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Humilhação social: humilhação política 1  José Moura Gonçalves Filho Professor e pesquisador Departamento de Psicologia Social e do Trabalho Instituto de Psicologia - USP  In: de Paula Souza, Beatriz (org). Orientação à queixa escolar . São Paulo, Casa do Psicólogo, 2007. Quando dizemos humilhação social, evocamos uma força que, para ter sido montada, pediu concurso de muitos atores. Nunca um só protagonista que a tivesse aplicado, nunca uma só vítima que a tivesse sofrido. Há ao menos dois ingredientes que obrigam a discussão propriamente política do problema. Humilhação social é fenômeno de tempo longo. E é fenômeno ligado à dominação. Humilhação social é o rebaixamento que atinge alguém só depois de haver ancestralmente atingido sua família ou raça, sua casa ou bairro, seu grupo ou classe, às vezes uma nação ou povos inteiros. Humilhação e sociedade Humilhação é palavra de raiz latina. Na língua dos antigos romanos, humus é nome para a terra.  Humiliatio (humilhação) dividiu-se entre o suave sentido de abaixar ou trazer para perto da terra e aquele outro de abater ou rebaixar, fazer cair por terra, pôr abaixo. Este último sentido foi que predominou: a humilhação como um ataque. É possível pensá-la como golpe aplicado por coisas, bichos ou por desastres naturais. Mas a palavra suscitou sobretudo a idéia de ofensa desferida por alguém contra alguém. A palavra assumiu muito cedo, senão já inauguralmente, um sentido moral: a ação pela qual alguém põe um outro como inferior, abordando-o soberbamente. O fenômeno, assim indicado, é decididamente social: o humilhado supõe o soberbo, o soberbo supõe o humilhado. 2  1  O que diremos neste capítulo é parte do que nos foi exigido pela Vila Joanisa , um bairro proletário na periferia sul de São Paulo, vizinhando Diadema. Foram 18 anos de colaboração, convívio e conversa com joanisenses, dos quais ainda trago a assídua amizade de Natil, Rose, Nilson e Léia. A pesquisa também decorreu do caríssimo laço com Ecléa Bosi e Gilberto Safra. E o leitor ainda notará o recurso a Étienne de La Boétie, Hannah Arendt e Emmanuel Lévinas, Jean Laplanche e Donald Woods Winnicott, um recurso sempre precedido pela inspiração de Simone Weil, quem primeiro e textualmente afirmou a humilhação como o mais radical dos sofrimentos proletários. 2  É de observar que o emprego positivo da palavra ocorre quando referido ao bem da humildade, nome também derivado do latino humus. Humildade é modéstia, simplicidade, reverência diante de deus ou dos deuses, deferência diante do próximo. É sagrado respeito por divindades e humanos, qualidade própria de quem não se eleva diante de seus pares e menos ainda diante de espíritos altíssimos. Humilhação, então, vai indicar o ato de tornar-se ou manter-se humilde, em nível da terra, abaixo do céu e em mesma altura com os outros humanos. O leitor repare que nas expressões humilhação social ou humilhação política contrariamos o sentido benfazejo: pensamos o fenômeno da

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  • Humilhao social: humilhao poltica1

    Jos Moura Gonalves Filho Professor e pesquisador

    Departamento de Psicologia Social e do Trabalho Instituto de Psicologia - USP

    In: de Paula Souza, Beatriz (org). Orientao queixa escolar. So Paulo, Casa do Psiclogo, 2007.

    Quando dizemos humilhao social, evocamos uma fora que, para ter sido montada, pediu concurso de muitos atores. Nunca um s protagonista que a tivesse aplicado, nunca uma s vtima que a tivesse sofrido. H ao menos dois ingredientes que obrigam a discusso propriamente poltica do problema. Humilhao social fenmeno de tempo longo. E fenmeno ligado dominao. Humilhao social o rebaixamento que atinge algum s depois de haver ancestralmente atingido sua famlia ou raa, sua casa ou bairro, seu grupo ou classe, s vezes uma nao ou povos inteiros.

    Humilhao e sociedade

    Humilhao palavra de raiz latina. Na lngua dos antigos romanos, humus nome para a terra. Humiliatio (humilhao) dividiu-se entre o suave sentido de abaixar ou trazer para perto da terra e aquele outro de abater ou rebaixar, fazer cair por terra, pr abaixo. Este ltimo sentido foi que predominou: a humilhao como um ataque. possvel pens-la como golpe aplicado por coisas, bichos ou por desastres naturais. Mas a palavra suscitou sobretudo a idia de ofensa desferida por algum contra algum. A palavra assumiu muito cedo, seno j inauguralmente, um sentido moral: a ao pela qual algum pe um outro como inferior, abordando-o soberbamente. O fenmeno, assim indicado, decididamente social: o humilhado supe o soberbo, o soberbo supe o humilhado.2

    1 O que diremos neste captulo parte do que nos foi exigido pela Vila Joanisa , um bairro proletrio na periferia sul de

    So Paulo, vizinhando Diadema. Foram 18 anos de colaborao, convvio e conversa com joanisenses, dos quais ainda trago a assdua amizade de Natil, Rose, Nilson e Lia. A pesquisa tambm decorreu do carssimo lao com Ecla Bosi e Gilberto Safra. E o leitor ainda notar o recurso a tienne de La Botie, Hannah Arendt e Emmanuel Lvinas, Jean Laplanche e Donald Woods Winnicott, um recurso sempre precedido pela inspirao de Simone Weil, quem primeiro e textualmente afirmou a humilhao como o mais radical dos sofrimentos proletrios.

    2 de observar que o emprego positivo da palavra ocorre quando referido ao bem da humildade, nome tambm

    derivado do latino humus. Humildade modstia, simplicidade, reverncia diante de deus ou dos deuses, deferncia diante do prximo. sagrado respeito por divindades e humanos, qualidade prpria de quem no se eleva diante de seus pares e menos ainda diante de espritos altssimos. Humilhao, ento, vai indicar o ato de tornar-se ou manter-se humilde, em nvel da terra, abaixo do cu e em mesma altura com os outros humanos. O leitor repare que nas expresses humilhao social ou humilhao poltica contrariamos o sentido benfazejo: pensamos o fenmeno da

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    Humilhados e soberbos contam como antagonistas de um s e mesmo drama, de tal modo que chega a soar redundante falarmos em humilhao social. No h humilhao no isolamento. O humilhado est sempre ligado a um agressor. Um agressor aqui ou por perto. A humilhao sentida como insulto em ato ou iminente. No h humilhado como pessoa sozinha, embora exceda nossa imaginao o quanto pode sentir-se s a pessoa rebaixada, sem ningum que lhe valesse como fiador de sua dignidade atirada ao cho.

    Quem tenha atinado com o forte sentido social de toda humilhao ter percebido que os humanos s podem completar a experincia de sua dignidade em companhia de outros humanos. Lembraramos de bom grado Claude Lefort e a hegeliana concluso de seu admirvel estudo sobre Marcel Mauss e o dom: Somente o homem pode revelar ao homem que homem, assim como somente ele pode pr esta verdade em perigo.3

    Em investigaes de psicologia social somos assiduamente devolvidos a uma tese radical: fora de vizinhana humana no h experincia bastante para os humanos.4 No temos como perfazer suficientemente a experincia de um mundo quando, fora de alguma proximidade e comunicao com outros humanos, somos isolados e atirados sem companheiros nos campos ou cidades.

    O indivduo sem parceiros nem mesmo capaz de solido. Escapa a experincia de mim mesmo ou horrvel quando, apartado dos outros, sem poder falar-lhes, sem com eles dividir meu espanto, sou isolado e atirado sem colo contra o fundo escuro de meus enigmas e angstias. Verdade que pessoa nenhuma pode viver continuamente obrigada aos outros. Ningum pode viver sem nunca retirar-se do meio dos outros para algum canto separado e quieto. Uma vida densa, que se perceba nica e significativa, depende de solido. Retiro, separao e silncio, so condies para uma vida que no seja annima e ftil. Mas o retiro, a separao e o silncio so suportveis e

    perda aviltante de altura, o que apenas raramente (e mediante considerveis vigor, ao e elaborao espiritual) pode tornar-se ocasio e meio para a humildade.

    3 A troca e a luta dos homens. In: As Formas da Histria, Brasiliense, So Paulo, 1979, p. 34. Nesse estudo, o autor

    discute o Ensaio sobre o Dom (de Marcel Mauss), infirmando e superando a conhecida interpretao que nos foi legada por Claude Lvi-Strauss. A argumentao lefortiana sustenta uma inteno para o intercmbio de bens, propondo-o como verdadeira luta por reconhecimento, ato por excelncia pelo qual o homem conquista sua subjetividade, coisa bem diferente, portanto, da apresentao do dom como mecanismo puramente significante, ordenado a partir de uma necessidade extrnseca e ideal de tipo lgico-matemtico. Trata-se, segundo Lefort, de um ato pessoal, mas anterior a toda reflexo e coletivamente sustentado: precede e excede qualquer deciso consciente e individual, formando-se no tanto do lado de um indivduo ou outro quanto entre eles.

    4 Uma experincia completa carrega fundamento intersubjetivo. Bastaria lembrar o que lemos em Solomon Asch, o

    primeiro postulante de uma psicologia social gestaltista. Em filosofia, dois respeitveis veios da tese so de extrao hegeliana ou fenomenolgica: os seus abonadores, para mencionarmos s alguns, podem comear pelo prprio Hegel ou por Husserl, podem incluir Karl Marx ou Max Scheler, podem alcanar Georg Lukcs ou Jean-Paul Sartre, Maurice Merleau-Ponty e Claude Lefort.

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    fecundos s depois de os havermos muitas vezes partilhado com algum que, sem afligir-se, esteve contente de prezar conosco um silncio que no mudez, apoiando uma separao que no ruptura e um retiro que no isolamento.

    Os outros contam para a criana antes que possa abordar como outros os outros, antes que seja capaz de alteridade. Quando aceitamos sem censura que uma criana no possa precocemente haver-se com o que lhe estranho, um paradoxo toma corpo: a menina ou o menino vo muito naturalmente mover-se para fora de si e para o outro. preciso que o caminho para o outro seja como uma conquista sem esforo: essa bela expresso vem de Donald Woods Winnicott. Uma criana fica sem alterao, sem passagem para o outro, quando esbarra com exigncias intrusivas, quando esbarra com adultos controladores. Ou quando esbarra com temores dissuasivos de adultos medrosos demais. O movimento das crianas coisa que no se deve apressar e nem retardar, s esperar e apoiar com confiana.

    Algum sempre carrega e conserva alguma desarrumao e movimentos desorientados. Nesta condio segue sendo algum, mas algum sem temporariamente responder ao mundo, sem aprumar-se numa ao j definida. Segue provisoriamente sem desejos, intenes ou interesses, ainda sem escolhas, iniciativas ou realizaes. Nestas horas, algum fora de toda forma demais amarrada. Criana e adulto de quem exigimos que vivam constantemente definidos so impedidos daquilo que chamamos relaxamento. Sem compartilhar desordem e desorientao interiores, no alcanamos liberdade para movimento e gesto pessoais.

    Relaxar significa a capacidade de carregar e aproveitar solido: devaneio sem pressa de integrao ao ambiente. A cena est ento preparada para uma apario pessoal. Surge uma sensao, um impulso vago, mais ou menos angustiante. Aos poucos, o impulso assumido. Direes comeam a esboar-se. A vida adquire forma e sentido, aes e obras vo desabrochar. O impulso no foi desperdiado e frutificou. Somente sob essa circunstncia que a criana pode ter uma experincia que sentida como real. Um grande nmero de tais experincias forma a base para uma vida que tem realidade em vez de futilidade, diria o mesmo Winnicott.

    Quem esteja impedido de relaxar tende a especializar-se em comportamentos submissos ou estereotipados e que vai esforar-se por tomar como satisfatrios h quem ostente o orgulho de contradizer-se, sempre em compasso com as instituies. E h a alternativa dos comportamentos anti-sociais que, no rastro ainda de Winnicott, devemos interpretar menos como um ataque dirigido aos outros do que como uma demanda de receptividade.

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    Variam os traos que militantes ou pesquisadores sustentam eletivamente como traos de humanidade, certas experincias para as quais nascemos mais ou menos preparados, mas que nunca vingariam fora de ligaes com o outro, fora sobretudo de alguma comunidade com outros humanos. So experincias s vezes notveis entre os diversos seres vivos, mas que nas comunidades humanas assumem impulso e avano incomparveis. De minha parte, elegeria ao menos as seguintes:

    Brincar e rir. Apreciar a aparncia das coisas, zelar por certas coisas no porque sejam necessrias ou teis, mas porque so bonitas. Desejar e no apenas consumir ou desgastar. Trabalhar no apenas como quem obtm alimentos ou utenslios, mas tambm como quem cria mundos, como quem faz cultura. Agir, praticar o inesperado, interromper o maquinismo natural ou social, no viver hoje de apenas repetir ontem. Viver alm do imediato, viver do que morreu mas recordamos, viver do que ainda no nasceu mas esperamos. Conversar. Mover-se por motivos polticos, motivos de cidade, que abraam e ultrapassam motivos s de casa. A hospitalidade para o singular, a percepo e o abrigo de gente como percepo e abrigo de pessoas inconfundveis. A solido, a capacidade de estar s ou, como desta vez escreveu Clarice Lispector, a capacidade de ter loucura sem ser doida.

    Essas experincias, cuja realidade e dignidade s so asseguradas pelo testemunho alheio, so experincias que, tambm quando narradas, s encontram seu sentido e efeito quando ouvidas, quando ingressaram num crculo de conversas de igual para igual.

    So experincias que, embora venam e at tirem proveito do isolamento passageiro (a pessoa transitoriamente fora do crculo dos outros), ficam interrompidas em situaes prolongadas de isolamento poltico (a pessoa longamente excluda do crculo ou nele integrada como inferior e sob comando).

    Tomemo-los um a um, quaisquer daqueles traos humanos, e iro todos revelar, quando progride a pesquisa deles, a hora em que sua experincia s se perfaz em algum quando mais algum est por perto, para s depois aprofundar-se na solido. A visita de algum, todavia, pode tambm marcar a interrupo de traos. Tomemos um caso:

    Nova Lima cidadezinha mineira, beirando Belo Horizonte. Sua formao acompanhou os negcios de Morro Velho uma mina de ouro cuja explorao atraiu capitalistas, engenheiros e mineiros.

    A cidadezinha conheceu, na distribuio dos bairros, a mesma hierarquia que vinga no interior da mineradora: as famlias de mineiros concentraram-se na parte baixa da cidade; as

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    famlias de engenheiros e patres nas partes mdia e alta. Uma cidade talvez em atraso quanto modernidade dos grandes centros, mas perfeitamente em dia quanto s separaes do territrio.

    Dona Zica viveu no bairro baixo, esposa de um dos cozinheiros de Morro Velho, j falecido. Dizem que o cozinheiro contava com a inteira confiana dos patres ingleses era o homem escolhido, em fins de semana, para acompanhar a caa s antas (a regio, naturalmente, no possui raposas). Cabiam ao cozinheiro a limpeza e o trato da carne abatida. Dona Zica comenta que os midos de anta recompensa que reservavam ao cozinheiro eram bastante saborosos. Supe que o lombo fosse melhor, nunca comeu: como a empresa e a cidade, tambm as refeies conheciam a diviso patres e empregados, bairro baixo e bairro alto, o prato dos pobres e o prato dos ricos.

    Certa vez, um dos engenheiros foi demitido e abandonou a casa em que residia, no bairro mdio. Os patres, retribuindo os favores do cozinheiro e pretendendo agrad-lo, ofereceram-lhe a chance de mudar-se para aquela casa: o imvel lhe seria vendido a preo barato e em prestaes bem suportveis.

    Os vizinhos de dona Zica, com despeito, duvidavam. O dia em que vocs mudarem, galinha vai criar dentes, disse uma vizinha. Como uma carroa de esterco quando chegar o dia, foi o desafio de um vizinho. A famlia se afligia: no pretendia deixar ressentidos os vizinhos e prometia-lhes manter sempre a porta aberta. Aquela gente me era muito cara, diz dona Zica.

    Pois veio o dia e a famlia levantou acampamento! Chegando bela casa, em bom terreno, encontraram-na com canos quebrados e fiao partida. A famlia do engenheiro, j abatida pela demisso, no suportara a notcia de que seus sucessores seriam os filhos do cozinheiro no hesitaram em destruir parcialmente a casa, como sinal de sua indignao.

    Tudo afinal foi reparado. Os ingleses mandaram reformar o imvel. Dona Zica pde realizar um sonho antigo: desde menina, ansiava por um quintal cheio de flores, especialmente as rosas. Conheci a casa: era o mais belo quintal da cidade. A fachada, to colorida, havia sido fotografada pela gente da cidade e tornara-se postal para os turistas. Dois so os postais de Nova Lima: num deles, a Mina de Morro Velho; no outro, o quintal de dona Zica.

    Meses depois, conta-nos a florista, uma senhora elegante chamou-a ao porto e queixou-se: Onde j se viu, Dona Zica! Eu atrs de uma casa aqui nesse bairro de gente e a senhora me ocupando todo esse espao com flores!

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    Quando ouvi este episdio, encontrava-me na varanda da casa, olhando rosas. Dona Zica ento voltou-se o dedo me apontando e concluiu severamente: A madame estava desfazendo da gente. Fosse o quintal dela, podia. O senhor sabe, pobre tambm pode gostar.

    O humanssimo sentido do gozo de flores. Fica desfeito quando desfazem da gente! J repararam a fora e freqncia do verbo desfazer nos mundos da cultura popular? Sob forma de um transitivo indireto (desfazer de algum) mostra a compreenso que se tem da ao de apoucar, desdenhar, menosprezar: isso quebra, desmonta, desmancha a gente!

    O humanssimo sentido do gozo de flores: gozo que excede consumo e uso. Reparem que o verbo gostar foi empregado intransitivamente na concluso de dona Zica, assumindo sentido ampliado: pobre tambm pode gostar, s gostar, pode dedicar s coisas mais diversas aquela desinteressada modalidade de ateno que distingue a humanssima faculdade do gosto. O golpe contra Zica no a atingiu apenas quanto ao gosto de flores, mas, amplificado, acertou largamente aquela sua capacidade que de todos ns e nos aproxima distintivamente: a humana capacidade de gostar simplesmente, sem nada dever de necessrio ou til. Gostar de flores como amar ou rezar.

    Pois bem. Humilhao humilhao social. Corresponde experincia pela qual perdemos um trao ou o sentimento dele. Um trao de humanidade tem sua experincia impedida. Um impedimento que no natural ou acidental, mas aplicado ou sustentado por outros humanos. Ningum haver, impedido assim, que no viva este impedimento como uma diminuio ou como uma condio inferior.

    O fenmeno no estaria descrito? Por que apontar como humilhao poltica o que pareceria satisfatoriamente designado como humilhao social?

    Humilhao e herana

    Humilhao social sofrimento longamente aturado e ruminado. sofrimento ancestral e repetido. Um sofrimento que, no caso brasileiro e vrias geraes atrs, comeou por golpes de espoliao e servido que caram pesados sobre nativos e africanos, depois sobre imigrantes baixo-assalariados. Alcanou roceiros, mineiros ou operrios, tambm uma multido de pequenos servidores, subempregados e desempregados.

    ndios expostos violao da terra e negros desterrados expostos ao racismo. A perda de bens, a ofensa contra crenas, ritos e festas, o trabalho forado. A dominao nos engenhos ou

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    depois nas fazendas, nas fbricas e nos escritrios. Roceiros sem terra, expostos a trabalhar para s comer. Cidados pobres expostos ao emprego proletrio, ao desemprego e indigncia. Velhos expostos a ficarem para trs no trabalho acelerado. Mulheres detidas por seus pais, irmos e maridos, por seus professores e chefes. Amantes expostos vigilncia e proibio, quando o amor aconteceu fora da ordem ertica oficial. Loucos desmoralizados pelas cincias, cassados pelos tribunais, invalidados pelos manicmios. Crianas pobres e negras estigmatizadas como portadoras de deficincias intelectuais e afetivas por fracassarem num sistema escolar ineficiente.

    A violncia que machuca o humilhado nunca meramente a dor de um indivduo, porque a dor nele a dor velha, j dividida entre ele e seus irmos de destino. Os ataques, quanto mais nos chegam de fora e de muito antes, tanto mais nos vo paradoxalmente atacar de dentro e agora. Distantes e antigos, ficaram mais ou menos sem sentido, embora imbudos de uma energia difcil de conter: machucam muito, corrosivamente. Acertam antes mesmo que se pudesse atinar com o seu sentido, antes que se pudesse julgar o motivo do golpe e o seu ponto de partida. A dor sempre precede o seu reconhecimento mais consciente, mais ainda a dor de longa durao, coletivamente padecida. O humilhado no sabe bem por que chora e nunca chora apenas por si prprio, chora a dor enigmtica e chora a dor somada.

    O sofrimento do rebaixamento pblico acompanha o humilhado como uma angstia. Acompanhemos Jean Laplanche e o modo extraordinrio como soube examin-la: angstia impulso indeterminado, mas no coisa endgena. O mais indefinido dos afetos disparado dentro de ns a partir de mensagens dos outros que nos alcanam como recados demais enigmticos.

    Gestos ou palavras dos outros so que impelem os afetos. Angstia o afeto impelido por gestos ou palavras intrigantes, gestos ou palavras de sentido perdido ou mal armado, incompleto. Que sinto? Que coisa essa? Que coisa me quiseram comunicar? Que coisa sinto com o que me quiseram comunicar e que no compreendo?

    O que veio dos outros e instiga, sem que o possamos assimilar: isto muito perturbador. como espinho na carne! E digamos de uma vez: gestos e palavras de rebaixamento contam entre as mais perturbadoras mensagens que nos podem chegar dos outros. De onde lhes vm o desejo e a licena de nos comandarem? E por que acontece de obedecermos servilmente quem nos comanda?

    So mensagens arremessadas em cena pblica: a escola, o trabalho, a cidade. So gestos ou frases dos outros que penetram e no abandonam o corpo e a alma do rebaixado. O adulto e o idoso, j antes o jovem ou a criana, vo como que diminuir, vo guardar a estranha e perturbadora lembrana de quem a eles se dirigiu como quem se tenha dirigido ao inferior. So lembranas que

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    vo desarrumar a percepo e a fantasia, a memria e a linguagem, o sono e o sonho. Vo interpelar e exigir a conscincia antes mesmo do oprimido cair na conta do que o inquieta. E chegada a hora da interrogao, a hora de pensar, no poder evitar a perplexidade: por que fui tratado assim?

    Mensagens de humilhao, como toda mensagem enigmtica, inscrevem-se no humilhado como fonte de processos primrios: aqueles processos que Freud ensinou acompanhar por transferncia. E que o mesmo Freud desvendou como deslocamento e condensao de lembranas, imagens ou palavras, cedo inquietando e intrigando j as crianas.

    Sofrimentos polticos no so enfrentados apenas psicologicamente, uma vez que so polticos. Mas enfrent-los politicamente inclui enfrent-los psicologicamente. A cura da humilhao social pede remdio por dois lados. Exige participao no governo do trabalho e da cidade. E exige um trabalho interior, uma espcie de digesto, um trabalho que no apenas pensar e no solitrio: pensar sentindo e em companhia de algum que aceite pensarmos juntos. Isto tende para o que Hannah Arendt descreveu como o ato de julgar.

    O julgamento implica pensar pela prpria cabea e tambm conversar. Pensar pela prpria cabea pensar ativamente. Inclinar-se passivamente para o pensamento inclinar-se para o preconceito ou adotar a opinio dos outros como quem troca preconceito por preconceito. A comunicao, outra coisa que no a troca de preconceitos, pensamento que conversa com o pensamento dos outros: exige falar do meu lugar, mas tambm me imaginando no lugar dos outros.5 Comeo respondendo pelo que vejo e passo para o que vem os outros. O mesmo mundo, mas vises diversas do mesmo mundo. Vou rondando experincias minhas e experincias dos outros. Minha experincia no coincide com a experincia do outro. Tampouco a experincia que suponho, imaginando-me em lugar alheio, repete a experincia de quem est l. O encontro e o desencontro do que dizemos e ouvimos, do que testemunhamos e do que imaginamos em nome dos outros: isso se chama conversar e faz julgar um tanto mais certeiramente as experincias compartilhadas.

    Esse trabalho interior, conjugando sentimento, pensamento e companhia, trabalho que lembra o que Freud chamou elaborao psquica, sobretudo quando a concebeu como um trabalho em presena de mais um outro humano. A este respeito, chamo ateno para o que descobriu e chamou transferncia.

    A mgoa vivida com algum, aqui e agora, pode devolver para o que foi vivido antes e ficou sem digesto. Transferncia. quando sofremos demais. Um sofrimento que a situao atual admite e que, todavia, parece desproporcional, parece exagerado. Mas no h exagero nisso.

    5 A Vida do Esprito. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1995, p. 369-382.

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    ofensivo e falso sugerir que a mgoa no est ali. igualmente falso sugerir que est perfeitamente ali. Est ali e est antes dali: comunica-se com um golpe atual e comunica-se com golpes atrs, os primeiros golpes, os golpes originrios.

    O sofrimento transferencial sofrimento sobrecarregado. o sofrimento revivido e misturado ao que agora vivemos de novo. No sofrimento que est no presente e tampouco est no passado. Est no intervalo do passado e do presente, na mistura entre agora e antes. O tempo da transferncia o tempo em que realmente vivemos, o tempo da vida humana. iluso localizarmo-nos perfeitamente no presente ou no passado. Vivemos numa tenso entre o passado e o presente que como uma alavanca para o tempo seguinte, para o futuro, o futuro em que

    desejamos ver redimida nossa desolao. O futuro o que continuamente antecipamos quando colaboramos e conversamos de igual para igual, digerindo pesares com os outros. Transferncia o motor da elaborao psquica. E o futuro o destino da transferncia.

    Humilhao e cinco sentimentos

    Os depoimentos e conversas de gente abalada por humilhao pblica recordam e precisam repetidamente derrotar sentimentos que esto no miolo de seu sofrimento. So sentimentos que surram. Adoecem ou matam quando no enfrentados. Quero afirmar cinco deles, modulaes de uma mesma angstia.

    Um primeiro par O sentimento dos ambientes citadinos como expulsivos, tantas vezes acompanhado pelo sentimento de amargurada fruio dos bens pblicos.

    Houve um dezembro em que finalmente Natil e Rose ousaram visitar-me em casa. Decidimos jantar fora. No caminho, diante de um shopping center, avistamos grandes rvores com tronco e galhos inteiramente cobertos por minsculas lampadazinhas, lembrando jabuticabas de luz, como se o brilho viesse de dentro. Ficaram como duas menininhas trmulas e de olhares arregalados. Caindo em compaixo, dispararam a lembrar um sem-nmero de amigos e familiares que precisavam estar ali: Ah! Mas o Renato devia estar aqui!, A Penha tinha que ver isso, Por que que a gente no carregou a Roseli?!. Aos poucos, pareciam sofrer. E sofriam de um modo involuntrio, invencvel, o que contribua para perturb-las ainda mais.

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    No negavam a graa do passeio e das rvores enfeitadas, mas pareciam penar uma tristeza danada e aparentemente sem explicao. Sem compreenderem o motivo da dor, a dor irreprimvel que subitamente veio tom-las e arrast-las desculpavam-se pelo desgosto, desculpavam-se muito, atordoadas. Comearam a chorar, sem que ningum pudesse atinar facilmente com a causa das lgrimas. E desculpavam-se mais e mais.

    Num depoimento que trato de resumir, Natil nos vai falar, por exemplo, de uma viagem para a bela cidadezinha de Nova Lima, em visita a dona Zica e Lia:

    Como eu sa em viagem, eu acho que minha famlia tinha que ter sado tambm. Eu acho assim: que o que eu estou vivendo, a minha famlia tinha que viver tambm. Ento no consigo me desligar totalmente. Acho assim que um direito meu, mas deveria ser um direito dos outros tambm. Mas como no deu pra todo mundo estar indo, ento... Fico assim meia... no fico totalmente realizada. Se eu tivesse mais condio todo mundo teria ido. Quando eu saio, eu volto e despenco na minha realidade! Sempre falo isso: eu despenco na minha realidade! E um lugar que eu sinto isso muito forte quando por exemplo eu vou no shopping. Ento me sinto mal. Agora, com o tempo - que fiz um trabalho comigo - que t conseguindo ir no shopping e no voltar desse jeito. J tive problemas serssimos. Problema srio de no aceitar essa realidade, de eu ir l e no aceitar de estar l, de pensar naquelas crianas que no esto l, esses sentimentos. No sei por qu. E eu tenho muito disso. Se eu for num lugar muito belo, que eu queria que outras pessoa tivesse desfrutando, eu falo: t despencaaannndo na minha realidade! difcil eu estar num lugar. Na mesma hora que eu t num lugar belo, lindo, a como se fosse uma mgica eu tivesse aqui de novo! Que nem: eu tava em Nova Lima, aquilo l... lindo aquilo l. A voc despenca dentro dessa realidade, voc despenca mesmo! Entendeu? uma coisa que te choca, uma magia. impressionante como voc pode estar num lugar assim e depois ficar me deliciando de saber que j estava dentro da minha casa, que eu j estava com a minha famlia, que estava tudo bem, que aquilo l era agora s recordao, j no era mais.

    Os espaos e caminhos pblicos, na sociedade de classes, so imantados pelo poder de segregar, pelo poder de sempre atualizar a desigualdade. A fruio de um bem pblico, manchado pela desigualdade, degrada-se em sentimentos de culpa: o humilhado no pode evitar despencar em sua realidade, arrastado para perto de seu pai ou sua me, seu irmo ou seus amigos, todos excludos da praa onde a presena dos pobres no pode contar, a no ser a servio dos que despendem dinheiro e ordens. O sabor da alegria vai logo amargar, misturado ao fel da desigualdade, ao sentimento de que a cidade fechada para os humildes. Os ambientes e bens mais atrativos, carregados por signos de excluso ou incluso sectria, tornam-se logo lamentveis para quem, como condio de sua satisfao, precisasse esquecer seus parceiros.

    No raro que ouamos de algum: lembrei fulana quando assistia ao filme, foi em sicrano

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    que pensei durante a leitura, era como se passeasse ao lado de beltrano. As coisas tm o poder de retirar-me de mim mesmo e remeter a quem perteno por corao. E diversas satisfaes s quando vividas com os outros ou imaginadas ao lado deles que so felizes. H o caso, por exemplo, das inmeras aventuras que s se tornaram viveis porque, ao iniciar-me nelas, imaginei-me como um

    outro que no se furtaria a elas e me traria consigo: pois fui, ento, trazido para a experincia como se o meu tutor ali estivesse e me tivesse chamado. Cada um mais que um e pode mais quando traz consigo os seus outros. No indispensvel que estejam todos ali, mas talvez seja indispensvel que pudessem estar caso o desejassem, bastando o meu consentimento.

    Quando saio com Lia, Rose ou Natil, nunca deixam de reservar ateno aos seres laterais, aqueles que apiam as festas sem tomar parte nelas. E a ateno pode logo tornar-se triste quando se do conta da segregao dos marginais. Uma vez, entrando com Rose em cinema, ela perguntou senhora da urna se o filme era bom. A mulher achou graa: No sei no minha filha, assisti no, as letrinhas escapam, respondeu rapidamente, fazendo-nos rir um riso amarelo e apressando a fila. A fruio fica inslita sobre a base da insatisfao, impugnao ou servilismo dos outros. Insistir na satisfao, sem dividir-se, dependeria do esforo por identificar-se plenamente com o superior. Esforo quase impossvel para os rebaixados, a no ser de um modo bizarro, maneirista ou corrupto.

    O trabalho que Natil declara haver feito consigo mesma para liberar-se implicou, ao contrrio de antes, desistir de cancelar sua fantasia, aceitar que seja difcil a felicidade sem comunicao, inventar festas e comcio:

    Eu mudei. Sonhar importante. Descobri foi isso. Ento nis vestiu a Jesuta de Papai Noel e ela foi na casa dos menino. As criana ficava maravilhada. At os grande, os pais. (A gente nunca fazia isso pra nis Papai Noel era uma coisa comercial, lojista fantasiado. No era assim no, antigamente: Papai Noel vinha s ele, no ficava dando coisa. Mudou tudo.) Ento: veio a Jesuta, com uma mscara branca que a gente ponhou nela, fazia um agrado, um abrao, uma palavra, dizia r-r-r e as crianas se esbaldava. No r-r-r foi que viram que a voz era de mulher e cismaram que era ela. Mas ningum disse nada. Tem uns que at hoje t com a pulga atrs dorelha.

    Ou:

    O carnaval que teve aqui, no ano passado, nossa! Fui em todos, danamo at. Aqui na Joanisa! Teve programao pela prefeitura, teve carnaval na rua. Aqui tem uma escola de samba, uma escola de bairro: chama P Grande! Teve apresentao deles e teve vrias escolas. Ih! C acha que eu perdi? Naquele tempo, a Penha tinha restaurante em que vendia pastel: l em cima tinha terrao. Nis subia l em cima. E tava a Penha, tava a Mrcia, tava a Adriana, tava um monte de gente l, a Luzia. Tava o pessoal tudinho danano. Eles fecharam a pracinha, at bem perto da subida que vai pro Mxico! Fecharam l e Perptuo da Glria, fecharam todo aquele

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    pedao! E tinha gente pra caramba! [Voc despencou, Natil? Voc sentiu que despencou?] Eu no! Eu tava no meio de gente como gente, como eu ia sentir?! Eu tava como se diz no meio de gente como a gente mesmo! No que t discriminando, eu sei que voc entendeu: tava no meio do pessoal! Porque a coisa mais bonita que eu acho a massa, organizada, expressando o que sente. Ento quando isso, quando ia num comcio... aquilo me dava assim uma satisfao, porque aquilo tem uma energia, uma fora, aquela massa todinha, Nossa Senhora! Ento eu ficava assim... extasiada de ver aquilo l, ver aquelas pessoas. E isso me d prazer, estar ali no meio. Por isso que no perco: porque quem sabe, quem descobre que tem a fora ali no meio, no perde.

    Um terceiro sentimento O sentimento de invisibilidade.

    Pesam sobre as classes pobres, em nossa sociedade, o trabalho simplificado e o trabalho simples. Admitimos uma organizao do trabalho complexo que isolou, num extremo, a gerncia; noutro, a operao braal. Entre os extremos, combinaes que no vencem a dissociao principal entre chefes e operrios. Atividades complexas so fragmentadas em atividades demais elementares e desqualificadas, exigindo pouca ou nenhuma instruo tcnica ou escolar. E quanto ao trabalho simples (varrer, lavar, embalar lixo, fazer camas), aquelas tarefas indispensveis, mas necessariamente muito simples? Em vez de as assumirmos todos, tornou-se hbito nosso reserv-las aos pobres.

    Numa sociedade livre, deveremos apenas admitir trabalhos complexos. Nossa imaginao poltica precisar avivar-se. A diviso social do trabalho no apoiar a fratura do trabalho complexo. Por sua vez, tarefas irremediavelmente simples, essas, sero socialmente generalizadas, um dever de todos e de cada um, a no ser quando ocorrer de serem integradas a uma rede de operaes e aes enriquecedoras, de maneira que seus agentes no fiquem concentrados em atividades banais.

    Todo ano propomos aos estudantes de Psicologia Social, na USP, uma experincia de trabalho assim. Devem assumir, por um dia, trabalhos simples ou simplificados. Encontram emprego como porteiros, balconistas, faxineiros, camareiros, ajudantes de cozinha, auxiliares de escritrio, seguranas, bilheteiros de nibus, operrios em linha de montagem, gandulas de tnis, coveiros. A lista enche a lousa da sala de aula.

    Fernando Braga da Costa foi gari na Cidade Universitria. A primeira frase em seu dirio de campo: Fiquei invisvel!. Explico: vestiu o uniforme azul, trabalhou de manh e, altura do almoo, passou uniformizado pelo Instituto de Psicologia. Entrou no prdio e reparou uma espcie de desaparecimento dos gestos e palavras que, quando estudante, so comuns entre ele e quem

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    cruza. Surpreendeu-se especialmente nas vezes em que passou despercebido por pessoas que estudam com ele: no o viram, passaram ao largo, sem cumprimentos. Era um uniforme que perambulava: estava invisvel.6

    Lvia Akissue de Barros assumiu funes num supermercado de porte mdio em So Paulo. No meio do dia, estava ocupada num corredor de alimentos: retirava biscoitos de um cesto e transferia tudo para as prateleiras, ajeitando as embalagens em pirmide. Estava concentrada, absorvida pela tarefa, quando uma senhora aproximou-se dela, sondando e vasculhando os biscoitos. Subitamente, a senhora passa o brao bem diante do rosto da estudante. Uma vez, outra vez. Lvia precisava desviar-se do brao que avanava, acreditando que a percepo da situao fosse tambm compartilhada pela senhora. Nada. O que Lvia sentia (o iminente risco de uma mo na cara), a senhora no parecia sentir. A estudante descreveu a primeira vez: espantou-se com o brao surgindo de repente, bem diante dela. Achando graa, olhou para a senhora, imaginando que seria correspondida nos risos. Nada. Uma vez, mais uma: Lvia j no achava a menor graa, mas tampouco seu mau-humor era notado pela mulher do brao:

    Ela pegou a bolacha, olhou, devolveu. Pegou outra, o mesmo percurso na minha frente, olhou, colocou no carrinho e foi embora. Fiquei perplexa. No conseguia nem sentir raiva de tamanha falta de educao. Eu simplesmente me senti um mvel, um objeto. Fiquei invisvel! Foi bem essa a sensao.

    O segundo episdio. Desta vez, Lvia no corredor dos produtos de higiene e banheiro:

    Estava arrumando os sabonetes, quando percebi um homem me olhando, encostado no balco da pequena lanchonete junto entrada do supermercado. No me incomodei e continuei trabalhando. Quando cheguei aos xampus, uns cinco minutos depois, vi que o homem continuava a me olhar. A me incomodei. Vi que me olhava com um olhar malicioso. No gostei.

    O homem olhava, no se detinha, olhava a cintura, o quadril, s vezes os seios. E no parava de olhar. Com licenciosidade, media as formas da moa. Lvia diz nunca ter vivido coisa assim. A licena era tanta que a estudante, no comeo, chegou a suspeitar que a tivesse involuntariamente provocado:

    Como eu precisava s vezes me agachar, para a arrumao das prateleiras mais baixas, ficava todo tempo me assegurando da blusa no subir, da cintura no baixar e roupa ntima nenhuma aparecer. Vi que estava tudo em ordem comigo, minha atitude era discreta. Mas uma sensao de desconforto no me largava. Era demais, o homem me olhava como se eu estivesse sem nada e disposio dos olhos dele. Comecei, ento, a reagir, olhando com raiva, com desprezo, cortando, mostrando que

    6 Fernando tornou-se pesquisador em Psicologia Social e concluiu um mestrado de impressionantes narrativas: Homens

    invisveis relatos de uma humilhao social (So Paulo: Globo, 2004).

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    estava me irritando. Em qualquer lugar, reagir assim sempre bastou. Ali, no adiantou nada. O homem continuava. Era uma coisa esquisita, foi bem chocante.

    A reao da estudante (no caso, no esqueamos: reao de uma funcionria) no pegou, no foi bastante para alterar em nada o homem permissivo.

    Se tudo isso contrastamos com o que Emmanuel Lvinas chamou rosto, mistura do que ao mesmo tempo se oferece e se furta percepo, imanente e transcendente, sensvel e inapreensvel, devemos pensar o humilhado como quem experimentou um bloqueio do rosto, ficou sem apario e sem segredo. Desapareceu ou foi devassado por quem nele fixou os olhos como na mscara de um indivduo abaixo e servil. Simone Weil observava que, na rua, a passagem por um poste no por ningum sentida do mesmo modo que a passagem por algum. No quarto, no estou na mesma situao sozinho e quando algum est comigo. H algo que torna algum, mesmo sem pretender, capaz de influir sobre ns, sobre nossa percepo, sentimento e movimento. Esse poder desaparece nos governados, nos escravos, nos servos, nos criados, nos operrios, nos funcionrios.

    Um ltimo par: O sentimento de no possuir direitos, sempre precedido pelo sentimento de vigilncia (o sentimento de ordens, comandos ou reprimendas sempre iminentes).

    Natil:

    Vm aqueles pensamento de que no pra mim, de que no posso estar ali penso que tenho o direito, mas o pensamento no ajuda. Voc vai ficando pequena. No sei o que , uma sensao estranha.

    Simone Weil, quando fresadora na Renault, anotou em seu dirio de fbrica:

    Saindo do dentista (tera de manh eu acho, ou talvez quinta de manh) e subindo no nibus, reao estranha. Como eu, a escrava, posso entrar neste nibus, us-lo graas a meus 12 centavos como qualquer um? Que favor extraordinrio! Se me obrigassem brutalmente a descer dele dizendo que meios de locomoo to cmodos no so para mim, que eu s devo andar a p, acho que me pareceria natural. A escravido me fez perder totalmente o sentimento de ter direitos. Parece um favor ter momentos em que no preciso aguentar a brutalidade humana.7

    Dominao e angstia

    7 A condio operria e outros estudos sobre a opresso. Rio: Paz e Terra, 1979, p. 87.

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    J o vimos sob perspectiva laplanchiana: a angstia o mais desqualificado dos afetos, moeda dos afetos traumticos. O mais abstrato e o mais humano dos afetos, representa a ressonncia em ns de um enigma que veio dos outros e no meio dos outros. Veio um inexplicvel olhar ou palavra, um indecifrvel recado verbal ou no-verbal, alcanou o sujeito e invadiu, agora governando de dentro como fosse uma fora fsica, uma presso a todo vapor, uma energia desorientada.

    E dissemos ns, transportando-nos para o nosso problema: um golpe externo e estranho, o golpe pblico do rebaixamento, foi para dentro e seguiu agindo por dentro como um impulso invasor, desenfreado, uma angstia. As expresses da angstia poltica podem variar: so lgrimas, a gagueira, o emudecimento, os olhos baixos ou que no param de piscar, o corpo endurecido, o corpo agitado, o protesto confuso, a ao violenta e at o crime.

    Uma angstia tem seu ponto de partida em mensageiros humanos e ultrapassa a aptido tradutiva dos seus destinatrios o destinatrio sofre a mensagem sem poder suficientemente traduzi-la. Angstia no s energia, mas energia de matriz semiolgica: aparece como aflio e agitao que exprimem a carncia de um sentido que perdeu forma e contedo ou que mal chegou a alcan-los, constituindo-se como um signo lacunar. Um signo fraturado tanto para os que o recebem como para os que o transmitem. Eis o que Jean Laplanche tambm asseverou: as mensagens enigmticas, que angustiam e confundem o destinatrio, so freqentemente enigmticas para seus prprios mensageiros. E, mais uma vez, digamos ns: o sentido das mensagens de rebaixamento, fulcro da humilhao social, escapa aos humilhados e tambm aos soberbos.

    Quem recebe o comando desptico e se pe a obedecer irrefletidamente, saberia dizer o que lhe pe to automaticamente em subservincia? Quem comanda sobranceiramente, com brutalidade ou educadamente, saberia dizer o que lhe pe to naturalmente na licena disso? Onde comeou todo este desequilbrio poltico, a imaginria superioridade destes senhores impunes e a imaginria inferioridade destes servos compulsivos? Quando foi que tudo isto se tornou to slido? Como? Por qu?

    Quem estar preparado para perguntas to urgentes, mas que esto entre as mais difceis de responder? A desigualdade social enigmtica, pois o fenmeno mesmo que lhe determinante, a dominao, dos mais difceis de decifrar. A luta por cancelar a dominao passa por tambm pensar o seu fundamento. Mas haver propriamente razo na dominao? O fenmeno violento no movido por desejos e interesses? No considervel a margem de desrazo ou irracionalidade por trs da dominao?

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    Dominao e desigualdade social

    Desigualdade social expresso que descreve o estado de grande disparidade entre pessoas, uma situao de desnivelamento. S muito remotamente faz aluso a uma falta praticada por muitos e por instituies. A igualdade que falta igualdade recusada. A igualdade foi recusada, foi recusado o igual direito de agir e falar, o igual direito de tomar parte nas iniciativas e decises. A igualdade foi recusada e afirmamos a dominao. Justamente, se desejarmos um exame mais assertivo do fenmeno, precisamos apontar e discutir o que a desigualdade social torna manifesto: a dominao. A dominao compe o ncleo determinante da coisa. Desigualdade social o nome superficial e tardio para o fenmeno consumado.

    A dominao compe o ambiente em que a altura humana perde balanceamento e entra em depreciao ou exaltao. Os dominados abaixo, envergonhados e subordinados; os dominadores acima, sobranceiros e comandantes. Dominao fenmeno poltico por excelncia. Quando falamos no apenas negativamente em desigualdade social, mas assertivamente em dominao, nosso discurso e nossa percepo do fenmeno vo politizar-se. possvel falarmos em desigualdade social sem nenhuma referncia ao poder, o que impossvel quando falamos em dominao.

    No caso das sociedades modernas, por exemplo, possvel nenhuma referncia ao antagonismo de classes. Falamos em desigualdade social, falamos at mesmo em desigualdade de classes e, muitas vezes, no mencionamos o antagonismo entre patres e assalariados. possvel falarmos em desigualdade de classes, impossvel falarmos em igualdade de classes. A soberba da classe acimada e a humilhao da classe rebaixada no so qualidades contingentes e independentes, mas opositivas e reclamam-se mutuamente. Uma cidade sem superiores e inferiores supe uma cidade sem patres. Soberba e humilhao no so problemas laterais que se acrescentam existncia moderna de classes, so ingredientes seus. Onde quer que superioridade e inferioridade comutem-se em igualdade, comea a superao de classes. Onde quer que a soberba e a humilhao comutem-se em considerao pela iniciativa e pela palavra de todos e cada um, quem quer que sejam, comea a cair o sentimento de classe.

    Para que ricos e pobres, letrados e iletrados, participem igualmente do direito ao poder, preciso no acatar a separao de pessoas entre governadores e governados. Nem tanto a igualdade de rendas condio para a igualdade poltica quanto, inversamente, a igualdade poltica que tende a corrigir ou cancelar disparidades econmicas. A identidade de cultura ou o nivelamento de competncias, por sua vez, esto tambm longe de representar condies para a igualdade poltica:

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    esta que torna os encontros interculturais ou profissionais uma ocasio para a troca e colaborao na dominao, a diversidade torna-se pretexto para a desigualdade.

    Igualdade no condio sobretudo econmica, cultural ou profissional: condio poltica. Em seu elemento, entretanto, a riqueza e o conhecimento tendem distribuio; o encontro de culturas tende troca de influncias e no ao prestgio unilateral8-9; e a diversidade de competncias tende colaborao. Igualdade no identidade ou equao: implica no a supresso de diferenas, mas supresso da dominao. H igualdade quando nos reunimos no igual direito de governar cidade e trabalho, ningum no direito de governar ningum. Os iguais so os diversos que se renem para a participao, para a troca de pontos de vista e iniciativas. Fora da igualdade, rosto e voz ficam sem onde espraiar-se. Igualdade apario de vrios rostos e diversas vozes. Inversamente, gente singular s aparece onde, de igual para igual, cada um v e visto, fala e ouve. Igualdade e pluralidade so como condies reversveis.10

    As nicas formas de relao que podem subsistir fora da igualdade e, assim mesmo, apenas temporariamente, so relaes que no sejam primariamente polticas. Relaes entre pais e filhos, entre mestres e aprendizes, por exemplo, admitem certa discrepncia de autoridade e voz que, todavia, coisa bem diferente de desigualdade. Melhor seria que as caracterizssemos como formas de dependncia passageira, dependncia para a independncia: relaes, portanto, que embora no sendo primariamente polticas, no deviam tampouco admitir-se antipolticas, pois esto implicadas, mais alm de suas tarefas prprias, na educao de cidados. Pais e professores, quando despticos, no apenas embaraam ou impedem o caminho do cidado, como tambm concorrem para tornar entrpica a relao pedaggica ela mesma, deixando filhos e aprendizes infantilizados e

    8 Ecla Bosi [Cultura e desenraizamento. In: O tempo vivo da memria ensaios de Psicologia Social. So Paulo:

    Ateli Editorial, 2003]: Quando duas culturas se defrontam, no como predador e presa, mas como diferentes formas de existir, uma para a outra como uma revelao. Mas essa experincia raramente acontece fora dos plos submisso-domnio. A cultura dominada perde os meios materiais de expressar sua originalidade.

    9 Simone Weil [A condio operria e outros estudos sobre a opresso. Bosi, E. (org.) Rio: Paz e Terra, 1996, pp. 411-

    412]: O ser humano tem uma raiz por sua participao real, ativa e natural na existncia de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro. (...) As trocas de influncias entre meios muito diferentes no so menos indispensveis que o enraizamento (...). Mas um determinado meio deve receber uma influncia exterior no como uma importao, mas como um estimulante que tome sua prpria vida mais intensa. As importaes exteriores s devem alimentar depois de serem digeridas. E os indivduos que formam o meio, s atravs dele as devem receber. Quando um pintor de real valor vai a um museu, confirma sua originalidade. Deve acontecer o mesmo com as vrias populaes do globo terrestre e os diferentes meios sociais.

    (...) quando o conquistador permanece estranho ao territrio de que se apoderou, o desenraizamento uma doena quase mortal para as populaes submetidas. (...)

    10 Arendt, H. A condio humana. Rio: Forense Universitria, 1993.

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    incompetentes. Educar para a cidadania condio mesma para que educao seja educao, incremento e no violao de aptides e saberes.11

    Os sinais concretos de desigualdade social so a fome, a doena, o analfabetismo e o desenraizamento (a perda da terra e de um grupo de participao; mais drasticamente, o nascimento sem terra e sem grupo). Como grupo de participao, valorizemos, numa poca de desemprego, o grupo de trabalho. Quem duvidaria do mal-estar nestas condies? H tristeza e melancolia associadas s condies de faminto, doente, iletrado e desenraizado. E h vergonha nisso. Quando so condies temporrias, a tristeza no chega melancolia. E tristeza ou vergonha passam quando chegam a refeio, o remdio, a escola, a casa prpria e o trabalho.

    Mas h o caso em que a melancolia se impe e a vergonha se torna crnica, humilhao

    social. quando aquelas condies so persistentes, compartidas por muitos, e do sinais de que so condies polticas, ou seja: no apenas males que duram muito e so divididos numa comunidade de destino, mas duram muito e so coletivos porque se ligaram ao interesse e desejo de gente e grupos soberbos para quem eu e meu grupo parecemos contar como inferiores, quando famintos, mas tambm quando saciados, quando sem casa, mas tambm quando moradores, quando desempregados, mas tambm quando ocupados, quando doentes e quando curados, quando sem escola e quando nela matriculados; quando pobres e quando remediados ou abastados, quando negros, ndios, migrantes, quando mulheres,quando homossexuais ou bissexuais.

    Nos males de longussima durao, durao que pode levar uma vida inteira e at muitas vidas, abrangendo meus ancestrais, conta decisivamente a desigualdade poltica (geradora das diversas formas de desigualdade social), conta a humilhao poltica, conta o ataque sentido a partir dos outros, meus antagonistas, todos aqueles que parecem desejar a mim e a meu grupo quietos e obedientes a seu servio. A humilhao, quando humilhao poltica, no conta imediatamente a partir de privaes econmicas, menos ainda a partir da diversidade cultural ou profissional, mas passa pelos outros, passa pelo preconceito dos outros.

    H preconceito envolvido no fenmeno da humilhao. O enigma da humilhao poltica precisa ser ligado ao enigma do preconceito. E o enigma do preconceito (isto decisivo!) precisa ser ligado ao enigma da dominao. O preconceito no pode ser suficientemente determinado se, quando o caracterizamos como um fenmeno de afastamento do outro, vinculamo-lo apenas aos temas do esteretipo e das atitudes (temas muito caros Psicologia Social de bases gestaltistas) ou do narcisismo (tema muito encarecido e explorado pela psicanlise parisiense). O tema do

    11 Cf. Entre o passado e o futuro. So Paulo: Perspectiva, 1988. Especialmente os estudos: Que liberdade? , Que autoridade? e A crise na educao.

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    preconceito s pode ser satisfatoriamente determinado quando afinal ligado ao tema da dominao.12 No preconceito estou voltado para o outro como para um estranho, mas no s: encontro-me na contingncia de dirigir-me a ele (ou poder a qualquer instante faz-lo) como algum abaixo e a meu servio.13

    Os dominados?

    O dominado no existe. A frase, depois de tudo que se escreveu, poder parecer disparatada. Mas que pessoas politicamente feridas reagem sempre, a no ser quando mortas. E quando a dominao as tenha arrastado para a morte, ainda assim no tero sido empurradas sem algum protesto. Pessoas no h que deixassem sem resposta a injria, de tal modo que indevido trat-las como humilhadas, dominadas. Se passam a viglia sem reclamao, no deixaro o sono sem sonhos que so como gemidos. Os protestos variam, mas pessoas reagem sempre. Varia a lucidez e varia a eficcia dos protestos.

    H, por exemplo, a negao dos golpes de rebaixamento. H quem no consiga admitir o reiterado acontecimento da dominao. Sobre quem cai persistentemente o fato sinistro, pode custar admiti-lo. H quem simplesmente recuse o fato e sua realidade, sem poder constatar e interrogar a coisa enigmtica. como forcluso: um bloqueio do espanto, um esforo por neutralizar a coisa insuportvel, rejeitando-lhe nome ou sentido. E eis o que ouvimos de Freud e depois Lacan: negaes fracassam sempre. A coisa chocante, quando nos quis atacar tambm por dentro, mas no logrou alguma recepo e traduo, algum registro em imagem ou palavra, volta a atacar por fora e por onde menos se espera, disparando delrios e alucinao. Mas a pessoa alarmada no para ser enquadrada sob suspeita psiquitrica. No devamos duvidar: ningum cai desnecessariamente em angstias persecutrias! E nunca algum que devesse o incurso mrbido s a razes de temperamento ou organismo. Os grandes medos so mais que um efeito de imaturidade ou

    12 Foi o que Adorno e Horkheimer nos quiseram transmitir desde a Segunda Guerra e o que, muito perto dos psiclogos brasileiros, num certo regime de psicologia social praticado na Universidade de So Paulo, voltou a ser apontado por Ecla Bosi, Sylvia Leser de Mello, Maria Helena Souza Patto, Jos Leon Crochk e Ira Carone.

    13 Isto mais evidente no caso do preconceito contra os pobres, os negros e ndios, os imigrantes espoliados, as mulheres. Pode no ser evidente para o caso dos homossexuais ou bissexuais. Mas, ainda assim, interprete-se politicamente o preconceito contra homossexuais e bissexuais. A dominao (para diz-lo de maneira muito apressada e, por isso, pouco satisfatria) apia-se sobre uma dissociao entre o masculino e o feminino e contribui para agrav-la. O dominador, corriqueiramente, afetado: machista ou afeminado. O homossexualismo ou o bissexualismo (quando insubmissos e quando no se associaram defensivamente ao poder e fora) propem uma integrao entre o masculino e o feminino que contraria os humores da dominao, uma integrao que os pusilnimes ou os violentos podem sentir como muito desagradvel ou como uma ameaa.

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    disfuno e exigem que encaremos seriamente o seu objeto disparador. No que diz respeito ao nosso problema, devemos lamentar e at repelir as diversas vezes em que angstias ligadas experincia pblica e ancestral de humilhaes so, afinal, reduzidas a inclinaes dos indivduos ou idiossincrasias: isto significa desmoralizar pela segunda vez os j longamente desmoralizados.

    H a resignao servil: adeso a um sentido forado e postio, consentimento numa explicao amortecedora para a desigualdade social e que dissimula o tema da dominao. O servilismo amide culmina em submisso raivosa, uma irritao contida que, s vezes, explode por arroubos impotentes. Noutras vezes, destilada por maquinaes maliciosas e veladas, podendo parecer incompreensveis ou covardes tanto para suas vtimas quanto para seus praticantes.

    H o ressentimento adensado: a condio de quem retirou sua esperana nos outros, exaurido por melanclicas experincias de esforar-se sem retorno e sem ningum de quem depender com confiana, em mundos onde ningum mais d a mo, onde nada se obtm a no ser mediante dinheiro.

    H a resignao judicativa: a viso dos golpes sob perspectiva que no dominante, uma interpretao fora das opinies oficiais, um livre julgamento. como um protesto discreto: uma alterao de sentido intimamente vivida e ruminada; um protesto mudo, sem estardalhao, mas que parente e preparador da ao. O que chamo resignao judicativa atende a um sentido muito antigo de resignao. Foi Ecla Bosi quem me trouxe ateno para o sentido originrio do termo latino e que evoca um poder. Resignao, lemos no Houaiss e no Porto Latino, primitivamente o ato de tirar o selo e deslacrar uma carta. rasgar, abrir e descobrir. Resignao o poder de ressignificar situaes, rompendo o seu entendimento inercial. Um poder que tem parentesco com o poder de agir. Quem imagina a resignao dos humilhados como um poder? Quem conversa com eles e verifica que abominam o rebaixamento.

    H o grito e a ao impulsiva, que como se manifesta a contraviolncia. Entre submisso e impulso, h comportamentos raivosos e at o crime.

    H o discurso e a ao sbrios, mas isolados. E h finalmente o poder: a capacidade de juntos interrompermos o automatismo social, cancelando opresses, fundando uma repblica e organizando formas salutares para o trabalho de todos e cada um.

    O que dissemos acima s chega a um elenco incompleto e muito abstrato. Est alm de nossa adivinhao terica o que cidados reservam contra o rebaixamento. Ouvindo-os de perto nunca teremos impresses gerais de humilhao, mas alguma notcia concreta. E uma notcia concreta nunca simplesmente a notcia do golpe, mas o golpe j engolido e algo digerido, mais ou

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    menos interpretado, mais ou menos enfrentado. No existe a dominao, no como existem os dominados. E no existem, rigorosamente falando, os dominados: existem experincias da dominao, curtidas em esprito e carne. E se os ouvimos no em conversa rpida, mas a conversa alargada, se os ouvimos em situao que sua voz possa distender-se, possa dizer muitas coisas e no apenas o que presumimos ou suportamos ouvir, vem sempre uma lio, uma lio sobre a humilhao e a indicao de algum remdio.

    Anos atrs, ouvi de dona Dilma, empregada domstica, a descrio de um jovem patro seu:

    A gente nota que quer a gente longe! Quando chega perto fica assim duro, a boca presa, a voz l no fundo da garganta, apertado, falando grosso, parece que no solta. [Imitando a voz do moo:] Dilma, voc me veja aquela camisa branca... e no sei mais o qu. No conversa com a gente no! No tem calma de olhar. Parece preguia. desprezo.

    H lies aqui. No tem calma de olhar: a viso rpida que s apanha tipos ou caricatura. Quanto no assim a viso que temos dos subalternos, reservando-lhes apenas o olhar indispensvel para um comando? Olhar com impacincia conta entre os sinais mais caractersticos dos patres, sem tempo a permitir que fosse vencida a imagem homognea que fazem dos subordinados. A gente nota que quer a gente longe! A distncia poltica aparece no espao (bairros pobres e bairros ricos; circuito dos chefes e circuito dos funcionrios) e nas cises do trabalho (administradores, tcnicos e operrios). Mas no s. Ouamos Dona Dilma: a distncia parece impor-se tambm pela conteno das conversas. O patro de corpo retesado e voz presa. Ao aproximar-se da empregada, no est mais solto. Licencioso talvez, mas nunca livre. O mandonismo exige couraa muscular: o preo exigido de quem quer posar acima e forar altivez. No conversa com a gente no! Justamente, uma conversa depende de relaxamento, abandono. Superiores e inferiores no tm hbito de conversar. Trocam, apressados, apenas as frases funcionais. Uma ordem sempre breve. E quer pronta resposta: Sim, senhor!.

    O desprezo, esta mistura de indiferena e arrogncia, demanda energia. Energia, verdade, que se tornou mecnica: vem sem pensar, vem automtica. a energia que se tornou social, energia que parte de um e outro e mais outro, acumulando-se como energia de muitos, energia generalizada e que ficou distribuda, dividida entre cmplices, apoiada por instituies: a energia das classes dominantes. O sujeito do desprezo no um sujeito individual tanto quanto um sujeito ligado ao seu estamento e classe, um sujeito social, um sujeito cujo comportamento podemos antecipar. E a energia senhorial depende, afinal, da energia servil. A energia dos servos a energia todo tempo contrariada, acachapada, a energia que se contradiz. a energia que o rebaixado precisa aplicar

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    contra si mesmo, para no ouvir broncas ou ser castigado, para no ser demitido. Uma energia de amortecimento: uma energia necessria para no sentir, para no sofrer e que, no entanto, traz

    amargura. A energia servil o esforo de engolir. Se dona Dilma no reagiu, todavia no engoliu: observou! E observou finamente. A aparente passividade da empregada era, no mnimo, um julgamento (no era ao, mas pode inspir-la).

    Os parceiros so decisivos na abertura de cada humano, na disposio para a natureza e para a cultura. So decisivos inclusive na abertura dos humanos uns para os outros e para si prprios. E inscrevem-se em nossa memria e imaginao como a figura de parceiros interiores, interlocutores, fiadores de rosto e altura. Ao mesmo tempo, aqueles que nos tenham acompanhado de modo violento passam facilmente para nossas lembranas e pesadelos como odiosos antagonistas.

    A boa lembrana dos parceiros, contudo, no homognea. Nos depoimentos de joanisenses, Natil ou Lia, a memria dos amigos apresenta ao menos duas modalidades bastante diferentes. De um lado, lembram-se com gratido de pessoas que as acolheram na chegada miservel a So Paulo, sem trabalho, sem casa, sem comida. Lembram docemente o socorro daqueles que as acudiram em tempos de apuro e privao. Mas, de outro lado, sua ateno atrada pela evocao de encontros considerados como decisivos em suas vidas encontros cuja lembrana como a de um verdadeiro divisor, a partir do qual testemunham em si mesmas uma mudana biogrfica: so lembranas de pessoas que, ao contrrio de prestar servios s depoentes, solicitaram e contaram com o seu prprio servio a outrem.

    Os encontros com estes indivduos, menos caridosos do que convocadores, so geralmente lembrados pelas depoentes como momentos de descoberta da prpria dignidade: dignidade assentada no no prestgio ou nos cargos conferidos pela comunidade, mas simplesmente no reconhecimento de si mesmas como de mulheres que no se reduzem s prprias carncias e necessidades, podendo dedicar-se s carncias e necessidades alheias. Os humanos confirmam sua humanidade quando includos em comunidades onde h troca de dons. Humilhao, nessa perspectiva, designa o estado de quem perdeu a percepo social de si prprio como de um doador. Humilhado sendo quem tenha sido publicamente congelado na figura do carente, algum de quem cabe nos ocuparmos e que estaria impedido, ele prprio, de ocupar-se de algum. O carente visado como quem em tudo depende de ns: alienamos nossa prpria carncia e ignoramos o que recebemos dele. O subalterno detido na figura de quem depende do seu superior que, por sua vez, fica entretido na iluso de no depender de nada e ningum.

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    As comunidades populares da Vila Joanisa, especialmente durante o seu mais alto perodo (anos 70 e at 1992), inventaram formas de dependncia em que o servilismo cedeu ao servio mtuo.

    Nos Clubes de Mes, mulheres ensinavam umas s outras receitas de cozinha, bordados, tric-croch, artesanatos, brinquedos. Tambm se reuniam para as conversas sobre famlia, filhos, amor, casamento, custo de vida, histrias do evangelho, histrias de vida e das lutas no bairro. Aquelas mes sensibilizaram-se com a situao das crianas, as muito pobres, que se esparramavam nas ruas sem cuidado ou eram trancafiadas nos barracos. De modo precrio e em associao com missionrios italianos e espanhis que vieram residir no bairro, organizaram os primeiros encontros com crianas e jovens de 7 a 14 anos: isto correspondeu fundao dos Centros de Juventude. O que ensinavam nos Clubes de Mes, passaram a ensinar tambm s meninas e aos meninos.

    Nos Centros de Juventude da Vila Joanisa, toda influncia dependia do assentimento dos outros (assentimento nunca total), dependia do pensamento, da conversa em que todos eram ouvidos, a coordenadora, mas tambm a cozinheira. As monitoras, mas tambm a faxineira. O psiclogo, mas tambm o marceneiro. A palavra e a iniciativa deixavam de contar como privilgio de tcnicos. Os nomes de cada um eram mais empregados do que o nome dos cargos. No ramos operrios intercambiveis, tampouco empregados que se limitavam ao raio de sua funo. Estvamos a servio das crianas, daquilo que a ateno para elas demandava de cada um de ns.

    Nas sociedades burguesas fomos habituados a reconhecer amizade apenas nos relacionamentos reservados e que envolvem laos muito estreitos entre as pessoas. Passa despercebido que a amizade pode acontecer tambm em espaos pblicos, em circunstncias que no exigem a intimidade, mas que, sem amizade, desmancham a cidadania.

    A amizade, diz Hannah Arendt, a mais essencial das virtudes pblicas.14 Designa, na cidade, uma forma de respeito que consiste em interessar-se pela opinio dos outros. Como descrever a alegria (quase) irresistvel de ver estendido a todos, aos mais humildes e envergonhados, a ateno?

    Ouo La Botie: jamais nos acostumemos servido, por mais que esteja enfeitada, coberta por vestes sagradas ou racionalizada. Libertemo-nos daqueles que se associam na dominao. Ambicionando o favor ou o lugar de seus senhores, ficam sem companheiros. Buscando estar assim acima de todos, estando alm da igualdade, ficam tambm alm da amizade.

    14 Arendt, H. Filosofia e Poltica. In: A dignidade da poltica. Rio de Janeiro, Relume-Dumar, 1993.

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