artigo mayra pereira anppom 2009

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Análise histórica da terminologia do piano no Rio de Janeiro Mayra Pereira *1 * Doutoranda do Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) 1 [email protected] Palavras-Chave Pianoforte, fortepiano, organologia RESUMO Baseando-se em extratos de 4 fontes documentais primárias do século XIX Inventários post-mortem, Jornais, Decretos Régios e Dicionários musicais e de língua portuguesa o presente trabalho aborda a questão da problemática da terminologia aplicada ao piano no Rio de Janeiro oitocentista. A partir de uma análise histórica que remete à própria invenção do instrumento na Europa, constata-se o uso indiscriminado de uma imprecisa nomenclatura referente a este instrumento, além de apresentar as inúmeras expressões existentes nesta época que são de difícil compreensão para o músico atual e suas possíveis interpretações. I. INTRODUÇÃO As pesquisas sobre instrumentos musicais no Brasil através de fontes primárias revelam uma questão que nos últimos anos tem sido levantada por alguns pesquisadores: o problema da terminologia. Documentos históricos dos séculos XVIII e XIX evidenciam a prática comum de se atribuir vários nomes a um mesmo instrumento musical. Esta imprecisão na nomenclatura, que aparentemente não causou nenhum problema naquela época, suscita hoje incorretas interpretações e, em alguns casos, sua exata especificação torna-se, à luz dos conhecimentos atuais, uma tarefa extremamente complexa. A terminologia aplicada ao piano no Rio de Janeiro oitocentista enquadra-se exatamente no caso mais extremo. Baseando-se em extratos de quatro fontes documentais primárias do século XIX Inventários post-mortem, Jornais, Decretos Régios e Dicionários musicais e de língua portuguesa o presente trabalho constata o uso indiscriminado de uma imprecisa nomenclatura referente a este instrumento, além de apresentar as inúmeras expressões existentes nesta época que são de difícil compreensão para o músico atual e suas possíveis interpretações a partir de uma análise histórica que remete à própria invenção do instrumento na Europa. II. DO ARPICIMBALO AO PIANO Segundo as referências mais antigas encontradas na Itália a respeito da invenção de Bartolomeu Cristofori, datadas respectivamente de 1700 e 1704 1 , o nome original do piano parece ter sido Arpicimbalo ou Arpi cimbalo, uma possível combinação entre cimbalo ou cembalo (do italiano, cravo) e arpi (do italiano, harpa). Especula-se que a expressão Arpicimbalo seria uma referência ao novo tipo de cravo não usual, diferente do clavicembalo cravo com registro de 4‟ ou cravo pequeno e do gravecembalo cravo com registros de 8‟ ou cravo grande. Além disso, ambas as citações adicionam ao nome do instrumento a expressão piano e forte, evidenciando a principal característica da nova criação (GOOD, 2005, p. 96). Em 1711, Scipione Maffei publica um artigo intitulado Nuova invenzione d’un gravecembalo col piano e forte sobre o instrumento de Cristofori, na qual se verifica uma modificação na nomenclatura do instrumento. O arpicimbalo é alterado aqui para o gravecembalo, mas o foco principal ainda é a possibilidade de dinâmica do „novo tipo de cravo‟, não havendo de maneira evidente uma preocupação com a divulgação de um nome específico para tal invento. Ao ultrapassar as fronteiras italianas, a terminologia do piano de Cristofori foi se expandindo ainda mais. Em Portugal, nas primeiras composições para o instrumento publicadas em 1732 por Lodovico Giustini aparece a expressão Cimbalo di piano, e forte detto volgarmente di martelletti, ou seja, „Cravo de piano e forte dito vulgarmente de martelos‟. É a primeira vez ao longo da história do piano que a nova ação de martelos exerce influência sobre a nomenclatura. No entanto, ainda em terras portuguesas observa-se o uso das palavras Piano Forte pelo importante construtor de instrumentos de teclado português Mathias Bostem, provavelmente no último quarto do século XVIII, e também Forte Piano, já em 1806, em um anúncio de jornal que convidava para um leilão dos bens pertencentes ao próprio construtor (VIEIRA, 1900, p. 482-483). Da mesma maneira, na região da Alemanha também se verifica a utilização de uma terminologia aplicada à mecânica do instrumento. As expressões Hammerklavier („Teclado com martelo‟) e Hammerflügel ([instr.] „em forma de “asa” com martelo‟) são igualmente empregadas para designar o pianoforte, em contraposição à Kielklavier („Teclado com plectro‟) e Kielflügel ([instr.] „em forma de “asa” com plectro‟) que se referem ao cravo (CLINKSCALE, 1993, p. ix). Além disso, as expressões Pianoforte e Fortepiano, também são empregadas nos domínios alemães. J. J. Quantz em 1752 refere-se à execução e acompanhamento ao Pianoforte em seu tratado para flauta, enquanto C. P. E. Bach, em seu tratado para teclado de 1753, explana sobre algumas características do Fortepiano. Nas outras regiões em que o pianoforte também foi difundido verifica-se a mesma dubiedade na nomenclatura. Na Inglaterra, sabe-se que Charles Jennens possuía um Piano-forte Harpsichord („Cravo piano-forte‟) vindo de Florença em 1732. Em 1772, o construtor Americus Bakers denomina seu instrumento de Forte Piano, o qual é literalmente copiado por Robert Stodart em 1777, mas chamado então de Grand Piano forte. Na França, o primeiro registro do instrumento, em 1761, é anunciado como Piano e forte clavecins („Cravo piano e forte‟) do construtor de Strasburgo J. H. Silbermann, mas em 1763 o compositor J. G. Eckard fala sobre a execução ao Pianoforte no prefácio de suas Sonatas Op. 1. Em 1786, Francesco-Pasquale Ricci (1732-1817) publica um método para Forte-piano, enquanto que em uma enciclopédia editada por Panckoucke em

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Page 1: Artigo Mayra Pereira ANPPOM 2009

Análise histórica da terminologia do piano no Rio de Janeiro

Mayra Pereira*1

*Doutoranda do Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio)

[email protected]

Palavras-Chave

Pianoforte, fortepiano, organologia

RESUMO

Baseando-se em extratos de 4 fontes documentais primárias do século

XIX – Inventários post-mortem, Jornais, Decretos Régios e

Dicionários musicais e de língua portuguesa – o presente trabalho

aborda a questão da problemática da terminologia aplicada ao piano

no Rio de Janeiro oitocentista. A partir de uma análise histórica que

remete à própria invenção do instrumento na Europa, constata-se o

uso indiscriminado de uma imprecisa nomenclatura referente a este

instrumento, além de apresentar as inúmeras expressões existentes

nesta época que são de difícil compreensão para o músico atual e suas

possíveis interpretações.

I. INTRODUÇÃO

As pesquisas sobre instrumentos musicais no Brasil através

de fontes primárias revelam uma questão que nos últimos anos

tem sido levantada por alguns pesquisadores: o problema da

terminologia. Documentos históricos dos séculos XVIII e XIX

evidenciam a prática comum de se atribuir vários nomes a um

mesmo instrumento musical. Esta imprecisão na nomenclatura,

que aparentemente não causou nenhum problema naquela

época, suscita hoje incorretas interpretações e, em alguns casos,

sua exata especificação torna-se, à luz dos conhecimentos

atuais, uma tarefa extremamente complexa.

A terminologia aplicada ao piano no Rio de Janeiro

oitocentista enquadra-se exatamente no caso mais extremo.

Baseando-se em extratos de quatro fontes documentais

primárias do século XIX – Inventários post-mortem, Jornais,

Decretos Régios e Dicionários musicais e de língua portuguesa

– o presente trabalho constata o uso indiscriminado de uma

imprecisa nomenclatura referente a este instrumento, além de

apresentar as inúmeras expressões existentes nesta época que

são de difícil compreensão para o músico atual e suas possíveis

interpretações a partir de uma análise histórica que remete à

própria invenção do instrumento na Europa.

II. DO ARPICIMBALO AO PIANO

Segundo as referências mais antigas encontradas na Itália a

respeito da invenção de Bartolomeu Cristofori, datadas

respectivamente de 1700 e 17041 , o nome original do piano

parece ter sido Arpicimbalo ou Arpi cimbalo, uma possível

combinação entre cimbalo ou cembalo (do italiano, cravo) e

arpi (do italiano, harpa). Especula-se que a expressão

Arpicimbalo seria uma referência ao novo tipo de cravo não

usual, diferente do clavicembalo – cravo com registro de 4‟ ou

cravo pequeno – e do gravecembalo – cravo com registros de 8‟

ou cravo grande. Além disso, ambas as citações adicionam ao

nome do instrumento a expressão piano e forte, evidenciando a

principal característica da nova criação (GOOD, 2005, p. 96).

Em 1711, Scipione Maffei publica um artigo intitulado

Nuova invenzione d’un gravecembalo col piano e forte sobre o

instrumento de Cristofori, na qual se verifica uma modificação

na nomenclatura do instrumento. O arpicimbalo é alterado aqui

para o gravecembalo, mas o foco principal ainda é a

possibilidade de dinâmica do „novo tipo de cravo‟, não havendo

de maneira evidente uma preocupação com a divulgação de um

nome específico para tal invento.

Ao ultrapassar as fronteiras italianas, a terminologia do

piano de Cristofori foi se expandindo ainda mais. Em Portugal,

nas primeiras composições para o instrumento publicadas em

1732 por Lodovico Giustini aparece a expressão Cimbalo di

piano, e forte detto volgarmente di martelletti, ou seja, „Cravo

de piano e forte dito vulgarmente de martelos‟. É a primeira vez

ao longo da história do piano que a nova ação de martelos

exerce influência sobre a nomenclatura. No entanto, ainda em

terras portuguesas observa-se o uso das palavras Piano Forte

pelo importante construtor de instrumentos de teclado

português Mathias Bostem, provavelmente no último quarto do

século XVIII, e também Forte Piano, já em 1806, em um

anúncio de jornal que convidava para um leilão dos bens

pertencentes ao próprio construtor (VIEIRA, 1900, p.

482-483).

Da mesma maneira, na região da Alemanha também se

verifica a utilização de uma terminologia aplicada à mecânica

do instrumento. As expressões Hammerklavier („Teclado com

martelo‟) e Hammerflügel ([instr.] „em forma de “asa” com

martelo‟) são igualmente empregadas para designar o

pianoforte, em contraposição à Kielklavier („Teclado com

plectro‟) e Kielflügel ([instr.] „em forma de “asa” com plectro‟)

que se referem ao cravo (CLINKSCALE, 1993, p. ix). Além

disso, as expressões Pianoforte e Fortepiano, também são

empregadas nos domínios alemães. J. J. Quantz em 1752

refere-se à execução e acompanhamento ao Pianoforte em seu

tratado para flauta, enquanto C. P. E. Bach, em seu tratado para

teclado de 1753, explana sobre algumas características do

Fortepiano.

Nas outras regiões em que o pianoforte também foi

difundido verifica-se a mesma dubiedade na nomenclatura. Na

Inglaterra, sabe-se que Charles Jennens possuía um Piano-forte

Harpsichord („Cravo piano-forte‟) vindo de Florença em 1732.

Em 1772, o construtor Americus Bakers denomina seu

instrumento de Forte Piano, o qual é literalmente copiado por

Robert Stodart em 1777, mas chamado então de Grand Piano

forte. Na França, o primeiro registro do instrumento, em 1761,

é anunciado como Piano e forte clavecins („Cravo piano e forte‟)

do construtor de Strasburgo J. H. Silbermann, mas em 1763 o

compositor J. G. Eckard fala sobre a execução ao Pianoforte no

prefácio de suas Sonatas Op. 1. Em 1786, Francesco-Pasquale

Ricci (1732-1817) publica um método para Forte-piano,

enquanto que em uma enciclopédia editada por Panckoucke em

Page 2: Artigo Mayra Pereira ANPPOM 2009

1788 encontra-se a entrada Forte-piano ou Clavecin à marteau

(COLE, 2009).

É válido acrescentar que a conhecida abreviação Piano já era

muito utilizada no século XVIII como nome de instrumento e

não somente como um sinal referente à dinâmica. Um caderno

de apontamentos sobre afinação dos anos de 1770 emprega

amplamente ao longo do texto os termos Forte piano, Piano

forte, e nas últimas páginas Piano (COLE, 1998, p. xi).

Assim, as informações históricas aqui apresentadas apontam

o uso indiscriminado de vários nomes para se denominar o

instrumento inventado por Cristofori, o que torna equivocada a

conotação atual de que o termo Fortepiano seria sinônimo do

piano antigo e Pianoforte, o piano mais recente, próximo do

tipo de concerto moderno (COLE, 1998, p. xi). Talvez o único

denominador comum seja que toda a nomenclatura aqui

exposta se refere ao piano em forma de „asa‟ ou também

chamado de grand ou de cauda, de tradição tipicamente

florentina, isto é, originado totalmente a partir do formato de

um cravo italiano. Quanto aos outros formatos de instrumento

(retangular e vertical e seus derivados), verifica-se uma

nomenclatura bem específica e definida em todas as regiões

aqui citadas.

III. PIANOFORTE, FORTEPIANO OU PIANO?

O inventário post-mortem do botânico Antonio Pereira

Ferreira, datado de 1798, revela que a cidade do Rio de Janeiro

tomou conhecimento sobre o instrumento de teclado pelo

menos uma década antes da chegada da corte portuguesa ao

Brasil. E foi sob o termo Piano forte que tal instrumento foi

primeiramente conhecido2 , assim como também se observa no

primeiro anúncio de venda de piano na Gazeta do Rio de

Janeiro: “Vende-se um Piano forte muito bom, quem o quizer

comprar, falle na rua Direita nas loges das casas No. 15 (GRJ,

26/04/1809, p. 4, grifo nosso) ”.

As expressões fortepiano e piano também aparecem nos

anúncios de vendas e leilões em jornais com muita frequencia,

como se observa nos seguintes exemplos: “Antonio José de

Araujo, morador da rua do Alecrim, n. 135, tem para vender

hum Forte-Piano Francez de Eraud (GRJ, 25/07/1810, p. 3,

grifo nosso)” e ainda “Na rua Direita No. 28, defronte do Banco

vende-se hum grande sortimento de fazendas Francezas, como

pianos, violas, musica [...] (GRJ, 25/01/1817, p. 4, grifo

nosso)”.

Como reflexo direto da ambigüidade de nomes utilizada na

Europa, em um primeiro momento acredita-se que estas três

expressões – Piano forte, Forte piano e Piano – são

possibilidades de uma nomenclatura geral. No entanto,

exemplos como os transcritos abaixo sugerem alguma

diferenciação específica para o instrumento:

Carlos Cannell faz leilão hoje Sabbado 21 do corrente em sua

casa na rua detraz do Hospicio n. 3, de huma porção de lampiões,

louça e vidros, e huma caixa de vinho tudo pertencente a carga

do Bergantim Tennis, que tudo será vendido infallivelmente

junto com algumas fazendas com varia por conta do Seguro; e

hum grande surtimento de ferragens, diversos moveis, 2 pianos

(hum piano forte, e hum forte piano) [...] (JC, 21/06/1828, p. 3,

grifo nosso).

Na rua da Cadeia, n. 142 na Fabrica de piannos de Mr. Chretien,

ha hum excellente forte pianno novo, 2 piannos fortes e 1 orgão

para se venderem por preço commodo (JC, 23/08/1828, p. 2,

grifo nosso).

Duas possíveis interpretações da nomenclatura usada podem

ser levantadas: sua relação com a escola construtiva do

instrumento ou procedência, e com o tipo ou formato do

instrumento. Entretanto, nota-se que a primeira suposição deve

ser desconsiderada pois termos iguais são aplicados para

instrumentos vindos de regiões diferentes:

Armazem de mobília, rua d‟Alfandega n. 47, sortido de novo de

huma grande variedade de trastes de mogno de modelos

elegantes e modernos; bem como secretarias, mezas para

gabinete e escritório, guarda roupas de Sra; espelhos, e

toucadores de diversos tamanhos, mezas, de jogo, ditas para o

meio de salas, cadeiras e sofás com assento de palhinha, ditas

cobertas de barrigana, ditas de clina de cavallo, forte pianos e

pianos fortes Ingleses e da Alemanha, guitarras francesas,

soberbos lustres para salas e Igrejas, gaiolas para pássaros,

lindos carrinhos e sociáveis de criança, &c. o que tudo se vende

por preços módicos (JC, 09/06/1829, p. 2, grifo nosso).

Sugere-se então, que as várias nomenclaturas digam respeito

ao formato da caixa do instrumento, podendo ser em forma de

asa (de cauda), retangular (de mesa) ou vertical. Analisando

cautelosamente o contexto no qual os termos estão inseridos,

chegou-se a algum esclarecimento.

Quando encontrados em um mesmo anúncio de jornal,

grande piano e piano forte parecem especificar,

respectivamente, piano de cauda e piano de mesa. As

expressões piano forte e forte piano, por sua vez, também

sugerem determinar entre si formatos diferentes, enquanto que

o abreviado termo piano pode englobar qualquer um dos tipos

de instrumento. No entanto, os dados extraídos dos documentos

estudados são insuficientes para se determinar uma precisa

classificação dos termos piano forte, forte piano e piano.

Recorrendo-se ao único documento encontrado onde se

registra conjuntamente o valor unitário de forte piano e piano

forte – o Decreto Régio de 1829 –, confirma-se a especulação

de que os termos indicam alguma diferença entre os

instrumentos, uma vez que possuem preços distintos. Um forte

piano é avaliado em 600$000 enquanto um piano forte, em

400$000. Todavia, não se pode assumir seguramente a

existência de uma diferença estrutural ou mecânica do

instrumento.

Além disso, de acordo com dicionários musicais e

dicionários de língua portuguesa do século XIX, localizados no

Rio de Janeiro ainda hoje, o conceito de alguns destes termos

destacados não era nada esclarecedor. A mais antiga das obras,

um dicionário musical datado de 1842, definia como

forte-piano: “[...] nome dado antigamente ao instrumento que

pela sua propriedade de modificar a intensidade dos sons do

forte ao fraco, e ao contrario, tomava este nome; hoje

denomina-se simplesmente Piano (MACHADO, 1842, p. 80)”.

Em uma outra entrada, a conceituação de piano-forte

limita-se a descrever com mais detalhes as características do

instrumento e, como na anterior, a considerá-lo como sinônimo

de Piano:

[...] por abreviatura, chama-se hoje piano; instrumento de

teclado de seis oitavas e mais; he o cravo muito aperfeiçoado;

seu uso acha-se geralmente espalhado, e suas vantagens lhe tem

grangeado a estima de que hoje goza; reunindo em si os poderes

da harmonia elle por si só póde apresentar todas as partes de que

Page 3: Artigo Mayra Pereira ANPPOM 2009

[Frente]

Face (fascia)

Frente do teclado (frontalino del tasto)

Face (fascia)

Face longa (fascia lunga)

Face curta (fascia corta)

Frente do teclado (frontalino del tasto)

Face dupla curva (fascia a doppia curva)

ella se compõe e os seus effeitos. Facil em harmonisar e

desenvolver as melodias as mais complicadas, poderoso nos

effeitos da intensidade he sobre elle que se tem desenvolvido os

maiores genios, os grandes compositores que até ao presente

tem escripto (MACHADO, 1842, p. 170).

Já em 1873, um dicionário de língua portuguesa trazia em um

mesmo verbete as três denominações como sinônimas:

Piano, ou Piano-Forte, ou Forte-Piano, s.m. Instrumento de

musica com teclado, onde se póde reformar ou diminuir o som á

vontade. - Cantar ao piano. - Piano de cauda. - Uma das

melhores fabricas de pianos é a de Hertz (Grande Diccionario

Portuguez, 1873, vol. 4, p. 530).

E, em 1881, outro dicionário português seguia a mesma

linha:

Piano, s.m. instrumento musical formado por uma grande caixa

sonora, com um systema especial de cordas e teclado, e que dá

as notas por percussão: Piano de concerto. Piano de estudo.

[Tambem se chama piano forte e forte piano.]|| Piano vertical,

piano cujas cordas estão collocadas verticalmente.||

(Diccionario Contemporaneo da Lingua Portugueza, 1881, p.

373).

Percebe-se, desta maneira, que ambos os termos piano,

piano forte e forte piano referem-se, provavelmente, tanto aos

formatos de asa quanto aos retangulares, e inclusive aos tipos

verticais, sem se estabelecer uma exata convenção.

A problemática da terminologia dos pianos no Rio de Janeiro

no século XIX estende-se ainda mais quando se observa, a

partir dos jornais da época, outras expressões ambíguas que

corriqueiramente acompanhavam os já confusos nomes piano,

piano forte e forte piano. É possível encontrar anunciada a

venda de “pianos ricos de duas faces do Fabricante Stodart (JC,

23/04/1828, p. 4)” e também de “Pianos de muito superior

qualidade, de huma e de duas frentes, do bom author

Broadwood ja bem conhecido neste Paiz, e tambem alguns de

Stodart e Clementi (JC, 11/06/1828, p. 4)”.

De acordo com a nomenclatura convencional européia, as

palavras face e frente correspondem, respectivamente, aos

termos italianos fascia e frontalino e indicam lado e frente

(STEINER, 2004, p. 313). Nomeando ainda as partes do

formato das caixas dos instrumentos em questão – de asa e

retangular3 – de acordo com figuras abaixo, observa-se que as

expressões utilizadas nos trechos acima destacados podem

dizer respeito exatamente aos lados retos da caixa dos

instrumentos (Figura 1).

Sendo assim, um piano denominado de uma frente

possivelmente indica um piano de cauda, e um piano de duas

frentes, um piano de mesa. Seguindo a mesma linha de

raciocínio, um piano de duas faces também deve significar um

piano retangular, provavelmente por conter duas faces iguais e

ao contrário do piano em forma de asa, o qual possui lados

diferentes.

Ainda de acordo com os jornais da época, algumas outras

nomenclaturas foram também utilizadas para se referir aos dois

tipos de instrumentos – de cauda e de mesa –, porém com

menos ambigüidade na conotação. Podem ser identificados

como referência ao primeiro tipo (de cauda) os termos grande

piano ou grande piano forte, piano comprido (formato da caixa

do instrumento) e piano forte horizontal (a relação das cordas

com o teclado).

Analogamente, o segundo tipo (de mesa) também pode ser

denominado como piano perpendicular (a relação das cordas

com o teclado), piano de mesa, piano portatil e pequeno piano

ou manicorne4.

Quanto ao formato vertical, apesar de se empregar muitos

nomes para sua caracterização, não há dúvidas quanto ao seu

significado. Os termos encontrados foram forte piano de

parede, pianno forte de parede, forte pianno de feitio d'almario

e piano de feitio de almario.

Além da relação com o formato do instrumento, foi também

localizada uma referência associando a terminologia com a

configuração do teclado propriamente dito. No inventário

post-mortem de Antonio Ribeiro de Avellar, datado de 1794,

um piano de oitava larga foi entregue à família do finado como

pagamento de dívidas. A expressão oitava larga pode ter sido

empregada em oposição ao termo oitava curta, uma prática

muito utilizada em instrumentos de teclado desde o séc. XVI ao

início do XIX. A oitava curta diz respeito à afinação de

algumas notas mais graves de um instrumento de teclado em

alturas abaixo das suas alturas aparentes ou a divisão de

algumas teclas do grave para o maior aproveitamento da

extensão de um instrumento com um número de notas restrito.

O termo oitava larga aplicado ao piano refere-se,

provavelmente, à grande extensão de seu teclado (PEREIRA,

2005, p. 84-85).

Assim, fica claro que a nomenclatura empregada para se

referir ao piano indica fundamentalmente sua capacidade

dinâmica, mas se percebe também que em alguns casos ela pode

Figura 1. Nomenclatura correspondente aos lados dos pianos de cauda e de mesa

Page 4: Artigo Mayra Pereira ANPPOM 2009

esclarecer sobre aspectos formais do instrumento. Deste modo,

os formatos aqui existentes na época – de cauda, de mesa e

vertical – só eram facilmente identificados através do nome

quando explicitada sua característica formal; do contrário, os

termos mais comuns – piano forte, forte piano e piano –

poderiam ser empregados para qualquer tipo de instrumento,

dificultando muito sua especificação (Tabela 1).

Tabela 1. Quadro geral da terminologia do piano no Rio de

Janeiro até 1830

Terminologia geral

Piano forte, Forte piano, Piano

Formato

de Asa

Formato

Retangular

Formato

Vertical

Grande piano Piano de duas faces Forte piano

de parede

Grande piano forte Piano

de duas frentes

Piano forte

de parede

Piano de uma face Piano portátil Forte piano

de feitio d‟almario

Piano de uma frente Piano de mesa Piano

de feitio d‟almario

Piano comprido Piano pequeno

Piano forte

horizontal Manicorne

Piano forte

perpendicular

IV. CONSIDERAÇÃO FINAL

A análise histórica das fontes primárias utilizadas

possibilitou verificar claramente que a terminologia do piano

no Rio de Janeiro ao longo do século XIX é extremamente

diversa e, devido à falta de uma maior especificação nos termos

utilizados, configura-se também imprecisa. Cabe aos

pesquisadores e músicos atuais, portanto, interpretarem com

prudência as informações históricas referentes à nomenclatura

atribuída ao invento de Bartolomeu Cristofari.

NOTAS

1 De 1700 tem-se o inventário dos instrumentos musicais do Príncipe

Ferdinando dei Médici de Florença. A ocorrência de 1704 é verificada

na cópia do tratado de harmonia de Gioseffo Zarlino (1517-1590) Le

Institutioni Harmoniche, de 1558, feita por Federigo Meccoli, músico

da corte de Florença. Nela fala-se do “Arpi Cimbalo del piano e forte,

inventado por Cristofari no ano de 1700” (RIPINS; POLLENS,

2009). 2 Na citação original lê-se na sessão intitulada Mais Avaliações: “hum

pianoforte feito no Rio de Janeiro avaliado na quantia de noventa e

cinco mil réis”. 3 Exclui-se o formato vertical, pois se acredita que a dimensão da

„altura‟ não possa ser desconsiderada. Desta forma, se no anúncio não

se menciona esta importante característica – e o que para época era

uma novidade, sendo, portanto ressaltada – provavelmente não se trata

deste tipo de instrumento e sim dos outros dois formatos mais

conhecidos – de cauda e de mesa. 4 Termo provavelmente originado das palavras portuguesas

manicórdio ou monocórdio. Estas são sinônimas de clavicórdio ou

cravo, mas neste caso, a palavra manicorne deve estar se referindo

forma do clavicórdio em virtude de seu formato retangular,

semelhante ao do piano de mesa, que é um instrumento portátil.

REFERÊNCIAS

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