artigo - sociedade de risco e o direito penal econõmico
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Artigo sobre sociedade de risco e Direito Penal econômico.TRANSCRIPT
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Revista de Direito Pblico, Londrina, v. 5, n. 2, p. 202-220, ago. 2010 202
SOCIEDADE DE RISCO, DIREITO PENAL E POLTICA CRIMINAL
RISK SOCIETY, CRIMINAL LAW AND CRIMINAL POLICYINAL
Eduardo Diniz Neto1
RESUMO: O presente artigo respeita ao novo direito penal no contexto de uma sociedade contempornea globalizada caracterizada como uma sociedade de ris-cos, a exigir sua interveno em searas nunca antes imaginadas pelo direito penal clssico, as quais so objetiva e subjetivamente amplificadas e potencializadas por diversos fatores, dentre os mais proeminentes, o progresso tecnolgico, o desenvol-vimento do conhecimento e a fora dos poderosos num mundo dominado pelas leis do mercado e da eficincia econmica. Trata, portanto, deste direito penal mo-derno e sua misso de, a par da proteo de bens jurdicos tradicionais, simultanea-mente se voltar para a tutela de novos bens jurdico-penais peculiares da sociedade ps-industrial, tambm sob o enfoque da poltica criminal.
Palavra-Chave: Direito Penal; Crise; Poltica Criminal; Sociedade de risco.
ABSTRACT: The following scientific article regards to the new criminal law into a globalized and contemporary society, characterized as a risky society, that demands its intervention in fields never wondered before by classical criminal law, which are objective and subjectivelly increased and potentialized by many sour-ces, mainly technological progress, knowledge development and the powerfulls strength in a world dominated by market rules and economic eficiency. Therefore, the article faces this modern criminal law and its simultaneous mission, as time as protects traditional legal wills, to defend those new wills raised upon a post-indus-try society, also in a criminal policy perspective.
Palavra-Chave: Criminal Law; Crisis; Criminal Policy; Risky society.
INTRODUO
O tema do presente trabalho respeita ao novo direito penal no contexto de uma so-
ciedade contempornea globalizada caracterizada como uma sociedade de riscos, a exigir sua
interveno em searas nunca antes imaginadas pelo direito penal clssico, as quais so objetiva
e subjetivamente amplificadas e potencializadas por diversos fatores, dentre os mais proemi-
nentes, o progresso tecnolgico, o desenvolvimento do conhecimento e a fora dos poderosos
num mundo dominado pelas leis do mercado e da eficincia econmica (neoliberalismo).
1 Professor do Departamento de Direito Pblico da Universidade Estadual de Londrina e Promotor de Justia.
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Tratar-se-, portanto, deste direito penal moderno e sua misso de, a par da proteo
de bens jurdicos tradicionais, simultaneamente se voltar para a tutela de novos bens jurdico-
penais peculiares da sociedade ps-industrial, tarefa que implica na reviso de muitos de seus
fundamentos de ordem dogmtico-jurdica e das posturas poltico-criminais ainda hoje, sob
muitos aspectos, em voga.
Para tanto, imprescindvel incorrermos - sem perder de vista a atemporal, posto que
ainda aplicvel aos nossos dias, definio de poltica criminal de Feuerbach - pelo conjun-
to representativo de procedimentos atravs dos quais, dentro de diversas tendncias, o corpo
social virtualmente organiza as respostas ao fenmeno criminal, no s no mbito do direito
penal, passando, necessariamente, tambm por polticas pblicas de incluso social e mudana
de paradigmas culturais.
Sob o ponto de vista poltico-criminal, na atualidade, no resta dvida de que o direito
penal continua a figurar como a mais grave forma de interveno estatal diante do indivduo, o
que leva, por um lado, para muitos, imperiosa necessidade de reforo paradigmtico do deno-
minado direito penal mnimo.
Isto porque a crise do pensamento ressocializador relativamente s consequncias jur-
dicas do delito, a saber, as sanes de natureza penal - nomeadamente a mais tradicional delas,
a priso -, desencadeou o surgimento de propostas genuinamente abolicionistas ou, numa pers-
pectiva menos radical, reducionistas do sistema penal. Como se ver, as propostas reducionistas
gravitam ao redor de dois aspectos principais: a alternativa despenalizadora e a realocao do
papel da vtima como protagonista no contexto do conflito penal.
No entanto, a sociedade moderna, paradoxalmente, diante do atual estgio de evoluo
tecnolgico-industrial, cientfica e econmica, passou a conviver com uma srie de condutas
atentatrias a bens jurdicos inalcanveis pela forma de tutela de um dito direito penal clssico,
situao que exige, por conseguinte, a modernizao de seu complexo normativo-coercitivo-
repressivo, sem o que no h como se legitimar a interveno deste ramo do direito para a
soluo de conflitos ou mesmo como instrumento de defesa social ou da ordem pblica. Numa
aproximao, assim, com a prpria teoria da sociedade, situada entre o plano da fundamentao
e o plano de aplicao do direito penal, a dinmica da sociedade do risco conduzida por uma
racionalidade instrumental (econmica, tcnica e cientfica), com vis, muitas vezes, marginal
aos discursos moral e tico, que responsvel pelo surgimento de novos e grandes riscos e sua
potencial dimenso de catastrfica. Na verdade, as sociedades contemporneas tm vindo a ser
confrontadas e a adquirir progressivamente conscincia de que o progresso tecnolgico, cient-
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fico e econmico que assenta o seu desenvolvimento, a par de inmeros benefcios, produz gra-
ves ameaas para a existncia e a qualidade da vida humana (SILVA DIAS, 2008, p. 21-22).
Diante das contingncias desse novo dirigismo da sociedade de riscos, ou seja, den-
tro de um contexto de exigncias da prpria modernizao do direito penal, recrudesce, para
muitos crticos, a crena na capacidade de intimidao pelas penas, revalorizando-se o escopo,
principalmente, da preveno geral atravs das sanes de natureza penal frente a condutas de
determinados grupos de pessoas, representativos de verdadeiras fontes de perigo e que, por
isso mesmo, devem ser neutralizados a qualquer custo (direito penal do inimigo), sem se prio-
rizar, ou mesmo a desprezar totalmente, o carter preventivo especial (ressocializao).
Portanto, o atual debate sobre a legitimidade do direito penal est centrado no bin-
mio reducionismo garantista e expanso, dentro do contexto - e lgica tenso dialtica - de
exigncias da modernizao do direito penal e, concomitantemente, preservao de garantias
fundamentais do cidado.
PRINCIPAIS POSTURAS POLTICO-CRIMINAIS FRENTE CRISE RESSOCIALI-
ZADORA DO DIREITO PENAL
Com a crise ressocializadora do Direito Penal, surgem, num primeiro momento e mais
acentuadamente a partir da primeira metade do sculo XX, posturas poltico-criminais de n-
dole amplamente restritiva no tocante sua interveno para a soluo de conflitos sociais ou
mesmo, na moderna concepo, para a tutela de bens jurdicos. Dentre elas, destacam-se o
abolicionismo, a opo reducionista e a opo garantstica ou garantista.
O abolicionismo
O abolicionismo (na sua feio mais radical, denominado de utpico) teve por fun-
damento, essencialmente, as construes teorticas de autores como Louk Hulsman, Neils
Christie, Mathiesen e Foucault.
Permeia, esta postura poltico-criminal, ora um sentido amplo, ora um sentido mais
restrito.
No seu sentido amplo e extremado - tendo por base a teorizaes da criminologia ra-
dical, que desqualifica totalmente o sistema penal -, apregoa a abolio conjuntural do sistema
penal, a ponto de sugerir sua total substituio por outras formas de interveno estatal ou, de
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qualquer outra forma, reconhecidas como jurdicas na soluo de conflitos relativos s leses
ou ameaas de dano a bens relevantes em sociedade, mediante sanes tradicionalmente conce-
bidas como de natureza extrapenal, mormente indenizatrias ou reparatrias (CRESPO, 2004,
p. 14-18). Confronta-se, assim, como se ver frente, com o abolicionismo institucional e com
o chamado reducionismo penal (direito penal mnimo).
Na vertente restrita e menos radical, entretanto, traz a ideia de abolio de algum
aspecto concreto do sistema penal, numa perspectiva abolicionista institucional, como se d,
v.g., no tocante a determinadas espcies de penas ou outras instituies penais segregatrias.
A propsito, existem, mundo afora, registros histricos de diversos movimentos abolicionistas
precedentes, como no caso da abolio da escravatura, das penas corporais, da pena de morte,
etc..
Em qualquer que seja seu sentido, no entanto, o abolicionismo entende o sistema penal
como um autntico mal sociedade, na medida em que configura resposta violenta e pblica ao
fenmeno delituoso, suscetvel tambm de incitar maior violncia, porquanto cria e alimenta a
falsa sensao de proporcionar, s vtimas, ajuda e proteo, levando frustrao e ao perigoso
descrdito no prprio sistema.
Na sua genrica acepo, ainda, concebe o delito como uma situao problemtica, uma
realidade que s aqueles diretamente implicados - ou seja, autor, vtima ou seus representantes
- conhecem. Em outras palavras, os protagonistas do delito so dotados da disposio fenome-
nolgica para a compreenso das coisas, que, por conseguinte, somente pode ser qualificada e
solucionada a partir da viso que a conscincia dos componentes do grupo afetado tem da mes-
ma, o que leva, ao fim e ao cabo, negao do monoplio da soluo do conflito pelo Estado.
Reclama, em suma, um entendimento totalmente diferente do universo penal a partir
de trs idias exponenciais: a) o dano e sua compensao; b) a sobrevalorizao dos conflitos
como antagonismos interpessoais; e c) a priorizao de acordos no processo penal, de modo a
reivindicar a devoluo dos conflitos aos seus diretamente implicados, todos, inclusive vtima,
tratados como protagonistas do fenmeno.
Obviamente que essa proposta abolicionista, tanto mais na sua vertente radical, sofreu
e ainda sofre crticas de diversas ordens, desde aquelas de cunho cientfico, passando pelas de
cunho garantista, at ao criminolgico, levando-a ao quase total ostracismo ante a superao
por outras correntes epistemolgicas.
Com efeito, seus crticos apontam, sob o primeiro aspecto cientfico, a inconsistncia
de suas bases e propostas, j que parte para a construo de uma poltica criminal eminente-
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mente irregular. O Abolicionismo , segundo aqueles, dentro da perspectiva da teoria do conhe-
cimento, um mtodo que, de acordo com a concepo de Heidegger, entraria em uma relao
dialtica com o seu objeto. Assim, sendo o mtodo a luta pela abolio de todo o sistema penal,
este teria, paradoxalmente, por objeto o sistema penal que busca eliminar, sem pretender, em
momento algum, uma reconciliao entre o intelecto e o status quo (CRESPO, 2004, p. 18).
A principal crtica de cunho garantista prende-se na constatao de que a abolio do
direito penal implica na diluio simultnea de seus limites, que pode conduzir instaurao
do caos, de uma sociedade disciplinar sem controle ou de controles quase ilimitados face au-
sncia de garantias.
Por fim, sob o ponto de vista criminolgico, destaca-se criticamente que no h evi-
dncias mnimas, qualquer que seja a sociedade, de que esta queira prescindir da ideia de retri-
buio, a par da coexistncia auspiciosa da ressocializao, pelo contrrio: a ideia de abolio
do castigo no satisfaz a grande maioria dos contextos sociais, concluindo-se que este ainda
um imperativo categrico para muitos, cuja inexistncia poderia levar igualmente a uma teme-
rria insatisfao dos cidados.
O reducioniso
O reducionismo - para alguns uma espcie ou ramificao do abolicionismo em senti-
do restrito -, tem por traos caractersticos, em sntese, a aceitao da existncia do sistema pe-
nal, buscando, porm, alternativas realistas sua atual configurao, fundadas numa concepo
das instituies com esprito humanista.
Nesse af, preconiza alternativas ao atual sistema, estabelecendo novos paradigmas,
fundados na dignidade da pessoa humana, para - to mais acentuadas, quanto sejam possveis e
recomendveis -, a descriminalizao de condutas, a despenalizao e a descarcerizao, bem
como buscando uma verdadeira justia penal consensual, como tcnica alternativa para a solu-
o de conflitos desse gnero.
Trata-se de corrente da poltica criminal que dirige severas crticas ao arrefecimento
punitivo quanto pena privativa de liberdade e, segundo seus adeptos, a utilizao e manipu-
lao das vtimas para que o poder estatal possa reivindicar o programa poltico-criminal ma-
ximalista subjacente, como se o direito penal pudesse, por si s e onipotentemente, com a pena
(castigo), restaurar a justia material.
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Especificamente quanto pena privativa de liberdade, considera que a priso opera
como fator crimingeno, uma vez que a subcultura das masmorras, com a privao at mesmo
de mnimos prazeres, gera uma autntica psicose carcerria, de modo a inviabilizar o cumpri-
mento dos fins de preveno geral e de preveno especial, como concebidos sob a tica dos
clssicos do direito penal. Acentua, ainda, essa postura poltico-criminal, tal qual j o fazia Von
Liszt ao seu tempo, a inocuidade das penas privativas de liberdade de curta durao .
Indica como motivos ensejadores da imperiosa necessidade de reduo do uso da pena
privativa de liberdade, portanto - a par dos questionamentos acerca da desproporcionalidade e
consequente abuso no uso das penas de longa durao em determinados casos -, o fato de esta
consubstanciar efetiva causa do incremento tanto da criminalizao primria , quanto da crimi-
nalizao secundria , alm de que a recluso, comprovadamente, em nada contribui para a al-
mejada ressocializao do sentenciado, dentro daquilo que se convenciona comumente chamar
de crise do pensamento ressocializador.
O reducionismo, assim, concebe o direito penal como um direito de garantias, cuja
aplicao surge calcada, precipuamente, em uma srie de princpios fundamentais irrenunci-
veis , hauridos do contexto histrico-social e com assento constitucional, com base nos quais
levado a buscar alternativas vlidas para a pena privativa de liberdade, enquanto esta continue
a ser imprescindvel ao sistema penal frente gravidade das condutas perpetradas contra deter-
minados e extremamente valiosos bens jurdicos.
Esta corrente no perde de vista, contudo, que toda a poltica criminal que pretende
limitar a interveno penal deve vir acompanhada de polticas sociais de transformao das
estruturas scio-econmicas.
Num particular aspecto que, sem confundi-lo, o aproxima de uma das ideias fundantes
do abolicionismo, o reducionismo igualmente prega a priorizao de acordos no processo penal,
de modo a reivindicar a devoluo dos conflitos aos seus diretamente implicados, atribuindo
vtima o papel de figura central do fenmeno delituoso. Sob influncia da vitimologia norte-
americana, sobretudo desde a dcada de 60 do sculo passado, introduz a vtima no conflito
penal, compreendendo o delito como drama humano com dois plos antagnicos protagonistas,
numa real modificao, face s correntes clssicas, do objeto e da orientao da criminologia,
com naturais conseqncias para o mbito da poltica criminal e dogmtica penal, dentre elas
a discusso dos problemas atinentes reparao de danos ao ofendido e compensao entre
autor e vtima, para o que se destacam instrumentos alternativos cada vez mais recorrentes,
como o caso da mediao penal, por muitos considerada o principal instrumento da justia
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restaurativa, que, por sua vez, tambm apontada como uma verdadeira alternativa ao sistema
penal (SANTOS, 2006, p. 85-91).
Atribui, assim, uma perspectiva horizontal ao delito - tendente a evitar, outrossim, a
denominada vitimizao secundria (SANTOS, 2006) -, e procura se impor como resposta
atual crise da poltica criminal, que surge, como visto, ante o ceticismo reinante quanto s pos-
sibilidades de preveno do direito penal.
Atravs dessa perspectiva horizontal do delito, contrape-se, o reducionismo, tradi-
cional perspectiva do crime, fundada em um conflito essencialmente bilateral e vertical entre o
Estado e o indivduo responsvel penal, segundo a qual somente tm relevncia e por essa razo
so reconhecidos como elementos do sistema penal, a gravidade do fato e o carter pblico
do conflito penal, tudo a acentuar, ao fim e ao cabo, a exclusiva titularidade do jus puniendi
pelo ente estatal.
Contudo, os crticos dessa perspectiva horizontal do delito desde sempre apresentam
um seu n grdio, que consignamos para as devidas reflexes, na medida em que, segundo os
mesmos, a partir do processo histrico que procedeu a uma estrita separao entre o direito pe-
nal e o direito civil, resulta muito difcil situar e conciliar a exclusiva reparao no direito penal
material com o clssico sistema dos fins das penas.
O garantismo
O garantismo representa possivelmente o paradigma de referncia para todas as pro-
postas reducionistas, pois no aborda a questo da legitimao do direito penal a partir de uma
perspectiva parcial, mas a partir de uma viso global dos fundamentos dessa legitimao, numa
conotao externa e interna, vale dizer, a questo do se e do por que punir, afastando-se,
neste particular, do mero neoproporcionalismo, que se ocupa to-s da questo de como punir,
tomando-o como momento de exclusiva legitimao interna do direito penal (CRESPO, 2004,
p. 24-28).
Apontado como o principal autor dessa postura poltico-criminal, Luigi Ferrajoli torna-
se paradigma mundial do denominado direito penal mnimo, consagrando o garantismo como
verdadeira realizao do programa iluminista (FERRAJOLI, 1997). Na base de sua concepo
garantstica, circunscreve o direito penal a um mnimo necessrio para evitar a violncia so-
cial informal, como possveis reaes punitivas espontneas dos cidados agredidos, com o que
se afasta abissalmente das teses abolicionistas mais radicais.
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Com efeito, o garantismo de Ferrajoli se auto-situa como meio-termo entre o aboli-
cionismo e o autoritarismo. Segundo o prprio autor em evidncia, assim o porque se trata o
abolicionismo de standard de uma sociedade selvagem, enquanto que o totalitarismo consubs-
tancia o modelo da sociedade disciplinar, pacificadora e totalizadora, na qual os conflitos so
controlados e resolvidos mediante mecanismos tico-pedaggicos de interiorizao da ordem
ou de tratamento mdico, ou de panoptismo social e, inclusive, policial (FERRAJOLI, 1997,
p. 251).
Destaca-se, no garantismo, sua aproximao de uma criminologia crtica, encarada
como uma carga de justificao desse produto humano e artificial que o direito penal, alm
da revalorizao do pensamento utilitarista proveniente da ilustrao dos enciclopedistas, na
defesa da plena vigncia de todas as garantias do direito penal liberal, luz das exigncias do
Estado de Direito.
E para a consecuo deste paradigma utilitarista, existem condies a materializar os
limites ou proibies como garantias do cidado contra o arbtrio ou o erro punitivo (declogo
ou dez mandamentos de Ferrajoli), consubstaciados em princpios fundamentais (e cons-
titucionais) penais e processuais penais, como legalidade; lesividade; alteridade; proporcio-
nalidade; individualidade; culpabilidade; dignidade da pessoa humana (interveno mnima);
fragmentariedade (e corolrios da taxatividade e da subsidiariedade); devido processo legal;
contraditrio e ampla defesa (FERRAJOLI, 1997, p. 103).
Portanto, este modelo de Direito Penal do Estado de Direito representa gnero de
ordenamento no qual o poder pblico, e especificamente o poder punitivo, est rigidamente
limitado e vinculado lei no plano substancial (ou dos contedos penalmente relevantes) e no
plano processual (ou das formas processualmente vinculantes). Para alm disso, encontra sua
dimenso substancial e concreta no s nas condies de validade das normas, mas tambm na
natureza da prpria democracia.
O DIRETO PENAL NA SOCIEDADE DE RISCO: O EXPANSIONISMO.
Modernamente, os entendimentos tericos j abordados notadamente o reducionis-
mo e o garantismo coexistem e se confrontam com uma realidade emprica que toma, cada
vez mais, rumo diametralmente oposto quele referenciado contexto de um direito penal mni-
mo, que a expanso do mbito do punvel, caracterizadora, portanto, do denominado expan-
sionismo do direito penal.
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Em outras palavras, poderamos dizer que o que est em confronto o pensamento
terico catalisador do direito penal clssico (Kernstrafrecht), com maior representatividade,
hoje, pela Escola de Frankfurt, e o substrato ftico-terico do chamado novo direito penal
(direito penal acessrio), dirigido proteo de bens jurdicos caractersticos e peculiares da
sociedade ps-industrial.
Surge este novo direito penal, portanto, no contexto de uma sociedade contempora-
neamente caracterizada como uma sociedade de riscos e sua crescente dinmica instrumen-
talizada racionalmente por hegemnicos paradigmas tecnolgicos, cientficos e econmicos, a
exigir a interveno penal em terrenos nunca antes imaginados por aquele direito penal clssico
e sua concepo eminentemente individualista (sob o ponto de vista do contexto das aes in-
tersubjetivas), personalista (no sentido do princpio societas delinquere non potest) e garantista
(com a observncia de condies que do concretude aos limites ou proibies como garantias
do cidado contra o arbtrio ou o erro punitivo do Estado) (DIAS, 2001, p. 155).
O que confere, assim, sociedade moderna o predicado de uma sociedade de riscos - a
ensejar novos contornos a vrios ramos do direito, dentre eles tambm o direito penal -, o com-
plexo conjunto de peculiaridades levado a efeito, principalmente, pelo progresso tecnolgico e
pelo desenvolvimento do conhecimento hoje alcanado num mundo globalizado e seus lgicos
consectrios do aumento das interconexes causais e da substituio dos contextos de ao
individuais por contextos de ao coletivos (BECK, 2002) - , ou seja, a substituio do contato
interpessoal por uma forma de comportamento annima e padronizada, estandardizada, na
ofensa ou periclitao de bens jurdicos de natureza preponderantemente supra ou metaindivi-
dual, com repercusses, portanto, igualmente muito mais alargadas e potencialmente lesivas.
Essa nova realidade do risco tem levado ao fenmeno da inflao punitiva, como
a mais relevante e, segundo os crticos do expansionismo, intolervel consequncia de suas
peculiaridades no mbito do direito penal. E intolervel porque se evidencia a incapacidade do
direito penal clssico para solucionar os problemas decorrentes dessa proliferao legislativa
indiscriminada, levando, por outro lado, necessidade de mudanas no sistema que, ao menos
aparentemente, poderiam ferir preceitos garantsticos irrenunciveis dos cidados.
O novo direito penal decorrente da necessidade de mudanas do paradigma clssico
para o enfrentamento da novel realidade fenommica da criminalidade surgida com a socieda-
de de riscos, nessa orientao, mais se aproxima das bases epistemolgicas ditas funcionalis-
tas ou normativistas, plasmadas entre as suas principais vertentes sistmica (JAKOBS, 2000 e
2003) e teleolgica (ROXIN, 2002).
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Em linhas gerais, costuma-se apontar trs grandes traos da modernizao ou expan-
so do direito penal, o primeiro e o ltimo deles fruto direto dessa influncia funcionalista,
tambm chamada mais propriamente - para no inseri-la no mesmo contexto epistemolgico,
por exemplo, do neokantismo normativista, at porque este remonta historicamente a perodo
no coincidente com a denominada moderna sociedade de risco - de neonormativista, a saber:
a) a administrativizao do direito penal; b) a regionalizao ou globalizao do direito penal;
e c) a progressiva desconstruo do paradigma liberal do direito penal.
O fenmeno da administrativizao do direito penal caracteriza-se, eminentemente,
pela combinao de fatores como a introduo de novos objetos de proteo, a antecipao
das fronteiras de proteo penal e a transio definitiva do modelo de delito de leso de bens
individuais para o modelo de delito de perigo de bens supra-individuais, nas acepes j
analisadas.
A regionalizao ou globalizao do direito penal leva em conta a nova criminalidade
decorrente de fatores crimingenos vertidos da sociedade moderna - de cunho, primrio ou
secundrio, eminentemente econmico -, cujos autores pertencem a e se valem de organismos
de poder de carter regional interno de um pas, ou transnacional para suas empreitadas sem
fronteiras, no combate qual, mais eficazmente, deve-se operar aquele que resulta tambm num
moderno fenmeno jurdico-poltico, que a integrao igualmente supranacional do aparato
normativo e de foras de segurana/persecuo oficiais, naquilo que configura um quadro de
policentralidade dos poderes, que podem ser trans-estaduais, supra-estaduais (internacionais ou
euro-comunitrios, p. ex.) e infra-estaduais, sem desprezar, por outro lado, ainda - logicamente
que com incidncia muito mais restrita no mbito criminal -, a pluralizao e privatizao das
administraes pblicas e o contributo das organizaes sociais em proliferao.
Finalmente, o trao marcante da progressiva desconstruo do paradigma liberal do
direito penal praticamente sintetiza toda a base epistemolgica desse novo ordenamento jurdi-
co-penal, amparada que est, essa desconstruo, para alm de na j referida criao de novos
bens jurdico-penais, na ideia central da ampliao dos espaos de risco jurdico-penalmente
relevantes e consequentes flexibilizao das regras de imputao e relativizao dos princpios
poltico-criminais de garantia (CRESPO, 2004, p. 28-30).
Na base da concepo funcionalista, portanto, a perspectiva do risco vincula-se com
uma srie de fenmenos afetos ao moderno direito penal, na medida em que este intervm
em novos mbitos cuja regulamentao pressupe juzos de valor eminentemente normativos.
Com efeito, de modo a ressaltar, outrossim, o trao da administrativizao do direito penal e a
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frequente e imprescindvel utilizao de juzos de valor normativos para a prpria compreen-
so do delito e sua imputao, vemos este ramo do direito a regular, antes mesmo de qualquer
dano, setores de risco socialmente mais significativos no mundo moderno, como, v.g, a energia
nuclear, o meio ambiente, a produo alimentcia, as investigaes biomdicas, o sistema fi-
nanceiro, etc, para o que se vale necessariamente, amide, de leis ou normas penais em branco
ou abertas.
Nessa perspectiva, identifica-se o direito penal da sociedade de risco com a proliferao
de delitos de perigo, ou seja, com a incriminao de condutas de risco, sem esperar a produo
efetiva de danos, leses ou de morte, para o que so erigidos a bens jurdico-penais aqueles cuja
regulao e tutela se davam, noutros tempos, atravs de distintos ramos do direito, notadamente
administrativo e civil. Essa proliferao, por sua vez, indissocivel do pensamento nuclear de
segurana extrado da prpria lei e da interpretao daqueles bens jurdicos supraindividuais,
tal qual ocorre com relao, v.g., segurana no trfego, no trabalho, na sade pblica, etc.
A par disso, verifica-se a modernizao dos pressupostos materiais e subjetivos da
responsabilidade (imputao objetiva), com um novo desenvolvimento dogmtico-jurdico da
responsabilidade pelos delitos de ao, de omisso e culposos (MIRANDA-PEDRO, 2007,
p. 8-22). Surge, assim, um novo discurso, baseado em uma crtica dogmtico-filosfica, cuja
pretenso derradeira seria interpretar os conceitos e os princpios jurdico-penais no contexto
do materialismo da Histria. A totalidade dos princpios, dos critrios poltico-criminais e dos
instrumentos dogmticos da modernizao est ajustada s exigncias do Estado de Direito,
de modo que essa conformidade realiza-se em um grau to absoluto que no admite nem exce-
es, nem uma mnima relativizao, nas palavras de Gracia Martn (CRESPO, 2004, p. 31).
Uma poltica criminal que pretendesse, assim, dar resposta a essa sociedade de risco
poderia convocar-se a partir de quatro grandes linhas: Primeiramente, uma notvel ampliao
dos mbitos sociais objeto de interveno penal, a qual pretenderia incidir sobre realidades so-
ciais preexistentes, cuja vulnerabilidade se tivesse potenciado; entre os setores de interveno
preferenciais teria de se citar a produo e distribuio de produtos, o meio ambiente, os novos
mbitos tecnolgicos como o nuclear, o informtico, o gentico..., a ordem scio-econmica
e as atividades enquadradas em estruturas organizadas de crime, com especial meno ao tr-
fico ilcito de drogas. Em segundo lugar, uma significativa transformao do objetivo da nova
poltica criminal, que concentraria seus esforos em perseguir a criminalidade dos poderosos,
nicos setores sociais capazes de desenvolver sofisticadas condutas delituosas e que at ento
raramente entravam em contato com a justia penal; para tais efeitos contar-se-ia com o aval
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derivado das demandas de interveno penal vindas das organizaes sociais surgidas nos lti-
mos tempos em defesa dos novos interesses sociais - associaes, ONGs, etc. -, com a decidida
insero nos programas de propostas de criminalizao dessas atividades lesivas dos poderosos
e, sobretudo, com o apoio das maiorias sociais que se identificam com as vtimas dos abusos
dos socialmente privilegiados. Em terceiro lugar, a primazia dada interveno penal em detri-
mento de outros instrumentos de controle social, na crena de que a contundncia e capacidade
socializadora do direito criminal so mais eficazes na preveno dessas condutas do que outras
medidas de poltica econmica ou social, ou do que intervenes levadas a efeito no mbito de
outros setores jurdicos como o direito civil ou o direito administrativo, numa clara restrio
ao princpio da subsidiariedade penal, que , assim, posto em causa. Por fim, a necessidade de
adaptar os contedos de direito penal e processual penal s dificuldades especiais persecuo
desta nova criminalidade reporta ao problema de s novas tcnicas do crime, aos obstculos
para determinar os riscos no permitidos, e trabalhosa individualizao de responsabilidades
ter de se contrapor uma atualizao dos instrumentos punitivos, o que implica em reconsiderar
ou flexibilizar o sistema de imputao da responsabilidade e de garantias individuais vigentes,
o que h-de fazer-se em funo da necessidade poltico-criminal de melhorar a efetividade na
perseguio e no processo penais (RIPOLLS, 2007, p. 547).
Conclui-se, em termos de delineamentos finais da postura poltico-criminal expansio-
nista, que o papel regulador bsico neste novo direito penal o conceito de risco permitido,
que, no entanto, no possvel reduzir a um nico momento categorial do delito, ou sequer a
um nico momento do processo de valorao jurdico-penal da conduta, pois pode atuar em to-
dos eles, seja, por exemplo, como causa de excluso geral do desvalor da conduta, seja como
tpico da argumentao jurdico-penal na esfera da antijuridicidade ou ilicitude, porquanto
se trata de critrio que expressa, sempre, uma ponderao de todos os interesses jurdico-penal-
mente relevantes. Contrariamente, se o risco for para alm do permitido e atingir esses bens
jurdicos relevantes para o direito penal, este intervir para sua tutela, ainda que, como visto,
antecipadamente a qualquer dano concreto.
Expansionismo versus reducionismo garantista.
Como j se pde constatar a partir de tmidas incurses ao longo do presente trabalho
nesse sentido, ou mesmo intuitivamente, inmeras so as crticas que afloram frente ao denomi-
nado expansionismo penal fundado nos entendimentos tericos identificados com o funcionalis-
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mo ou neonormativismo no mbito das cincias jurdico-criminais, elaboradas, essencialmente,
pelos adeptos e defensores do direito penal mnimo e seu substrato reducionista/garantista, que
os aproxima, por seu turno, do chamado direito penal clssico.
Essas crticas esto mesmo no centro e no cerne do debate sobre o perfil e o papel do
direito penal nessa nova sociedade de risco ou sociedade ps-industrial.
Desde logo, cidas e pontuais crticas recebe a construo ideolgica da ampliao dos
espaos de risco jurdico-penalmente relevantes e consequentes flexibilizao das regras de im-
putao e relativizao dos princpios poltico-criminais de garantia, que poderiam levar, assim,
justificao, por exemplo, do denominado direito penal do inimigo, na acepo concebida
por Jakobs (JAKOBS, 2003, p. 42).
Nesse domnio, tambm conhecido como discurso da resistncia, a pretexto do efi-
caz enfrentamento a determinadas e especficas formas de criminalidade da modernidade, ati-
nentes a matrias de incidncia muito peculiares e de extrema e latente potencialidade lesiva
(terrorismo; trfico; imigrao, etc), seus autores (ou virtuais autores) so tratados como meras
fontes de perigo, os quais devem, por conseguinte, ser, a todo e qualquer custo, neutralizados
e retirados do convvio social.
Para tanto, e conforme aquela que apontada como principal caracterstica desta pos-
tura poltico-criminal, o direito penal do inimigo permite um amplo adiantamento da puni-
bilidade, atravs da adoo de uma perspectiva fundamentalmente prospectiva, levando, em
sntese, a um notvel incremento das penas e reduo ou, se necessrio ainda, supresso de
garantias processuais individuais(JAKOBS, 2003, p.37).
Como marcantes tendncias ou plos em seus regulamentos, sustenta Jakobs, em com-
plemento quela antecipao da punibilidade, um trato diferenciado com relao ao cidado e
ao inimigo, na medida em que aquele encarado como tal (efetivo cidado) quando sua con-
duta se subsume estrutura normativa da sociedade, enquanto que este, o inimigo, sequer pode
figurar ou ser includo dentre os tutelados por uma constituio cidad, devendo, o tanto quanto
possvel e recomendvel, ser interceptado previamente e assim combatido por sua injustificvel
periculosidade e, ainda que atvica, danosidade social.
Criticamente, portanto, o direito penal do inimigo surge como conseqncia direta
da hodierna crise do direito penal, embalado por uma f inquebrantvel na capacidade de inti-
midao das penas, a ponto de abandonar o princpio bsico do direito penal do fato (clssico)
e se aproximar do totalitrio direito penal do autor (combate a determinado grupo de pessoas).
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consectrio, outrossim, na acepo mais negativa do termo, do uso simblico do di-
reito penal - ou seja, aquele que persegue fins distintos da proteo de bens jurdicos no marco
constitucional e de uma defesa social e da ordem pblica sob o mesmo referencial garantstico
-, alm de efeito da prpria crise do Estado de Direito, que propicia o aumento do recrudesci-
mento punitivo estatal, ao alvedrio das vagas da demagogia poltica e do espetculo miditico.
Pertinentemente administrativizao do direito penal que desencadeia, como visto,
dentre outros fenmenos - a partir, notadamente, da criao de novos bens jurdico-penais e
da ampliao dos espaos de risco e regras de imputao correspondentes -, a transposio do
modelo de delito de leso a bens jurdicos individuais para o modelo de delito de perigo de
bens supraindividuais, a crtica nodal assenta na constatao de que a incriminao de condu-
tas sem levar em considerao, frequentemente, o critrio do dano social do fato, na busca de
exasperado pragmatismo de eficincia, por si s, pode lev-lo (o direito penal) a perder sua fei-
o garantstica, afrontando diversos princpios fundamentais constitucionais, dentre os quais,
nomeadamente, neste caso, os princpios da lesividade, da alteridade e da proporcionalidade.
Seja qual for, no entanto, o aspecto pontual desse novo direito penal criticamente ana-
lisado, o que se sobreleva, sempre, o conjunto de distores e disfunes de um sistema que,
sob muitos aspectos, nomeadamente no campo do direito penal do inimigo, ainda est por
surgir ou surge de forma embrionria, lembrando que, ao menos na realidade ocidental, salvo
raras e notrias excees teratolgicas, o ordenamento jurdico infra-constitucional e sua inter-
pretao submete-se aos fundamentos condicionantes existenciais e de aplicabilidade da Lei
Maior e seus irrenunciveis princpios garantsticos, a comear pelo primado da dignidade da
pessoa humana.
O debate antecipado, contudo, sempre o mais bem-vindo, pois cautelarmente pode
originar solues conciliatrias, tendentes eliso ou superao de crises, a bem da efetiva
tutela dos relevantes bens jurdicos em jogo, do convvio social minimamente ordeiro, pacfi-
co, respeitoso e, sobretudo, digno. a ltima tarefa que nos cabe na etapa conclusiva dessas
anotaes.
CONCLUSO
O novo direito penal, cujos contornos foram panoramicamente visitados neste des-
pretensioso trabalho, expande-se a partir de exigncias de sua interveno para a tutela de mo-
dernos bens jurdico-penais, produto da denominada sociedade de riscos.
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Trata-se de uma realidade emprica crescente - visvel quando nos deparamos, ilus-
trativamente, com a admissibilidade e regulamentao, ainda que restritas a determinadas e
especficas tipologias, da responsabilizao penal da pessoa jurdica (PRADO, 2001) ou cole-
tiva - como, v.g., nos crimes ambientais (SILVA DIAS, 2008, p. 112) -, ou com a possibilidade
de se estender a responsabilizao penal com a ampliao da concorrncia subjetiva no mbito
do punvel, nomeadamente no que tange imputao de resultados obtidos a partir de aes
culposas ou omisses relevantes, flexibilizando-se, para tanto, princpios fundamentais at en-
to concebidos como intocveis por um direito penal na sua feio clssica e que, para muitos,
em contrapartida, ainda devem prevalecer, sob pena de inconstitucionalidade dos dispositivos
normativos que os confrontarem, posto que irrenunciveis.
A dicotomia acima consignada, entretanto, s mais um exemplo dos aparentemente
interminveis e inconciliveis pontos nevrlgicos e de tenso dialtica entre o direito penal em
expanso (e sua base funcionalista) e os entendimentos tericos reducionistas/garantistas, que
levam, no contexto da sociedade ps-industrial, insustentabilidade do direito penal sem uma
profunda e sistemtica reviso de seus fundamentos, acentuadamente de ordem conceitual-
analtica (no mbito das categorias ou elementos constitutivos do delito) e poltico-criminal.
Desde logo, no entanto, deve-se ter em mente que a soluo desse conflito somente
poder ser obtida a partir daqueles dois pontos epistemolgicos distintos, j tratados em seus
contornos bsicos no decorrer do trabalho, sem perder de vista que, como adverte Schnemann
(CRESPO, 2004, p. 30-31), a adoo exclusiva de um ou outro modelo no atual contexto his-
trico conduz a um impasse obstaculizante prpria legitimidade e eficcia do direito penal.
Isto porque, a prevalecer o modelo personalista ou individualista e liberal da escola clssica,
cair-se-ia num ciclo repetitivo incessante de um mesmo genrico conjunto de princpios garan-
tistas (discurso fcil), que, antes de se afigurar como elemento positivo para a tutela penal,
converte-se no seu verdadeiro e intransponvel obstculo, pois, como visto, facilmente poder-
se-ia invoc-los, com todos os consectrios inviabilizadores da interveno penal, ainda que
necessria. Por outro lado, com a incidncia nica do modelo funcionalista expansionista do
novo direito penal, chegar-se-ia a uma capitulao incondicional perante a prtica poltica
dominante, em cada momento, na atividade do legislador ou da jurisprudncia, a constituir pe-
rigosa discricionariedade e tnue linha divisria entre a legalidade sem ou com arbtrio.
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O que fazer, ento, para que o direito penal reencontre seu ponto de sustentao, que
mudanas podem e devem ser promovidas ao longo deste caminho de mo nica e incontorn-
vel de expanso que se vislumbra com a sociedade de riscos?
A via de soluo possvel, mais comumente referenciada pela doutrina, perpassa as li-
nhas gerais, num futuro no muito remoto, de um chamado direito penal de dupla velocidade
para o enfrentamento eficaz dos novos fenmenos delituosos, englobando aspectos jurdico-
polticos modificadores das teorias do delito e da pena.
A opo vivel, nesse sentido, em sntese, seria a setorizao das regras da parte geral
do direito penal , em detrimento da modificao das regras que regem as modalidades clssicas
de delinqncia como decorrncia da poderosa fora atrativa da nova criminalidade, uma vez
que ambas as hipteses so excludentes entre si. Ou seja, ao invs de uma reformulao da
parte geral do direito penal para adapt-la aos contornos funcionalistas - sujeita, como se v, a
toda sorte de crticas e seus prprios riscos -, sobrepondo-se, assim, ao clssico direito penal
garantstico, continuaria, este, com suas atuais e irretocadas feies, a regular as modalidades
de delinquncia identificadas como tradicionais sob todos os aspectos principiolgicos funda-
mentais, a par do que uma nova regulao seria desenvolvida - sem, contudo, abandonar pre-
ceitos garantsticos mnimos, quando muito os flexibilizar -, para abarcar e arrostar a moderna
criminalidade, irrefrevel to-somente com os instrumentos disposio do primeiro modelo.
Nessa perspectiva conciliatria e de coexistncia neo-emancipatria do direto penal,
portanto, pode-se criticamente concluir:
- A sociedade de riscos vem gerando um alarme social que est a provocar a expanso
do direito penal, o que acarreta, por seu turno, determinados custos que afetam as garantias tra-
dicionais do Estado de Direito, seja numa rbita geral de restrio, ou, na melhor das hipteses,
de reinterpretao das garantias clssicas do direito penal.
- A modernizao do direito penal necessria e, ao mesmo tempo, incontrolvel,
vista das atuais interconexes causais e subjetivas, que tornam os problemas de nosso tem-
po muito diferentes daqueles nos quais se situam as origens do direito penal clssico (sculo
XVIII).
- Vivemos em tempos de igual e crescente modernizao da criminalidade, a qual
conduz, inexoravelmente, a uma mudana quanto sua abordagem jurdica e poltico-criminal,
a fim de alcanar a denominada criminalidade dos poderosos, e no s aos marginalizados
menos favorecidos.
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- Inegvel resulta, assim, na proteo dos bens jurdicos supra-individuais, a legitimi-
dade ab initio da existncia e maior incidncia de delitos de perigo, afastando-se daquilo que
Roxin, neste particular, chama de ceticismo infundado (CRESPO, 2004, p. 35).
- Para que a modernizao do direito penal reflita uma sua verdadeira evoluo,
deve-se buscar o sempre recomendvel equilbrio nas imprescindveis mudanas, as quais de-
vero ser empreendidas em escrupulosa obedincia s garantias do estado de direito , e no sob
o influxo de exigncias sociais de segurana, carecedoras, muitas vezes, de critrios mnimos
de razoabilidade a respeito da interveno do direito penal.
- Enfim, o desafio maior da atual sociedade de risco a construo de um sistema ga-
rantista dentro dessas novas realidades de interveno do direito penal.
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