iras e os furores. Ela lhe prometeu, vendo que amavam, Sempiterno favor em seus amores, Nas belas mãos tomando-lhe homenagem De lhe serem leais esta viagem.

(OL: VI: 87-91)

Assim, se por um lado, como a Tethys, não se resumem a

saciar apenas o apetite sexual dos portugueses, mas demonstram

também alguma afeição pelos parceiros, distanciando-se de Vênus

neste ponto. Por outro lado, aproximam-se da mestra, pela capa-

cidade de lançar mão da sexualidade com outros objetivos. Logo,

em matéria de distanciamento do padrão cristão, elas só ficam

abaixo da Vênus, o próprio antimodelo, e da Tethys, mais experi-

ente, mais altiva e mais poderosa do que as jovens ninfas.

A Thetis, esposa de Peleu, uma das nereidas netas da Te-

thys, fica abaixo das anteriores por que, apesar de apresentar be-

leza e sensualidade capazes de enlouquecer de paixão o Adamas-

tor, ela é fria, dura e insensível como um penedo, não apresentan-

do o fervor sensual das anteriores nem a capacidade de fingir por

interesse.

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Amores da alta esposa de Peleu Me fizeram tomar tamanha empresa; Todas as Deusas desprezei do Céu, Só por amar das águas a Princesa. Um dia a vi, co as filhas de Nereu, Sair nua na praia e logo presa A vontade senti de tal maneira Que inda não sinto cousa que mais queira. Como fosse impossíbil alcançá-la, Pola grandeza feia de meu gesto, Determinei por armas de tomá-la E a Dóris este caso manifesto. De medo a Deusa então por mi lhe fala; Mas ela, cum fermoso riso honesto, Respondeu: - “Qual será o amor bastante De Ninfa, que sustente o dum Gigante? Contudo, por livrarmos o Oceano De tanta guerra, eu buscarei maneira Com que, com minha honra, escuse o dano.”

(OL: V, 52-4)

Além disso, não lhe agradou o fato de manter um romance

extraconjugal com o Adamastor, demonstrando uma preocupação

com a “honra” que as outras entidades mitológicas sequer cogita-

ram.

A sinceridade é outro afastamento que esta ninfa apresenta

em relação ao paradigma da amante. Enquanto Vênus e as outras

ninfas usam voluntária e maquiavelicamente sua sensualidade

para obter vantagens, esta usou-a por falta de opção e ainda fez

questão de deixar a contrariedade bem visível.

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Já néscio, já da guerra desistindo, üa noite, de Dóris prometida, Me aparece de longe o gesto lindo Da branca Tétis, única, despida. Como doudo corri de longe, abrindo Os braços pera aquela que era vida Deste corpo, e começo os olhos belos A lhe beijar, as faces e os cabelos. Oh que não sei de nojo como o conte! Que, crendo ter nos braços quem amava, Abraçado me achei cum duro monte De áspero mato e de espessura brava. Estando cum penedo fronte a fronte, Qu'eu polo rosto angélico apertava, Não fiquei homem, não; mas mudo e quedo E, junto dum penedo, outro penedo! Ó Ninfa, a mais fermosa do Oceano, Já que minha presença não te agrada, Que te custava ter-me neste engano, Ou fosse monte, nuvem, sonho ou nada? Daqui me parto, irado e quási insano Da mágoa e da desonra ali passada, A buscar outro mundo, onde não visse Quem de meu pranto e de meu mal se risse.

(OL: V, 55-58) (grifos nossos)

A indiferença de Thetis em relação ao Adamastor pode se

dar em função da violência sofrida. O fato de o gigante impô-la o

relacionamento, ameaçando-a de usar a força bruta para obtê-la,

não deixa outra saída para a ninfa, senão entregar-se sem vontade.

A incorrespondência amorosa é outro fator que pode ter desenca-

deado a indiferença na ninfa.

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Tethis, portanto, quanto à afetividade distancia-se de todas

as figuras femininas anteriores, já que representa o desamor e a

ausência de paixão. Ela demonstrou-se contrária à sua avó (e às

outras ninfas), pois esta manifestara tanto a paixão (sexual) quan-

to o amor (afeto). E, apesar de aproximar-se de Vênus pela inca-

pacidade de amar, distingue-se desta pela ausência de fervor se-

xual e de paixão.

As deusas e ninfas não apresentam nenhuma ou quase ne-

nhuma aproximação com o paradigma cristão, até porque perten-

cem à cultura greco-latina, muito anterior ao Cristianismo. Por

isso e pelo serviço que estas figuras prestam aos portugueses e à

Expansão, as suas características antimariais não são combatidas

ou sequer condenadas, já que salvam os portugueses, recompen-

sam-nos e ainda promovem-nos à condição de semi-deuses, por

se acasalarem com eles.

Entretanto, por qualquer que seja o motivo, o fato de o Poe-

ta em sua narração não condenar, não punir, nem combater ne-

nhuma dessas transgressões ao paradigma feminino cristão prati-

cado pelas entidades mitológicas é ousado, inquietante, inovador

e dialético, se comparado à postura assumida pelo Gama em sua

narração dos episódios históricos portugueses, condenando vee-

mentemente atos transgressores ao paradigma feminino cristão ou

contrários aos interesses da pátria e do reino praticados por Teresa

e Leonor Teles.

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As mulheres “de carne e osso” do épico, que apresentam

comportamentos similares aos da Vênus, sofrerão toda a sorte de

críticas e condenações. O narrador Vasco da Gama manifestará

para com elas toda a impiedade que o Poeta economizara para

com as deusas e ninfas greco-latinas, não perdoando os seus afas-

tamentos do padrão marial. Por outro lado, fará questão de ressal-

tar características – quando estas existirem – que as religuem de

alguma forma ao paradigma cristão de comportamento feminino.

De todas as mulheres retratadas em “Os Lusíadas”, Leonor

Teles é a mais desqualificada pelo Gama e pelo povo português,

segundo a obra. Ela é colocada como o vício que estragou um rei,

enfraqueceu uma geração e pôs em perigo toda uma nação:

Do justo e duro Pedro nasce o brando (Vede da natureza o desconcerto!), Remisso e sem cuidado algum, Fernando, Que todo o Reino pôs em muito aperto; Que, vindo o Castelhano devastando Às terras sem defesa, esteve perto De destruir-se o Reino totalmente; Que um fraco Rei faz fraca a forte gente. Ou foi castigo claro do pecado De tirar Lianor a seu marido E casar-se com ela, de enlevado Num falso parecer mal entendido, Ou foi que o coração, sujeito e dado Ao vício vil, de quem se viu rendido, Mole se fez e fraco; e bem parece Que um baxo amor os fortes enfraquece. Do pecado tiveram sempre a pena Muitos, que Deus o quis e permitiu: Os que foram roubar a bela Helena,

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E com Ápio também Tarquino o viu. Pois por quem David Santo se condena? Ou quem o Tribo ilustre destruiu De Benjamim? Bem claro no-lo ensina Por Sarra Faraó, Siquém por Dina.

(OL: III, 138-140)

Nota-se que ela é execrada por sua permissividade sexual,

por sua postura dominadora e insubmissa, por sua dissimulação e

ardileza, por seu apego aos bens materiais, pela traição aos sagra-

dos votos do matrimônio, entre tantos outros pecados duramente

enumerados pelo Gama:

E pois, se os peitos fortes enfraquece Um inconcesso amor desatinado, Bem no filho de Almena se parece Quando em Ônfale andava transformado. De Marco António a fama se escurece Com ser tanto a Cleópatra afeiçoado. Tu também, Peno próspero, o sentiste Despois que üa moça vil na Apúlia viste. Mas quem pode livrar-se, porventura, Dos laços que Amor arma brandamente Entre as rosas e a neve humana pura, O ouro e o alabastro transparente? Quem, de üa peregrina fermosura, De um vulto de Medusa propriamente, Que o coração converte, que tem preso, Em pedra, não, mas em desejo aceso?

(OL: III, 141-2)

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Leonor chega a ser comparada à Medusa, que tornava pe-

dra quem quer que a olhasse, para se ter idéia do quão execrado

foi seu comportamento.

Assim, Gama julga como culpada esta mulher que trans-

grediu todos os itens do paradigma feminino cristão de compor-

tamento. Não apresentando nenhum contra-argumento sequer,

nenhum mísero, porém, na total desqualificação a que resumiu

Leonor, sequer a maternidade ou uma expiação amenizam sua

culpa. Pelo contrário, a absolvição de Fernando faz com que re-

caia sobre os ombros de Leonor a culpa pelos atos dos dois.

Quem viu um olhar seguro, um gesto brando, üa suave e angélica excelência, Que em si está sempre as almas transformando, Que tivesse contra ela resistência? Desculpado por certo está Fernando, Pera quem tem de amor experiência; Mas antes, tendo livre a fantasia, Por muito mais culpado o julgaria.

(OL: III, 143)

Teresa só não é tão execrada quanto Leonor porque tem,

pelo menos, a maternidade, a boa criação que dera ao príncipe e a

expiação ao fim da vida (imposta pelo próprio filho) para suavizar

as suas culpas.

Mas o velho rumor - não sei se errado, Que em tanta antiguidade não há certeza - Conta que a mãe, tomando todo o estado, Do segundo himeneu não se despreza. O filho órfão deixava deserdado,

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Dizendo que nas terras a grandeza Do senhorio todo só sua era, Porque, pera casar, seu pai lhas dera. Mas o Príncipe Afonso (que destarte Se chamava, do avô tomando o nome), Vendo-se em suas terras não ter parte, Que a mãe com seu marido as manda e come, Fervendo-lhe no peito o duro Marte, Imagina consigo como as tome: Revolvidas as causas no conceito, Ao propósito firme segue o efeito. De Guimarães o campo se tingia Co sangue próprio da intestina guerra, Onde a mãe, que tão pouco o parecia, A seu filho negava o amor e a terra. Co ele posta em campo já se via; E não vê a soberba o muito que erra Contra Deus, contra o maternal amor; Mas nela o sensual era maior. Ó Progne crua, ó mágica Medeia! Se em vossos próprios filhos vos vingais Da maldade dos pais, da culpa alheia, Olhai que inda Teresa peca mais! Incontinência má, cobiça feia, São as causas deste erro principais: Cila, por üa mata o velho pai; Esta, por ambas, contra o filho vai. Mas já o Príncipe claro o vencimento Do padrasto e da inica mãe levava; Já lhe obedece a terra, num momento, Que primeiro contra ele pelejava; Porém, vencido de ira o entendimento, A mãe em ferros ásperos atava; Mas de Deus foi vingada em tempo breve. Tanta veneração aos pais se deve!

(OL: III, 29-33)

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A rainha é comparada a Medeia, feiticeira capaz de matar

os próprios filhos por vingança ao marido, por tramar contra o

príncipe, seu filho, para tomar o poder.

O Gama também a taxa de sensual, permissiva e ganancio-

sa, por ter se casado novamente após a viuvez, encontrando no

novo marido um aliado na luta pelo trono. Fatos estes que põem

em risco a independência do então Condado Portucalense.

Assim, Teresa aproxima-se de Vênus por inúmeros fatores,

como sua insubmissão à figura masculina (do filho), sua ganância

e desejo de poder, sua sensualidade e permissividade, entre ou-

tros. Mas expia parte de sua culpa através do castigo impingido

pelo filho e da obediência ao padrão durante a juventude, em que

foi submissa ao marido, boa mãe (pois criou um homem educado,

corajoso e forte).

Observa-se que tanto Teresa quanto Leonor, as duas mulhe-

res mais execradas da obra, são relacionadas a dois dos traumas

fundadores da nação portuguesa. Teresa foi pivô da batalha de

São Mamede, em que Afonso Henriques lutou contra a Espanha,

que queria reanexar o condado ao seu território, fundando Portu-

gal, como nação independente. A outra motivou a batalha de Al-

jubarrota, na qual D. João saiu vitorioso fundando a dinastia de

Avis. Em ambas também a ameaça feminina desvirtuada sai der-

rotada.

Na narração que Vasco da Gama faz ao Rei de Melinde,

n’Os Lusíadas, observa-se por um lado a condenação aos

comportamentos (e às figuras femininas) que transgridem e se

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portamentos (e às figuras femininas) que transgridem e se afastam

do modelo exemplar da Virgem Maria bíblica, mãe de Jesus. Com

isso, desvaloriza-se e deslouva-se mais aquelas que mais se afas-

tam do ideal feminino cristão, ao demonstrarem postura insub-

missa (à religião, ao marido, ao filho, ao Rei, ao destino...), ofen-

siva, inconformada, sensual, presas aos bens materiais e ao deleite

carnal, indispostas ao sacrifício, à caridade e ao penar no plano

terreno; indispostas à dedicação exclusiva à família e à religião;

vigorosas, ativas e dispostas a lutar pela sua independência, auto-

nomia e objetivos individuais a qualquer custo.

Aliás, Vasco condena essa postura feminina também por-

que ela se mostra bastante inconveniente aos ideais (não apenas

cristãos, mas também) expansionistas, para que a evasão masculi-

na para as conquistas ultramarinas ocorresse com mais concentra-

ção e força, pela confiança em que as esposas permaneceriam

fiéis, abnegadas, defensoras dos interesses masculinos (e do Rei,

da propriedade, da família...).

A presença de figuras femininas mais ou menos transgres-

soras no épico, mais ou menos distantes do padrão cristão aponta

para o fato de que as fôrmas e modelos sócio-culturais e/ou reli-

giosos não agem da mesma maneira nem com a mesma intensida-

de sobre todas as personagens. A presença dessas figuras ousadas

revela também que a transformação (a inovação e/ou algum pro-

gresso) sempre se processa, perturbando ainda que lentamente a

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ordem estabelecida ou mantida através de paradigmas e institui-

ções.

O fato de Vasco da Gama em sua narração, louvar as figu-

ras que se aproximam do paradigma cristão e deslouvar os com-

portamentos que dele se distanciam, também não significa que a

obra simplesmente reproduza a ideologia dominante. Aliás, pelo

contrário, na narração do Poeta, diferentemente do que ocorre na

narração do Gama, figuras femininas com comportamentos muito

mais ousados do que quaisquer das figuras femininas históricas,

como a Vênus e as ninfas, transgridem o padrão cristão e não são

diretamente condenadas (ou punidas) por isso, até porque não

fazem parte do universo cristão. Assim, o épico genial de Camões

se mostra sempre bastante dialético, inovador e muito menos

convencional do que se poderia esperar de uma obra que passou

pelo fulminante olhar inquisitorial.

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