artigo final - karina vicente

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Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo AUH 240 – História do Urbanismo Contemporâneo Título: O teatro de rua e a cidade de São Paulo. Três exemplos contemporâneos. Karina Vicente Silva Resumo: Em meio a desordem da cidade de São Paulo e de seu crescimento cada vez mais desenfreado, surgem grupos de teatro que fazem dessa desordem a sua inspiração. Ao mesmo tempo que aumentam as atividades comerciais, galerias, lojas e shoppings, as ruas passam a estar cada vez mais vazias e abandonadas. Cresce o numero de moradores de rua, o trânsito da cidade está cada vez mais caótico, as chuvas provocam enchentes, falta de energia elétrica, quedas de árvore, tudo isso devido a uma má gestão e a um fracasso sobre nossa atuação política em relação aos recursos que a natureza nos oferece. Em alguns momentos, a cidade parece estar em um processo de auto destruição. E mesmo que em alguns lugares da cidade, como o centro, essa destruição seja bastante evidente, com seus edifícios abandonados e o forte cheiro de urina, durante o dia a dia e a pressa, os homens já deixaram de percebê-la. Neste artigo, estudaremos três grupos de teatro que a partir da indignação em relação a esse estado dormente das pessoas e

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Teatro de rua em são paulo

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Page 1: Artigo Final - Karina Vicente

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo

AUH 240 – História do Urbanismo Contemporâneo

Título: O teatro de rua e a cidade de São Paulo. Três exemplos contemporâneos.

Karina Vicente Silva

Resumo:

Em meio a desordem da cidade de São Paulo e de seu crescimento cada vez mais desenfreado,

surgem grupos de teatro que fazem dessa desordem a sua inspiração.

Ao mesmo tempo que aumentam as atividades comerciais, galerias, lojas e shoppings, as ruas

passam a estar cada vez mais vazias e abandonadas. Cresce o numero de moradores de rua, o

trânsito da cidade está cada vez mais caótico, as chuvas provocam enchentes, falta de energia

elétrica, quedas de árvore, tudo isso devido a uma má gestão e a um fracasso sobre nossa

atuação política em relação aos recursos que a natureza nos oferece.

Em alguns momentos, a cidade parece estar em um processo de auto destruição.

E mesmo que em alguns lugares da cidade, como o centro, essa destruição seja bastante

evidente, com seus edifícios abandonados e o forte cheiro de urina, durante o dia a dia e a

pressa, os homens já deixaram de percebê-la.

Neste artigo, estudaremos três grupos de teatro que a partir da indignação em relação a esse

estado dormente das pessoas e ao abandono da própria cidade, saem as ruas para versar sobre

a mesma temática: a degeneração urbana e a história de alguns espaços abertos.

O Teatro da Vertigem estrutura em uma peça itinerante a história ainda atual de um bairro

comercial.

O Grupo XIX de teatro, ocupa as ruas da Vila Maria Zélia, antiga vila operária com uma peça

construída a partir da vivência e da busca da história daquele espaço.

O Teatro da Peste, nas ruas do centro, utiliza-se de metáforaspara despertar nos espectadores

questionamentos sobre seu próprio estado de alienação.

Três grupos que não apenas utilizam a cidade como palco, mas versam sobre ela e levam seus

espectadores a olharem tudo o que passa despercebido no espaço.

Através do estudo desses três grupos e da análise de uma peça de cada um, este artigo busca

compreender qual a efetividade, o efeito e as possíveis interferências desses grupos para o

desenvolvimento da cidade e para o despertar da consciência de seus habitantes.

Seriam esses grupos responsáveis por trazer novas propostas de ocupação aos espaços

públicos? Estariam eles fazendo com que as pessoas despertassem para o espaço ao seu redor?

Page 2: Artigo Final - Karina Vicente

Palavras-chave: Teatro de rua. Alienação. Cidade. Teatro da Vertigem. Grupo XIX de

Teatro. Teatro da Peste.

Abstract:

Amid the clutter of the city of São Paulo and its increasingly rampant growth, there are

theater groups that make this disorder to his inspiration.

While increasing commercial activities, galleries, shops and malls, the streets are now

increasingly empty and abandoned. A growing number of homeless people, the city's traffic is

increasingly chaotic, the rains cause flooding, power outages, tree falls, all this due to poor

management and a failure of our political actions in relation to resources that nature offers us.

At times, the city seems to be in a process of self destruction.

And even though in some places of the city as the center, this destruction is quite evident,

with its abandoned buildings and the stench of urine during the day by day and the rush, the

men have failed to perceive it.

In this article, we three groups of theater from the indignation regarding this dormant state of

the people and the abandonment of the city itself, leaving the streets to traverse on the same

theme: urban degeneration and the history of some open spaces.

The Teatro da Vertigem structure in a traveling ask still present history of a business district.

The Grupo XIX de Teatro, occupies the streets of Vila Maria Zelia, former workers' village

with a piece built from the experience and search history that space.

The Teatro da Peste, in the downtown streets, uses metaphors to awaken in the viewers

questions about their own state of alienation.

Three groups that not only use the city as a stage, but deal with it and take your viewers to

look all that goes unnoticed in space.

Through the study of these three groups and the analysis of a piece of each, this article seeks

to understand how effective the effect and the possible interference of these groups to the

development of the city and the awakening of the consciousness of its inhabitants.

Are these groups responsible for bringing new proposals for occupation of public spaces? Are

they making people wake up to the space around them?

Palavras-chave: Teatro de rua. Desertificação. Teatro da Vertigem. Grupo XIX de Teatro.

Teatro da Peste.

Page 3: Artigo Final - Karina Vicente

Título: O teatro de rua e a cidade de São Paulo. Três exemplos contemporâneos.

Karina Vicente Silva

O espaço, a vida

A cidade de São Paulo, metrópole brasileira, se desenvolve cada vez mais rápido e de forma

cada vez mais desordenada. Ela já mostra seu sinal de esgotamento espacial e de recursos

naturaise isso fica claro em diversos aspectos: a grande quantidade de moradores de rua, o

déficit de habitação, projetos de habitação e de urbanização que se dão de forma isolada e que

demoram muito tempo para serem colocados em prática, falta de água, falta de infra estrutura

urbana, grandes enchentes, quedas de energia, muitos quilômetros de trânsito, superlotação de

trens e metrôs, ligações lentas e ineficientes entre diferentes cidades da região metropolitana e

a metrópole, dentre outros problemas.

Imagem 01: Caos no metrô e nos trens. 2014

Ao mesmo tempo, cresce o número de comércios, redes de loja, sedes de empresas. Para 2015

estão previstas a construção de ao menos mais quatro shoppings, um bairro inteiro na Zona

Oeste com 30 torres de escritórios e habitações, aumento do número de teatros, cinemas,

restaurantes (Dados: REVISTA SÃO PAULO – 11 a 17 de janeiro de 2015), ou seja, apesar

de seu claro esgotamento espacial e organizativo, a cidade não para de ganhar novos edifícios

e novas demandas.

Page 4: Artigo Final - Karina Vicente

Essa proposta deplanejamento urbano se desenvolve com projetos de melhorias isoladas e não

um projeto total e coordenado, privilegia cada vez mais o desenvolvimento de atrativos em

espaços fechados e muitas vezes privados da cidade.

São raras as atividades que acontecem em praças e ruas, ou até mesmo projetos de valorização

visual das ruas da cidade, das fachadas de edifícios ou projetos que evidencieme diferenciem

edifícios públicos, como escolas, hospitais, creches, parques e até mesmo prisões, dando a

eles devida importância.

Hoje, dificilmente se encontra alguém que saiba falar sobre pontos históricos da cidade, sobre

os cinemas do centro, sobre as ruas com lojas de segmentos específicos e suas histórias, sobre

os bairros de imigrantes como a Moóca, o Brás, a Liberdade, o Bom Retiro. A especulação

imobiliária e as transformações urbanas descaracterizam muitos lugares contribuindo para

apagar sua história.

É cada vez mais normal para os habitantes da cidade de São Paulo se distanciar do espaço em

que vivem. A velocidade da vida, a quantidade de tarefas, a carga horária de trabalho, a

dificuldade com deslocamentos, a grande quantidade de pessoas, o tempo gasto no trânsito e

os diversos percalços que uma pessoa acaba enfrentando durante o seu dia a dia, fazem com

que ela não observe e nem tenha tempo para observar e admirar o espaço em que vive, o seu

trajeto, novidades nas ruas e mudanças no espaço urbano.

Essa pressa do homem de hoje, exige dele um distanciamento da paisagem, do caminho, pois

passa a exigir um confinamento cada vez maior, seja dentro do seu ambiente de trabalho, seja

gastando horas dentro do transporte público ou do seu próprio carro. Nesse último caso,

mesmo que o homem passe seu tempo livre dentro do transporte, não consegue observar

qualquer mudança no seu trajeto pois está acostumado com as situações de seu cotidiano.

A separação do teatro e da cidade

Page 5: Artigo Final - Karina Vicente

Apesar de todos os sinais dados pela própria cidade, na maioria das vezes a população não

entende a cidade como uma espacialização de um projeto político, projeto este que muitas

vezes não as favorece e nem as deixa perceber que todo cidadão é um agente nesse espaço. De

que forma então declarar para a população, para transeuntes, para ocupantes do espaço que as

áreas em que vivem ou nas quais circulam são passíveis de questionamento e mudança?

Muitos estudiosos apontam algumas formas de expressão artísticas como sendo espaços

contestadores dentro da própria cidade. Alguns apontam a tragédia grega como a primeira

forma de expressão teatral e artística. De acordo com o filósofo e estudioso do teatro Gerd

Bornhein, podemos dizer que a tragédia grega abrangia a manifestação da vida política e de

alguns atos políticos como a guerra.

Nas tragédias se destacam o papel principal (seja o do herói trágico seja o do tirano), que

independente de suas ações nunca são julgados de forma isolada ou apenas por suas ações

como indivíduos, mas serão julgados como representação de seu papel perante a sociedade, ou

seja, sempre servirão como lição para os cidadãos – espectadores. Sendo assim, podemos

dizer que a tragédia, antes de tudo, existia enquanto representação das normas estabelecidas

pela democracia grega para a pólis e formação de seus cidadãos.

Para Gerd Bornheim:

“Desde o início da Era Moderna, vivemos uma experiência de dissociação entre a arte

e a política que nos põe contra todo o passado da arte. O fato moderno é que esta

relação não aparece mais como integração necessária, e sim como uma possibilidade

de construção.” (BORNHEIN, 2002, p.18)

Nos últimos anos, porém, algumas iniciativas começam a despontar, no sentido de dar

destaque para espaços e edifícios da cidade que por muito tempo se encontravam em estado

caótico, abandonado e até mesmo marginalizado ainda que se localizassem próximos a

grandes centros da cidade.

Em alguns espaços, através da iniciativa de diversos grupos, são realizadas festas, ocupações

artísticas, oficinas, intervenções e até mesmo festivais de ocupação do espaço público. Essas

Page 6: Artigo Final - Karina Vicente

iniciativas mostram que é cada vez mais presente a necessidade de apresentar ao público

questões mais politizadas e que versem sobre o cotidiano do homem na cidade.

“A arte de hoje não precisa ser política. No entanto, se o artista for de fato um homem

responsável dentro da sociedade, atento a seu contexto social e à importância da

politização, então, aí sim, é possível que esta opção se desenvolva e ganhe sentido

prático na sua obra.” (BORNHEIN, 2002, p.21)

Apesar de na sua forma mais popular a arte ter se separado do estado político das coisas

podendo virar mera diversão, alguns grupos e artistas de vanguarda sempre apontaram a

necessidade de um retorno a formas como as da tragédia grega, onde o fazer artístico e o

pensar político caminhavam juntos, como defende Augusto Boal, diretor do grupo Teatro do

Oprimido e criador de uma técnica teatral que envolve teatro e realidade de formas

inseparáveis.

"Os que pretendem separar o teatro da política pretendem conduzir-nos ao erro - e essa

é uma atitude política. Neste livro, pretendo igualmente oferecer algumas provas de

que o teatro é uma arma.Uma arma muito eficiente. Por isso, é necessário lutar po rele.

Por isso, as classes dominantes permanentemente tentam apropriar-se do teatro e

utilizá-lo como instrumento de dominação. Ao fazê-lo, modificam o próprio conceito

do que seja 'teatro'. Mas o teatro pode igualmente ser uma arma de libertação. Para

isso, é necessário criar as formas teatrais correspondentes. É necessário transformar."

(BOAL, 1977, p.1)

Sendo o teatro um espaço que aparentemente representa formas apenas ficcionais, não seria

ele o espaço perfeito para apresentar questionamentos e fazer o espectador utilizar desses

questionamentos para refletir sobre sua realidade?

“A cidade de hoje é, quase sempre, um lugar despolitizado. Por outro lado, os homens

não tem como fugir da necessidade do compromisso efetivo e da escolha política. Se

esta possibilidade permanece aberta à arte – e o teatro poucas vezes consegue

abandoná-la – é porque talvez não precise e nem deva ser abandonada.” (BORNHEIN,

2002, p.22)

Page 7: Artigo Final - Karina Vicente

Olhando não apenas para a crise da cidade, mas olhando também para as formas teatrais,

podemos perceber que nos últimos anos a busca de novas formas de representação tem

aparecido como uma necessidade, por exemplo: faz parte do fazer artístico o processo de

pesquisa, estudo e construção do produto final a ser apresentado. Por muitos anos, diversos

grupos de teatro apresentam processos riquíssimos, que culminam porém, em vagas

apresentações finais. Hoje, muitos grupos questionando esse produto final passaram a

apresentar para os espectadores os próprios processos de construção, não é raro, portanto, ver

grupos de discussões abertos que possibilitam que qualquer cidadão faça parte da discussão e

da construção artística.

Para essa necessidade de mudança e sobrevivência dos grupos de teatro, a resposta mais

orgânica passa a ser a expansão do teatro para temáticas reais e cotidianas mas que além de

contarem uma história, mostrem para o espectador a realidade dos fatos e dos espaços ao seu

redor.

Essa nova postura do teatro passa portanto, a ser incompatível com o modelo teatral vigente

mais comum: o espetáculo de palco italiano.

Isso porque “A relação estática e, predominantemente, frontal entre espectador e espetáculo

também se constitui outro ponto de discussão acerca da estrutura à italiana uma vez que o

homem do século XX está condicionado de maneira bem diversa daquele que vivia a época do

nascimento do palco italiano. O espectador, para aqueles que buscam uma outra estrutur apara

o teatro, estático e passivo diante do palco tende a ser absorvido mais facilmente pelo

espetáculo, chegando a perder a consciência de que é um espectador.”,diz Cristiano Cezarino

Rodrigues em Teatro da Vertigem e a cenografia do campo expandido.

Essa separação entre o papel do ator e do espectador, do espaço de apresentação estático e

entre o objeto de estudo e a vida é que já não fazem mais sentido para o homem

contemporâneo.

Em “Acabar com as obras primas”, Antonin Artaud fala justamente da necessidade do fim da

obra de exposição, do fim da arte intocável e de uma difusão entre a arte e a vida, fala da

importância de tirar dos espaços fechados as obras que nada se relacionam com a vida daquele

que as olha.

Page 8: Artigo Final - Karina Vicente

Os três grupos

E é nesse contexto contemporâneo que se destacam três grupos de teatro: o XIX de Teatro, o

Teatro da Vertigem e o mais novo, o Teatro da Peste. Três grupos que em busca de novas

formas de apresentação, de novos processos e de um novo olhar para o teatro e para a cidade,

criaram espetáculos contestadores.

O grupo XIX de Teatro

Criado em 2002, o grupo XIX de Teatro, inicia suas pesquisas e apresenta a peça Hysteria.

Com a finalização desse processo em 2004 retoma seus estudos em novos espaços, como a

Vila Maria Zélia, uma vila operária na Zona leste de São Paulo, construída em 1917.

A Vila Maria Zélia, foi umas das cerca de 40 vilas operárias criadas em São Paulo no início

do século XX. Suas habitações foram inspiradas no modelo das Vilas operárias inglesas que,

em resposta à insalubridade da habitação e vida dos operários na primeira revolução

industrial, visaram desenvolver um modelo mais conectado a creches, hospitais e escolas.

Contava com consultórios médicos, odontológicos e farmácia, creche, jardim de infância e

duas escolas, armazém, açougue e restaurante, uma igreja católica, além de teatro, salão de

baile, quadras esportivas, praça e coreto.

Com a locação de sua sede nesse espaço e com as apresentações e pesquisas desenvolvidas na

antiga Vila operária, o grupo reavivou o lugar e virou os olhares para aquela vila que mesmo

tendo sido tombada se encontrava em estado deplorável de preservação.

No espetáculo Hygiene, desenvolvido desde o início de 2004, o grupo teve a oportunidade de

vivenciar os edifícios deteriorados do bairro, a população que ali vivia e todo o conjunto

urbano, propondo então uma ocupação teatral que transbordou o limite do edifício e ocupou

as ruas da Vila. Convidados pela Secretaria de Cultura Municipal o grupo se pôs a aprofundar

um tema já em pesquisa: o habitar.

Como processo, o grupo XIX de Teatro, a partir de estudos iniciais sobre alguns aspectos que

envolviam a vida e a história da vila, realizou seminários, oficinas e exposições tanto com os

Page 9: Artigo Final - Karina Vicente

moradores, quanto com visitantes que aos poucos foram formando uma bagagem de vivências

e de possibilidades que pudessem fazer tanto com que os moradores daquele lugar pudessem

sentir-se pertencentes ao passado quanto pudessem fazer com que o grupo de teatro, mais

novo residente do lugar, também passasse a pertencer a ele e a vivenciar os hábitos como se

realmente vivessem ali.

A partir desses processos abertos e colaborativos o grupo passar a trazer a tona a história

daquele lugar e uma discussão sobre os projetos de habitação do final do século XIX e suas

crises, como os cortiços, vilas operárias, os processos de higienização e ao mesmo tempo, a

vida das pessoas naqueles espaços que deram origem a diversas manifestações artísticas no

período.

Esse fazer teatral não seria efetivo se acontecesse de forma isolada da realidade vigente

naquele lugar, isso porque desenvolver uma peça de teatro naquele espaço seria uma forma de

efetivar, junto com os moradores, a luta pela preservação e valorização da memória daquela

Vila.

Dessa maneira, conforme as oficinas e estudos foram se aprofundando, o grupo passou a criar

personagens característicos, mas que pudessem ser vivenciados por qualquer um dos atores.

Todos os personagens criados durante o processo foram surgindo através do imaginário e das

experiências espaciais, neste caso, a arquitetura trazia diretamente para os atores aspectos

visuais e da vida de seus antigos habitantes e hábitos.

“Fazer boa parte de Hygiene na rua é colocar em pauta um povo que tinha a casa

apenas como um abrigo para dormir, pois suas questões de ordem política, sexual,

religiosa e festiva estavam postas na rua, no coletivo, ou seja, na cidade”

(MARQUES, 2006, p.70)

Atualmente, o grupo ainda possui sede no espaço e é de fundamental importância para a

divulgação e existência daqueles espaços.

Page 10: Artigo Final - Karina Vicente

Imagem 03: Cena da peça Higyene. 2002

O Teatro da Vertigem

O Teatro da Vertigem, surge em 1991, com estudos baseados no movimento da mecânica

clássica desenvolvidos por Vsevolod Meyerhold no início do século XX.

Para justificar a origem do nome, o grupo busca em seus espetáculos causar no espectador um

estranhamento em relação ao espaço e ao tempo em que as obras são apresentadas, levando

em conta a discussão sobre a linha tênue entre realidade e ficção em suas cenas, e trazendo

para o espectador experiências em espaços que raramente são visitados de forma profana ou

desconectada de necessidades físicas e sentimentais.

Seu Conjunto de obras se baseia num estudo entre obra e espaço, tendo sido suas peças

encenadas em espaços peculiares, carregador por si de significados.

A primeira peça “Paraíso perdido” foi encenada, após um ano de pesquisa, na Igreja de Santa

Ifigênia, levando em conta a discussão sobre o profano e o sagrado, trazendo para dentro da

igreja cenas que memoravam dúvidas e perdições da vida cotidiana.

Page 11: Artigo Final - Karina Vicente

A segunda peça, O Livro de Jó, foi apresentada em um hospital recém desativado onde ainda

estavam os aparelhos hospitalares e o forte cheiro de formol nos corredores. Nela, o ator

principal passava por processos de descoberta da AIDS e questionamentos sobre a própria

vida.

Já a peça Apocalipse 1,11 foi encenada no antigo Presídio do Hipódromo, espaço que foi

desativado após motim de detentos. Nele, os atores dividiam o público entre cenas que

causavam completo repúdio como a representação de estupros e violência extrema, e o

próprio desgosto em relação ao ambiente representado.

A peça BR – 3 – realizou pesquisas iniciais na Brasilândia em SP, na Brasiléia no AC e em

Brasília no DF, buscando relacionar os três espaços.

Tais peças causavam tamanho estranhamento e vertigem que muitas vezes geravam incômodo

nos espectadores e no entorno dos espaços representados, como se o grupo fizesse transbordar

para a rua a realidade até então escondida nos edifícios fechados. Na peça O livro de Jó, não

raramente ocorriam desmaios de pessoas do público, devido a aproximação seja física, seja

psicológica com o representado na peça.

E finalmente, em 2013, a peça Bom Retiro 958metros, encenada no bairro do Bom Retiro em

SP. Nesse último espetáculo, passando por espaços como um shopping, uma rua deserta atrás

da estação de trem e a até então abandonada Casa do Povo, antigo polo de resistência da

cultura judaica em SP, o grupo vai revelando cenas do cotidiano daquele lugar, como a rotina

das costureiras, a loucura de uma noiva, as falas de um mendigo, as músicas típicas bolivianas

que tocam nas rádios para embalar o dia a dia das costureiras e as “dores” de um manequim

defeituoso que é descartado pela fábrica, tudo isso desenvolvido como uma alusão à vida

daquele bairro.

De Acordo com Vera Pallamin, é perceptível nessa peça o caráter crítico contra a

sobreposição dos interesses imobiliários e comerciais que se dão de forma crescente no bairro

do Bom Retiro, em detrimento do caráter sociológico e histórico do local, deixando

populações imigrantes, trabalhadores e espaços culturais esquecidos no tempo e espaço.

Page 12: Artigo Final - Karina Vicente

Nesta peça, os homens e trabalhadores são representados por manequins defeituosos e em

diversos momentos nos identificamos com seu estado de exclusão e abandono, não a toa, a

cena final causa um choque: somos todos descartáveis como aquele manequim que se

encontra jogado em uma caçamba pela rua?

Imagem 02: Cena da peça Bom Retiro 958 metros. 2013

O Teatro da Peste

O terceiro grupo, o Teatro da Peste, surge na ECA USP em 2012, a partir de pesquisas da

estudante e diretora Julia Burnier, então orientanda de Antônio Araújo do Teatro da Vertigem.

Apesar de existir há menos de 2 anos, já possui uma bagagem de pesquisa muito interessante,

tendo estudado a principio a obra contestadora de Nelson Rodrigues e agora, como um projeto

mais amplo, a mitologia grega para o espetáculo A peste invade Atenas.

O grupo, através de diversas leituras como A Peste de Antonin Artaud, textos de Vladimir

Nabokov e os mitos gregos sobre o nascimento do Minotauro e a guerra entre Creta e Atenas,

construiu paralelos com a situação das cidades hoje.

Page 13: Artigo Final - Karina Vicente

“A peste é um símbolo fundamental, é presença da hybris, da desmedida. É a

presença do Caos. Algo de que o homem busca fugir, da falta de

sentido.”(BORNHEIN, 2002, p.17)

A principio, pensando na Peste como algo que paira no ar, que corrói o corpo dos homens,

mas que não é possível de enxergar, o grupo traça um paralelo com a anemia atual do cidadão

e com a falta de perspectiva e de mudanças referentes ao estado caótico atual da vida.

Em seguida, e de forma inversa à ordem cronológica do mito grego, a população de Atenas,

ainda que doente, se levanta para lutar contra o estado de guerra, de morte e da doação de

tributo (7 jovens que anualmente servem de alimento - carne para o Minotauro) existentes em

Atenas, o povo se cansa do sofrimento e deve decidir o que fazer. É nesse momento, que em

Assembleia (com textos não ensaiados) o povo ateniense decide lutar em guerra contra Creta.

A partir daí, os atores se transformam em povo cretense e em um momento de catarse

realizam rituais de cunho dionisíaco, com dança, vinho, fazendo movimentos de roda com o

público que até aí já está ludibriado e envolvido com a peça.

Todo esse roteiro se realiza plenamente quando representado em área pública, neste caso, no

centro velho de São Paulo, no Vale do Anhangabaú e nas ruas ao redor durante a noite, isso

porque, a crise da cidade de Atenas e a barbárie da cidade de Creta, traçam para o espectador

um paralelo com a cidade de São Paulo, com suas próprias rotinas e de forma mais imediata,

com as situações reais que envolvem o espaço onde o espetáculo está acontecendo. Não é

incomum que durante a peça, mendigos interrompam e, ora argumentem contra o caos

da cidade, ora entrem na loucura do estado de êxtase das danças cretenses.

Além disso, o estado de “peste” da peça pode ser associado tanto com a sujeira e doenças

vindas das ruas imundas do próprio centro, como simbolizando uma sociedade que está

doente, que deteriora seus habitantes e que necessita de mudanças.

Page 14: Artigo Final - Karina Vicente

Imagem 04: Cena da peça A peste invade Atenas. 2014

Conclusão

Portanto, o que une o trabalho desses três grupos além de sua atuação fora da sala de teatro de

palco italiano?

De forma curiosa e impactante, os três grupos colocam o espectador frente a frente com

situações corriqueiras da cidade, mas que passam despercebidas aos olhos do transeunte.

Colocam suas pecas na rua ainda de forma inacabada, pois dependem diretamente da ação do

publico e da rotina do espaço utilizado, não a toa, para eles, o processo de construção do

espetáculo é a parte mais importante e não a toa, todas as peças se encontram em constante

modificação, até que ela se esgote quando o grupo passa a ter necessidade de trazer a tona

novos temas.

Os três grupos, tiram o espectador da normalidade e os colocam em situações de medo e

estranhamento que os fazem perceber, imaginar ou vivenciar a vida que ainda existe ou que

existiu naquele lugar, lugares que raramente são questionados pela população e que estão

Page 15: Artigo Final - Karina Vicente

intrincados ao processo de formação da cidade, representando um modelo de cidade, mas que

passa como sendo um modelo único e praticamente inquestionável.

Bibliografia:

Livros

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2. ARTAUD, Antonin. Acabar com as obras primas.In:O teatro e seu duplo. 2ª ed. São

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CosacNaify. 1a edição. 2013

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2003

Teses

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Dissertação - ECA USP. São Paulo. 2002.Livro

Artigos

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Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.092/174>. Acesso

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Page 16: Artigo Final - Karina Vicente

9. PALLAMIN, Vera. BomRetiro 958 metros: a contrapelonacidade. In: SalaPreta. v. 12, n.

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Espetáculos

10. TEATRO DA VERTIGEM. BomRetiro 958 metros.Espetáculo. Apresentação do dia28 de

setembro de 2012. São Paulo, SP.

11. TEATRO DA PESTE. A peste invade Athenas. Espetáculo. Apresentações de abril de

2014 e participação no processo de direção de arte em Outubro de 2014. São Paulo,SP.