artigos do scielo

28
José Luiz Fiorin * FIORIN, José Luiz. Língua, discurso e política. Alea [online]. 2009, vol.11, n.1, pp. 148-165. Commons Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras, Unversidade Federal do Rio de Janeiro Av. Horácio Macedo, 2151 Cidade Universitária Introdução Para discutir a questão das relações entre língua, discurso e política, é preciso primeiro saber o que é política. Os universos discursivos historicamente determinados fornecem categorias que permitem fazer um uso intuitivo desse termo: por exemplo, fala-se em greve política em oposição a uma greve reivindicativa; fala-se em Comissão Parlamentar de Inquérito política, quando se diz ou se insinua que sua motivação não é o exercício do poder fiscalizador do parlamento, mas é o jogo eleitoral. Nesse sentido, pode-se dizer que política diz respeito à obtenção, ao exercício e à conservação do poder governamental. Esse é um dos significados que Aristóteles dá à palavra: "... como foi possível um dado governo, qual foi sua origem e como, uma vez constituído, pôde sobreviver o maior tempo possível." *2 A política concerne à esfera do Estado em oposição ao domínio privado. Entretanto, a questão não é tão simples assim. Sua definição passa a tornar-se mais fluida no momento em que começam a ser elevadas a essa categoria certas práticas que não faziam parte da definição tradicional da palavra: fala-se em política do corpo, politizar a sexualidade, política de cotas, política de ação afirmativa etc. Ademais, depois de Foucault, *3 sabe-se que o poder não é uno, mas múltiplo. Ele não tem um lugar demarcado na tópica social, mas está por toda parte: nas instituições, no ensino, nas relações familiares, nos grupos de colegas, nos movimentos sociais, na arte, nos espetáculos, na imprensa... Por toda parte, há vozes autorizadas, chefes, igrejas, dogmas, excomunhões, sumos sacerdotes, pequenos ditadores, opressores... Ele não tem um tempo, mas perpassa toda a História. Assim, a política diz respeito ao poder, ou melhor, aos poderes. Isso permite incorporar à política não só o que está dentro do campo da aceitabilidade tradicional desse termo, mas também todas as relações de poder que se exercem na vida cotidiana. A questão das relações entre língua, discurso e política pode ser tratada de vários ângulos:

Upload: pirespw

Post on 28-Jun-2015

266 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Jos Luiz Fiorin*FIORIN, Jos Luiz. Lngua, discurso e poltica. Alea [online]. 2009, vol.11, n.1, pp. 148-165.

Commons Programa de Pos-Graduao em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras, Unversidade Federal do Rio de JaneiroAv. Horcio Macedo, 2151 Cidade Universitria

IntroduoPara discutir a questo das relaes entre lngua, discurso e poltica, preciso primeiro saber o que poltica. Os universos discursivos historicamente determinados fornecem categorias que permitem fazer um uso intuitivo desse termo: por exemplo, fala-se em greve poltica em oposio a uma greve reivindicativa; fala-se em Comisso Parlamentar de Inqurito poltica, quando se diz ou se insinua que sua motivao no o exerccio do poder fiscalizador do parlamento, mas o jogo eleitoral. Nesse sentido, pode-se dizer que poltica diz respeito obteno, ao exerccio e conservao do poder governamental. Esse um dos significados que Aristteles d palavra: "... como foi possvel um dado governo, qual foi sua origem e como, uma vez constitudo, pde sobreviver o maior tempo possvel."*2 A poltica concerne esfera do Estado em oposio ao domnio privado. Entretanto, a questo no to simples assim. Sua definio passa a tornar-se mais fluida no momento em que comeam a ser elevadas a essa categoria certas prticas que no faziam parte da definio tradicional da palavra: fala-se em poltica do corpo, politizar a sexualidade, poltica de cotas, poltica de ao afirmativa etc. Ademais, depois de Foucault,*3 sabe-se que o poder no uno, mas mltiplo. Ele no tem um lugar demarcado na tpica social, mas est por toda parte: nas instituies, no ensino, nas relaes familiares, nos grupos de colegas, nos movimentos sociais, na arte, nos espetculos, na imprensa... Por toda parte, h vozes autorizadas, chefes, igrejas, dogmas, excomunhes, sumos sacerdotes, pequenos ditadores, opressores... Ele no tem um tempo, mas perpassa toda a Histria. Assim, a poltica diz respeito ao poder, ou melhor, aos poderes. Isso permite incorporar poltica no s o que est dentro do campo da aceitabilidade tradicional desse termo, mas tambm todas as relaes de poder que se exercem na vida cotidiana. A questo das relaes entre lngua, discurso e poltica pode ser tratada de vrios ngulos: a) a natureza intrinsecamente poltica da linguagem e de suas manifestaes, as lnguas; b) as relaes de poder entre os discursos e sua dimenso poltica; c) as relaes de poder entre as lnguas e a dimenso poltica de seu uso; d) as polticas lingusticas. Neste texto, trataremos apenas dos dois primeiros itens.

A natureza intrinsecamente poltica da linguagemA linguagem a capacidade de os seres humanos comunicarem-se por meio de um sistema de signos. Essa faculdade corporifica-se em lnguas, sistemas de signos utilizados por diferentes comunidades lingusticas. Como dizia Saussure, a lngua "no se confunde com a linguagem; somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente".*4 A lngua ", ao mesmo tempo, um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenes necessrias, adotadas pelo corpo social para permitir o exerccio dessa faculdade nos indivduos".*5 Para Saussure, a lngua "um princpio de classificao".*6 O discurso a atividade verbal social. A chamada hiptese Sapir-Whorf mostra que a lngua modela a representao do mundo de cada falante. Fundamentando-se em ideias de Sapir,*7 Whorf*8 nota que as categorias fundamentais do pensamento, como tempo, espao, sujeito, objeto, so diferentes de uma lngua para outra. As lnguas, tanto no lxico, quanto na gramtica, categorizam o mundo.1 As partes do discurso das lnguas indoeuropeias, que opem o agente ao, as coisas s relaes, os objetos s propriedades, impem ao falante uma reificao do mundo, que visto como um conjunto de coisas. J uma lngua, como o hopi, por exemplo, v a realidade como uma soma de processos. Whorf formula, ento, o princpio da relatividade lingustica: h tantas maneiras de representar o mundo, de categorizar a realidade quantas so as lnguas existentes. Nenhum falante pode escapar organizao e classificao dos dados estabelecidas por uma lngua. O mundo um fluxo caleidoscpico de impresses, que so organizadas pelo sistema lingustico. Foge aos propsitos deste trabalho uma discusso minuciosa dessa hiptese. O que certo que a lngua produto do meio social e, uma vez constituda, tem um papel ativo no processo de conhecimento e comportamento do homem. A lngua no uma nomenclatura, que se ape a uma realidade pr-categorizada, ela que classifica a realidade. Tomemos um exemplo: em portugus, chama-se posse a investidura, por exemplo, na Presidncia da Repblica; em ingls, inauguration; em francs, investiture. A palavra portuguesa d ideia de assenhorear-se de alguma coisa, de domnio; a inglesa indica apenas comeo; a francesa diz respeito ao recebimento da uma funo. Esses termos tm, sem dvida, relao com a maneira como concebemos o poder do Estado. A lngua desenvolve-se historicamente e, uma vez constituda, impe aos falantes uma maneira de organizar o mundo. Quando Wilhelm von Stock traduzia Antero de Quental para o alemo, escreveu ao poeta portugus sobre a dificuldade de verter para o alemo o soneto Mors-Amor, porque as duas figuras alegricas - o Amor e a Morte - tm gneros diferentes nas duas lnguas (o amor/Die Liebe - a morte/der Tod). Responde Antero que "esse um caso interessante de influncia da lngua sobre a imaginao", pois representam a morte como mulher os falantes de uma lngua em que a palavra para design-la feminina e como homem aqueles que falam um idioma em que o termo masculino.*9 Carolina Michaelis de Vasconcelos, a propsito do mesmo assunto, comentou que os falantes do alemo representam a morte como um cavaleiro esqueltico, montado em fogoso corcel.*10 Nenhum desses autores relacionou a imposio de uma maneira de ordenar o mundo questo do poder. Roland Barthes, na sua aula inaugural no Collge de

France, no entanto, o fez (1980). Com isso, demonstrou a natureza intrinsecamente poltica das lnguas. O semilogo francs mostra que o "objeto em que se inscreve o poder a linguagem ou, para ser mais preciso, sua expresso obrigatria: a lngua".*11 O poder reside na lngua, porque ela uma classificao e "toda classificao opressiva".*12 A partir da, Barthes formulou uma ideia, que repetida sem cessar: "A lngua, como desempenho de toda a linguagem, no reacionria, nem progressista; ela simplesmente fascista, pois o fascismo no impedir de dizer, obrigar a dizer".*13 Com efeito, a lngua, na medida em que uma categorizao do mundo, uma maneira de v-lo, obriga-nos a representar a realidade com suas categorias, s se pode falar com elas. Se dissssemos que a lngua reacionria ou progressista, estaramos afirmando que ela um lugar de poder e um de contrapoder. No entanto, s pode haver liberdade fora da linguagem e, ao mesmo tempo, ela um lugar fechado, que no nos permite situarmo-nos no seu exterior.*14 Se a lngua o lugar da submisso do indivduo, de sua sujeio, ento o lugar por excelncia da inscrio do poder. Em portugus, os seres so classificados em masculinos ou femininos. O genrico expresso obrigatoriamente pelo masculino. No posso express-lo pelo feminino nem tenho uma categoria genrica distinta do masculino. Homem "ser humano do sexo masculino" e tambm "ser humano em geral", enquanto mulher apenas "ser humano do sexo feminino". Em latim e grego, havia uma palavra para o "ser humano" (homo e nthropos), uma para o "ser humano do sexo masculino (uir e anr) e uma para o "ser humano do sexo feminino" (mulier e guin). A mesma coisa acontece em romeno: om, brbat, femei. Em romeno, pode-se referir a uma terceira pessoa usando um pronome que indica respeito por ela (dnsul) ou um pronome que neutro do ponto de vista da reverncia (el). Em portugus, sempre nos referimos a uma terceira pessoa de forma neutra, nem respeitosa nem desrespeitosa. Em romeno, h dois termos para designar o trabalho: munc e lucrare. O primeiro surge nas regies em que vigia o trabalho servil e vem de um termo que indicava uma forma de tortura; o segundo aparece nas regies em que o trabalho era livre. Para designar o trabalho forado, somos obrigados sempre a utilizar o primeiro: munc silnic. O signo um esteretipo, porque uma abstrao, ele deixa de fora determinados elementos de significao que poderiam nele figurar. S percebo o que nele figura, s falo com o que nele est presente. Poderamos continuar desfiando exemplos de como a lngua nos obriga a dizer. No entanto, bastam esses para mostrar que ela um espao de poder de tal forma coercitivo que no nos permite colocarmo-nos fora dela e, ao mesmo tempo, obriga-nos a falar, a representar, a simbolizar com suas categorias.

As relaes de poder entre os discursos e sua dimenso polticaPara Barthes, no entanto, h a possibilidade de "trapacear a lngua".*15 Trapaceiase a lngua no exerccio da atividade verbal, ou seja, no nvel do discurso. Barthes considera que a literatura a trapaa por excelncia da linguagem, "o logro magnfico que permite ouvir a lngua fora do poder, numa revoluo permanente da linguagem".*16 Entretanto, o prprio Barthes diz que, quando fala em literatura, tem em mira o texto, ou seja, o "tecido de significantes que constitui a obra" e, portanto, literatura sinnimo aqui de texto, de escritura.*17 Antes de pensar na literatura como o lugar que "permite ouvir a lngua fora do poder", sigamos a sugesto de Barthes e pensemos no discurso em geral.

Bakhtin mostra que o dialogismo o modo de funcionamento real da linguagem e, portanto, seu princpio constitutivo. Os homens no tm acesso direto realidade, pois nossa relao com ela sempre mediada pela linguagem. Afirma Bakhtin que "no se pode realmente ter a experincia do dado puro".*18 Isso quer dizer que o real se apresenta para ns semioticamente, o que implica que nosso discurso no se relaciona diretamente com as coisas, mas com outros discursos, que semiotizam o mundo. Essa relao entre os discursos o dialogismo. Se no temos relao com as coisas, mas com os discursos que lhes do sentido, o dialogismo o modo de funcionamento real da linguagem, uma vez que [...] todo discurso concreto (enunciao) encontra aquele objeto para o qual est voltado, sempre, por assim dizer, desacreditado, contestado, avaliado, envolvido por sua nvoa escura ou, pelo contrrio, iluminado pelos discursos de outrem que j falara sobre ele. O objeto est amarrado e penetrado por ideias gerais, por pontos de vista, por apreciaes de outros e por entonaes. Orientado para o seu objeto, o discurso penetra neste meio dialogicamente perturbado e tenso de discursos de outrem, de julgamentos e de entonaes. Ele se entrelaa com eles em interaes complexas, fundindo-se com uns, isolando-se de outros, cruzando com terceiros; e tudo isso pode formar substancialmente o discurso, penetrar em todos os seus estratos semnticos, tornar complexa a sua expresso, influenciar todo o seu aspecto estilstico.*19 Como no existe objeto que no seja cercado, envolto, embebido em discurso, todo discurso dialoga com outros discursos, toda palavra cercada de outras palavras.*20 Como nota Faraco, um dos significados da palavra dilogo o que remete a "soluo de conflitos", "entendimento", "promoo de consenso"; no entanto, o dialogismo tanto convergncia, quanto divergncia; tanto acordo, quanto desacordo; tanto adeso, quanto recusa; tanto complemento, quanto embate.*21 Prossegue ainda Faraco, mostrando que, na verdade, "o Crculo de Bakhtin entende as relaes dialgicas como espaos de tenso entre os enunciados", pois, "mesmo a responsividade caracterizada pela adeso incondicional ao dizer de outrem se faz no ponto de tenso deste dizer com outros dizeres (outras vozes sociais)".*22 Isso significa que, do ponto de vista constitutivo, o dialogismo "deve ser entendido como um espao de luta entre as vozes sociais".*23 Assim, pode-se dizer que, constitutivamente, a relao dialgica contraditria. No "simpsio universal",*24 que poderamos interpretar como uma formao social especfica, definida pelo presente de seus mltiplos enunciados contraditrios, pelo passado discursivo, a tradio de que depositria, e pelo futuro discursivo, suas utopias e seus objetivos, atuam foras centrpetas e centrfugas. Aquelas buscam impor uma centralizao enunciativa no plurilinguismo da realidade; estas procuram minar, principalmente, por intermdio da derriso e do riso, essa tendncia centralizadora.*25 As ditaduras so centrpetas; as democracias centrfugas. Como observa Faraco, Bakhtin, com os conceitos de foras centrpetas e foras centrfugas, "aponta para a existncia de jogos de poder entre as vozes que circulam socialmente".*26 Isso significa que, para o autor russo, no h uma neutralidade na circulao de vozes. Ao contrrio, ela tem uma dimenso poltica. As vozes no circulam fora do exerccio do poder; no se diz o que se quer, quando se quer, como se quer. No se trata apenas da atuao do campo tradicional da poltica, ou seja, a esfera do Estado, esto em causa todas as relaes de poder,

que se exercem desde as relaes do dia a dia at o exerccio do poder do Estado. No podemos dirigir-nos, com determinadas frmulas empregadas na intimidade, a uma autoridade, a uma pessoa mais velha, a algum a quem no conhecemos. Certos assuntos so tabus: alguns se admitem numa grande intimidade; outros no so tolerados em hiptese alguma, so at capitulados no Cdigo Penal. A utopia bakhtiniana "a resistncia a qualquer processo centrpeto, centralizador";*27 o dialogismo incessante "a nica forma de preservar a liberdade do ser humano e do seu inacabamento; uma relao, portanto, em que o outro nunca reificado; em que os sujeitos no se fundem, mas cada um preserva sua prpria posio de extraespacialidade e excesso de viso e a compreenso da advinda".*28 A singularidade do sujeito ocorre na "interao viva das vozes sociais" e, por isso, ele social e singular.*29 As instituies sociais tornam-se lugares do poder, ao colocar-se fora da utopia bakhtiniana de resistncia a qualquer processo centrpeto, transformando seu discurso, que sempre particular, um dentre os que constituem o mesmo campo discursivo, em discurso universal. Nesse momento, ele o discurso do poder e, como diz Barthes, "engendra o erro" e, por conseguinte, a culpabilidade.*30 A surgem dogmas, hereges, fiis... Isso feito no s pelas igrejas, mas tambm pelos partidos, pelas escolas, pela imprensa... No se pode criticar, no se pode duvidar, no se pode dissentir... Pode-se apenas aceitar e repetir. Aparecem todas as formas de silenciamento. notvel que, mesmo na universidade, que trabalha com a cincia, que apresenta sempre modelos parciais e provisrios de explicao da realidade, uma teoria cientfica passa a ser vista como "a" verdade. De um lado, a censura pode, claramente, proibir de dizer. Na ditadura brasileira de 1964, os jornais e revistas estavam sob censura e, por isso, no podiam noticiar certos fatos, como a demisso do ministro da Agricultura, Cirne Lima ou uma epidemia de meningite. Essa a forma mais brutal e evidente de silenciamento. Tambm, nesse caso, pode-se trapacear, desvelando o ato censrio, como fez o jornal O Estado de S. Paulo, que, no perodo em que esteve sob censura, publicava trechos de Os Lusadas ou receitas de cozinha, no lugar das notcias proibidas. H outra forma de silenciamento, que aquela que procura apagar o passado, reescrev-lo, como no exemplo da clebre foto em que Trotsky aparecia ao lado de Lnin e em que, no perodo stalinista, a figura do primeiro foi apagada. Mas h uma forma mais sutil de silenciamento, aquela que impede que certos discursos sejam proferidos, aquela que impede a derriso e o riso, aquela que sacraliza certos temas: o que ocorreu com a caricatura de Maom publicada por um jornal dinamarqus, o que faz todos os dias o discurso politicamente correto, o que buscam fazer certas tendncias polticas. proibido criticar, no se pode seno reproduzir uma determinada vulgata. H um silenciamento ainda mais pernicioso, aquele que reduz seres humanos ao silncio, por no dominarem certas prticas de linguagem: por exemplo, a escrita, certos discursos, certos modos de dizer... No conto Famigerado, de Guimares Rosa, o jaguno Damzio est silenciado, porque no pertence a um dado universo de discurso: "No h como que as grandezas machas duma pessoa instruda";*31 "L, e por estes meios de caminho, no tem ningum ciente, nem tem o legtimo - o livro que aprende as palavras...".*32 Ele no sabe se o termo famigerado positivo ou negativo, se "desaforado", "caovel", "farsncia", "nome de ofensa", "de arrenegar"*33 e vai perguntar ao mdico, que lhe mente, dizendo que famigerado "importante", "que merece louvor e respeito". O silenciamento, no entanto, no apenas explcito, como nos casos arrolados. Ele tambm constitutivo do discurso. Com efeito, as relaes dialgicas determinam um ponto de vista na interpretao dos fatos e acontecimentos, que silencia ou pode silenciar outros. No temos acesso direto realidade, ele sempre vem mediado pela linguagem, que no neutra. Estamos em lugares discursivos

diferentes se, ao discutir a os acontecimentos blicos na faixa de Gaza, dissermos que um soldado israelense foi apanhado, sequestrado ou capturado pelos militantes do Hamas; que os que pertencem a este movimento so terroristas, militantes ou soldados; que a entrada do exrcito de Israel em Gaza uma invaso ou uma resposta a um ataque. A mesma coisa acontece, se, ao discutir o problema da moradia, dissermos que os sem-teto invadiram ou ocuparam um prdio vazio. Um artigo escrito por Ethan Broner mostra, com clareza, como cada espao discursivo pe em evidncia certos sentidos para os mesmos termos e apaga outros: Entre os israelenses, "sionismo" est envolto numa espcie de brilho celestial, sugerindo sacrifcio e nobreza. Mas no restante do Oriente Mdio, "sionismo" representa roubo, opresso, racismo. O muro que cruza a Cisjordnia uma "muralha" para os palestinos e uma "cerca" para Israel. O conflito de 1948, que criou Israel, a "Guerra da Independncia" para uns, a "Catstrofe" para outros.*34 O dialogismo constitutivo funda o que Maingueneau vai chamar uma interincompreenso generalizada, dado que cada discurso considera o sistema semntico do Outro em termos de categorias negativas do seu prprio discurso. Ler as categorias do Outro como categorias negativas do Um no pode ser atribudo m f, mas ao modo de constituio das formaes discursivas.*35 O modo conflitual de constituio do discurso implica a traduo do outro como negatividade, silenciando, assim, sua positividade. H um texto de Castelo Branco em que esse desentendimento recproco fica evidenciado. Nessa estranha linguagem, aqueles que desejam o desenvolvimento econmico, na moldura de uma sociedade democrtica, pregando a cooperao entre as classes e no a luta de classes, e aberto cooperao internacional para evitar a represso do consumidor, so chamados "reacionrios" e "entreguistas"; os que almejam implantar o totalitarismo de esquerda, muito menos benfico grande massa trabalhadora do que oligarquia burocrtica do partido, se intitulam "foras populares de vanguarda", quando no pretendem, com trgica ironia, ser paladinos da "democracia popular". Alguns empresrios que exploram o nacionalismo para proteger a sua ineficincia e preservar posies de monoplio, no hesitando para isso em apoiar e financiar a esquerda subversiva, passam a ser membros da "burguesia nacional progressista"; enquanto que outros, preocupados em absorver recursos e tecnologia externa, para reforar nossa poupana e acelerar o desenvolvimento econmico, so acusados de "alienados" e "antinacionais". A agresso e a infiltrao para acorrentar os indivduos e naes ao servio da causa comunista passam a ser descritas como "guerras de libertao nacional"; enquanto os pases que preferem resistir a essa subjugao, para decidirem o seu prprio destino, esto arrolados como "vassalos do imperialismo ocidental". E que dizer da suprema deturpao semntica, segundo a qual os que desejam subordinar o nosso sistema de vida e escravizar nossas instituies a ideologias estranhas passam a ser proprietrios e rbitros do "nacionalismo"? [...] Pois, meus caros amigos, no basta combater a subverso institucional e a corrupo moral: necessrio, tambm, combater a corrupo semntica, que distorce a realidade dos fatos e procura nos impedir a viso objetiva e racional de nossos deveres e de nossa responsabilidade.*36 Tendo levado em considerao todos esses processos de silenciamento, pode-se dizer com Guimares Rosa que o silncio constitui o enunciador: "O senhor sabe o que o silncio ? a gente mesmo, demais."*37 O discurso tem tambm uma dimenso poltica na construo da conscincia das pessoas.*38

A conscincia constri-se na comunicao social, ou seja, na sociedade, na Histria. Por isso, os contedos que a formam e a manifestam so semiticos. A apreenso do mundo sempre situada historicamente, porque o sujeito est sempre em relao com outro(s). O sujeito vai constituindo-se discursivamente, apreendendo as vozes sociais que constituem a realidade em que est imerso, e, ao mesmo tempo, suas inter-relaes dialgicas. Como a realidade heterognea, o sujeito no absorve apenas uma voz social, mas vrias, que esto em relaes diversas entre si. Portanto, o sujeito constitutivamente dialgico. Seu mundo interior constitudo de diferentes vozes em relaes de concordncia ou discordncia. Alm disso, como est sempre em relao com o outro, o mundo exterior no est nunca acabado, fechado, mas em constante vir a ser. Por isso, a conscincia vai alterando-se. Nesse processo de construo da conscincia, as vozes so assimiladas de diferentes maneiras. H vozes que so incorporadas como a voz de autoridade. aquela a que se adere de modo incondicional, que assimilada como uma massa compacta e, por isso, centrpeta, impermevel, resistente a impregnar-se de outras vozes, a relativizar-se. Pode ser a voz da Igreja, do Partido, do grupo de que se participa etc.*39 Outras vozes so assimiladas como posies de sentido internamente persuasivas. So vistas como uma entre outras. Por isso, so centrfugas, permeveis impregnao por outras vozes, hibridizao, e abrem-se incessantemente mudana.*40 Sendo a conscincia sociossemitica, ou seja, formada de discursos sociais, o que significa que seu contedo sgnico, cada indivduo tem uma histria particular de constituio de seu mundo interior, pois ele resultante do embate e das interrelaes desses dois tipos de vozes. Quanto mais a conscincia for formada de vozes de autoridade, mais ela ser monolgica, ptolomaica.*41 Quanto mais for constituda de vozes internamente persuasivas, mais ser dialgica, galileana.*42 Bakhtin qualifica de ptolomaica a conscincia mais rgida, mais organizada em torno de um centro fixo, como era o sistema planetrio de Ptolomeu, em que a Terra era fixa. J galileana a conscincia mais aberta, mais mvel, no organizada em torno de um centro fixo, como o sistema de Galileu, em que a Terra se move. O mundo interior a dialogizao da heterogeneidade de vozes sociais. Os enunciados, construdos pelo sujeito, so constitutivamente ideolgicos, pois so uma resposta ativa s vozes interiorizadas. Por isso, eles nunca so expresso de uma conscincia individual, descolada da realidade social, uma vez que ela formada pela incorporao das vozes sociais em circulao na sociedade. Mas, ao mesmo tempo, o sujeito no completamente assujeitado, pois ele participa do dilogo de vozes de uma forma particular, porque a histria da constituio de sua conscincia singular. O sujeito integralmente social e integralmente singular. Ele um evento nico, porque responde s condies objetivas do dilogo social de uma maneira especfica, interage concretamente com as vozes sociais de um modo nico. A realidade centrfuga, o que significa que ela permite a constituio de sujeitos distintos, porque no organizados em torno de um centro nico. A conscincia ptolomaica aquela que no contesta o poder. A galileana aquela que pode combater os poderes. Para Roland Barthes, a literatura o discurso em que melhor se contesta a lngua, em que se mais desvia a lngua, a partir de seu interior mesmo. Isso se faz "no pela mensagem de que ela instrumento, mas pelo jogo de palavras de que ela

teatro".*43 Na literatura, exerce-se um deslocamento que incide sobre a prpria lngua. Com efeito, quando, por exemplo, se homologam categorias da expresso a categorias do contedo, como nas aliteraes, assonncias, ritmos, rimas etc., pese em causa o princpio da arbitrariedade do signo, restituindo-lhe uma motivao. Guimares Rosa, em inmeras passagens de sua obra, coloca em xeque as normas de formao de palavras em portugus, produzindo um deslocamento da morfologia do idioma. Deslocam-se os sentidos das palavras, jogando-se com eles. Glauco Mattoso reproduz um poema de Brulio Tavares: Eu quero a orgia! A safadeza! A indecncia! Deixo pros padres E pros militares A continncia.*44 O poema joga com os dois sentidos da palavra continncia: "castidade" e "saudao militar", para se posicionar contra os comportamentos contidos, as hierarquias, as normas de decncia, preconizando um mundo de liberdade. Esses deslocamentos operam em todos os nveis e dimenses da lngua. Para Barthes, h trs foras que atuam na literatura: mthesis (conhecimento), mmesis (representao), semisis (significao).*45 A literatura uma forma de conhecimento (mthesis), mas no sentido de que ela assume todos os saberes: as cincias, a poltica, a religio, a filosofia... Desse ponto de vista, a literatura sempre realista. Ela no fixa nenhum conhecimento, no fetichiza nenhum. Trabalha nos interstcios dos diferentes saberes, fazendo emergir "saberes possveis, insuspeitos, irrealizados". Ela desconfia de todos os conhecimentos. Por isso, o saber que ela mobiliza no completo nem derradeiro.*46 Seria muito cmodo exemplificar com um autor, como Jlio Verne, que imaginou, por exemplo, aparelhos que seriam inventados muito depois de ele ter escrito. Em Paris do sculo XX,*47 obra de sua juventude (escrita em 1863, mas publicada somente em 1994), ele imagina a capital francesa em 1969 e antecipa os desenvolvimentos futuros do motor a exploso, do telgrafo fotogrfico (fax) e ainda do trem de ferro subterrneo (metr). Ou ainda com O presidente negro ou o choque das raas: romance americano de 2228, de Monteiro Lobato,*48 em que se fala da eleio de um presidente negro nos Estados Unidos. Melhor para perceber os interstcios em que trabalha a literatura a viso irnica de Machado sobre a Histria, que contrasta com o objetivismo cientificista, que era o ideal das cincias humanas no sculo XIX. Apresenta uma concepo no realista da Histria, porque, de um lado, afasta-se da potica aristotlica da verossimilhana; de outro, no compartilha das vises historicistas que presidem ao romance do sculo XIX. A histria uma "eterna loureira", sujeita a releituras e reinterpretaes: [...] Suetnio deu-nos um Cludio, que era um simplrio, - ou uma "abbora", como lhe chamou Sneca, e um Tito, que mereceu ser as delcias de Roma. Veio modernamente um professor e achou meio de demonstrar que dos dois csares, o delicioso, o verdadeiro delicioso, foi o "abbora" de Sneca. E tu, madama Lucrcia, flor dos Brgias, se um poeta te pintou como a Messalina catlica, apareceu um Gregorovius incrdulo que te apagou muito essa qualidade, e, se no vieste a lrio,

tambm no ficaste pntano. Eu deixo-me estar entre o poeta e o sbio. Viva, pois, a histria, a volvel histria que d para tudo.*49 Mas a literatura no incorpora apenas os saberes sobre o mundo, opera tambm com os saberes sobre a linguagem. Ela no utiliza a linguagem, mas encena-a.*50 Por isso, trabalha com a diversidade dos socioletos, com a variao, com a mudana, com o dilaceramento da linguagem. Por encenar a linguagem, ao contrrio dos outros discursos, que, constitudos nas relaes dialgicas, silenciam o seu contrrio, deixando-o ver apenas no seu avesso, a literatura desvela um espao discursivo, expondo suas contradies. rico Verssimo, em O senhor embaixador,*51 conta, entre outras, a histria de Pablo Ortega, primeiro secretrio de embaixada da Repblica de Sacramento, ilha do Caribe, governada despoticamente por um ditador militar, o generalssimo Juventino Carrera, apoiado pela oligarquia rural e por duas grandes companhias norte-americanas. Ele, apesar de ser filho de uma das famlias da oligarquia rural, contra o estado de coisas em seu pas. Quando eclode uma revoluo de esquerda, ele vai para Sacramento para lutar ao lado dos insurgentes. Quando estes tomam o poder, recomeam as mesmas arbitrariedades que existiam sob a ditadura de direita. Ele ento se oferece para defender um compadre do antigo ditador, Gabriel Heliodoro Alvarado, o embaixador a que se refere o ttulo da obra. Essa atitude deixa-o em m situao perante o poder revolucionrio que se instalara na ilha. rico, nesse romance, mostra que o poder onipresente. Feita uma revoluo para acabar com ele e implantar um regime de liberdade, ele reaparece com as mesmas arbitrariedades e com a mesma linguagem, s que agora com o sinal invertido. Ao encenar um espao discursivo do campo poltico, rico tematiza o mal-estar dos intelectuais, que devem sempre lutar contra o(s) poder(es). No se apresenta o discurso da revoluo em oposio ao discurso da manuteno da ordem instituda. Opera-se um deslocamento semntico, que desvela a ideia de que todo poder tem como suprema finalidade conservar-se no poder. Por isso, ele abandona os ideais de liberdade com que se instalara. O discurso da cincia e o de literatura so antpodas. Enquanto aquele busca ocultar a dimenso da enunciao (por isso, um discurso em terceira pessoa) e, por conseguinte, o enunciador; este expe "o lugar e a energia do sujeito, qui sua falta".*52 A literatura representao do real (mmesis). No entanto, essa representao impossvel, porque a ordem da linguagem diferente da ordem do mundo. A literatura utiliza expedientes verbais, ora para representar a realidade, ora para mostrar a inadequao entre a linguagem e o mundo.*53 Quando a obra de arte no se v como representao do mundo, mas como linguagem, como semitica, apresenta-se explicitamente como poiese. Tem conscincia de que a ordem da linguagem e a ordem do mundo no so perfeitamente homlogas. Por isso, a linguagem no representao transparente de uma realidade, mas criao de diferentes realidades, de diversos pontos de vista sobre o real. Mostra-nos, por conseguinte, a relatividade da verdade, a possibilidade de que a realidade seja outra. Nada h fixo, imutvel, verdadeiro. A verossimilhana, nesse tipo de contrato, uma construo interna obra e no uma adequao ao referente, como pretendem as obras que desejam representar o mundo. Nesse caso, a literatura desloca os discursos estereotipados dos diferentes campos, como a cincia, a poltica etc., que tm como supremo anelo adequar-se perfeitamente realidade, e transporta-se para outro lugar, o da linguagem, revelando suas trapaas e suas artimanhas.

A literatura tambm significao (semisis). Nesse caso, joga com os signos, criando sempre uma heteronomia das coisas.*54 Por isso, a arte tem sempre uma funo subversiva. Denuncia o poder, mostra no apenas o que existe, mas tambm fala do que nunca existiu, apontando para a possibilidade de sua existncia. Indica que a realidade no nica, mas uma entre tantas que poderiam existir. Ela no destino e pode ser alterada. A linguagem assinala que tambm outra ordem da linguagem possvel, ela implode "regras, coeres, opresses, represses"*55 dos discursos sociais das diferentes instituies. O discurso literrio "empurra para outro lugar, um lugar inclassificado, atpico, por assim dizer, longe dos tpoi da cultura", transporta-nos para longe do "mundo dos casos idnticos".*56 As lnguas, a partir dos discursos, podem adquirir uma dimenso explicitamente poltica, seja no lxico, seja na gramtica. George Orwell, em sua distopia, intitulada 1984, mostra que, na Oceania, foi criada uma lngua oficial, a Novilngua: O objetivo da Novilngua no era apenas oferecer um meio de expresso para a cosmoviso e para os hbitos mentais prprios dos devotos de Ingsoc, mas tambm impossibilitar outras formas de pensamento. O que se pretendia era que, to logo a Novilngua fosse adotada definitivamente e a Anticlngua esquecida, qualquer pensamento hertico, isto , divergente dos princpios do Ingsoc, fosse literalmente impensvel, ou pelo menos at o limite em que o pensamento depende de palavras.*57 As ideias de Orwell baseiam-se na hiptese Sapir-Whorf. Embora Orwell fosse um mau linguista, pois muitas de suas noes sobre uma lngua no tm consistncia, no deixam de ser curiosas as caractersticas gramaticais, fonticas e lexicais da Novilngua expostas no romance.*58 Todas as propriedades da Novilngua convergem para a reduo do nmero de palavras e para a eliminao da polissemia e da conotao. Dessa maneira, no se podem pensar determinadas realidades e o controle sobre os indivduos total: Haveria muitos crimes e erros que estariam alm da capacidade do homem de comet-los, simplesmente pelo fato de que eles no tinham nomes e, portanto, eram inimaginveis. E se esperava que, com o passar do tempo, as caractersticas que distinguiam a Novilngua se tornassem cada vez mais pronunciadas; o nmero de palavras diminuiria, seus significados se tornariam cada vez mais restritos e a possibilidade de utilizar palavras de maneira imprpria se tornaria cada vez menor.*59 A Novilngua, assim como todas as lnguas, tem uma dimenso poltica: a de construir o real e de torn-lo dizvel. No entanto, essa lngua criada explicitamente por motivaes polticas. No mais no domnio da fico, Victor Klemperer, fillogo e especialista em Literatura Francesa do sculo XVII, escreve, em seu dirio, de 1933 a 1945, observaes sobre a semntica nazista, ou, segundo ele, as transformaes que os nazistas impem na lngua alem. Em 1947, ele toma de seu dirio as passagens concernentes ao discurso nazista e publica-as com o ttulo LTI: Lingua Tertii Imperii (1996). Klemperer era professor na Universidade de Dresden e foi destitudo por ser de origem judaica e designado para trabalhar numa fbrica. Era casado com uma mulher considerada "ariana" e, por isso, no foi enviado a um campo de concentrao. Embora Klemperer afirme que vai mostrar em sua obra as transformaes que os nazistas impem na lngua alem, como no distingue lngua e discurso, a maioria

de suas observaes diz respeito muito mais ao discurso nazista do que lngua alem em sentido estrito. Vejamos alguns exemplos. Certos termos, conotados negativamente, tornam-se positivos ou vice-versa, o que indica uma inverso de valores, como ocorre, por exemplo, com a palavra fantico.*60 Ampliam-se ou restringem-se os significados de determinadas palavras: por exemplo, herosmo utilizado apenas em sua acepo militar.*61 Termos do domnio esportivo e militar so bastante usadas*62 e invadem os outros campos semnticos, o da poltica, o da economia, o do ensino etc. Outros termos tm seu sentido radicalmente modificado (por exemplo, Abgewandert, "emigrado", passa a significar "deportado").*63 Usam-se eufemismos para travestir o significado real: por exemplo, soluo final. Criam-se neologismos: Untermenschentum, "sub-humanidade",*64 entjuden, "desjudaizar".*65 Seu sentido metafrico d-lhes uma carga emotiva muito significativa. Muitos desses termos tm acentos mticos: Volkskrper, "corpo popular"; aufnorden, "tornar mais nrdico"; "arisieren, "arianizar".*66 Como em alemo a composio bastante produtiva, torna-se fcil produzir neologismos com o acrscimo de um radical. Muitos neologismos so criados com os radicais Welt, "mundial"; Gross, "grande"*67 e Volk, "povo", um dos termos fortes do nazismo.*68 No se usam modalidades que exprimem a possibilidade, a dvida, a interrogao, mas somente os modos assertivos. Os discursos tm um carter religioso. Outras caractersticas so a recorrncia dos superlativos; a germanizao dos nomes de lugares e dos prenomes; a utilizao da ironia, das aspas; a multiplicao das abreviaturas e siglas, para indicar a organizao perfeita de tudo;*69 as repeties.*70 A poltica no sentido mais amplo (quaisquer relaes de poder) determina a organizao discursiva e sua circulao e pode, s vezes, deixar marcas na lngua, principalmente no lxico. Alm disso, certos usos lingusticos servem para marcar excluses e pertenas. A Bblia j conta um episdio desses. A palavra hebraica shibolet, "espiga", tinha uma variao dialetal sibolet. A tribo de Galaad estava em guerra com a de Efraim. Para identificar os efraimitas, pedia-se que a pessoa pronunciasse essa palavra. Quem dissesse sibolet era morto. Foram eliminados 42.000 efraimitas.*71 At hoje o termo shibolet nomeia uma maneira de pronunciar uma palavra, que identifica a origem de quem a diz. A fonologia torna-se letal. A diferena lingustica o lugar onde reside o dio ao outro, o lugar da discriminao, do preconceito. Certas pronncias so estigmatizadas, determinadas variedades so consideradas inaceitveis. Tudo isso serve para classificar, para selecionar, para excluir, para condenar. As regras do "bom" uso da lngua so relaes de poder. Elas obrigam a recalcar, a renegar uma lngua primeira (por exemplo, os descendentes de alemes ou italianos no Brasil deviam eliminar seu sotaque ou certos decalques de sua lngua primeira) ou uma variedade primeira da lngua (as variedades populares ou regionais do portugus), que so objeto de gozaes, reprimendas ou punies. Essa sano a lnguas ou variedades pode produzir uma resignao, ou seja, a aceitao de uma "inferioridade", ou uma revolta ativa, isto , a reafirmao com orgulho de uma determinada origem ou de um dado falar. Cabe observar, no entanto, que, no Brasil, pode haver uma revolta ativa em relao a um falar

regional, mas jamais a um falar social, o que significa que os estratos sociais se marcam negativamente de maneira muito forte em nosso pas. Muitas vezes certos usos so prescritos e outros, interditos. O fascismo italiano proibiu o uso do pronome de tratamento lei, que indica certa distncia, e determinou o uso dos pronomes que indicavam maior proximidade, pois todos os italianos pertenciam mesma "comunidade".*72 No perodo da ditadura de Ceaucescu foi proibido o uso dos pronomes de tratamento. As pessoas deveriam trata-se por tovar "camarada", "companheiro".

ConclusoBarthes diz que o "objeto em que se inscreve o poder a linguagem ou, para ser mais preciso, sua expresso obrigatria: a lngua".*73 Explica ainda, com base nas ideias de Foucault, que o poder mltiplo, onipresente, atravessa toda a Histria. Como vimos, so mltiplas as maneiras pela qual o poder se inscreve na linguagem. Sua natureza intrinsecamente poltica, porque ela sujeita os que a falam a sua ordem. Os silenciamentos operados pelo discurso manifestam uma relao de poder. Os discursos que circulam no espao social so submetidos ordem do poder, no so todos equivalentes. Os usos lingusticos podem ser o espao da pertena, mas tambm da excluso, da separao e at da eliminao do outro. Por isso, a lngua no um instrumento neutro de comunicao, mas atravessada pela poltica, pelo poder, pelos poderes. A literatura, pelos deslocamentos que produz, uma forma de trapacear a lngua, desvelando os poderes nela inscritos.

RESUMO Este trabalho, depois de discutir o sentido da palavra poltica, mostra que h quatro possveis abordagens para a questo das relaes entre lngua, discurso e poltica: a) a natureza intrinsecamente poltica da linguagem e das lnguas; b) as relaes de poder entre os discursos e sua dimenso poltica; c) as relaes de poder entre as lnguas e a dimenso poltica de seu uso; d) as polticas lingusticas. Este texto desenvolve apenas os dois primeiros itens. A linguagem e as lnguas tm uma natureza intrinsecamente poltica, porque sujeitam os falantes a sua ordem. Os silenciamentos operados pelo discurso manifestam uma relao de poder. A circulao dos discursos no espao social est tambm submetida ordem do poder. Os usos lingusticos podem ser o espao da pertena, mas tambm da excluso, da separao e at da eliminao do outro. Por isso, a lngua no um instrumento neutro de comunicao, mas atravessada pela poltica, pelo poder, pelos poderes. A literatura, pelos deslocamentos que produz, uma forma de trapacear a lngua, desvelando os poderes nela inscritos. Palavras-chave: poderes; silenciamentos; circulao dos discursos; preconceito lingustico; deslocamentos lingusticos.

LAEL/PUC-SP BAGNO, Marcos. Preconceito lingstico o que , como se faz. 15 ed. Loyola: So Paulo, 2002 Marcos Bagno, mineiro de Cataguases, autor de livros infantis, juvenis e, alm disso, j escreveu um livro de contos, A inveno das horas, ganhador do IV Prmio Bienal Nestl de Literatura em 1988. Em o Preconceito Lingstico O que , como se faz - publicado em 1999 pela editora Loyola, Bagno traz uma discusso sobre as implicaes sociais da lngua. Ele j havia discutido em seu livro A lngua de Eullia, Novela Sociolingsticaa forma preconceituosa com que a lngua tratada na escola e na sociedade e, no Preconceito Lingstico, retoma essa discusso. Na edio mais atual de seu livro (15), encontrei algumas modificaes significativas em comparao com a primeira edio. Segundo o autor, essas mudanas devem-se vontade de manter o livro sempre atualizado, sintonizado com a evoluo e a maneira de ver as coisas; com as crticas, sugestes e comentrios que o trabalho recebe. Dentre as mudanas, destaco o acrscimo de um captulo final - O Preconceito contra a lingstica e os lingistas, o anexo de uma carta de Bagno Revista Veja, e a histria da capa do livro. Bagno recusa a noo simplista que separa o uso da lngua em " certo" e " errado" , dedicando-se a uma pesquisa mais profunda e refinada dos fenmenos do portugus falado e escrito no Brasil. Ao mesmo tempo, convida o leitor a fazer um passeio pela mitologia do preconceito lingstico, a fim de combater esse preconceito no nosso dia-a-dia, na atividade pedaggica de professores em geral e, particularmente, de professores de lngua portuguesa. Para isso. O autor analisa oito mitos inseridos no primeiro captulo do livro A mitologia do preconceito lingstico. No Mito n 1 A lngua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente, em que o autor fala da diversidade do portugus falado no Brasil e destaca a importncia de as escolas e todas as demais instituies voltadas para a educao e a cultura abandonarem esse mito da unidade do portugus no Brasil e passarem a reconhecer a verdadeira diversidade lingstica de nosso pas Qualquer manifestao lingstica que escape desse tringulo escola-gramtica-dicionrio considerada, sob a tica do preconceito lingstico, " errada" , como Bagno discute no Mito n 4 As pessoas sem instruo falam tudo errado. No Mito n 2 Brasileiro no sabe portugus / S em Portugal se fala bem portugus, o autor faz uma longa anlise levando em conta a histria desses dois pases e desmistifica mais esse preconceito. Quanto ao ensino do portugus no Brasil, questo tambm abordada no Mito n 3 - Portugus muito difcil, o problema que as regras gramaticais consideradas " certas" so aquelas usadas em Portugal, e como o ensino de lngua sempre se baseou na norma gramatical portuguesa, as regras que aprendemos na escola, em boa parte no correspondem lngua que realmente falamos e escrevemos no Brasil. Por isso achamos que portugus uma lngua difcil. O mito, Brasileiro no sabe portugus afeta o ensino da lngua estrangeira, pois comum escutar professores dizer: os alunos j no sabem portugus, imagine se vo conseguir aprender outra lngua, fazendo a velha confuso entre a lngua e a gramtica normativa. Bagno, no Mito n 5 O lugar onde melhor se fala portugus no Brasil o Maranho, diz ser este um mito sem nenhuma fundamentao cientfica, uma vez

que nenhuma variedade, nacional, regional ou local seja intrinsecamente " melhor" , " mais pura" , " mais bonita" , " mais correta" do que outra. Mais um preconceito analisado a tendncia muito forte, no ensino da lngua, de obrigar o aluno a pronunciar " do jeito que se escreve" , como se fosse a nica maneira de falar portugus, Mito n 6 O certo falar assim porque se escreve assim. Mito n 7 preciso saber gramtica para falar e escrever bem. Segundo o autor, difcil encontrar algum que no concorde com esse mito. Que se invalida, entre outras razes, pelo simples fato de que se fosse verdade, todos os gramticos seriam grandes escritores, e os bons escritores seriam especialistas em gramtica. A gramtica, na viso do autor, passou a ser um instrumento de poder e de controle. O ltimo Mito O domnio da norma culta um instrumento de ascenso social, que fecha o circuito mitolgico, tem muito a ver com o primeiro, pois ambos tocam em srias questes sociais. Bagno diz que o domnio da norma culta nada vai adiantar a uma pessoa que no tenha seus direitos de cidado reconhecidos plenamente e que no basta ensinar a norma culta a uma criana pobre para que ela " suba na vida" Precisa haver um reconhecimento da variao lingstica, porque segundo o autor, o mero domnio da norma culta no uma frmula mgica que, de um momento para outro, vai resolver todos os problemas de um indivduo carente. No captulo II O crculo vicioso do preconceito lingstico, o autor explica que os mitos analisados no captulo I so perpetuados em nossa sociedade por um mecanismo de crculo vicioso do preconceito lingstico e demonstra como o procedimento de muitos profissionais colabora para a manuteno da prtica de excluso. No Captulo III A desconstruo do preconceito lingstico Bagno discute a ruptura do circuito vicioso do preconceito lingstico, afirmando que a norma culta reservada, por questes de ordem poltica, econmicas, sociais e culturais, a poucas pessoas no Brasil. Discute, por exemplo, a mudana de atitude do professor que deve refletir-se na no-aceitao de dogmas, na adoo de uma nova postura (crtica) em relao a seu prprio objeto de trabalho: a norma culta. Essa mudana, do ponto de vista terico, poderia ser simbolizada numa troca de slabas: ao invs de rePEtir alguma coisa,o professor deveria reFLEtir sobre ela. Neste mesmo captulo o autor discorre sobre o que ensinar o portugus; o que erro; a parania ortogrfica (procurar imediatamente erros na produo de um aluno). Reconhece que o preconceito lingstico est a, firme e forte, e que mudanas s acontecero quando houver uma transformao radical do tipo de sociedade em que estamos inseridos. No ltimo captulo ( IV) O preconceito contra a lingstica e os lingistas, Bagno discute o ensino da gramtica tradicional. Sua crtica diz respeito aos conceitos da gramtica tradicional, estabelecidos h mais de 2.300 anos. Levanta novamente a questo das mudanas, reconhecendo que o novo assusta, subverte as certezas e compromete as estruturas de poder e dominao h muito vigentes.

SILVA F.L. da & MOURA, H.M de M. (orgs.) (2000) O Direito Fala. A Questo do Preconceito Lingstico. Florianpolis: Insular, 128p.Resenhado por/by Edair Maria GORSKI (Universidade Federal de Santa Catarina)

PALAVRAS-CHAVE: Preconceito lingstico; Ideologia; Poder; Diversidade. KEY-WORDS: Linguistic prejudice; Ideology; Power; Diversity.

Trata-se de uma coletnea organizada em torno de um assunto polmico e bastante atual: o preconceito lingstico. Basta acompanhar, por exemplo, as inmeras prelees de cunho normativista (observadas em diversos mbitos) centradas no que "certo" e "errado" na lngua e a conseqente avaliao social que atribui prestgio ou estigma s diferentes falas, ou as discusses travadas em torno da linguagem politicamente correta, para se constatar o carter polmico do tema. Por outro lado, a atualidade do assunto visvel na recorrncia com que tem sido abordado sob diferentes ngulos, conforme atestam algumas publicaes, como a de Bagno (1999), o documento sobre Definio da Poltica Lingstica no Brasil resultante de ampla discusso entre os lingistas e publicado no Boletim da ABRALIN, 23 (1999); o Boletim da ALAB 4-4 (2000) sobre o Projeto de Lei contra os Estrangeirismos, bem como matrias em jornais a exemplo de Faraco (2001) na Folha de S.Paulo, entre outras. Objetivando estender o debate a um pblico mais amplo, numa linguagem acessvel e "sem o peso da argumentao acadmica", como bem apontam os organizadores na introduo do livro, O direito fala surge oportunamente num momento em que se testemunha o sucesso de "novos gramticos mediatizados" e em que ganha "nova relevncia o poder simblico da linguagem" (p.10). Contendo dez trabalhos que refletem com seriedade diferentes leituras do preconceito lingstico, a obra se prope intervencionista, colocando, de maneira instigante, resultados da pesquisa em diversas reas da linguagem a servio do direito expresso, com respeito s falas que os grupos construram ao longo da histria. Os organizadores apresentam, com elegncia, o conjunto dos artigos, tecendo a trama que interliga os diferentes textos, recobertos por uma mesma temtica que pode ser resumida como: crtica idia de unidade nacional alicerada numa lngua idealizada pura e nica. No artigo de abertura, intitulado A prosa de Lima Barreto: o que quer essa lngua?, Cludio Cruz, num estilo leve e despojado, refere-se aos, assim chamados por ele, "trs moleques do Segundo Reinado" Machado de Assis, Cruz e Sousa e Lima Barreto (p.20), reunidos pela caracterstica comum de, negros, terem sido apadrinhados por famlias nobres e, conseqentemente, terem tido acesso a uma formao superior. No obstante esse trao de aproximao, o autor ope Lima Barreto aos demais escritores,

em razo do uso peculiar que aquele faz da lngua portuguesa, considerado poca como incorreto, e s mais tarde visto como inserido, com estilo, no contexto cultural, por buscar falar a lngua do povo e no retratar a linguagem dominante do perodo. Esse fato particulariza a obra do romancista, caracterizando-a como de "militncia literria" lingstica, da sua importncia no que se refere questo do preconceito lingstico. Cruz convoca o leitor a, sem demora, procurar entender a questo da lngua na obra do autor de Recordaes do escrivo Isaas Caminha e de Triste Fim de Policarpo Quaresma (cujo conjunto parece trazer "uma espcie de bomba-relgio que s agora comea a ser detonada"), especialmente nesse momento em que, conforme vislumbra o ensaista, presenciamos o incio da imploso da idia de um espao literrio nacional e nico, quando outras lnguas buscam expresso dentro da lngua oficial, quando "a iluso de uma nao coesa e unificada deixa de existir" (p.20). Para escrever o segundo artigo, Os Aldrovandos Cantagalos e o preconceito lingstico, Jos Luiz Fiorin se inspira em um personagem de Monteiro Lobato do conto O colocador de pronomes, o qual, vivendo em busca de erros gramaticais, deixa de perceber as belezas da linguagem. A lngua como resultado de um processo histrico o pano de fundo para a caracterizao do preconceito lingstico como fruto da "intolerncia em relao variao e mudana" (p.27), preconceito que a prpria escola e os gramticos tratam de difundir. O autor focaliza fatos da mdia em que a diversidade lingstica ridicularizada e, com bastante pertinncia, examina trechos de uma entrevista de Pasquale Cipro Neto dada revista VEJA (setembro de 1997), nos quais o professor de gramtica corrobora muitos preconceitos lingsticos partindo da concepo equivocada de que a lngua homognea e esttica. Aproveitando "deixas" de Pasquale na matria, o autor discorre sobre diferenas entre a fala e a escrita e entre o portugus brasileiro e o europeu, e discute comentrios equivocados como os seguintes: do ponto de vista da norma culta, a melhor fala a do Rio de Janeiro e a pior a de So Paulo; idiota quem usa palavras em ingls no lugar de palavras equivalentes em portugus; em termos lingsticos "estamos nivelados por baixo" (p.34); e a "prola" final: o comentrio do referido professor, por ocasio de um conhecido comercial da cadeia McDonalds, de que no teria feito publicidade dos lanches mas sim divulgado a lngua portuguesa... Por fim, considerando amplamente a diversidade lingstica, desqualifica com veemncia a opinio dos guardies da lngua, de que "os lingistas esto destruindo o idioma, porque para eles vale tudo" (p.35). Tratando, na seqncia, de Estrangeirismos: emprstimo ou ameaa?, Pedro Garcez e Ana Zilles atribuem ao emprstimo, tido como fenmeno constante no contato entre comunidades lingsticas, marca de identidade aliengena com valores simblicos por vezes conflitantes. Os autores organizam didaticamente o texto em torno das seguintes sees: Legitimidade e pureza; Anglicismos: A fora do desejo; Diligncias legislativas; Preconceito e excluso; Diversidade invisvel e vida social da linguagem. De incio, a partir do exame de uma srie de palavras e expresses, demonstram no ser tarefa simples identificar o que seria portugus puro e como algo deixa de ser um estrangeirismo e se incorpora lngua da comunidade. A seguir, os autores argumentam que a averso ao estrangeirismo devida, especialmente, presena da indstria simblica norte-americana, portanto os emprstimos no seriam, na realidade, necessrios, mas desejados face aos apelos da mquina capitalista globalizante. Na seo seguinte, trazem tona a posio ideolgica que sustenta os projetos de lei contra os estrangeirismos, destacando, com propriedade, o fato de que se apagam as diferenas internas aos grupos quando um elemento externo paira como ameaa comum, o que

acaba por legitimar a concepo de que "a lngua da nao se restringe lngua do poder, norma escrita, socialmente controlvel, cujos limites so definidos pelas classes dominantes" (p.46). Ao abordarem a questo do preconceito e da excluso, os autores do visibilidade a uma srie de equvocos, dentre os quais destaco: o de que a escrita a essncia da linguagem; o que ignora a diversidade lingstica e os processos de variao e mudana; e o que prev a existncia de uma lngua pura. Por fim, Garcez e Zilles tratam de questes como a atitude frente lngua de poder e a competio pelo acesso aos bens sociais, concluindo que a "chave invisvel, mas legitimada, das prticas excludentes" a ideologia lingstica de que somos um pas monolnge (p.51). A denncia do papel da mdia na formao e na divulgao de preconceitos lingsticos, mediante anlise de cenas da novela Escrava Isaura (Rede Globo, 1976), baseada no romance de Bernardo Guimares, e do filme americano No corao de Clara ambos tratando de questes raciais, a tnica do texto de Fbio Lopes da Silva: Dois casos de preconceito lingstico na mdia. Em ambos os casos, o pretenso anti-racismo retratado pelo o qu se esvazia no como lingisticamente expresso. Na novela, o autor centra a ateno na forma como os personagens da Casa Grande se expressam, isto , no tipo de construes gramaticais eleitas para representar a fala dos brancos (incluindo entre esses a escrava 'mocinha' Isaura) emoldurada por "todos os ss e rr da norma gramatical", e a fala dos demais escravos estilo "Tio Barnab" (p.55); e destaca, como efeito induzido, a reproduo do mito de uma lngua perfeita e intocada, tomado como realidade histrica, o que, segundo uma avaliao perspicaz do autor, leva as novelas de poca a provocarem um prejuzo cultural. O autor projeta uma associao bastante interessante entre a chamada corrupo da lngua e "uma espcie de vrus lingstico que, na poca da escravido, permanecia confinado e controlado..." (p.57). No filme, recortada uma cena em que o garoto branco, dignificando a lngua materna da governanta negra, dirige-se a ela em patu jamaicano, legendado em portugus como "num v faz isso", episdio que reproduz um preconceito generalizado: o de que construes como essa se restringem a determinada camada scio-demogrfica, donde o autor conclui que "atribumos a ns mesmos uma lngua perfeitamente imaginria" (p.61). No quinto artigo da coletnea, Edwiges Morato aborda As afasias entre o normal e o patolgico: da questo (neuro)lingstica questo social, distribuindo o tema em quatro sees: As afasias entre o normal e o patolgico; O processo de patologizao da linguagem e dos falantes; A origem das "significaes intolerveis"; e O afsico entre o preconceito lingstico-cognitivo e a negligncia social. Na primeira seo, a autora tematiza o preconceito contra os que apresentam alteraes em suas diferentes formas de uso da linguagem em decorrncia de leso cerebral adquirida, enfatizando que a afasia no apenas uma questo de sade, ou uma questo lingstica, ou cognitiva, mas tambm uma questo social; nesse sentido, considera que os limites entre a normalidade e a patologia esto vinculados "vontade de verdade" (Foucault, 1977) de uma poca, ou seja, mentalidade e ao discurso cientfico vigente em uma certa sociedade. Em seguida, discorre sobre o processo de patologizao, argumentando que existe um continuum sem fronteiras rgidas entre o normal e o patolgico e que as doenas devem ser entendidas como a perturbao de um equilbrio. A autora critica condutas mdico-teraputicas que se voltam para a "superao" do distrbio de linguagem tido como um dficit (em decorrncia de uma viso idealizada de linguagem como poder racionalizante da mente), ponderando que o afsico, mesmo perdendo a palavra, "no perde necessariamente sua capacidade discursiva" (p.70). Na seo seguinte, a autora comenta que, numa concepo normativa de cognio e de

linguagem, fatos como digresses, lapsos, hesitaes, etc. so caracterizados como "significaes intolerveis" e tidos como "sintomas" em quadros de afasia, muitos deles assim rotulados por razes ideolgicas e no por razes lingsticas ou cognitivas. O que explica o surgimento das "significaes intolerveis" a noo de linguagem como instrumento de acesso aos processos cognitivos internos, cuja funo primordial a comunicao qual seramos levados por um princpio natural de cooperao. Encerrando o texto, Morato apresenta uma ao exemplar contra o estigma e a excluso social impostos ao afsico: a criao do Centro de Convivncia de Afsicos (IEL/Unicamp), lugar onde se desmedicaliza a afasia e se enxerga "o pthos como constitutivo do normal" (p.74). O artigo seguinte, A lngua popular tem razes que os gramticos desconhecem, assinado por Heronides Moura. O autor inicia o texto questionando os motivos que levam escolha da norma culta como a representativa e "correta" da lngua, e aponta, como uma das razes pelo preconceito contra a fala das classes populares, a dicotomia arraigada em nossa cultura, decorrente da correlao entre pensamento e linguagem, que ope a "racionalidade da classe educada" "espontaneidade pr-racional do povo" (p.76): a lngua popular seria criativa, espontnea mas s vezes ilgica; a lngua culta seria a melhor expresso da racionalidade e da cultura oposio que reflete a "normatizao social promovida pelo Estado brasileiro" (p.77). Moura ilustra muito bem sua linha de raciocnio com uma anlise criteriosa de formas de representar a comparao em portugus, contrapondo ao padro normativo 'to/tanto... quanto' e '...como', as expresses'que nem' e 'que s', tidas como de uso popular e possivelmente condenadas pelos normativistas pelo aparente ilogicismo presente nelas. A partir de um princpio bsico da interpretao segundo o qual os interlocutores levam em conta no s o sentido inicial das expresses mas tambm a inteno do falante, o autor demonstra que a forma 'que nem' ('o aluno esperto que nem o professor') simultaneamente compara e formula um julgamento sobre o termo comparado. A construo seria barrada como contradio lgica se analisada apenas quanto ao sentido inicial; mas esse uso deve ser interpretado como hiperblico, cumprindo a funo comunicativa de enfatizar que o julgamento recai sobre o termo comparado e no sobre o comparante. J a expresso 'que s' ('o aluno feio que s o professor') ressalta no s o julgamento feito sobre o termo comparado, mas tambm o carter prototpico do termo com o qual se compara (no caso, o professor seria tido como um exemplo de feira, propriedade que projetada sobre o aluno). Por fim, na construo elptica ('o aluno feio que s'), a elipse do termo comparante inicialmente interpretada como de um prottipo, mas a construo acaba se congelando e funcionando como um advrbio que intensifica a propriedade comparada (= muito feio). O autor demonstra, assim, o perfeito funcionamento comunicativo dessas construes, que so solenemente ignoradas pelos gramticos tradicionais. Abordando a relao entre o Estado e a lngua, no texto Brasileiro fala portugus: monolingismo e preconceito lingstico, Gilvan Mller de Oliveira enfatiza os seguintes fatos, subjacentes concepo de que no Brasil se fala uma nica lngua: preconceito, desconhecimento da realidade e projeto poltico de construir um pas monolnge. O autor coloca muito bem a questo de que ideologicamente produziu-se no Brasil o conhecimento de que se fala o portugus e o desconhecimento de que muitas outras lnguas so faladas (por volta de 200 idiomas atualmente, sendo 170 lnguas autctones e 30 lnguas alctones). Mller de Oliveira traa um percurso histrico ricamente documentado do plurilingismo no Brasil, da poltica homogeinizadora e

repressiva de imposio do portugus como a nica lngua legtima e da conseqente reduo do nmero de lnguas por um processo conhecido como "deslocamento lingstico" (p.84). Esse processo envolveu aes como (i) a de civilizar os ndios mediante a imposio da lngua portuguesa e o "assassinato" especialmente da lngua geral na Colnia (o que ocasionou uma verdadeira "guerra de lnguas" (Calvet, 1999a)); e, posteriormente, (ii) a de nacionalizar o ensino no Estado Novo, com represso violenta s lnguas alctones, especialmente o alemo e o italia no no sul do Brasil. O que o autor avalia como um dos fatos mais trgicos que poucas vozes representativas se opuseram ao processo de homogeneizao, em defesa de uma sociedade culturalmente pluralista. Evidenciando o fato de que somos hoje um pas pluricultural e multilnge, seja pela variedade dialetal, seja pela diversidade de lnguas faladas no territrio, Mller de Oliveira critica o espao reduzido que ocupam na universidade tanto pesquisas sobre plurilingismo, como projetos de uma poltica de garantia dos direitos lingsticos s populaes no falantes de portugus, e conclui defendendo, com certa dose de ousadia, a idia de uma redefinio do "conceito de nacionalidade, tornando-o plural e aberto diversidade" (p.91). Quem assina o artigo seguinte Kanavillil Rajagopalan. Aps fundamentar certos argumentos que tm circulado contra a linguagem politicamente correta, o autor de Sobre o porqu de tanto dio contra a linguagem "politicamente correta" conduz uma reflexo em outra direo, evidenciando situaes em que a linguagem tem, sim, impacto sobre as coisas e os acontecimentos. O autor vale-se, inicialmente, de algumas crticas feitas por Possenti (1995), tais como a de que o problema no est na linguagem propriamente dita, mas tem mritos polticos e que um equvoco pensar que uma substituio de palavras com diferentes conotaes ideolgicas poderia influenciar na diminuio dos preconceitos, e coloca a descoberto a concepo de linguagem e de mundo que recobre crenas generalizadas como a de que a linguagem serve de roupagem do pensamento, a primeira sujeita a todo tipo de desgaste, o ltimo no; e a de que a linguagem pode nos enganar (veja-se o uso da linguagem figurada). A posio que da se segue : de que adianta mudar a linguagem se o pensamento o mesmo? Contra-argumentando, o autor enfraquece a noo saussureana de arbitrariedade do signo ao afirmar que a grande maioria dos objetos que se nos apresentam "est presente em nossa conscincia junto com a imagem que cada um deles adquiriu ao longo dos tempos" (p.99). Rajagopalan respalda sua idia no mundo do marketing, em que todo objeto no fundo um "produto", isto , um objeto produzido de forma tal que impossvel recuper-lo em sua "pureza", pois os conhecemos ligados ao seu modo de apresentao; especialmente no princpio norteador do marketing de que possvel transformar o produto e no apenas a sua imagem. Ao refletir sobre a prtica de determinados usos lingsticos luz do mundo do marketing, o autor mobiliza o leitor a acreditar que ao trocar as palavras trocam-se tambm as coisas. Ento conclumos com ele: uma das maneiras mais eficazes (no a nica!) de combater os preconceitos sociais monitorar a linguagem e exercer controle sobre a fala, pois "intervir na linguagem significa intervir no mundo" (p.102). Focalizando o carter idealizado do portugus oficial que privilegia a escrita padro, Marco Rocha e Juliana Pereira escrevem O uso de corpora na elaborao de trabalhos de referncia: uma vacina contra o preconceito, argumentando que trabalhos de referncia tais como gramticas e dicionrios no cumprem adequadamente sua funo em virtude de discriminao da lngua falada. Na seo subseqente introduo, os autores falam sobre as abordagens com base em corpus, discorrendo sobre as

caractersticas ideais do mesmo: amostragem representativa, tamanho, formato legvel por computador e uma referncia padro, pressupondo-se a disponibilidade do material para a comunidade lingstica em geral. A seguir, tratam do uso do corpus contra o preconceito lingstico, dando relevo ao papel auxiliar que a abordagem proposta pode desempenhar na elaborao de trabalhos de referncia. Como evidncia, apresentam o perfil de uso do verbo dar, com base na freqncia de ocorrncias desse item lexical num corpus especfico, verificando-se que grande parte desses usos corresponde a construes do tipo 'D s uma aguardadazinha...', uso este no contemplado num dicionrio da lngua portuguesa, por exemplo, a despeito de sua recorrncia na fala, o que se caracteriza como um reflexo sintomtico de preconceito. Uma regra lxicogramatical de formao de sintagmas verbais que permitiria a produo de inmeras combinaes similares , ento, apresentada pelos autores. Concluindo, propem que a noo de freqncia seja "parte integrante dos critrios de seleo de usos a serem includos nos trabalhos de referncia", a despeito do prestgio social dos mesmos (p.110). O artigo que encerra a coletnea, Lngua estrangeira: direito ou privilgio?, de autoria de Josalba Vieira e Heronides Moura. Ao analisarem duas situaes prototpicas de plurilingismo, apoiados em documentos oficiais que legislam sobre os direitos do cidado a uma educao bilnge, os autores chamam a ateno para preconceitos, por vezes camuflados, presentes em situaes de aprendizado e de uso de lnguas estrangeiras. As situaes examinadas so jocosamente identificadas como: O monoglota orgulhoso e o provinciano cosmopolita; e O poliglota esnobe e o poliglota ignorante. Ambos os casos so relacionados metfora do "sistema gravitacional" (Calvet, 1999b), que explica a estruturao das lnguas entre si, de acordo com cada momento histrico, em termos de lngua hipercentral, supercentral, central e perifrica. Haveria, de um lado, uma correspondncia entre a situao do provinciano cosmopolita e a dos falantes da lngua mais importante de cada perodo histrico; e, de outro lado, entre a situao do poliglota e a dos falantes das demais lnguas, resultando a avaliao de "ignorante" ou "esnobe" do lugar ocupado por tais lnguas no sistema gravitacional. Falantes poliglotas de lnguas tidas como perifricas, por exemplo, no costumam ser valorizados pelo fato de serem plurilnges (nem por eles prprios!); j aqueles que falam lnguas situadas em nveis mais prximos ao centro gravitacional, portanto de maior prestgio, tenderiam ao prottipo do poliglota esnobe, isto , daquele que usa uma lngua estrangeira com a inteno de marcar diferena cultural e no para interagir. Os autores discutem amplamente o preconceito que perpassa essas diferentes situaes lingsticas, ilustrando-as com relatos de casos reais e concluem dizendo que "lutar contra os diversos tipos de preconceito lingstico ligados ao uso de lnguas estrangeiras no uma tarefa fcil, mas saber identific-los um passo importante" (p.124). Nesse sentido, o artigo cumpre perfeitamente seu papel. Em suma, a diversidade de abordagens crticas em torno de uma temtica comum prende a ateno do leitor, seja pela escolha instigante e feliz dos fenmenos lingsticos analisados (numa obra literria, num filme, numa novela de televiso, no marketing, num projeto de lei, na fala de um professor de gramtica, na fala de um poliglota, na fala de um afsico, enfim, na fala do povo...), seja pelo tratamento criterioso dispensado por cada autor ao texto. Acredito que o livro deve atender plenamente seu propsito, merecendo ser lido, divulgado e discutido.