artur de azevedo - o espírito

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    O caso que vou contar passou-se h um bom par de anos,quando no Rio de Janeiro o espiri smo no nha ainda o carter deseriedade nem os ilustres proslitos que hoje tem, mas comeava aocupar a ateno e a roubar o tempo a algumas pessoas de boa f.

    Entre essas gurava o Garcia, bom homem, cujo nico defeitoera ser fraco de inteligncia, defeito que todos lhe perdoavam porno ser culpa dele.

    O nosso heri no se empregava absolutamente noutra coisaque no fosse comer, beber, dormir e trocar as pernas pela cidade.Tinha herdado dos pais o su ciente para levar essa vida folgada emilagrosa, e s gastava o rendimento do seu patrimnio.

    Casara-se com d. Laura que, no sendo formosa que o inquie -tasse, nem feia que lhe repugnasse, era mais inteligente e instrudaque ele. Esta superioridade dava-lhe certo ascendente, de que ela

    usava e abusava no lar doms co, onde s a sua vontade e a suaopinio prevaleciam sempre.O Garcia no se revoltava contra a passividade a que era sub -

    me do pela mulher: reconhecia que d. Laura nha sobre ele gran -des vantagens intelectuais e, se era honesta e el aos seus deveres

    O Esprito

    Artur de Azevedo

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    conjugais, que lhe importava a ele o resto?Sim, que d. Laura j no lembrava do Frederico...Quem era esse Frederico? Um elegante guarda-livros, que a

    namorava quando o Garcia apareceu iluminado pela sua aurola de

    capitalista, pondo-o imediatamente fora de combate.Ou fosse para melhorar de situao ou porque realmente o

    magoasse a vitria fcil do dinheiroso rival, o guarda-livros, ainda d.Laura no se nha casado, mudara-se para So Paulo, e nunca maissouberam dele, nem ela, nem o Garcia.

    Num dia em que este, ano e meio depois de casado, pergun -tou, a gracejar, pelo primeiro namorado de sua mulher, d. Laura, nogeneroso intuito de o tranquilizar, respondeu, simulando indiferen -a:

    No sei... Parece que morreu... Morreu?... Pelo menos disseram-me que sim... em So Paulo... No

    sei ao certo, nem isso me interessa.Por esse tempo j o Garcia nha sido iniciado, por algum ami-

    go, nos mistrios do espiri smo, e fazia parte de um grupo, um dosprimeiros que organizaram nesta cidade, para estudar os fenme -nos revelados nos livros de Allan-Kardec.

    Os associados reuniam-se todos os sbados para consultar amesa giratria, evocar espritos e conversar com defuntos clebres.Produziam-se, realmente, alguns fenmenos, que impressionaramprofundamente o esprito dbil de Garcia, a ponto de fazer com queele no pensasse mais noutra coisa a no ser em almas de outromundo.

    Tinha o nosso esprita grande curiosidade de evocar por meiode tal mesa giratria o esprito de Frederico, apenas para veri carse estava morto o seu an go rival; abs nha-se, porm, de o fazerpelo receio de que os colegas do grupo, sabendo do namoro da suamulher, o tomassem por ciumento e ridculo.

    Mas uma noite, em que a sesso ainda no comeara, e esta -vam presentes apenas dois companheiros, que mal o conheciam, oGarcia pediu-lhes que o ajudassem a evocar o esprito de um amigo.

    Os outros aquiesceram. Sentaram-se os trs e espalmaram as

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    mos sobre uma pequena mesa de trs ps, que em poucos minu -tos comeou a mexer-se como um ser animado.

    Est presente o esprito que evoquei? - perguntou o Garciaem voz sinistra e cavernosa. - Se est presente, d duas pancadas!

    A mesa inclinou-se duas vezes, e obedeceu. Faa o favor de dizer o seu nome por letras do alfabeto! -

    con nuou o Garcia no mesmo tom.A mesa deu seis pancadas. F - disseram os dois companheiros. Adiante!A mesa deu dezoito pancadas. R - repe ram os espritas. Adiante!A mesa deu cinco pancadas. E - explicou um dos trs. F, R, E - disse o outro.E em tom de comando, acrescentou: Se Frederico, d uma pancada forte!A mesa deu uma pancada to violenta, que par u a perna.O Garcia ergueu-se lvido e assombrado, gaguejando: Estou sa sfeito. Mesmo porque preciso consertar a mesa - concluiu um

    dos companheiros. Com duas pernas impossvel faz-la trabalhar.O que preocupava o grupo j no eram os espritos invisveis

    nem os fenmenos da mesa, que se poderiam atribuir a simplesefeitos do magne smo animal; o que todos ali desejavam era verum esprito materializado, e para isso nham empregado grandesesforos, mas sempre vos.

    Nessa ocasio estavam presentes no Rio de Janeiro no s oesprito como o corpo, em carne e osso, do Frederico, vindo de SoPaulo para tratar de um negcio urgente, de trs a quatro dias.

    Apesar da pressa que trazia, o guarda-livros achou um mo -mento disponvel para passar pela casa do Garcia, na esperanade ver - apenas ver - d. Laura. Poupem-me os leitores explicar-lhescomo no s a viu, como lhe falou; e at entrou para a sala..

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    O caso que, naquela noite, a mesma da evocao, voltandoo Garcia para os seus penates mais cedo que de costume, pois quea sesso no se realizara por falta de nmero, encontrou o Frede -rico no corredor, saindo para a rua, e cou to estupefato que o

    deixou sair sem lhe dirigir a palavra.O pobre-diabo foi direto ao quarto de sua mulher, que, ouvin -

    do-lhe os passos apressados, se sentara mais que depressa numacadeira de balano, a ler um livro, ngindo a maior tranquilidade.

    Que quer isto dizer? Isto qu? Esse homem que acaba de sair daqui? Um homem?! Daqui?! Tu estas doido!... Oh, senhora! Pois no esteve aqui um homem? Ests doido, repito. Eu vi-o! No podias ter visto. Vi-o, e era o Frederico!D. Laura soltou uma risada. Ora o Frederico! Um morto! Olha, sabes que mais? O tal

    espiri smo transtorna-te o miolo! O melhor deixares-te disso!O Garcia pensou: Um morto... Sim, ele est morto... e ele ento materiali -

    zou-se para aparecer-me... No foi outra coisa!No sbado seguinte, o Garcia apareceu radiante ao grupo: Meus amigos, tenho que lhes fazer uma comunicao mui -

    to importante: sou mdium vidente! Deveras? - exclamaram todos em coro. o que lhes digo! Sbado passado, ao entrar em casa, en -

    contrei no corredor uma pessoa que morreu em so Paulo. Conte-nos isso - ordenou o presidente do grupo - Voc no

    teve medo? Eu? Nenhum! O esprito, sim, o esprito que, pelos mo-

    dos, teve medo de mim, porque assim que me viu deitou a fugir...