artigo do iv encontro de musicologia de ribeirão preto

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IV ENCONTRO DE MUSICOLOGIA DE RIBEIRÃO PRETO 1 RETÓRICA NA MÚSICA COLONIAL BRASILEIRA: O USO DA ANAPHORA EM ANDRÉ DA SILVA GOMES Eliel Almeida Soares [email protected] Ronaldo Novaes [email protected] Diósnio Machado Neto [email protected] Resumo: Neste trabalho procuraremos evidenciar a consciência do uso e aplicação retórica na obra de André da Silva Gomes, demonstrando que o compositor luso-brasileiro possuía sólida estrutura e proficiência teórica fundamentada na Arte da Eloquência com o objetivo de criar um discurso persuasivo. Para tanto, partiremos da demonstração da utilização da Anaphora através de análises retórico-musicais associadas ao texto sacro, além de métodos analíticos amplamente difundidos na musicologia. Palavras-chave: Retórica, Anaphora, Análise Musical, André da Silva Gomes, Música Colonial Brasileira. Rhetoric on Brazilian Colonial Music: The Use of Anaphora in André da Silva Gomes Abstract: In this paper, we aim to demonstrate the awareness of the use and application of rhetoric in André da Silva Gomes’ work, demonstrating that the Luso-Brazilian composer had solid structure and theoretical proficiency based on the Art of Eloquence in order to create a persuasive speech. To achieve this goal, we are going to start demonstrating the use of Anaphora through musical-rhetorical analyses associated to sacred text, besides showing analytical methods widespread in in musicology. Keywords: Rhetoric, Anaphora, Musical Analysis, André da Silva Gomes, Brazilian Colonial Music. 1. Introdução O objetivo fulcral da retórica é a produção de discursos eloquentes e persuasivos com a finalidade de convencer uma audiência da verdade de algo, ou seja, trata-se de uma teckné argumentativa, fundamentada não apenas no logos dialético, mas na habilidade em aplicar a linguagem para mover os afetos dos ouvintes (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1999, p.235). Para tanto, faz uso de diversos recursos, tais como metáforas, analogias, alegorias e figuras retóricas. Sua relação com a música se dá desde a Antiguidade greco-romana, onde diversos pensadores inter-relacionavam seus conceitos entre si. Durante o século XVI, com a redescoberta dos textos clássicos, os conceitos e teorias sobre a retórica serviram de fundamentação para que tratadistas e pensadores musicais elaborassem o que viria a se estabelecer como Poética Musical, ou seja, teorias acerca da constituição da música como discurso.

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IV ENCONTRO DE MUSICOLOGIA DE RIBEIRÃO PRETO  

1

 

RETÓRICA NA MÚSICA COLONIAL BRASILEIRA: O USO DA ANAPHORA EM ANDRÉ DA SILVA GOMES

Eliel Almeida Soares [email protected]

Ronaldo Novaes

[email protected]

Diósnio Machado Neto [email protected]

Resumo: Neste trabalho procuraremos evidenciar a consciência do uso e aplicação retórica na obra de André da Silva Gomes, demonstrando que o compositor luso-brasileiro possuía sólida estrutura e proficiência teórica fundamentada na Arte da Eloquência com o objetivo de criar um discurso persuasivo. Para tanto, partiremos da demonstração da utilização da Anaphora através de análises retórico-musicais associadas ao texto sacro, além de métodos analíticos amplamente difundidos na musicologia. Palavras-chave: Retórica, Anaphora, Análise Musical, André da Silva Gomes, Música Colonial Brasileira.

Rhetoric on Brazilian Colonial Music: The Use of Anaphora in André da Silva Gomes

Abstract: In this paper, we aim to demonstrate the awareness of the use and application of rhetoric in André da Silva Gomes’ work, demonstrating that the Luso-Brazilian composer had solid structure and theoretical proficiency based on the Art of Eloquence in order to create a persuasive speech. To achieve this goal, we are going to start demonstrating the use of Anaphora through musical-rhetorical analyses associated to sacred text, besides showing analytical methods widespread in in musicology. Keywords: Rhetoric, Anaphora, Musical Analysis, André da Silva Gomes, Brazilian Colonial Music.

1. Introdução

O objetivo fulcral da retórica é a produção de discursos eloquentes e

persuasivos com a finalidade de convencer uma audiência da verdade de algo, ou seja,

trata-se de uma teckné argumentativa, fundamentada não apenas no logos dialético, mas

na habilidade em aplicar a linguagem para mover os afetos dos ouvintes (JAPIASSÚ;

MARCONDES, 1999, p.235). Para tanto, faz uso de diversos recursos, tais como

metáforas, analogias, alegorias e figuras retóricas. Sua relação com a música se dá desde

a Antiguidade greco-romana, onde diversos pensadores inter-relacionavam seus

conceitos entre si. Durante o século XVI, com a redescoberta dos textos clássicos, os

conceitos e teorias sobre a retórica serviram de fundamentação para que tratadistas e

pensadores musicais elaborassem o que viria a se estabelecer como Poética Musical, ou

seja, teorias acerca da constituição da música como discurso.

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De acordo com Santo Agostinho, a transmissão da arte retórica não é

exclusiva de uma escola ou nação que, por se tratar de uma linguagem, é inerente ao ser

humano, podendo ser aprendida, conhecida e assimilada por nações diferentes, de

modos diversificados (AGOSTINHO, [397-426] 2002, livro III, cap.29 § 40, p.185).

Embasados na afirmativa agostiniana, assim como na documentação histórica e social

sobre a formação de André da Silva Gomes (1752-1844), nossa pesquisa se insere pela

necessidade de incluir a Música Colonial Brasileira às demais investigações da

musicologia contemporânea acerca da retórica musical. A metodologia adotada consiste

de métodos analíticos amplamente difundidos, além do estudo do tratado A Arte

Explicada do Contraponto, de autoria do próprio Silva Gomes aplicados na análise de

seus ofertórios.

Nessa proposta, especificamente, procura-se demonstrar a aplicação da

Anaphora - figura de repetição melódica, em alguns excertos da obra do quarto Mestre

de Capela da Sé de São Paulo, demonstrando a conspicuidade do compositor luso-

brasileiro em dispor tanto os elementos, como as figuras retóricas na constituição de seu

discurso musical. Sabe-se que as averiguações concernentes à retórica na música

brasileira ainda estão em fase inicial, o que justifica a necessidade da inserção deste

trabalho dentro das pesquisas já existentes.  

2. A Anaphora e suas Funções

Ao constituir seu discurso, o orador faz uso de diversos recursos retóricos

para alcançar o objetivo a que se propõe. Partindo de um amplo repertório de figuras

retóricas, escolhe aquela que mais está de acordo com sua necessidade. Nesse sentido,

quando tem por objetivo enfatizar ou realçar alguma ideia, dentre os vários recursos

possíveis, lança mão da Anaphora, que é um dispositivo retórico que consiste em repetir

uma sequência de palavras no início de cada sentença. Musicalmente, a Anaphora é

uma linha do baixo repetida, ou seja, um solo na voz do baixo; também pode ser a

repetição de uma exposição melódica sobre notas e partes diferentes. Igualmente pode

ocorrer no inicio das repetições de frases e motivos em uma série de passagens

sucessivas; por fim, pode ser apresentada como uma repetição em geral.

De acordo com Joachim Burmeister (1564-1629), é um ornamento que

repete as mesmas notas através de várias vozes diferentes; Para Johannes Nucius (1556-

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1620), ocorre no contraponto floreado ou misto. Onde um tema é repetido

continuamente numa única e mesma voz; Joachim Thuringus (nascido em finais do

século XVI), define como uma repetição continuada apenas no Baixo; Para Athanasisus

Kircher (1601-1680), a Anaphora ocorre quando uma passagem é frequentemente

repetida com ênfase; Em Johann George Ahle (1651-1706), é tratada no mesmo sentido

de ênfase, como no exemplo bíblico: Alegrem-vos no Senhor todas as terras ou cantem

e se alegrem;  Johann Mattheson (1681-1764), afirma ser comum encontrá-la na

composição musical, podendo ocorrer na introdução de um fragmento melódico que é

repetido no início de várias frases; para Johann Adolf Scheibe (1708-1776), trata-se de

uma repetição de notas ou passagens musicais; Johann Nikolaus Forkel (1749-1818),

afirma que a Anaphora envolve não apenas as notas e todas as passagens musicais, mas

também o texto e a música vocal que recebe maior ênfase através da repetição.

(BARTEL, 1997, p.184-190).

3. Exemplos de Anaphora em Algumas Obras de André da Silva Gomes

Nota-se o emprego da Anaphora na repetição tanto do motivo rítmico

quanto das relações intervalares, nas quatro vozes do ofertório, enfatizando a expressão

in mandatis tuis (teus mandamentos), no compasso 21, na Propositio1.

Exemplo 1: Anaphora no Ofertório da Missa do 2º Domingo da Quaresma de André da Silva Gomes,

comp.21- Catalogação e Organização Régis Duprat (DUPRAT, 1999, p.95).                                                             1 Onde se encontra o esboço dos pontos do argumento, em outras palavras, o conteúdo da tese é exposto de forma sucinta.

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É notável de apreciação a utilização da Anaphora, na tonalidade de Si bemol

Maior, logo após a Semicadência, no compasso 20, destacando as palavras Et judiciosa

(Mais justos), no solo da soprano, que juntamente com a delimitação das outras vozes,

por meio de pausas, aguardando em silêncio e ficando em repouso por algum tempo,

caracteriza uma Narratio dentro da Confutatio2.

Exemplo 2: Anaphora no Ofertório da Missa do 3º Domingo da Quaresma de André da Silva Gomes, comp.21e 22- Catalogação e Organização Régis Duprat (DUPRAT, 1999, p.102).

O discurso do Ofertório da Missa do 1º Domingo do Advento se inicia de

maneira reflexiva numa súplica em forma de oração, Ad te [Domine] levavi animam

mean (A ti Senhor elevei a minha alma), sendo a mesma destacada pelo solo da soprano

até o compasso 12. Em meio a tal prece é trabalhada pelo autor a primeira ideia do

ofertório, que é a elevação do espirito do fiel através da busca de um relacionamento

com Deus, visando não só a purificação e santificação, mas a confiança para alcançar

seus objetivos. Como complemento a essas petições, o Silva Gomes adiciona a

Anaphora, enfatizando, por meio de repetição a palavra levavi (elevei).

                                                            2 Narratio- narração dos fatos que pode ocorrer no início da parte vocal, igualmente na entrada do solo, entretanto, essa parte da Dispositio (distribuição ou arranjo das ideias e argumentos), também é encontrada em todas as vozes de uma peça musical. Confutatio- refutação dos argumentos expostos anteriormente, através de oposição.

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Exemplo 3: Anaphora no Ofertório da Missa do 1º Domingo do Advento de André da Silva Gomes, comp.1 e 2- Catalogação e Organização Régis Duprat (DUPRAT, 1999, p.128).

No mesmo ofertório, essa figura é aplicada para enfatizar a expressão

animam (alma), alimentando, dessa forma, a atenção do ouvinte através de mecanismos

retóricos, motívicos e estruturais, isto é, o sentimento de elevação e purificação para

obter êxito na inquirição do salmista, é conservado pelo compositor luso-brasileiro, o

qual se apropria da Anaphora, já empregada anteriormente no Exordium (introdução do

discurso).  

Exemplo 4: Anaphora no Ofertório da Missa do 1º Domingo do Advento de André da Silva Gomes,

comp.14 e 15- Catalogação e Organização Régis Duprat (DUPRAT, 1999, p.130).

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A presente obra, tal como o Ofertório da Missa do Quarto Domingo da

Quaresma, fora escrita para oito vozes. Nos compassos 3 a 5, é observável o uso da

Anaphora, fazendo uma repetição continua na voz do baixo, conforme a definição do

tratadista Joachim Thuringus. Da mesma forma, pode-se constatar sua utilidade na

resolução da primeira frase Benedixisti Domine, por meio da Cadência Autêntica

Perfeita.

Exemplo 5: Anaphora no Ofertório da Missa do 3º Domingo do Advento de André da Silva Gomes, comp.3 a 5- Catalogação e Organização Régis Duprat (DUPRAT, 1999, p.144-145).

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O autor incrementa essa figura de repetição melódica para ressaltar a

expressão laetentur caeli (alegrem-se os céus). Enfim, os elementos retóricos utilizados

nesse excerto, foram trabalhados por Silva Gomes em consonância ao texto sacro

apresentado, de modo a chamar a atenção do ouvinte, seja pela ênfase, reiteração ou no

destaque das expressões pronunciadas melodicamente.

Exemplo 6: Anaphora no Ofertório da Missa de Natal (1º Mov.) de André da Silva Gomes, comp.44 e 45- Catalogação e Organização Régis Duprat (DUPRAT, 1999, p.202).

4. Considerações Finais

Sendo parte constituinte da composição, o elemento emocional torna-se

decisivo para realização do discurso retórico. O objetivo capital do orador é mover os

afetos do ouvinte a fim de torná-lo favorável à sua tese. Para tanto, busca fundamentar

seus argumentos não apenas na lógica, mas em artifícios retóricos e alegóricos. Desde

os primórdios da civilização ocidental, pensadores e estudiosos atribuem à música o

poder de influenciar a conduta humana. Nos séculos XVI a XVIII, vários compositores

e tratadistas teorizaram e sistematizaram o discurso musical embasados na retórica.

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Possuidor de um sólido arcabouço teórico e consistente conhecimento

literário e musical, André da Silva Gomes, mestre de contraponto e gramática latina,

demonstra em sua obra todo o seu cabedal acerca da retórica musical. Como procurou-

se demonstrar através de análises de seus ofertórios neste artigo, que se fixou apenas na

figura da Anaphora como elemento retórico de repetição e ênfase, aplicado pelo

compositor na constituição de seu discurso eloquente e persuasivo.

Referências: AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã Manual de exegese e formação cristã. São Paulo: Editora Paulus, 2002.

BARTEL, Dietrich. Música Poética: Musical-Rhetorical Figures in Germany Baroque Music. Lincoln: University of Nebraska Press, 1997. DUPRAT, Régis. Música Sacra Paulista. Marília (SP): Editora Empresa Unimar, 1999. DUPRAT, Régis et al. A Arte Explicada de Contraponto de André da Silva Gomes. São Paulo: Arte & Ciência, 1998. JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 1999.