artigo - desobediÊncia civil

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1 A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO EM FACE À SOBERANIA POPULAR, CIDADANIA E À DIGNIDADE HUMANA Mário Ferreira Neto 1 RESUMO O presente trabalho objetiva demonstrar a desobediência civil como um direito fundamental do ser humano com a finalidade de possibilitar o aperfeiçoamento e a efetivação do Direito no regime democrático e na ordem constitucional. Este trabalho faz abordagem, mediante três proposições: a soberania popular, a cidadania e a dignidade humana entrelaçadas com os direitos e a liberdade do homem. Neste contexto, o presente trabalho analisa as sustentações dos pensadores e professores contemporâneos sobre a teoria da desobediência civil em busca dos fundamentos indispensáveis para sua justificação e utilização, indicando suas características, seus elementos e modos de exercício. Posteriormente delimitar o conceito atual do instrumento da desobediência civil em face dos argumentos sobre sua natureza jurídica e sua correlação com a teoria constitucional. A questão da 1 Licenciado em Matemática pela Fundação Universidade do Tocantins: Ano de Conclusão: 1998. Data de Colação de Grau: 5/2/1999. Registro: MEC/CEE/TO nº 1569 do Livro nº 002. Processo PEG: 1602/1999. Data de Registro 7/12/1999 – Especialista em Matemática e Estatística pela Universidade Federal de Lavras do Estado de Minas Gerais, Registro nº 341/2002 - fl. 341 - Livro de Registros de Diplomas nº 006, Lavras - MG, 5/7/2002 – Acadêmico de pós-graduação do Curso de Perícia Judicial pela PUC/GO-IPECON – Acadêmico de pós-graduação do Curso de Gestão do Judiciário pela Faculdade Educacional da Lapa – FAEL em convênio com a Escola Judiciária do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins – Acadêmico do Curso de Direito da Faculdade de Palmas - FAPAL – Contador Judicial do Poder Judiciário do Estado do Tocantins: Matrícula 70.953/7-1, desde 8/8/1992, lotado na Comarca de Palmas: Decreto Judiciário nº 297/2010 – Professor de Matemática da Rede Pública Estadual do Tocantins: Matrícula 251194, desde 1/5/1991 e posteriormente com nível superior: Matrícula 8545651, desde 3/8/2003 – atualmente na Escola Estadual Madre Belém de Palmas-TO.

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A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO EM FACE À SOBERANIA POPULAR, CIDADANIA E À DIGNIDADE

HUMANA

Mário Ferreira Neto1

RESUMO

O presente trabalho objetiva demonstrar a desobediência civil como um direito fundamental do ser humano com a finalidade de possibilitar o aperfeiçoamento e a efetivação do Direito no regime democrático e na ordem constitucional. Este trabalho faz abordagem, mediante três proposições: a soberania popular, a cidadania e a dignidade humana entrelaçadas com os direitos e a liberdade do homem. Neste contexto, o presente trabalho analisa as sustentações dos pensadores e professores contemporâneos sobre a teoria da desobediência civil em busca dos fundamentos indispensáveis para sua justificação e utilização, indicando suas características, seus elementos e modos de exercício. Posteriormente delimitar o conceito atual do instrumento da desobediência civil em face dos argumentos sobre sua natureza jurídica e sua correlação com a teoria constitucional. A questão da

1Licenciado em Matemática pela Fundação Universidade do Tocantins: Ano de Conclusão: 1998. Data de Colação de Grau: 5/2/1999. Registro: MEC/CEE/TO nº 1569 do Livro nº 002. Processo PEG: 1602/1999. Data de Registro 7/12/1999 – Especialista em Matemática e Estatística pela Universidade Federal de Lavras do Estado de Minas Gerais, Registro nº 341/2002 - fl. 341 - Livro de Registros de Diplomas nº 006, Lavras - MG, 5/7/2002 – Acadêmico de pós-graduação do Curso de Perícia Judicial pela PUC/GO-IPECON – Acadêmico de pós-graduação do Curso de Gestão do Judiciário pela Faculdade Educacional da Lapa – FAEL em convênio com a Escola Judiciária do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins – Acadêmico do Curso de Direito da Faculdade de Palmas - FAPAL – Contador Judicial do Poder Judiciário do Estado do Tocantins: Matrícula 70.953/7-1, desde 8/8/1992, lotado na Comarca de Palmas: Decreto Judiciário nº 297/2010 – Professor de Matemática da Rede Pública Estadual do Tocantins: Matrícula 251194, desde 1/5/1991 e posteriormente com nível superior: Matrícula 8545651, desde 3/8/2003 – atualmente na Escola Estadual Madre Belém de Palmas-TO.

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desobediência civil como instrumento do direito de resistência em face aos direitos fundamentais e humanos enseja sempre inúmeras reflexões.

Pode-se indagar se estes direitos basilares e essenciais a qualquer Estado Democrático de Direito sempre existiram ou se são construções históricas, além disso, é necessário saber a expressão correta para designá-los. Se mutáveis, acompanhando a evolução humana ou se imutáveis. A desobediência civil é uma questão antiga, porém, inicialmente idealizada pelo norte-americano Henry David Thoreau, em 1849, originalmente intitulado "Resistência ao Governo Civil" e posteriormente reintitulado "Desobediência Civil", entendida como uma forma de protesto não violenta a um poder político quer do Estado ou não, vista pelo desobediente como um ato opressor. Este conceito advém do pensamento de Henry David Thoreau, posteriormente aplicado com sucesso por Mahatma Gandhi no processo de independência da Índia e do Paquistão, dentre outros, sem reflexos de aplicabilidades pelas sociedades democráticas. Este instituto é um fenômeno característico da atualidade, reconhecido implicitamente nas democracias ocidentais que se estruturam em torno das liberdades civis e políticas, depois das Revoluções, americana e francesa, referentes às idéias de direitos naturais, afetos ao direito de resistência, tendo em vista que as injustiças estão sempre presentes naqueles direitos (naturais).

PALAVRAS-CHAVES

Cidadania. Desobediência Civil. Dignidade Humana. Direitos Fundamentais. Ética. Direitos Humanos. Estado Democrático de Direito. Instituto. Instrumento. Moral. Resistência. Injustiça.

INTRODUÇÃO

O propósito deste trabalho inicialmente é mostrar-lhe as origens teóricas do direito de resistência, como se evoluiu e surgiu esta modalidade de resistência, particularizada de desobediência civil, com a pretensão de atingir a afirmação e inserção deste instrumento nos direitos e garantias fundamentais do ser humano, baseada no regime democrático do Estado de Direito, perquirindo suas transformações.

A pretensão com o presente artigo, visa analisar a relação entre a desobediência civil e a sistemática constitucional brasileira, prevista na Constituição da República de 5 de outubro de 1988, relacionando sua característica básica e seu conceito na justificação como autêntico direito de soberania popular, cidadania e dignidade humana, caracterizada como essência da liberdade, considerando o ápice das possibilidades do agir

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individual e grupal, afirmando os aspectos eminentemente políticos da liberdade.

No estudo sobre a desobediência civil através dos tempos com seus defensores e idealizadores, compreende-se claramente que as conseqüências deste movimento para se defender de abusos ou injustiças se materializam em conquistas de inúmeros direitos e também na construção e reconstrução do regime democrático.

O movimento da desobediência civil é considerado como incentivo propulsor de mudança no rumo das democracias instituídas, isto a legitima e apesar de ser um instituto de resistência ao ordenamento jurídico não é considerado crime e ao mesmo tempo pode-se caracterizar algum tipo de infração penal, caso haja emprego de violência.

O exercício do instrumento da desobediência civil deve-se primar pela ordem, ser pacífica e não-violência. Mas também a sociedade não poderá aceitar-se, apoiar e concordar com normas que sejam consideradas inadequadas e injustas que afronte o que a nossa sociedade têm como parâmetros de condutas, éticas e morais. A repulsa social contra regras abusivas, arbitrárias, injustas e opressoras por meio da desobediência civil é simples e tão-somente a utilização de um direito democrático que é a liberdade de ação, de escolha e de pensamento, centrada na soberania popular, cidadania e dignidade humana.

A desobediência civil é um fenômeno característico da atualidade, principalmente das democracias ocidentais que se estruturaram em torno das liberdades civis e políticas, depois das revoluções, americana e francesa. Idéias como os direitos naturais e direito de resistência aos abusos, arbitrariedades, injustiças e opressões estão presentes no que se pode chamar de instituto ou instrumento de defesa do cidadão.

O instrumento da desobediência civil é marcado por divergência entre defensores, doutrinadores e professores que aceitam e reconhecem a instituição, principalmente a sua importância para o sistema democrático, mas o qualificam e legitimam de forma diferente. Por exemplo, para HENRY DAVID THOREAU é uma ação do cidadão contra o Estado, porém para HANNAH ARENDT é a ação de uma associação de indivíduos, de grupo minoritário contra o Estado.

Para compreender com mais propriedade como surgiu o instrumento da desobediência civil e a sua base de fundamentação, é necessário recorrer às sustentações éticas, filosóficas, ideológicas, morais, políticas e sociais.

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De acordo com HANNAH ARENDT existem três espécies de contratos sociais: contrato teocrático, contrato vertical e contrato horizontal.

O contrato teocrático é aquele celebrado entre Deus e o povo por intermédios das leis reveladas às quais se deve obediência irrestrita. Típico do convênio bíblico de Moisés e do povo hebreu.

O contrato vertical é celebrado entre os homens que renunciam a todos os direitos e poderes para estabelecer uma autoridade secular, principalmente garantindo proteção e segurança. Reivindica para esta autoridade o monopólio de poder em benefício dos que estão submetidos a ele.

O contrato horizontal que é a versão do pacto social que orienta não o governo, mas a própria sociedade. Primeiro é feito o pacto entre os indivíduos e somente depois é que se estabelece um contrato de governo. Portanto, o governo é regido pelo pacto social e não o contrário.

O terceiro tipo de contrato, ou seja, o contrato horizontal limita a ação do cidadão, mas mantém intacto o poder da sociedade. O governo é precedido por um contrato anterior, firmado entre os membros da sociedade. Este contrato tem a enorme vantagem de vincular os membros da sociedade em uma relação recíproca de reconhecimento, no qual os indivíduos são mantidos unidos pela força das promessas mútuas e não pela homogeneidade étnica, reminiscências históricas ou pelo Leviatã hobbesiano que a todos intimida, unindo-os pelo medo.

As diferenças são oriundas do momento histórico vivido por cada um desses defensores. Enquanto HENRY DAVID THOREAU vivia a euforia do desbravamento do oeste da discórdia entre o sul - latifundiário e escravista e o norte industrializado e urbano, como a Guerra expansionista contra o México. HANNAH ARENDT vivia o auge da Guerra Fria, a chegada do homem à lua, o assassinato do Presidente Kennedy do EUA e do pacifista Martin Luther King, como o florescimento dos movimentos civis contra a Guerra do Vietnã e pela igualdade racial dos negros.

Essas diferenças se refletem nos ensaios da desobediência proposto por cada um desses defensores citados. As fundamentações da instituição estão centradas nos mesmos pontos. Nas idéias de Direito Natural do homem e do direito de resistência às injustiças, venham de onde vier, quer de um governante tirano, de leis injustas ou da opressão da maioria.

A desobediência civil constitui mais um instrumento democrático para a defesa do cidadão e das minorias como para a defesa da coletividade

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contra o poder dominante e contra os abusos, as injustiças, a opressão e a tirania.

O instrumento da desobediência civil a princípio, pode nos parecer distante da realidade jurídica e política brasileira. Entretanto estudos realizados por renomados doutrinadores e professores civilistas e constitucionalistas têm demonstrado que além de ser de grande relevância filosófica, ideológica, jurídica, política e social é perfeitamente possível efetivá-la em nossa realidade, em que pese a Constituição Federal Brasileira, não estabelecer de maneira expressa o direito a este ‘instituto doutrinário’, mas afirma-se através de estudo dos ditames e preceitos constitucionais ser possível implantar e programar este direito no sistema jurídico constitucional.

Para que se possa compreender e entender com propriedade o que é Desobediência Civil intitulada como de Direito de Resistência, se torna indispensável preliminarmente que se faça uma breve abordagem histórica de como surgiu esta não obediência à lei ou ao regramento injusto, delineando-se seus principais precursores e suas ideologias. Para se entender que há um elo deste chamado ‘instrumento doutrinário’ com os direitos fundamentais e humanos, também se torna necessário mostrar-lhes as evoluções históricas e jurídicas destes direitos.

Para NORBERTO BOBBIO o Direito de Resistência consiste na forma de exercer o poder impeditivo, de oposição extralegal exercido pelos cidadãos de um Estado com objetivos de mudanças que almejem a realização dos direitos básicos e fundamentais. Com base em suas lições, cita-se, por vislumbrar a origem histórica da ‘constitucionalização’ do Direito de Resistência ao afirmar:

"Do ponto de vista institucional, o Estado liberal e (posteriormente) democrático, que se instaurou progressivamente ao longo de todo o arco do século passado, foi caracterizado por um processo de acolhimento e regulamentação das várias exigências provenientes da burguesia em ascensão, no sentido de conter e delimitar o poder tradicional. Dado que tais exigências tinham sido feitas em nome ou sob a espécie do direito à resistência ou à revolução, o processo que deu lugar ao Estado liberal e democrático pode ser corretamente chamado de processo de constitucionalização do direito de resistência e de revolução".

A desobediência civil como direito constitucional, atribui-lhe caráter de direito fundamental do ser humano que ainda não se encontra positivado e que não está plenamente garantido em lei, mas está reconhecido

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implicitamente nas garantias da vida, da liberdade e da dignidade da pessoa humana.

Os argumentos teóricos demonstram claramente a possibilidade deste instrumento da desobediência civil estar inserida no nosso ordenamento jurídico por força da abertura constitucional disposta no § 2º do artigo 5º da atual Constituição Federal Brasileira, a qual prevê taxativamente a existência de outros direitos e garantias basilares, além daqueles já expressamente assegurados.

A conclusão consiste considerar a desobediência civil como instrumento político possível para aperfeiçoamento do Direito, inclusive deve ser incluído expressamente no sistema constitucional e político, como meio de proteção contra os abusos de poder, arbitrariedades da lei ou de qualquer ato normativo pela recusa de obediência à lei injusta ou conflitante com os interesses do cidadão perante a coletividade.

DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E HUMANOS

Em sua feição moderna, os direitos naturais chamam-se Direitos Humanos. Em termos constitucionais traduz-se em Direitos e Garantias Fundamentais, quer individual quer coletiva ou social.

Em termos sociais, o punctus saliens se denomina fraternidade. Em síntese os direitos do homem (Todo direito foi constituído por causa do homem – Justiniano), hoje se concretizam na solidariedade, expressão coletiva do amar ao próximo como a si mesmo.

O Direito natural em sua essência apresenta características de imutabilidade, através dos tempos e lugares, estes princípios e regras precisam ser explicitados por leis escritas para que os cidadãos saibam o que podem ou não fazer. As Leis escritas os Códigos e as Constituições existem em todas as nações civilizadas, embora variem no tempo ou dentro de um mesmo país, são temperadas pelos costumes e pela interpretação dos Tribunais.

Os direitos fundamentais são frutos de grande evolução histórica e social que levou a consagração ao que se apresenta hoje, logo pensarmos direitos fundamentais, como “simples direitos”, não reflete a realidade, sendo que até os dias atuais, inúmeras foram às mobilizações sociais e mutações sofridas. A sociedade sofreu mutações assim como suas necessidades e por certo os direitos fundamentais a acompanharam.

Ao longo do tempo, a sociedade deparou-se com a necessidade de proteção de alguns direitos inerentes ao ser humano, compreendendo que

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sem a proteção destes direitos, jamais haveria uma sociedade fraterna, justa, livre e solidária que pudesse perdurar ao longo dos anos. Compreende-se, acima de tudo, que se deve proteger um bem que deveria estar acima de todos os outros, ainda mais que tal bem jurídico protegido, deveria servir de direção (norte) a todos os demais direitos constantes do ordenamento jurídico, sendo este bem precioso, denominado bem da vida, vida esta com dignidade, com isso a dignidade da pessoa humana ganha relevo, por certo fundada nas transformações sociais e nas exigências de uma sociedade que clamou tal proteção.

No meio social há diversos interesses individuais que se chocam entre si. Em virtude disso, há necessidade de leis com o intuito de equilibrar e harmonizar a convivência humana em sociedade.

Cada sociedade tem a sua cultura e sua moral própria. Os comportamentos sociais tendem a se reiterarem no meio social, recebendo um valor que, dependendo da época e cultura, pode ser socialmente aceitável ou reprovável. Por exemplo, comportamentos existentes no passado são reprovados nos dias atuais. Bastam se pensar nas modificações econômicas, históricas, políticas e sociais.

As sociedades não são estáticas e se modificam com o tempo. Com essa dinamicidade social há mudança de valores, necessitando de uma atualização normativa. As leis têm que serem editadas e sancionadas levando em conta as necessidades da vida comum, as disparidades, o modo de agir e pensar e a cultura existente. O poder legiferante deve observar a reiteração das condutas pela sociedade e com base nessas condutas, editar e sancionar leis que atendam os anseios das pessoas e para dirimir e suprimir os conflitos e também para equacionar os iguais e desiguais.

Para que os membros da sociedade possam viver de forma harmônica e passiva, é necessário que existam regras a fim de ordená-los. Mas para que essas regras possam ser efetivadas, é mister que exista um poder central que faça as normas, aplique-as e controle a sua eficiência, por isso os homens entregam esse poder de controlar a sociedade a um ente abstrato que se responsabiliza pela paz intersubjetiva, através de um contrato social, nascendo, o Poder Estatal (Estado).

Como conseqüência deste contrato, surge à construção de uma ordem jurídica própria ao Estado Civil e Penal, seja resguardando os direitos naturais preexistentes e mantidos pelo cidadão, seja pela imposição de uma ordenação construída pela autoridade.

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Conforme assegurou DALMO DE ABREU DALLARI: “O primeiro passo para se chegar à plena proteção dos direitos é informar e conscientizar as pessoas sobre a existência de seus direitos e a necessidade e possibilidade de defendê-los”.

O nascimento dos direitos humanos, em forma de documento, encontra-se registrada na Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia firmada no dia 12 de janeiro de 1776 e se tornou pública no dia 16 de junho de 1776.

O artigo I da citada Declaração dispõe:

"Todos os seres humanos são, pela sua natureza, igualmente livres e independentes, e possuem certos direitos inatos, dos quais, ao entrarem no estado de sociedade, não podem, por nenhum tipo de pacto, privar ou despojar sua posteridade; nomeadamente, a fruição da vida e da liberdade, com os meios de adquirir e possuir a propriedade de bens, bem como de procurar obter a felicidade e a segurança".

O renomado constitucionalista JOSÉ AFONSO DA SILVA comenta que:

"A Declaração de Virgínia consubstanciava as bases dos direitos do homem, tais como: (1) todos os homens são por natureza igualmente livres e independentes; (2) todo o poder está investido no povo e, portanto, dele deriva, e os magistrados são seus depositários e servos, e a todo tempo por ele responsáveis; (3) o governo é, ou deve ser instituídos para o comum benefício, proteção e segurança do povo, nação ou comunidade; [...]”.

Duas semanas depois, a mesma idéia veio a ser repetida na Constituição dos Estados Unidos da América aprovada na Convenção de Filadélfia no dia 17 de setembro de 1787, de igualdade e liberdade dos seres humanos, mas não continha inicialmente uma declaração dos direitos fundamentais do homem, porém voltou a ser reforçada, treze anos mais tarde no ato de abertura da Revolução Francesa.

A Revolução Francesa, apesar de considerada liberal e individualista, trouxe o reconhecimento de algumas garantias ao cidadão. A sociedade liberal ofereceu-lhe em troca a segurança da legalidade com a garantia da igualdade de todos perante a lei. Mas essa isonomia cedo se revelou uma pomposa inutilidade para a legião crescente de trabalhadores, compelidos a se empregarem nas empresas capitalistas. Patrões e operários eram considerados, pela majestade da lei, como contratantes perfeitamente

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iguais em direitos, com inteira liberdade para estipular o salário e as demais condições de trabalho.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão adotada pela Assembléia Constituinte francesa no dia 27 de agosto de 1789 já apresentava indícios de novos direitos denominados sociais, como aquele previsto no artigo XXI:

"A sociedade deve a subsistência aos cidadãos infelizes, seja fornecendo-lhes trabalho, seja assegurando os meios de existência aqueles que não estão em condições de trabalho".

Apesar das tentativas anteriores, os Direitos Sociais foram reconhecidos como Direitos Fundamentais do Homem somente com a Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada pela Organização das Nações Unidas no dia 10 de dezembro de 1948, em Paris (França). Os trinta artigos reconhecem os direitos fundamentais do homem, dentre eles, encontra-se a proclamação dos tradicionais chamados direitos e garantias individuais (art. I ao art. XXI).

A Declaração dos Direitos Humanos é reconhecida como um dos principais instrumentos criados para a proteção do individuo como sujeito de direitos. Apesar de seu aspecto formal não constituir uma lei propriamente dita, por isso não possuir força vinculante, reconhece-se sua validade diante da importância de seu conteúdo.

Em sua obra, A afirmação histórica dos direitos humanos, FÁBIO KONDER COMPARATO afirma:

"Reconhece-se hoje, em toda parte, que a vigência dos direitos humanos independe de sua declaração em constituições, leis e tratados internacionais, exatamente porque se está diante de exigências de respeito à dignidade humana, exercidas contra todos os poderes estabelecidos, oficiais ou não. A doutrina jurídica contemporânea, de resto como tem sido reiteradamente assinalado nesta obra, distingue os direitos humanos dos direitos fundamentais na medida em que estes últimos são justamente os direitos humanos consagrados pelo Estado como regras constitucionais escritas".

Aproveitando a oportuna citação, cabe esclarecer o real significado dos termos direitos humanos e direitos fundamentais. Como salienta INGO SARLET, citado por Marcelo Antônio Theodor em sua obra, Direitos Fundamentais e sua concretização:

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"[...] o termo 'direitos humanos' se revelou conceito de contornos mais amplos e imprecisos que a noção de direitos fundamentais, de tal sorte que estes possuem sentidos mais preciso e restrito, na medida em que constituem o conjunto de direitos e liberdades institucionalmente reconhecidos e garantidos pelo direito positivo de determinado Estado, tratando-se, portanto, de direitos delimitados espacial e temporalmente, cuja denominação se deve ao seu caráter básico e fundamentador do sistema jurídico do Estado de Direito".

Na Europa têm-se desenvolvido instrumentos eficientes para assegurar e garantir a efetividade dos direitos fundamentais do homem reconhecidos na Declaração Universal dos Direitos do Homem por influência do Conselho da Europa que promoveu a elaboração da Convenção de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, aprovada no dia 4 de novembro de 1950 em Roma (Itália) ratificada por dezessete países da Europa, a qual está em vigor desde o dia 3 de setembro de 1953.

Outros documentos de extrema relevância para a garantia dos direitos humanos são: o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos adotados e aprovados pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1966.

A Convenção Americana de Direitos Humanos, chamada de Pacto de San José da Costa Rica, foi adotada e aprovada a partir do dia 22 de novembro de 1969 da qual a República Federativa do Brasil a reconheceu através do Decreto nº 678 de 6 de novembro de 1992, aderindo-se aos seus termos, conforme dispõe o artigo 1º do mencionado Decreto:

“A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), celebrada em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, apensa por cópia ao presente decreto, deverá ser cumprida tão inteiramente como nela se contém”.

Importa salientar que o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais veio assegurar proteção às classes ou grupos sociais desfavorecidos contra a dominação exercida pela minoria rica e poderosa. Para que isso seja efetivado, torna-se necessária a adoção de políticas públicas ou programas de ação governamental e são esses institutos os responsáveis pela elevação da qualidade de vida das populações carentes.

Os Direitos Humanos tem sido na atualidade, objeto de inúmeros debates. Muito embora, há vários séculos, os homens tenham consciência de

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que a pessoa humana tem direitos fundamentais, cujo respeito é indispensável para a sobrevivência do indivíduo em condições dignas e compatíveis com sua natureza.

Os direitos fundamentais, segundo o constitucionalista JOSÉ AFONSO DA SILVA podem ser designados, como: direitos naturais, direitos humanos, direitos do homem, direitos individuais, direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais, liberdades públicas e direitas fundamentais do homem.

Esses direitos fundamentais nascem com o indivíduo, por isso, não podem ser considerados como uma concessão do Estado. É por essa razão que no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, não se diz que tais direitos são outorgados ou mesmo reconhecidos, preferindo-se dizer que eles são proclamados, em uma clara afirmação de que eles pré existem a todas as instituições políticas e sociais, não podendo, assim ser retirados ou restringidos por essas instituições. Essa Proclamação dos Direitos Fundamentais da Pessoa Humana torna claro que as instituições governamentais devem proteger tais direitos contra qualquer ofensa, inclusive o próprio Estado.

Cada pessoa, portanto deve ter a possibilidade de exigir que a sociedade, todas as demais pessoas e o Estado respeitem sua dignidade e garantam os meios de atendimento das suas necessidades básicas.

Quais seriam os Direitos Fundamentais? Quais seriam os Direitos Humanos? A evolução histórica e a experiência jurídica é que ditam o conteúdo desses direitos nos aspectos civis, culturais, econômicos, jurídicos, políticos, sociais e etc.

Os direitos humanos assumem uma posição bidimensional ao constituírem, por um lado, um ideal a atingir: o ideal da conciliação entre os direitos do indivíduo e os da sociedade; por outro lado, por assegurarem um campo legítimo para o embate democrático em oposição ao totalitarismo, negação de qualquer direito.

No entender do ilustre Professor JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, as expressões: “direitos do homem” e “direitos fundamentais”, freqüentemente são utilizadas como sinônimas. Segundo a sua origem e significado poderiam distingui-las da seguinte maneira: direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos e direitos fundamentais, são os direitos do homem juridicamente institucionalizados e garantidos. Os direitos do homem adviriam da própria natureza humana, tornando-se o seu caráter inviolável, intemporal e universal; os direitos

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fundamentais seriam os direitos objetivamente vigentes em uma ordem jurídica concreta na Constituição e leis.

Os direitos fundamentais cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: I - Constituir, em um plano jurídico-objetivo, normas de competência para os poderes públicos, proibindo, fundamentalmente, as ingerências destes na esfera jurídico-individual; II - Implicar, em um plano jurídico-subjetivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa).

Portanto, o estudo dos direitos do homem leva a fixar as circunstâncias concretas e históricas de seu difícil reconhecimento e sua polêmica inserção no cotidiano dos indivíduos e dos povos.

O ponto central da questão dos direitos humanos, sobretudo no âmbito do terceiro mundo, concentra-se na efetividade dos mecanismos internos e internacionais de implantação desses direitos e no papel dos Estados e das Organizações não Governamentais.

No relatório da Organização das Nações Unidas de 1993 sobre o Desenvolvimento Humano recomenda-se que as pessoas sejam as sujeitas de toda a produção tecnológica, econômica e políticas.

ARISTÓTELES ensinava que: “a política rege todas as artes e ciências porque ela detém a visão global daquilo que convém produzir para o bem de todos os cidadãos”.

Coincide, de certa maneira, a posição do grande filósofo com as medidas sugeridas pela ONU, como: Reorientação dos mercados que sirvam às pessoas e não pessoas aos mercados; Desenvolvimento e investimento em novos modelos de desenvolvimento centrados na pessoa humana e sustentável ecologicamente; Enfoque na cooperação internacional nas necessidades humanas e não nas prioridades dos Estados; Desenvolvimento de novos padrões de administração global e nacional, com maior descentralização e possibilitando maior autoridade aos governos locais.

Os Direitos Humanos têm um lugar considerável na consciência política e jurídica contemporânea. Implicam, com efeito, um estado de direito e o respeito das liberdades fundamentais sobre as quais repousa toda democracia.

A SUPREMACIA DOS DIREITOS HUMANOS

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Os direitos naturais do homem são fundamentos perenes, imutáveis em todos os códigos, CÍCERO (República, II, 22) explicou tratar-se de uma lei verdadeira, norma racional, conforme a natureza, inscrita em todos os corações, constante e eterna, a mesma em Roma e em Atenas; tem Deus por autor; não pode, por isso, ser revogada nem pelo senado nem pelo povo; e o homem não a pode violar sem negar a si mesmo e à sua natureza, e receber o maior castigo.

É o mesmo princípio que SÓCRATES aplicava ao homem: conhece-te a ti mesmo. Mais tarde SANTO AGOSTINHO: não saia fora de ti, entra em ti mesmo, pois no interior do homem habita a verdade.

SÃO TOMÁS a propósito das leis distinguiu Lei Eterna, Lei Natural e Lei Humana. Lei Eterna é a inteligência divina, identificada com sua vontade, que eficazmente dirige todos os entes criados a participar e manifestar seu ser.

Lei Natural e Eterna não são diferentes: a Lei Eterna é imanente ao espírito do Supremo legislador e a Lei Natural se considera promulgada no espírito do homem. É a participação da Lei Eterna na criatura racional, segundo Santo Tomás.

Não é fácil precisar os limites do Direito Natural, porque não é um conjunto de princípios ou normas escritas, mas estando na natureza do Homem, são-lhe conaturais, estão em seu íntimo e o homem pode descobri-los com a razão e com o sentimento, sobretudo os princípios de Justiça2.

PLATÃO indicava três grandes valores que o homem deve buscar sempre: o Justo, o Belo e o Bom, sendo Deus o Bem Supremo, síntese de todos os valores. Estas coisas são inatas e estão permanentemente inscritas no coração do homem.

Dentre elas, a Justiça é uma das virtudes naturais da pessoa humana das mais importantes para o Direito como forma de promover a ordem e a paz entre os homens proclamando o que é justo ou afastando as injustiças.

Os Direitos Humanos, por serem essenciais à pessoa humana, devem ser hierarquicamente superiores a outros direitos previstos no ordenamento jurídico brasileiro, prevalecendo à supremacia daqueles quando entrarem em choque com este. 2O Direito natural compendia um conjunto de normas ou leis naturais obrigatórias e universalmente aceitas. Em sentido objetivo são todas as leis morais naturais (moral humana) que se referem à vida social dos homens, resumidas nos citados preceitos de dar a cada um, o que é seu (deveres jurídicos positivos) e a ninguém lesar (deveres jurídicos negativos).

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Um exemplo do que foi referido é a prisão de um indivíduo que está sendo acusado em um processo crime. Nesse caso, a prisão só poderá ser efetivada quando for devidamente fundamentada pela autoridade judiciária, sendo exceção, uma vez que, a segurança do Estado não merece prevalecer frente à liberdade e dignidade da pessoa acusada, pois a privação da liberdade é essencialmente danosa ao ser humano.

Por outro lado, com relação ao conflito entre direitos humanos e fundamentais, não há hierarquia entre ambos, devendo ser analisado casuisticamente qual direito é o mais favorável. Um exemplo disso são as provas obtidas por meios ilícitos. Esse meio probatório é proibido pelo ordenamento jurídico brasileiro, mas o direito de não utilizar essa prova no processo penal não é ilimitado, visto que o direito a ampla defesa também é um direito fundamental do homem, por isso, esse direito prevalece frente àquele quando o acusado não tiver outra maneira de provar a sua inocência.

Além disso, com relação aos Direitos Humanos advindos de tratados internacionais ratificados pelo Brasil, resta evidentes que estes direitos são hierarquicamente superiores a outros direitos, dadas à importância dos Direitos Fundamentais, erigindo à categoria de normas constitucionais.

Existe uma discussão no sentido de que os Direitos Humanos previstos em tratados internacionais poderiam revogar dispositivos da própria Constituição por favorecer a pessoa humana. Um exemplo é a proibição da prisão do depositário infiel pelo Pacto de São José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil, que revogaria o disposto no inciso LXVII, do artigo 5º, da Constituição Federal de 1988, que permite essa prisão. Esse entendimento é o mais correto, pois amplia os Direitos Humanos existentes no ordenamento jurídico brasileiro, além de reconhecer que a privação da liberdade causa um dano social.

É mister que os Direitos Humanos Fundamentais sejam plenamente efetivados e respeitados, mas para isso, deve haver a educação da população para o conhecimento desses, pois a base de uma sociedade democrática, é os cidadãos terem ciência dos seus direitos para que sejam devidamente observados e protegidos.

ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: DIREITOS FUNDAMENTAIS E HUMANOS

No Brasil, houve a evolução dos direitos fundamentais do homem, conforme já ressaltado, passando dos direitos individuais aos direitos sociais e coletivos, estando esses direitos consagrados na Lei Maior do país, a Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988.

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Constituição é a lei fundamental de organização do Estado para estruturar e delimitar seus poderes políticos. Na concepção jurídica é a norma basilar, vértice do sistema jurídico, hierarquicamente, superior às demais normas jurídicas. Na concepção política entendida como a decisão política fundamental enquanto na concepção sociológica entendida como a soma dos fatores reais de poder.

A Constituição Brasileira promulgada no dia 5 de outubro de 1988 marcou simbolicamente o restabelecimento do Estado Democrático de Direito. Contrariando os modelos anteriores, a nova Assembléia Constituinte trouxe os direitos fundamentais logo em seus títulos iniciais, denotando a centralidade que os mesmos adquiriam na ordem que se fundava.

A cidadania e a dignidade da pessoa humana e as prerrogativas inerentes à soberania popular, aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e do pluralismo político passam a serem princípios norteadores de todo o ordenamento jurídico.

A garantia de direitos fundamentais pela Constituição, ainda que essencial, infelizmente não se faz presente na realidade prática. A distância entre a letra da lei e sua efetivação prática está longe de ser pequeno, o que traz a sensação de que os direitos fundamentais são, na verdade uma ficção jurídica (é um conceito criado pela doutrina do Direito para explicar situações que aparentemente são contrárias à própria lei, mas que precisam de soluções lógicas, satisfazendo os interesses da sociedade).

A lei imersa no seu puro formalismo se desvincula da idéia de justiça e de paz social, passando de instrumento de garantias fundamentais e realização do bem comum para instrumento de interesses de grupos dominantes.

Nessa perspectiva, se insere o sistema jurídico de proteção da propriedade privada e a luta pela terra como faces de um ordenamento complexo e paradoxal, baseado em um modelo de Direito Positivo, responsável em grande parte pela manutenção das desigualdades. Esse Direito que visivelmente optou por proteger as elites proprietárias donas de imensos latifúndios está longe do ideal tão almejado de justiça social.

Com relação à evolução dos direitos e o ordenamento jurídico brasileiro, a primeira Constituição, no mundo, a positivar os direitos do homem, dando-lhes juridicidade efetiva, foi a do Império do Brasil de 1824.

A Constituição de 1891 trazia em seu corpo normativo os direitos e garantias individuais e, como a Constituição Imperial, somente trouxe a

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positivação dos direitos do indivíduo em particular, sem preocupar-se com os direitos sociais.

Foi com o advento da Constituição de 1934 que os direitos econômicos e sociais foram efetivamente incorporados à Lei Maior, como os direitos trabalhistas. Esses direitos foram mantidos nas Constituições de 1937, 1946, 1967 e 1969.

Mas, foram a Constituição de 1988 que os direitos humanos foram plenamente positivados, tantos os individuais como os difusos e coletivos, trazendo, também, diversos remédios constitucionais para garantir a eficácia desses direitos. Esse ordenamento jurídico garante os Direitos Fundamentais do Homem - Indivíduo que reconhecem autonomia aos particulares, garantindo a independência dos indivíduos diante do Estado. Prevê, também, os Direitos Sociais, que reconhecem o direito dos cidadãos de terem uma atividade positiva do Estado, que deixou de ser mero garantidor da segurança. Há, também, a positivação de uma categoria de direitos que pertencem a toda a coletividade, sem ser de ninguém particularmente, que são os direitos difusos, como o direito a um meio ambiente saudável.

Com relação ao Direito Penal, o ordenamento jurídico brasileiro evoluiu grandemente, uma vez que os direitos dos presos estão plenamente positivados na Constituição. Além disso, o instituto das penas alternativas é de suma importância para os Direitos Fundamenteis dos Homens. As penas privativas de liberdade devem ser aplicadas levando em conta a dignidade da pessoa humana, oferecendo todos os direitos inerentes aos seres humanos.

A Constituição veda a aplicação da prisão perpétua, visto que os agentes do crime não podem perder a expectativa da vida, deve se ter a esperança de que poderão se recuperar e voltar a viver em sociedade, por isso, no Código Penal Brasileiro as penas privativas de liberdade não pode ser superiores há trinta anos. Há a vedação da pena de morte, salvo em caso de guerra declarada, pois o Estado não pode usar a sua força contra os indivíduos hipossuficientes em relação ao poder estatal. Todos têm direito a vida e o Estado não pode privar um dos seus indivíduos de viver e ter a possibilidade de se recuperar.

ÉTICA, MORAL E DIREITO

Para que se possa entender porque a lei deve ser justa para atender aos anseios das pessoas e para dirimir e suprimir os conflitos e também para equacionar os iguais e desiguais é extremamente importante saber

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diferenciar a Ética da Moral e do Direito. Estas três áreas de conhecimento se distinguem, porém têm grandes vínculos e até mesmo sobreposições.

Tanto a Moral como o Direito baseiam-se em regras que visam estabelecer determinada previsibilidade para as ações humanas na sociedade. A Moral e o Direito se diferenciam.

A Ética é o conjunto de normas (regras) e princípios que orientam ou guiam à boa conduta do ser humano, do ponto de vista do bem e do mal.

A Moral é o conjunto de normas (regras) de conduta ou hábitos (repetição freqüente de um ato, costume e uso) considerados e pensados legítimos e válidos, seja universal (mundo), seja grupal (grupo) ou individual (pessoa determinada) que se refere ao brio (sentimento da própria dignidade) e dignidade de uma pessoa.

A Moral estabelece regras que são assumidas pela pessoa como uma forma de garantir o seu bem-viver. A Moral independe das fronteiras geográficas (territoriais) e garante uma identidade entre pessoas que sequer se conhecem, mas utilizam este mesmo referencial moral comum.

O Direito busca estabelecer a normatização e regramento de uma sociedade delimitada pelas fronteiras do Estado.

O Direito é o conjunto de regras gerais, materiais e positivas que regulam a vida em sociedade. Direito objetivo é a regra com a qual deve agir o indivíduo e são os ditames e preceitos impositivos direcionados aos cidadãos de uma sociedade. Direito subjetivo é faculdade, isto é, o conjunto de garantias e prerrogativas que estes cidadãos têm dentro do ordenamento jurídico.

Direito natural é composto pelo conjunto de normas imutáveis e indispensáveis, capazes de conduzir o homem (indivíduo) a sua perfeição enquanto o Direito positivo é o conjunto de regas jurídicas em vigor em determinado território e em determinada época. É a lei. As leis têm uma base territorial. Estas regras jurídicas valem somente para aquela área geográfica (territorial) onde uma determinada população ou seus cidadãos vivem.

O Direito Civil é identificado como o ramo do Direito Privado destinado a reger as relações familiares, obrigacionais, patrimoniais e sociais que se formam entre os cidadãos, como membros da sociedade.

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O Direito Civil que é referencial, atualmente utilizado no Mundo e no Brasil baseia-se na lei escrita, formal, material. A Common Law3, dos países anglo-saxões, baseia-se na jurisprudência. As sentenças dadas para cada caso em particular podem servir de base para a argumentação de novos casos. O Direito Civil é mais estático e a Common Law mais dinâmica.

Alguns doutrinadores e professores afirmam que o Direito é um subconjunto da Moral. Esta perspectiva pode produzir a conclusão de que toda a lei é moralmente aceitável. Inúmeras situações demonstram a existência de conflitos entre a Moral e o Direito. A desobediência civil ocorre quando argumentos éticos e morais impedem que uma pessoa acate uma determinada lei. Este é um exemplo de que a Moral e o Direito, apesar de referirem-se a uma mesma sociedade, podem ter perspectivas discordantes, divergentes.

A Ética é o estudo geral do que é bom ou mau. Um dos objetivos da Ética é à busca de justificativas para as normas ou regras propostas pela Moral e pelo Direito. A Moral é diferente de ambos: Moral e Direito, pois não estabelece regras. Esta reflexão sobre a ação humana é que a caracteriza.

A ética, a moral e o direito estão interligados. A ética consiste em um conjunto de princípios morais, a moral consiste em conjunto de regras, só que a moral atua de uma forma interna, isto é, somente tem um alto valor dentro das pessoas. A moral se diferencia de uma pessoa para outra e o direito tem vários significados. O direito pode ser aquilo que é justo perante a lei e a justiça, aquilo que o indivíduo pode reclamar que é seu.

A ética tem uma relação maior com as profissões. A ética seria como uma regra a ser seguida, um dever que o indivíduo como profissional tem com aquele que contrata o seu serviço. A partir do momento em que se começa a exercer uma profissão, deve-se começar a praticar a ética.

A moral e o direito têm a seguinte base: a moral tem efeito dentro da pessoa, por atuar como um valor, aquilo que se aprendeu como certo e o direito tem uma relação com a sociedade, o direito é aquilo que a pessoa pode exigir perante seus semelhantes, desde que esteja de acordo com a lei, aquilo imposto pela sociedade.

3Nome dado ao sistema jurídico elaborado na Inglaterra no século XII fundamento nas decisões das jurisdições reais. É um direito jurisprudencial elaborado por juízes reais e mantido graças à autoridade reconhecida aos precedentes judiciários. A lei não desempenha qualquer papel na evolução deste sistema jurídico. É diferente do sentido da expressão ius commune (direito comum).

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As questões que envolvem o Direito e a Lei são muito confundidas com o Princípio da Justiça. A lei se relaciona a uma comunidade em particular, bem determinada e situada geograficamente (Estado).

A lei se contenta em impor um mínimo de regras constritivas que solicitam esforços mínimos. A Justiça não é o Direito objetivo e também não é o Direito ideal.

Os valores não surgem na vida em sociedade do nada. São construídos na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas escolas e etc.

SÓCRATES morreu ensinando, “É preciso que eu cumpra uma lei (sentença) injusta, para que os cidadãos não se neguem a cumprir as leis justas”, conforme Apologia de Sócrates, de Platão.

Por que no trânsito deve-se parar no sinal vermelho? Receio de sanções? Perder a habilitação? Provocar acidente? Pode ser por tudo isso, mas há algo anterior e acima do Código de Trânsito Brasileiro que nos obriga a parar: o dever moral de cumprir as leis. O fundamento último é o respeito ao outro que tem o direito de passar no sinal verde.

Há íntima relação entre Moral e Direito, porque ambos derivam do mesmo gênero que é a Ética ligada à Axiologia que cuida dos valores e das virtudes humanas.

Como se relacionam Ética, Moral e Direito? A Moral aponta para os hábitos de comportamento que uma pessoa se impõe a si mesma, de dentro para fora, de sua subjetividade para a objetividade de sua conduta. O Direito impõe suas normas de agir de fora para dentro, da objetividade para a subjetividade. As regras da primeira se dizem autônomas e as do segundo, heterônomas.

Assim pode-se visualizar esta tríade:

Moral = Ética Subjetiva Objetivada = ESO

(Autônoma = do interior do Homem para a Sociedade)

ÉTICA

Direito = Ética Objetiva Subjetivada = EOS

(Heterônoma = do exterior para o Homem)

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A DIMENSÃO ÉTICA DA DESOBEDIÊNCIA CIVIL

Este trabalho tem também a finalidade de ressaltar como a ética atual não aponta necessariamente para uma valorização da política. Ao contrário, tem se demonstrado profundamente anti-político, sucedâneo do domínio da metafísica – estudo sistemático dos fundamentos da realidade e do conhecimento, da busca de controle sobre a existência e rejeição da extinção humana.

Um dos princípios fundamentais da ética contemporânea que tenta conciliar a ética com a política é o princípio do consenso. É paradigmático vislumbrar esta vinculação da ética com a política.

As práticas e teorias consensualistas nas formas como têm sido difundidas, disseminadas e propagadas não favorecem uma afirmação e reafirmação da liberdade e da política, mas mostram-se como um forte e poderoso instrumento de legitimação da dominação.

Por essa razão, procurou-se apontar e despontar como básico e fundamental para nossa época, pleno século XXI, a postura de resistência (desobediência). Neste sentido a desobediência civil, confrontando-se ao consensualismo abre a possibilidade de se discutir, pensar, refletir o encontro da ética e da moral com a política, não pela direção oblíqua do consenso, mas do dissenso. De um dissenso que aposta não na desintegração da sociedade, mas na sua constituição e reconstituição a partir de um consentimento tácito e não ficcional por parte dos cidadãos, no qual o dissenso é parte inerente.

Ressalta-se que esse dissenso endereça e remete para a categoria de publicidade a partir da qual poderá vislumbrar uma ligação e vinculação entre ética, moral e política para além dos moldes propostos pela Metafísica. Publicidade é entendida politicamente e não moral ou publicitariamente. Não se trata de reforçar a questão da transparência na administração dos bens e órgãos públicos. Também não se trata da divulgação propagandística das informações e dados governamentais. O princípio da publicidade vem encaminhado e remetido ao princípio da livre associação e da participação ativa e pacífica dos cidadãos nas decisões a respeito do destino comum. Esse ponto, na nossa compreensão e entendimento, está na raiz da desobediência civil, por isso nasce e surge a sua importância ética e moral.

A ética está em evidência e alta nos discursos acadêmicos, empresariais, políticos, religiosos, na mídia e etc. O peso que nas décadas pretéritas circulava e decorria para as estruturas econômicas, atualmente pende-se para a Ética.

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Na nossa compreensão e entendimento estas posturas não passam de figuras da Metafísica, isto é, são tentativas de afirmar um interesse único e um valor absoluto para todos os homens em todos os tempos e locais. O que está em evidência na ética atual é a tentativa de restabelecer e restituir, por meio de um discurso contemporizador, light, o antigo e veterano do poder da Metafísica sobre os homens.

É o decadente poder da legitimidade absoluta, instrumento da dominação entre os homens que tenta se afirmar e reafirmar antes de dar o último suspiro.

Diante da maledicência da ética, é preciso perscrutar o que a ética esconde ou oculta, porque como na maioria dos falatórios atuais, não comunica e não revela algo. Infelizmente é facilmente constatado que a maioria dos discursos éticos atuais tenta somente divulgar, propor e reconstituir novos princípios que sejam eficazes para controlar, minimizar e reduzir a existência humana de tal modo que as pessoas possam sentir satisfeitas ao entregar para os valores absolutos os seus tesouros mais preciosos: desejos, prazeres, realizações, usos e valores, interesses provenientes e ancorados na extinção humana.

Essa entrega se faz sob a promessa metafísica da conquista da felicidade. A felicidade, solução para os dramas da condição finita do homem e libertação dos condicionamentos finitos, implica no abandono do solo da existência e na sua submissão aos valores universais do Bem e da Verdade, ao otimismo castrador da metafísica, que inviabiliza a responsabilidade e a liberdade da vida como realização da própria pessoa nela imbricada.

A Ética hoje como a Metafísica anteriormente, é profundamente anti-política. A abordagem ética da política tem-se mostrado como a forma atualizada de discutir, pensar e submeter à política à metafísica. A política nasceu como área adequada, apropriada e específica para o exercício do poder dos homens. Dos homens e não dos deuses. Dos homens, não como seres privados, mas como cidadãos de deveres e direitos, em relação com os outros.

O cidadão continua a ser um homem como outro qualquer que está ocupado com o destino comum e não com o próprio destino. Isto significa que a política é o campo das diversas perspectivas e múltiplas vozes, a partir de onde os cidadãos se engajam e erguem no mundo público. É o engajamento, a participação e a coragem de abandonar os próprios afazeres para cuidar de algo que não pertence privadamente ao cidadão, o que é específico da política.

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A disposição de investir nas palavras, nos incontroláveis percursos das ações comuns, nas entradas pacientes e contínuas das conversações para suportar o peso da mira dos outros, mostra a grandeza humana da política. A submissão política à metafísica acontece todas as vezes que se promove a criação ou procriação de uma instância ou valor que anule esse engajamento e participação dos cidadãos. Neste aspecto, poder-se-á expressar que a indiferença política contemporânea é a realização de uma profunda influência da metafísica na política. Realização essa ancorada na burocratização da política, reduzida à administração, e seus institutos representativos (governos e partidos), reforçados pelas potências dos instrumentos de comunicação de massa e de interação mediada.

Concluindo-se este argumento a respeito da relação entre Metafísica e Ética em contraposição à política, basta relembrar o raciocínio típico do senso comum que tende a privilegiar a estratificação, a hierarquia, a ordem, e a unidade como coisa de Deus, do Bem, da Ética e os movimentos contestadores, discordantes, protestos como coisa diabólica, desordeira, do mal e etc.

Como dito alhures, um dos princípios fundamentais da ética contemporânea que tenta conciliar a ética com a política é o princípio do consenso e é paradigmático para perceber a sub-reptícia desvalorização da política. As práticas e teorias consensualistas na forma como têm sido pensadas não favorecem uma reafirmação da liberdade e da política, mas mostram-se como um poderoso instrumento de legitimação da dominação entre os homens. O consenso tem servido de base para uma concepção de negociação política reduzida à barganha econômica ou de cargos, por isso provoca um enorme estreitamento do espaço público, privatiza-se as discussões a respeito dos assuntos comuns. É o reino dos detentores de informações privilegiadas ou quando não, da hegemonia da "opinião pública", representante dos conglomerados burocráticos da sociedade.

Ocorre assim porque o consenso vem pensado em uma perspectiva de contrato de governo, no qual os governantes buscam a legitimidade para determinar e obrigar o cidadão a obedecer. Através deste tipo de contrato, o governo estabelece para os cidadãos: ocupe-se com a sua vida que o governo cuidará da política. O governo precisa e exercita plenos poderes, nos quais é inviabilizado qualquer dissenso em relação à "vontade geral" ou ao "poder soberano".

Para a terminologia arendtiana existem duas formas de pensar o contrato: o horizontal e o vertical. O contrato horizontal vem pensado com aquele que é fruto da discussão, do acordo e associação de pessoas portadoras dos mesmos poderes, isto é, de iguais. O contrato horizontal é um

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contrato de associação entre os cidadãos e não de governo. O contrato vertical é o contrato proposto pelos governantes aos governados, pelos dirigentes aos dirigidos, isto é, o contrato é uma forma de acordo entre desiguais, de um que determina (manda) e de outro que obedece (cumpre).

Essa forma de contrato se estabeleceu e tem sobrevivido recorrendo a uma instância de legitimação externa aos homens a respeito da qual se construiria consensos capazes de dar legitimidade ao governo de uns sobre os outros e ao mesmo tempo, de inviabilizar as assembléias, associações e reuniões dos cidadãos, fonte do poder efetivamente político.

Neste sentido, como contraposição à perspectiva metafísica e consensualista da ética política contemporânea, resolve empenhar e ergue-se o instituto da desobediência civil para articular uma concepção ética não metafísica da política.

Já exaustivamente citado, a prática da desobediência civil nasceu no mundo moderno e contemporâneo. HENRY DAVID THOREAU escreveu sob este título quando se encontrava ergastulado (prisão) em 1849 nos Estados Unidos, um panfleto clamando todos a se oporem à escravidão e à guerra americana contra o México e a não pagarem impostos (tributos) porque estes estariam servindo-se para financiar a guerra. Neste documento escreveu que "a prisão é o único lugar num Estado escravo em que um homem livre pode viver com honra".

Mais do que isso, dirigiu-se à prefeitura e depositou um documento no qual dizia estar se desvinculando de qualquer instituição à qual não tenha dado consentimento tácito. Além de HENRY THOREAU ainda se tem vários movimentos de desobediência, luta e resistência pelos direitos civis nos Estados Unidos.

O magnífico movimento liderado por GANDHI na Índia é considerado o mais organizado movimento de resistência por centrar-se indispensavelmente na ordem, pacífico e passivo, não-violência.

No Brasil o movimento de resistência da atualidade a que me refiro é o Movimento dos Sem Terra – MST, mas este movimento social em buscar de uma reforma agrária igualitária e justa, não tem desenvolvido e pautado por ordem pacífica, passiva e não-violenta, pelo contrário vêm ocorrendo várias espécies de crimes durante as manifestações de invasões de áreas de terras.

Um importantíssimo movimento de desobediência civil surgido na Yugoslávia, através do qual foi deposto o tirano Milosevic. Recentemente

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eclodiu o Movimento de Resistência Egípcio, considerado um levante popular no Egito que resultou na queda do ditador Hosni Mubarak.

Os filósofos que tratam da resistência - desobediência civil, notadamente JOHN RAWLS e NORBERTO BOBBIO tendem a concebê-lo na dimensão do contratualismo, fundamentalmente referido ao contrato de governo que fora referido anteriormente, neste artigo.

A desobediência civil vem abordada no âmbito de uma teoria da obrigação política, isto é, como pertencente a um ordenamento jurídico, no qual vota e é votado, o cidadão obriga-se a cumprir e obedecer às leis e ao poder constituído. Porém, em alguns setores as leis podem se mostrar como não adequadas e apropriadas, inoperantes ou insuficientes, mas justifica-se e somente assim, o instituto da desobediência civil.

De modo particular, a condescendência é maior em se tratando de questões econômicas. Nestes casos, as greves e outras formas de desobediência são aceitas de forma restrita, exclusivamente como forma de pressionar os governantes ou outras autoridades responsáveis a cumprirem os direitos sociais.

Poderia chamar esta concepção de desobediência civil de econômico-constitucional, porque existe um arcabouço constitucional, fruto do contrato firmado entre o governo e a sociedade e que é portador da justiça mínima necessária para se manter a ordem e a paz social, sob a vigência deste arcabouço, reserva-se para melhorá-lo um pequeníssimo espaço para a desobediência civil.

Na nossa perspectiva, esta visão perde o humus, a essência mesma das experiências dos grandes movimentos de desobediência civil que se tem conhecimento, conforme mencionado acima.

No Brasil essa questão se torna mais complexa porque se vislumbra facilmente uma tendência dos governantes de burlar a lei e a Constituição. Os brasileiros, até hoje, não criaram o que os romanos chamavam de consensus universalis, fruto do pacta sunt servanda, já os pioneiros americanos chamavam de constitutio libertatis, isto é, espírito de confiança e esperança de que as leis eram humanas, capazes de facilitar a liberdade e a convivência justa entre os homens.

Para exemplificar, basta recordar, o caminho que foi percorrido por muitos brasileiros para a concretização da promulgação da atual Constituição da República que completará 23 anos que fora editada e já houve 67 emendas.

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Essa Constituição foi fruto de um esforço enorme para superar o autoritarismo dos governos militares, mas que esta superação se deu apenas em parte, porque quem mais burla, descumpre e a desobedece é justamente quem deveria cumpri-la e zelar irrestritamente pelo seu cumprimento: o Estado.

Esta afirmativa significa que no Brasil, a situação é ainda mais complicada, ao contrário dos outros países, porque o nosso país jamais viveu uma situação contratual clássica. O Brasil atravessou-se de uma situação pré-contratual para outra, a qual vigora atualmente em quase todos os países, a pós-contratual.

Com isso, afirmar-se com clareza de que o consensualismo reinante no mundo ocidental tende a conduzir os governos a buscarem apoio midiático e com facilidade, são os próprios governos os maiores transgressores das leis. O consenso não é mais buscado nas leis, mas nas ações e programas governamentais específicos. Perdeu-se a idéia do Pacta Sunt Servanda da submissão à lei como material sólido (cimento) da convivência entre os homens.

HANNAH ARENDT tem uma concepção da desobediência civil que possibilita discutir e refletir o encontro da ética com a política sem arrasar-se com a política, mas ao contrário, indicando-lhe a importância. A partir da desobediência civil é possível refletir uma ética relacionada a uma perspectiva de resistência e não de compromisso e de passividade própria ao consensualismo atual. Isto significa ter a necessária compreensão dos movimentos que enseje a desobediência civil como movimento de resistência ao naturalismo nas relações de dominação e à indiferença política das sociedades de massa.

Esses movimentos apresentam-se como transformadores de governos opressores, através das suas organizações que se colocam em relações efetivamente democráticas com o Estado, nas quais todos possam participar do destino comum, protegendo a coletividade.

A relação entre desobediência civil e ética é de interligação e vinculação, porque é inaceitável a desobediência à lei ou à ação do governo, ser não for arbitrária ou injusta e ao esboçar a desobediência civil deve-se fazê-la ética e moralmente, com ordem, passividade e não-violência.

A dimensão ética da desobediência civil é imanente à sua constituição e isso a diferencia radicalmente da desobediência criminosa, ou seja, da desobediência por desobedecer ou resistir à lei ou ao Estado.

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O indivíduo infrator transgride a lei em segredo e sempre em proveito próprio, particular. Sua ação não é pautada em questões relacionadas à coletividade social, mas é direcionada pelo auto-interesse. Quando o Estado constituído, a coisa pública deixa de ser a fonte inspiradora e motivadora do investimento da ação política, como tem ocorrido a nível mundial e com muita freqüência no Brasil, esta facilmente se degrada e se corrompe. É por essa razão que rotineira e constantemente tem-se encontrado homens de reputação considerada ilibada, porém envolvido em ações transgressoras.

A confusão entre público e privado e o costume da fusão do exercício de um mandato com a apropriação do poder pelos homens públicos estão na base da degradação da ação política. A política como área de poder apropriado indevidamente e não exercido pessoalmente leva à sua privatização, origem maior da corrupção atual.

HANNAH ARENDT diferencia radicalmente desobediência civil do opositor de consciência, instituto que a maioria dos pensadores coloca no mesmo patamar da desobediência civil. O opositor de consciência é aquele indivíduo que transgride a lei por uma questão de foro íntimo, isto é, desobedece ou resistir sob essa alegação de foro íntimo, mas simplesmente por entender que a lei ou a ação do governo tem que lhe beneficiar ou favorecer. A objeção à lei ou à norma tem por necessidade e indispensabilidade de vir motivada por valores éticos, morais ou religiosos. O opositor desobriga-se a praticar determinadas exigências legais porque estas se contrapõem às suas convicções pessoais.

O opositor de consciência, obrigatoriamente, deve pautar-se e seguir a ética e moral do homem bom. O homem bom é aquele indivíduo que é fiel a determinados valores e virtudes e valores éticas, morais e religiosas, a partir dos quais este homem acredita estar alcançando a sua felicidade particular. Seu primeiro compromisso é com o próprio eu. Sua comunicação básica se realiza de si para consigo mesmo.

A desobediência civil ultrapassa inteiramente a ética e a moral do homem bom, bem como a transgressão criminosa. O indivíduo tido como criminoso não quer provocar e iniciar novas relações entre os homens, porque à sua ação é clandestina e destruidora para a sociedade atual e sua expansão está vinculada ao fenômeno social mundial do desprezo por qualquer autoridade, ao esgotamento dos serviços públicos e à impotência do poder de polícia do Estado.

HANNAH ARENDT relaciona os movimentos de desobediência civil à ética e a moral do bom cidadão. O bom cidadão é julgado, não pelos valores

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morais, mas pelas virtudes políticas e pela capacidade de se desprender, soltar do auto-interesse e se ocupar com o mundo comum. O bom cidadão orienta-se pela consciência secular, aquela que aparece na capacidade de fazer e de cumprir promessas e não pela voz da consciência; aquela que aparece quando se está sozinho, solitário.

Se puder falar de algum interesse no âmbito da moral do bom cidadão, esta moral se situa na esfera da memória, instância que somente aparece a partir do contato que os homens fazem entre si. A questão central para o bom cidadão é a da gratidão e do reconhecimento, isto é, a criação de esferas nas quais os homens possam ultrapassar a dimensão biológica, natural, por pertencer somente à espécie natural e emergir como seres singulares, com vida própria a realizar.

Essa concepção do reconhecimento coloca em questão o atual engajamento de toda a sociedade nas atividades dedicadas exclusivamente à reprodução. Vigora a falta de distinção entre o necessário e o valioso, entre o que é da vida e o que é da boa vida, que somente poderá se consolidar na medida em que os homens entram em contato e se relacionam civilizadamente.

É por essa razão que HANNAH ARENDT elogia a frase do filósofo florentino, NICOLAU MAQUIAVEL que expressou: "Amo mais minha cidade do que a minha alma". É a aceitação de que viver, como diziam os romanos, é inter homini, este que está na base dos grandes movimentos de desobediência civil. Frisa, mesmo quando se contrapuser à maioria, a ação do resistente, desobediente civil surge de compromissos que visam à fundação ou renovação da comunidade em novas bases, por isso, se fortalece.

A contribuição de NICOLAU MAQUIAVEL (1469 – 1527) para o mundo é imensa. Ensinou, através da sua obra: O Príncipe, a vários políticos e governantes. A sua obra entrou para sempre não só na história como na nossa vida cotidiana atual, já que é aplicável há todos os tempos. É possível perceber que Maquiavel, fingindo ensinar aos governantes, ensinou também ao povo, devido a sua obra ser considerada um Manual da Política em que propôs a separação da ética da política. Por isso que até hoje e provavelmente para sempre, será reconhecido como um dos maiores pensadores da história do mundo.

A desobediência entendida, neste aspecto, jamais é individual. A violação à lei ou a qualquer normativo reside no fato do desobediente civil como contestador apoderar-se a lei em aberto desafio, demonstrar que a perspectiva é, embora discordante, de integração da comunidade e não da sua destruição. A dimensão de publicidade da desobediência civil está

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relacionada à sua tendência a inovar e começar a abrir caminhos ou espaços de liberdade igual para todos os cidadãos agirem ou para os que estão de fora desta possibilidade.

A publicidade de fato da desobediência civil somente se realizar em harmonia conjunta dos cidadãos e não individualmente. Indispensáveis que abram caminhos e espaços através de associações entre os homens, de se realizar em locais públicos e não clandestinamente. A publicidade do direito de resistência, como instrumento somente se torna possível com a existência da relação entre ética e política. Isso de uma forma específica, distante da concepção vulgar de publicidade. A visão comum de publicidade está relacionada à sua compreensão moralizante ou publicitária.

Discorre-se de publicidade como espécie de uma administração honesta, ilibada, proba e transparente das propriedades públicas, mesmo quando profundamente autoritária e anti-participativa ou como uma administração capaz de realizar uma boa informação publicitária das suas ações e informações. Vislumbrou-se essa questão na pretérita campanha política (nas eleições de 2010 para Presidente, Governadores, Senadores, Deputados Federais e Estaduais). Todos os candidatos passaram à idéia de que através dos meios de comunicação, dialogavam diretamente com o povo. Mesmo os candidatos defensores da participação dos cidadãos na construção do orçamento para a qual são fundamentais assembléias, reuniões, assembléias etc., e, acabaram por se renderem à comunicação de mão única e mediada como mais importante do que a interação direta. É o consenso publicitário como sucedâneo da participação política.

A dimensão ética que a categoria de publicidade faz entrever nos movimentos de desobediência civil é de outra natureza. Trata-se da capacidade que esses movimentos de resistência têm de colocar os homens em contato uns com os outros. Neste sentido, tem a finalidade de iniciar a criação para a proteção das futuras gerações, a partir de consentimentos tácitos e não pressupostos.

A publicidade está relacionada à efetiva possibilidade de associação e participação livre dos cidadãos nos assuntos públicos, exercendo seus direitos ativos e passivos políticos. Essa publicidade é instauradora da esfera pública, orienta-se em um consentimento ativo e não na passividade e indiferença dos cidadãos. Nestes termos, compreendida, a publicidade perde sua conotação moralista, adquire e alcança uma dimensão ética-política. Confronta-se a uma perspectiva que reduz o público a participar da questão plebiscitária e às leis positivas, a publicidade, compreendida e defendida por HANNAH ARENDT recuperada a partir das experiências dos movimentos de desobediência civil, orientam-se no consentimento ativo e contínuo, na

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capacidade de comprometerem-se, condições que somente se realizam em plenitude na medida em que os homens, apesar das dificuldades não perderam a capacidade de contatar uns com os outros em ações, gestos e palavras.

O conceito de publicidade é a idéia de consentimento tácito e contínuo, enraizado na possibilidade da associação livre, dissociada da ingerência estatal ou de qualquer outra. Diante das administrações atuais das sociedades, os movimentos de desobediência civil apresentam-se como ponto de convergência ou divergência de resistência (desobediência) profundamente ética e moral. Este consentimento discutido a partir da sua relação com a livre associação e participação de todos na coisa pública, é básico e fundamental porque preserva a possibilidade do dissenso. O consentimento tácito somente é possível na medida em que os homens se encontram, discutem e refletem para posteriormente agirem em conjunto e quando isso ocorre, a diferença e a divergência é algo comum e inevitável.

A dissidência não é pensada como algo a ser macerada, oprimida ou tiranizada pela vontade da maioria, mesmo quando a maioria optar por um determinado percurso tem que respeitá-la. Diferentemente acontece no consentimento ficcional, plebiscitário ou mediático que trabalha com a idéia de poder soma zero, com a idéia de destruir e excluir qualquer possibilidade de dissidência e oposição real. É o conceito mesmo de poder que é diferente. No consentimento ativo, está presente a idéia de um poder como local vazio em que se manifesta sempre que os homens se associam para discutir e refletir em conjunto para posteriormente decidirem. O poder não pertence a nenhum indivíduo, ninguém o representa (encarna). No consentimento ficcional como o poder não é resultado da interação entre os homens, tende a ser personificado em uma pessoa ou instância, por isso qualquer dissidência questiona profundamente.

Ressalta-se que sem a prática da livre associação e da dissidência é a ação política mesma que está predestinada a ter um fim. Esse fim da política que HANNAH ARENDT observa nas sociedades modernas, nas quais as intervenções dos governos são burocráticas e funcionalizantes, fundadas exclusivamente na idéia da reprodução social das sociedades massificadas. É justamente por isso que os dissidentes, os defensores da desobediência civil tendem a ser enfrentados pelos governos como cidadãos criminosos comuns.

Neste sentido, é de suma importância que empenhemos na conquista do reconhecimento do instituto da desobediência civil e para que seja inserida expressa, formal, material e positivamente em nossa Constituição, como alguns países avançados constitucionalmente já o fizeram.

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Mostra-se também extremamente importante avançar na investigação filosófica a respeito deste assunto. Em um país como o Brasil, é no mínimo, desagradáveis e invulgares que os filósofos se dediquem exageradamente às teorias consensualistas e que ninguém estude, pesquise e se pronuncie a respeito da desobediência civil.

Com as informações aqui trazidas e com o intuito de que quem o ler, possa refletir e de acordo com suas convicções, chegar às suas próprias conclusões. Assim, é bom relembrar as brilhantes palavras de MARTIN LUTHER KING veiculadas no documento intitulado Carta aos Colegas de Bom Senso:

"Aquele que desrespeita uma lei injusta deve fazê-lo abertamente, com amor, e com vontade de aceitar a punição. Considero que, aquele que desrespeita uma lei que sua consciência lhe diz ser injusta e que aceita de bom grado a pena de prisão com a intenção de despertar a consciência da comunidade para a injustiça dessa lei exprime, na realidade, o mais alto respeito pela lei".

É importante expressar que a vitalidade das associações que seguem a perspectiva da resistência mostra não somente o fracasso das nossas instituições burocráticas e tradicionais, mas que o futuro pode ser analisado, considerado e enfrentado com certa confiança e esperança.

A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA HISTÓRIA

A desobediência civil sempre esteve presente de alguma forma na História da Humanidade. Por certo por que o Homem em sua evolução sempre visualiza a necessidade de alterações, modificações e mudanças, adequações e adaptações. É suficiente recorrer a História do Direito. Essa história demonstra justamente esta constante busca de adequação e adaptação devido ao surgimento de novas realidades sociais, até porque os costumes também se evoluem com as realidades socais que se aparecem.

Em épocas mais remotas, mas ainda consideradas nos primórdios do aparecimento da norma jurídica escrita. É edificante citar SÓCRATES, eterno debatedor e questionador, vivia cercado de pessoas jovens que ao passar do tempo em sua convivência se tornavam discípulos de suas idéias (ideologias), isto somente, através do convívio. SÓCRATES jamais escreveu uma só letra do que pensava, apenas praticava fielmente aquilo que acreditava e defendia chegando ao ponto de se submeter à sentença de morte sem se rebelar ou revoltar, apesar do abuso, arbitrariedade, autoritarismo, injustiça, sobretudo da opressão e tirania flagrante da decisão dos doutos da lei da época.

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A desobediência de SÓCRATES estava presente nas indagações e questionamentos constantes sobre as leis e a religião daquele período (tempo), como eram praticadas e impostas a todos – a sociedade.

SÓCRATES criticou aos ‘quatro cantos’ e “quatro ventos”, provocando a indignação e o desejo de vingança dos governantes da época (Estado e Igreja). SÓCRATES jamais teve ou esboçou uma atitude ou reação violenta para isto, muito pelo contrário, historiadores dizem que este filósofo e pensador tinham atitudes com características religiosas na educação de seus seguidores. A conseqüência direta deste legado, da não submissão ao poder instituído através da resistência com ordem e não-violenta, foi à condenação por corrupção dos jovens.

Jesus Cristo é outra referência a ser analisada, devido à tamanha injustiça praticada que o conduziu a morte, com elevado requinte de barbaridade, crueldade e desumanidade.

A posição de Jesus Cristo em relação ao papel do Estado Romano sempre foi bem delineada. O que era de interesse dos Homens, o dinheiro e os impostos, deveria ser respeitado e obedecido irrestritamente. Inclusive, Jesus Cristo, certa feita, disse aos seus discípulos e populares: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Marcos, 12:17) e repete (Lucas, 20:25), “Daí, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.

O Novo Testamento da Bíblia apresenta os seguintes princípios a respeito do Estado: 1- O Estado existe dentro da vontade de Deus (Romanos, 13:1-5)4; 2- Quem recebe benefícios do Estado fica obrigado e sujeito a cumprir as responsabilidades pelo Estado exigidas; 3- O limite dessa responsabilidade não ultrapassa a vontade de Deus claramente gravada na consciência e expressa na Bíblia.

Vê-se a responsabilidade perante o mundo e perante Deus: a responsabilidade civil abrange aquilo que tem a imagem do mundo, o Estado e suas leis (Romanos, 13:1-5); a responsabilidade espiritual abrange aquilo que tem a imagem de Deus: coração humano, espírito, pessoa e psíquico. Não é somente lícito, mas também um dever.

4“1- Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas. 2- De modo que aquele que se opõe à autoridade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação. 3- Porque os magistrados não são para temor, quando se faz o bem, e sim quando se faz o mal. Queres tu não temer a autoridade? Fazes o bem e terá louvor dela. 4- Visto que a autoridade é ministro de Deus para teu bem,Entretanto, se fizeres o mal, teme; porque não é sem motivo que ela traz a espada; pois é ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal. 5- É necessário que lhe estejais sujeitos, não somente por causa do temor da punição, mas também por dever de consciência”.

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A luta de Jesus Cristo foi pela vida e a liberdade, ultrapassando os limites que o Estado impunha, o qual se centrava na punição do indivíduo que se recusasse a pagar impostos, inclusive essa negativa poderia sujeitá-lo à morte. Defendia, por exemplo, que o resto não seria de competência do Estado como o destino da vida de seus cidadãos.

Jesus Cristo vivia cercado de Zelote (cidadão que induzia o povo a se rebelar e revoltar-se com o sistema político da época), estes faziam parte de um grupo de resistência que combatiam violentamente o domínio de terras judaicas por Roma. Mas, Jesus Cristo não praticava e não induzia ou incitava ao povo que praticassem ações violentas, muito pelo contrário. Jesus Cristo pregava a não-violência e noticia a História que muitos ‘Zelotes’ foram convertidos à sua prática.

A forma de desobediência passiva preocupava o Império Romano (Roma) que percebia o poder de mobilização exercido por Jesus Cristo, sem que para isso precisa-se se armarem.

O Estado Romano, através de seu Imperador em uma manobra já bem conhecida por todos nós, conseguiu convencer a multidão que Jesus Cristo era um ‘Zelote’, com isso ganhou apoio da massa para condená-lo e executá-lo à morte como se fosse, um rebelde que atentasse contra as instituições estatais e ao povo.

Adentrando a idade contemporânea se encontra MAHATMA GANDHI, figura emblemática em se tratando de desobediência civil.

Pode-se expressa seguramente que GANDHI viveu a desobediência civil, a partir da sua formação em Direito e ao mesmo tempo desiludido com a prática e o alcance naquela época da Ciência Jurídica em seu país (Índia) aonde os conterrâneos não tinham direitos, até a sua morte, levou algumas décadas.

GANDHI constantemente procurou lutar pela melhoria das condições de vida de seu povo e igualmente pela libertação da Índia das garras do Império Britânico. Foram quatro significativas campanhas de mobilização 1920, 1930, 1940 e 1942.

A mais marcante das atitudes de GANDHI era o seu exemplo pessoal. Era o modelo e representante da ideologia que defendia, além de que incorporava todos os conceitos que compreendida e pensava.

A simplicidade com a qual GANDHI viveu, tenho certeza de que foi o primordial instrumento de defesa de seu movimento. Este instrumento pacífico foi um grande trunfo, pois com maneiras simplórias conseguiu

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alcançar a multidão indiana. GANDHI viveu como um típico indiano conseguiu demonstrar que mesmo longe do poder instituído, era possível buscar mudanças necessárias a toda população da Índia, isto tanto dentro quanto fora do território indiano.

GANDHI não tratava somente de política, mas também cuidava de assuntos simples do cotidiano de seu povo. Para GANDHI a justiça que queriam também deveria ser oferecida aos adversários. Seu instrumento de luta foi justamente a resistência pacífica, passiva, onde não se encontrava a violência.

Utilizava-se de mecanismo pessoal, o jejum, que foi um dos atos mais praticados por GANDHI. Este meio de persuasão tinha um poder de grande influência, tanto na população como no Poder dominante da época. Ainda GANDHI acreditava que a conquista da liberdade somente poderia ser alcançada pela verdade, mas para isto não devia utilizar-se de mecanismos ou métodos violentos, por que a violência afronta a liberdade do outro e por ser um ato extremamente repugnante.

Muitos outros no decorrer da História da Humanidade praticaram a desobediência civil, como já citado, por exemplo, HENRY DAVID THOREAU, NELSON MANDELA, MARTIN LUTHER KING e outros.

MARTIN LUTHER KING nos Estados Unidos da América nos anos de 1950 a 1960 é outro grande exemplo de luta contra os abusos, arbitrariedades e opressões direcionadas ao povo. Lutou contra a discriminação sofrida pelos negros de seu próprio país e exigia o cumprimento da promessa de igualdade que há mais de cem anos já vinha prometida e que o Governo Americano ainda não tinha cumprido.

No Brasil um dos exemplos mais recente ocorreu na década de 1980 com o movimento político das ‘Diretas Já’. Este movimento trazia o anseio da sociedade brasileira por mudanças no sistema político, pois o povo já vinha desde 1964 sob o regime da ditadura militar, épocas em que houve abusos, arbitrariedades, ilegalidades e opressões de toda espécie, inclusive muitas pessoas foram condenadas à morte, sumária e inocentemente, sem ter praticado crime, tão-somente por terem se rebelado contra o sistema político opressor.

O movimento das ‘Diretas Já’ foi de grande importância para o povo brasileiro, pois deu origem a uma nova ordem jurídica, efetivando-a material e positivamente no dia 5 de outubro de 1988 quando ocorreu a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil. Com esta Constituição o povo conquistou o direito de elegerem de forma direta os seus

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representantes: Presidente da República, Governador de Estado, Senador, Deputado Federal e Estadual, Prefeito e Vereador.

O SURGIMENTO DA DESOBEDIÊNCIA CIVIL

A desobediência civil surgiu na Antiga Grécia paralelamente com a Democracia. A história registra que os povos que reagiram à opressão ao enfrentarem os tiranos e as injustiças. Os povos que não foram obedientes às leis, às ordens e aos exércitos, caíram ao chão nos campos de batalhas durante as guerras civis, porém melhoraram suas vidas posteriormente nos tempos de paz, por terem criado tradições e os governantes tornaram-se em parte submissos aos seus povos.

A Desobediência Civil é o texto mais conhecido de HENRY DAVID THOREAU (1817–1862). Escrito em 1848 influenciou profundamente outras pessoas conhecidas por terem lutado em defesa de direitos éticos, filosóficos, ideológicos, jurídicos, morais, políticos, religiosos, sociológicos, dentre outros, tendo em vista que o poder estatal aplicava e sancionava leis e regramentos considerados injustos suprimindo direitos e garantias dos cidadãos por ato arbitrário, autoritário e opressor.

Como sucessores de HENRY DAVID THOREAU, MOHANDAS GANDHI, LEON TOLSTOI, MARTIN LUTHER KING Jr., dentre outros. Muito à frente de seu tempo sua defesa do “Direito à Rebeldia” esteve, há tempos, a serviço da luta contra todas as formas de arbitrariedades, autoritarismos, discriminações, opressões, tiranias e etc.

HENRY DAVID THOREAU insistentemente lutou nos Estados Unidos da América contra a escravidão e a discriminação étnica e sexual, pelos direitos das mulheres, em defesa do meio-ambiente. Como pacifista radical, sempre procurou direcionar à sua luta à raiz do mal que tentava combater. Posteriormente, recusou a pagar impostos a um governo autoritário que fazia mais uma guerra predatória do que tributária.

O Governo americano arbitrária, autoritária e criminosa apoderou-se de mais da metade do território mexicano, porém esse ato radical de “Desobediência Civil” lhe custou um tempo na prisão que foi útil, por um lado, para escrever e refletir sobre este método de não obediência ao regramento jurídico e deixou para a posteridade suas idéias e pensamentos, muitas vezes, pode-se dizer que empenhou arduamente pela adoção de um instrumento jurídico considerado verdadeiramente justo e perfeito, o qual somente fora reconhecido postumamente, depois de uma vida eivada de dissabores e humilhações, por ter feito esta escolha.

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Há indivíduos (cidadãos) que não compactuam com a arbitrariedade, arrogância, autoritarismo, ditadura, injustiça, prepotência, tirania, etc., porém há também pessoas que se acomodam, aceitando e concordando com os atos praticados pelo Poder Público (Estado). Quem se acomoda, em geral, vive melhor, mas como dizia LEONARDO DA VINCI, não passam de meros condutores de comida, não deixando rastro algum de sua passagem pelo mundo exceto latrinas cheias.

Acerca de um homem da estirpe de HENRY DAVID THOREAU já se disseram o bastante, observem as apotegmas:

“Quando o súdito nega obediência e quando o funcionário se recusa a aplicar as leis injustas ou simplesmente se demite, está consumada a Revolução”. “A tirania da Lei não é abrandada por sua origem majoritária”. “Só cada pessoa pode ser juiz de sua própria vida”. “Não é suficiente ser deixado em paz por um governo que pratica a corrupção sistemática e cobra impostos para fazer mal a seu próprio povo”.

HENRY DAVID THOREAU, pioneiro a estabelecer a teoria relativa dessa prática de defesa em seu ensaio de 1849. A idéia predominante abrangida pelo ensaio era de auto-aprovação e de como alguém pode estar em boas condições morais enquanto "escraviza ou faz sofrer um outro homem", com isso surgiu o protesto de que não é preciso travar luta física contra o Governo (Poder Estatal), mas não se pode apoiá-lo e também não pode dexá-lo que lhe escravize e oprima. Este ensaio exerceu uma grande influência sobre muitos praticantes da desobediência civil. No ensaio explicitou suas razões porque se recusara a pagar seus impostos, como um ato de protesto contra a escravidão e contra a Guerra Mexicana.

Enfatiza-se que anteriormente a HENRY DAVID THOREAU, existiram outros que, através de teorias próprias, mas acessórias a outras teses principais que também esposaram atos que demonstram atos de desobediência civil, como fez ANTÍGONA (Sófocles de Atenas – 496-406 a.C.) na peça Grega de Sófocles.

Também outros teóricos, em especial do Iluminismo, movimento surgido na França do século XVII que defendia o domínio da razão sobre a visão teocêntrica (Deus no centro de todas explicações) que predominava na Europa desde a época Medieval (Idade Média). Segundo os filósofos iluministas, esta forma de pensamento tinha o propósito de iluminar as trevas em que se encontrava a sociedade, e, trataram de possibilidades de desobediência quando apresentavam suas teses de cunho ideológico, jurídico, político e sociológico acerca da formação do Estado e da submissão do povo

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ao poder estatal, como: Thomas Hobbes, John Locke, Bento de Espinosa, François-Marie Arouet, Jean-Jacques Rousseau, Charles-Louis de Secondat Monstesquieu, David Hume, Denis Diderot, Jean Le Rond d´Alembert, Adam Smith, Gotthold Ephraim Lessing, Immanuel Kant e Benjamin Constant.

Para os filósofos iluministas, o homem era naturalmente bom, porém era corrompido pela sociedade com o passar do tempo. Os filósofos acreditavam que se todos fizessem parte de uma sociedade justa, com direitos iguais a todos, a felicidade comum seria alcançada especialmente reinaria a paz e a justiça social. Por esta razão, os filósofos eram contra as imposições de caráter religioso, contra as práticas mercantilistas, contrários ao absolutismo do rei, além dos privilégios dados a nobreza e ao clero.

Os principais filósofos do Iluminismo foram:

Thomas HOBBES (1588–1679) foi um matemático, teórico político e filósofo inglês, defendia a ideia segundo a qual os homens só podem viver em paz se concordarem em submeter-se a um poder absoluto e centralizado;

John LOCKE (1632–1704) acreditava que o homem adquiria conhecimento com o passar do tempo através do empirismo;

Bento de ESPINOSA (1632–1672) defendeu principalmente a ética e o pensamento lógico;

François-Marie Arouet conhecida pelo pseudônimo VOLTAIRE (1694–1778) defendia a liberdade de pensamento e não poupava crítica à intolerância religiosa;

Jean-Jacques ROUSSEAU (1712–1778) defendia a idéia de um estado democrático que garantisse a igualdade para todos;

Charles-Louis de Secondat MONTESQUIEU (1689–1755) defendeu a divisão do poder político em Legislativo, Executivo e Judiciário (Tripartição dos Poderes);

David HUME (1711–1776), foi um importante historiador e filósofo iluminista escocês que refutou o princípio da casualidade e defendeu o livre-arbítrio e o ceticismo radical;

Denis DIDEROT (1713–1784) e Jean Le ROND d´ALEMBERT (1717–1783), juntos organizaram uma enciclopédia que reunia conhecimentos e pensamentos filosóficos da época;

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Adam SMITH (1723–1790), economista e filósofo inglês. Grande defensor do liberalismo econômico;

GOTTHOLD Ephraim Lessing (1729–1781), filósofo e dramaturgo alemão que defendeu a liberdade de pensamento entre os cristãos;

Benjamin CONSTANT (1767–1830) escritor, filósofo e político francês de origem suíça que defendeu principalmente as ideais de liberdade individual;

Immanuel KANT ou Emanuel Kant (1724–1804) foi um filósofo alemão que desenvolveu seus pensamentos nas áreas da epistemologia, Ética e Metafísica, geralmente considerado como o último grande filósofo dos princípios da era moderna, indiscutivelmente um dos pensadores mais influentes, centrando-se na afirmação de que "Age de maneira tal que a máxima de tua ação sempre possa valer como princípio de uma lei universal", assim o filósofo formulou o "imperativo categórico", ao buscar fundamentar na razão os princípios gerais da ação humana, e, elaborou as bases de toda a ética moderna.

Contudo, HENRY DAVID THOREAU, foi o primeiro a tratar especificamente da desobediência à ordem instituída. A desobediência civil serviu como uma tática principal aos movimentos nacionalistas em antigas colonias da África e Ásia, antes de adquirirem a liberdade. O mais notável, MOHANDAS GANDHI - Mahatma Gandhi, usou a desobediência civil como uma ferramenta anti-colonialista. MARTIN LUTHER KING, líder do movimento dos direitos civis dos Estados Unidos nos anos da década de 1960, também adotou as técnicas da desobediência civil e ativistas anti-guerra, tanto durante quanto depois da Guerra do Vietnã, também agiram igualmente.

Movimentos de demonstração de opinião e protesto, como as campanhas anti-guerra que ocorreram contra a invasão ao Iraque não são necessariamente desobediência civil, pois muitos cidadãos que dessas campanhas participam continuam apoiando o governo de outras formas.

A desobediência civil serviu também como uma tática da oposição polonesa contra os comunistas, mostrando o verdadeiro significado do que é solidariedade.

A Desobediência Civil, de acordo com alguns teóricos juristas brasileiros e estrangeiros, como: MARIA GARCIA, CHAMADO PAUPÉRIO e NELSON NERY DA COSTA, é uma das formas de expressão do Direito de Resistência, sendo esta uma espécie de Direito de Exceção que, embora tenha cunho jurídico, não necessita de leis para garanti-lo, uma vez que se

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trata de um meio de garantir outros direitos básicos. Ele tem lugar quando as instituições públicas não estão cumprindo seu fiel papel e quando não existem outros remédios legais possíveis que garantam o exercício de direitos naturais, como a vida, a liberdade e a integridade física.

Além da Desobediência Civil, também são exemplos de resistência, o Direto de Greve (para proteger os direitos homogêneos dos trabalhadores) e o Direito de Revolução (para resguardar o direito do povo exercer a sua soberania quando esta é ofendida), entre outros.

MOHANDAS KARAMCHAND GANDHI (1869–1948) é amplamente reconhecido como um dos maiores líderes políticos e espirituais do século XX. Honrado na Índia como o pai da nação, foi pioneiro e praticou o princípio de Satyagraha entendida como a resistência à tirania (governo opressor) através da desobediência civil massiva, não–violenta, pacífica.

GANDHI liderava campanhas a nível nacional para aliviar a pobreza, expandir os direitos das mulheres, criarem harmonia religiosa e étnica, eliminar as injustiças do sistema de castas (camada social hereditária, cujos membros são da mesma raça, etnia, profissão ou religião e se casam entre si). GANDHI aplicou acima de tudo os princípios da desobediência civil não-violenta, tendo um papel decisivo para libertar a Índia do domínio estrangeiro. Com freqüência era aprisionado pelas suas ações, às vezes permanecia encarcerado por anos, mas conseguiu seus objetivos em 1947 quando a Índia alcançou e obteve a sua independência da Grã–Bretanha (Inglaterra).

Devido à sua grandeza, Mahatma significa “grande espírito” ou “grande alma”. Os líderes de direitos civis desde MARTIN LUTHER KING Jr., a NELSON MANDELA reconheceram GANDHI como fonte de inspiração na sua luta para conseguir direitos iguais para os seus povos.

MARTIN LUTHER KING, (1929-1968), tinha a ocupação de pastor protestante e ativista político estado-unidense. Tornou-se um dos mais importantes líderes do movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos e no mundo, com uma campanha de não-violência e de amor ao próximo. Foi à pessoa mais jovem a receber o Prêmio Nobel da Paz em 1964, pouco antes de ser assassinado. Seu discurso mais famoso e lembrado, “Eu Tenho Um Sonho”.

MARTIN LUTHER KING era seguidor das idéias de desobediência civil, não-violenta, preconizadas por Mahatma Gandhi, aplicava essas idéias nos protestos organizados. LUTHER KING acertadamente previu que manifestações organizadas e não-violentas contra o sistema de

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marginalização predominante no sul dos EUA, atacadas de modo violento por autoridades racistas e com ampla cobertura da mídia, iriam criar uma opinião pública favorável ao cumprimento dos direitos civis. Essa foi à ação primordial que fez do debate acerca dos direitos civis, o basilar e principal assunto político nos EUA, a partir do começo da década de 1960.

MARTIN LUTHER KING organizou com sua liderança peculiar algumas marchas, com a finalidade de conseguir o direito ao voto, o fim da marginalização (pôr à margem), segregação, o fim das discriminações no trabalho e outros direitos civis básicos. Mais tarde, a maior parte desses direitos associados e reunidos em duas leis dos EUA, depois de suas aprovações e edições da Lei de Direitos Civis de 1964 e da Lei de Direitos Eleitorais de 1965.

Em 14 de outubro de 1964, MARTIN LUTHER KING se tornou a pessoa mais jovem a receber o Nobel da Paz, que lhe foi outorgado em reconhecimento a sua nação e à sua liderança na resistência não-violenta, ordeira, pacifica pelo fim do preconceito (aversões a outras raças, credos, religiões, etc.) racial nos Estados Unidos.

O líder sul-africano NELSON MANDELA foi um dos mais importantes cidadãos políticos atuantes contra o processo de discriminação instaurado pelo chamado apartheid na África do Sul, se tornou um ícone internacional na defesa das causas humanitárias.

Nasceu no dia 18 de julho de 1918 na cidade de Transkei, NELSON ROLIHLAHLA MANDELA, filho único do casal Henry Mgadla Mandela e Noseki Fanny que integrava uma antiga família de aristocrata da casa real de Thembu. Depois ter suas posses (propriedades) e privilégios retirados pela ingerência da Coroa Britânica na região, a família viveu um período de tranqüilidade, até quando houve a morte inesperada de Henry Mgadla, em 1927. Com essa reviravolta em sua vida familiar, a sua mãe se viu obrigada a deixar seu unigênito sob os cuidados de Jongintaba Dalindyebo, parente da família que tinha condições de cuidar, educar e zelar pela vida de Nelson Mandela.

Nesse período de sua vida, NELSON MANDELA ainda jovem teve uma ímpar oportunidade para a concretização de sua formação educacional, a qual foi influenciada pelos valores de sua própria cultura (africana) e da cultura européia (inglesa). Este futuro ativista político conseguiu discernir como o pensamento colonial se ocupava em expressar aos africanos que, este povo, deveria se inspirar nos “ditames superiores” da cultura do Velho Mundo. Depois de passar pelas melhores Instituições de Ensino da época,

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tornou-se com os ensinamentos que lhes fora dada, uma pessoa jovem de invejável educação, chegou à Universidade de Fort Hare.

No ambiente estudantil e universitário, NELSON MANDELA, na oportunidade teve conhecimento da finalidade da luta contra o movimento apartheid promovida pelo Congresso Nacional Africano. Entretanto, anteriormente a engajar-se no processo de luta contra o problema social de seu país, NELSON MANDELA se direcionou e revoltou contra as tradições de seu próprio povo ao não se sujeitar a um casamento arranjado. Mediante o impasse, o jovem se viu obrigado a refugiar-se na cidade de Johnnesburgo, onde trabalhou em uma imobiliária, posteriormente em um escritório de advocacia.

NELSON MANDELA vivendo nesta cidade aprofundou mais seu envolvimento com as atividades do Congresso Nacional Africano. Deu continuidade aos seus estudos na área da Ciência Jurídica (Direito). Em 1942 com o apoio de companheiros como Walter Sisulu e Oliver Tambo fundaram a Liga Jovem do Congresso Nacional Africano. Na década de 1950 os ativistas aliados a NELSON MANDELA resolveram realizar uma grande manifestação de desobediência civil em que protestavam contra as políticas segregacionistas impostas pelo Governo do Partido Nacional.

Essa relevante manifestação política resultou na elaboração da Carta da Liberdade, importante documento de luta onde a população negra oficializava sua indignação. Em 1956 as autoridades prenderam NELSON MANDELA, previamente decidiram condená-lo à morte, sob a acusação de crime de traição. Porém, a repercussão internacional de sua prisão e julgamento serviram para que o líder ativista ficasse em liberdade. Posteriormente, NELSON MANDELA continuou a conduzir os protestos ordeiros e pacíficos contra a ordem estabelecida.

Em março de 1960 um trágico episódio impeliu NELSON MANDELA a rever seus mecanismos e meios de atuação política. Naquele mês, um protesto que ocorreu nas ruas da cidade de Sharpeville resultou na morte de vários manifestantes desarmados. Depois deste evento trágico, NELSON MANDELA decidiu se empenhar e erguer-se na formação do “Lança da Nação”, um braço armado do Congresso Nacional Africano. O governo segregacionista imediatamente saiu em busca dos líderes desta ‘facção’. Em 5 de agosto de 1962, NELSON MANDELA foi mais uma vez encarcerado.

NELSON MANDELA depois de enfrentar um processo judicial, foi condenado à prisão perpétua, pena que deveria cumprir em uma ilha penitenciária situada a 3 km da cidade do Cabo. Durante 27 anos na prisão,

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permaneceu alheio ao mundo exterior e vivia o desafio de esperar pelo tempo transcorrer, sempre na esperança de ser revista à pena que lhe fora aplicada. Nesta época consolidou uma inesperada amizade com James Gregory, carcereiro da prisão que se impressionou com os valores e a dignidade de seu custodiado.

Nesse ínterim de tempo, depois da desarticulação do movimento anti-apartheid, novos movimentos sociais de luta surgiram e a comunidade internacional se mobilizou contra a sua prisão e condenação.

Em 1990, sob a tutela do Governo Conciliador do Presidente Frederik Willem de Klerk, NELSON MANDELA foi libertado do cárcere e reconduziu-se ao processo que culminou com a extinção do apartheid na África do Sul. Em 1992, finalmente, as leis segregacionistas foram abolidas e extintas com o apoio de NELSON MANDELA e Willem de Klerk.

Em 1993 a vitória política lhe concedeu o prêmio Nobel da Paz. Em 1994 foram organizadas as primeiras eleições multirraciais da África do Sul. A vitória eleitoral de NELSON MANDELA iniciou a correção e purificação das práticas racistas do Estado Africano e lhe rendeu grande reconhecimento internacional. Em 1999, depois de cumprir seu mandato eletivo atuou em diversas causas humanitárias. Até hoje, o líder sul-africano exerce grande papel na luta contra a AIDS na África.

Depois destas argumentações, ecoa em nossa mente, em vista do Estado Moderno mesmo considerando-o democrático, torna-se opressor em inúmeras ocasiões e situações. Porém, a única saída para combater e minimizar abusos arbitrários, autoritários, injustos e opressores, sem sombra de dúvida é a desobediência civil.

O que é a desobediência civil? Pode-se afirmar categórica e taxativamente que é um mecanismo, método ou técnica organizada pacífica e não-violenta de resistência de um povo em relação ao poder político do Estado.

A desobediência ergue e surge-se, primordialmente quando os regimes são autoritários, injustos e opressores em vista dos líderes governamentais que estão no ‘poder’, por não satisfazerem as exigências dos cidadãos. Os governantes devem obediência ao povo e foram e são eleitos para representar as aspirações deste povo.

Na realidade, constantemente eclodem os movimentos políticos e sociais da desobediência civil porque os governantes e dirigentes de uma Nação se preocupam tão-somente em atender os seus interesses pessoais, de suas famílias ou correligionários (financiadores) de suas campanhas, ao

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invés, de pensar no bem comum de sua Pátria. Como tem acontecido no Brasil, recentemente, por exemplo: escândalo do mensalão (Câmara dos Deputados), escândalo do elevado salários e diárias pagas a servidores e senadores, corrupção do Governo do Distrito Federal e etc.

Assim, vem à mente outra indagação. Qual seria o melhor governo?

Os governos se preocupam, cada vez mais, somente em editar e sancionar leis quer federais, estaduais e municipais. Porém, proporcional e razoavelmente entende-se como bom governo, aquele que edita e sanciona o menor número de leis possíveis. Exemplo prático desta assertiva é a análise que se faz de uma partida de futebol: ‘Em uma partida de futebol, quando o árbitro chamado de juiz apita com imparcialidade, perfeição, rigor prudente e seriedade a torcida esquece-se que há juiz em campo’. Este é o caso, quando as autoridades e dirigentes governamentais procuram administrar as instituições estatais e dirigem os negócios do Estado, seus pleitos passam despercebidos e o povo o tem como um político respeitável.

Pelo contrário, quando as autoridades governamentais procuram subterfúgios nas edições e sancionam cada vez mais leis que oprimem o povo para objetivar a busca desenfreada e desregrada de arrecadação para satisfazer seus interesses, mais diversos e escusos, surgem desobediências e revoltas, tornando-se caótica a situação entre povo e governo (Estado).

Para que se possa entender: O que vem a ser desobediência civil? Preliminarmente, deve-se entender a profundidade desta expressão, recorrendo ao dicionário para buscar o significado individual destas duas palavras:

Desobediência: é um substantivo feminino que significa falta de obediência. De forma ampla visando buscar um sentido mais adequado e apropriado para nosso objeto de estudo, encontra-se o verbo transitivo indireto desobedecer, que se traduz na ação de não obedecer, infringir e violar.

Civil: relaciona-se às relações dos cidadãos entre si e entre o Estado, reguladas por normas de Direito Civil e também concernente às relações dos cidadãos entre si, reguladas por normas do Direito Civil. Não militar, civilizado, cortês.

Com subsídios na História da Humanidade pode-se expressar convictamente que a desobediência é relativa a todo e qualquer instituto ou instrumento normativo não só no âmbito civil e tributário, mas como um método propulsor de movimentos de desobediência na História das sociedades. Também, conforme exaustivamente já delineado neste artigo, é

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uma ação e atitude com ordem, pacífica e não-violenta contra as ações, atos ou omissões que o Estado como ente disciplinador e regulador da sociedade, muitas vezes, tornando ilegítimo e injusto.

Unindo estes dois significados percebe-se límpida a dimensão que esta expressão origina, isto é, desobediência civil é a ação ou ato de não obedecer às leis, as normas instituídas e a um estado de coisas. Portanto, a idéia é desobedecer à ordem instituída que regula a sociedade civil, ordem jurídica esta que afronte ou cause mal-estar, o que sociedade tem como certo e indispensável.

Mas não é somente esboçar um ato de rebeldia e revolta, um não querer, é uma espécie de insubordinar e rebelar-se quanto ao estado quo, a insatisfação quanto ao que está determinado e estabelecido, que não supri ou deixou de suprir as necessidades de uma coletividade.

Pertinente ainda ser apresentada classificação doutrinária da desobediência civil:

1. Modalidade direta, voltada para a violação da própria lei por identificá-la injusta;

2. Modalidade indireta, em que a violação da lei ocorre não por ela mesma ser entendida um mal em si, mas em virtude de outra medida governamental. Por exemplo, é aquela sugerida por HENRY THOREAU, de negar-se pagamento aos impostos recolhidos e utilizados como subsídio à guerra deflagrada pelos Estados Unidos contra o México.

Esta insatisfação não é só de ordem material. Este descontentamento alcança padrões éticos e morais. Por exemplo, é a desobediência civil que HENRY DAVID THOREAU empenhou e trouxe quando se negou a pagar tributos ao Governo de seu país. Não que THOREAU fosse tão-somente contra o pagamento de impostos, mas era contra a utilização dos recursos arrecadados que servia no caso específico para financiar a guerra contra o México.

Neste aspecto, não que a lei de arrecadação de impostos estaria ilegítima ou injusta, mas que a sua utilização estava tornando-a imoral, pois a sua finalidade que em tese seria suprir às necessidades da sociedade, estaria desvirtuada. Neste sentido afrontava a sociedade porque não mantinha o caráter de ordem ética e moral que toda norma jurídica deve ter ou preservar.

É edificante apontar três características que entendo como norteador da desobediência civil, depois deste pormenorizado estudo sobre o assunto.

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Primeiro é o fato de que este movimento, não precisa, preliminarmente, ser seguido e reconhecido como legítimo na mobilização dos cidadãos, na maioria dos casos, sempre é iniciado por minorias, também não pode ser deflagrado inopinadamente. Lembre-se de Rosa Parks nos Estados Unidos e de Nelson Mandela na África do Sul, mas sua repercussão deverá ser grande a ponto de conseguir a alteração ou modificação defendida no início por uma minoria.

Segundo, considera-se o mais importante, por ser a concretização válida das ações e atos, é que deverá haver um significado e uma justificativa plausível nos limites éticos e morais para a desobediência, ordeira, pacífica e não-violenta. Não é só mobilizar o cidadão para se manifestar e propor ações contra o Estado para alterar ou mudar aquela situação que está trazendo desconforto e insatisfação para a sociedade. Esta segunda característica tem e deve ser analisada com bastante calma, paciência e prudência, porque o grande perigo é a dissimulação que poderá existir para mascarar interesses financeiros e políticos que podem estar escondidos ou ocultos por detrás destes movimentos.

Terceiro e mais marcante, neste aspecto deve ser reverenciado Mahatma Gandhi, é que as ações e atos de desobediência civil não são caracterizados pela violência, muito pelo contrário, não se deve afrontar o poder constituído do Estado, mas deve-se demonstrar através de atitudes e condutas para se submeter às leis instituídas, o quanto às normas jurídicas são antiéticas, injustas e até imorais. Lembre quantas vezes Mahatma Gandhi foi preso e em nenhuma ocasião encarcerado resistiu. Porém, existem alguns que entendem que não se deve se submeter às punições das leis justamente por não as reconhecerem como justas ou legítimas. A essa ramificação intitula-se Desobediência Civil Ativa.

LAFER (apud GARCIA, 2004, p. 274) conceitua desobediência civil como sendo “a ação que objetiva a inovação e a mudança da norma por meio da publicação de ato de transgressão, visando demonstrar a injustiça da lei”. Igualmente de acordo com DREIER (apud CANOTILHO, 2004, p. 328): “[...] a desobediência civil poder-se-ia caracterizar como o direito de qualquer cidadão, individual ou coletivamente, de forma pública e não violenta, com fundamento em imperativos ético-políticos, poder realizar os pressupostos de uma norma de proibição, com a finalidade de protestar, de forma adequada e proporcional, contra uma grave injustiça”.

A desobediência civil é essencialmente prática, são ações, atos, atitudes e condutas de pessoas que resolvem se mobilizar em busca de mudanças com objetivo principal de alterar, modificar ou mesmo editar nova norma jurídica adequada e apropriada à sociedade.

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A EVOLUÇÃO DO PODER E DO DIREITO DE RESISTÊNCIA

Na Idade Média, o poder era descentralizado e quem editava as regras (leis) eram os senhores feudais e o Rei era mera “figura” decorativa. Nesse período, destaca-se o poderio da Igreja Católica, que, em nome de Deus, controlava a sociedade.

Por outro lado, na Idade Moderna, havia uma autoridade detentora do poder, o Rei Absoluto, que controlava os súditos. O poder era arbitrário e estava centralizado em uma única pessoa. Mais tarde, surgiram idéias de liberdade do homem frente ao soberano, culminando com a Revolução Francesa, que possibilitou que o homem conquistasse a sua liberdade negativa, caracterizada pela não intervenção do Estado em suas atitudes.

Depois, no século XX, com o advento da Revolução Industrial, surgiram problemas sociais, pois os operários não estavam satisfeitos com o tratamento que tinham que se sujeitar, uma vez que os industriais exploravam a mão-de-obra, sem se preocuparem com a dignidade humana daqueles. Os operários sofriam com a jornada excessiva de trabalho, que era praticada em condições insalubres, então, em virtude desse descontentamento, passaram a reunir-se em associações, surgindo, assim, os sindicatos, ensejando na conquista dos direito sociais.

Entre todos os direitos positivados em um determinado ordenamento, os direitos humanos são os mais importantes e devem prevalecer frente aos demais direitos. Esses direitos são de suma importância para a efetividade da harmonização social. Todos os indivíduos merecem ter a sua dignidade respeitada e reconhecida, por meio de sua proteção contra o arbitramento do poder estatal e o reconhecimento de condições mínimas de vida. A transformação do direito se dá juntamente com as mudanças ocorridas no meio social, ficando perfeitamente evidenciadas se tomarmos como paradigma a questão desses direitos.

A idéia de direitos humanos não se cristalizou no tempo, a sua origem remonta do antigo Egito e Mesopotâmia, no terceiro milênio a.C., onde já era previstas alguns mecanismos para proteção individual em relação ao Estado. Surgiram, posteriormente, na Grécia vários estudos sobre a necessidade da igualdade e liberdade do homem, destacando-se o Direito Romano, que estabeleceu um complexo mecanismo, visando tutelar os direitos individuais em relação ao arbítrio estatal.

Durante a Idade Média, diversos documentos jurídicos reconheciam a existência de direitos humanos, com o intuito de limitar o poder do Estado.

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Na Inglaterra elaborou cartas e estatutos para assegurarem os direitos fundamentais, como a “Magna Charta Libertatum” (1215-1225), outorgadas pelo rei João - Sem-Terra; a “Petition of Right” (1628); o “Habeas Corpus” (1679); o “Bill off Rights” (1688) e o “Act off Seattlemente” (1701), mas não são declarações de direitos no sentido moderno, as quais somente apareceram no século XVIII com as Revoluções, americana e francesa. Depois nos Estados Unidos, a Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia (12/1/1776); a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América e a Constituição dos Estados Unidos da América (17/9/1787).

Dentre algumas manifestações do direito constitucional, cita-se a Magna Carta de João - Sem-Terra de 1215 que assegurava o direito de o povo se revoltar e se insurgir quando o Príncipe não cumprisse as obrigações, às quais se vinculara. O documento alemão Sanchsenspiegel prevê que o homem deve se opor ao seu Rei e ao seu Juiz quando este comete injustiça, inclusive ajudar a resistir-lhe por todos os mecanismos e meios. Também temos: a Carta húngara “Bula de Ouro” de 1222; a Carta de Irmandade dos reinos de Leão e Galiza; a Carta de Castela na Espanha; a Declaração de Independência dos Estados Unidos de 1776 e a Carta siciliana de 1812.

O mesmo ocorreu com os textos revolucionários franceses das Declarações de Direitos de 1789 que assim dispõe no artigo 2º:

“O fim de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”.

A consagração normativa dos direitos humanos fundamentais coube à França, através da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (27/8/1789), com o advento da Revolução Francesa. O início do século XX trouxe diplomas fortemente marcado pelas preocupações sociais, como a Constituição mexicana (1917); a Constituição de Weimar - alemã (1919); a Constituição soviética (1918).

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, assinado em Paris no dia 27 de agosto de 1948, constitui a mais importante conquista dos direitos humanos fundamentais em nível internacional. Porém, a idéia de Direitos Humanos não se estabilizou nesse documento, surgindo diversas cartas de direitos no âmbito internacional: a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos; a Declaração Islâmica Universal dos Direitos do Homem; a Declaração Universal dos Direitos dos Povos; a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem; a Declaração Solene dos Povos Indígenas do Mundo, entre outros.

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A Constituição da Alemanha de 1949 no artigo 20, item 4 dispõe: “Todos os alemães terão direito de se insurgir contra quem tentar subverter essa ordem, quando não lhes restar outro recurso”.

A Constituição de Portugal de 1982 no artigo 21 prevê: “Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública”.

Os direitos humanos surgem, conforme as mutações das ideologias sociais. Neste diapasão lecionou NORBERTO BOBBIO:

“[...] Os direitos não nascem todos de uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer. Nascem quando o aumento do poder do homem sobre o homem – [...] - ou cria novas ameaças à liberdade do indivíduo, ou permite novos remédios para as suas indigências [...]”.

O direito ou não da resistência se vincula a Constituição por ser a Lei Maior do país que define as formas institucionais da vontade política e jurídica da nação. O sistema constitucional brasileiro oferece todas as possibilidades de justificação da resistência, principalmente nesse processo de absorção e integração dos direitos explícitos e implícitos.

A grande questão constitucional do direito de resistência está na garantia de autodefesa da sociedade e dos direitos fundamentais, além do controle dos atos públicos e na manutenção do contrato constitucional assumido pelo governante, no momento, de sua posse a qualquer dos cargos públicos, do Executivo, Judiciário e Legislativo. O contrato constitucional instaura a ordem política e jurídica e tem por finalidade a extinção preventiva dos conflitos sociais, especialmente das minorias.

A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITO À CIDADANIA E À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

A civilização humana, desde os seus primórdios, até o período atual, passou por inúmeras fases, cada uma com suas peculiaridades, com seus pontos negativos e positivos, de modo que as evoluções científicas, econômicas, filosóficas, jurídicas, políticas, sociológicas e tecnológicas são, muitas vezes, morosas e gradativas.

A evolução histórica dos direitos inerentes à cidadania e à pessoa humana também é lenta e gradual. Não são construídos ou reconhecidos, todos de uma vez, mas conforme a própria experiência da vida humana em sociedade, por isto é, de extrema importância para entender seu significado atual, compreender como eles (direitos) foram examinados, notados e

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observados em tempos pretéritos para eliminar ou neutralizar os erros, aperfeiçoar e expandir os acertos.

Os Direitos Humanos são os direitos basilares e essenciais a todos os cidadãos, ou melhor, são os direitos fundamentais ao homem, sem qualquer distinção de qualquer natureza, sendo estes direitos inerentes ao Ser Humano (pessoa humana). Por isso, a evolução, a materialização e positivação dos direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro são de inegável importância.

Em que consiste a dignidade do homem? Por ser o homem diferenciado de todos os demais seres da natureza, porque é o único dotado de inteligência, liberdade e vontade, esta diferença nos faz dignos da condição humana. Dignidade significa decoro, qualidade superior, nobreza, excelência. Lembra CÍCERO (Retórica, II, 53) que a idéia de dignidade está associada à de justiça e eqüidade.

Neste sentido o Papa João Paulo II expressou quando da Mensagem de Paz de 1 de janeiro de 1981: “O Homem é livre porque possui a faculdade de determinar-se em função da verdade e do bem. A liberdade, em sua essência, é interior ao homem, conatural à pessoa humana, sinal distintivo de sua natureza. A liberdade humana encontra seu fundamento em sua dignidade transcendente”.

O aspecto da inteligência distingue o Homem dos demais seres e fundamenta sua dignidade. São princípios naturais que o Homem não pode abolir, sob pena de destruir a si próprio, à família, à comunidade, à própria humanidade: não matar, não roubar, não mentir (fraudar, adulterar, etc.) e etc.

A síntese de todos esses tipos da moral se concretiza em uma regra universalmente aceita nunca contestada por código algum, reconhecida por todos os povos: fazer o bem e evitar o mal, mais tarde completada pela regra de ouro fazer aos outros tudo aquilo que gostaríamos que fizessem a nós mesmos.

As leis escritas são necessárias para que os cidadãos gozem de segurança jurídica. Segurança e Justiça são faces da mesma moeda: não há Segurança sem Justiça e vice-versa. Ambas são garantias do bem comum, pois visam o bem-estar e a paz da sociedade.

Assistimos, hoje, em todos os países, à sucessão interminável de leis que mais confundem e geram insegurança do que esclarecem. No Direito de Família, muitas normas legais foram revogadas e novas leis vêm acarretando incerteza jurídica.

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Na prática, os juristas devem ter dois olhares: um para cima, que o leve a considerar o que há de transcendental na Justiça (a natureza do homem, os princípios de Direito Natural) e um olhar para baixo, descendo à consideração das condições sociais (na consulta aos Códigos, na natureza das coisas e do homem).

A materialização e a positivação destes direitos fundamentais no Brasil passaram a vigorar a partir de 5 de outubro de 1988 com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil que se reproduziram da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10 de dezembro de 1948 e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 22 de novembro de 1969 - Pacto de São José da Costa Rica adotada no âmbito da Organização dos Estados Americanos em São José da Costa Rica, a qual entrou em vigor internacional, a partir de 18 de julho de 1978.

Esses direitos não foram conquistados e reconhecidos de uma só vez, houve uma longa luta pela sua aceitação e concretização material, especialmente durante o período da Ditadura Militar - Regime Militar (período da política brasileira em que militares governaram: de 31 de março 1964 a 14 de março de 1985: General Humberto de Alencar Castello Branco; General Arthur da Costa e Silva; Junta Militar – Ministros: Aurélio de Lira Tavares (Exército), Augusto Rademaker (Marinha) e Márcio de Sousa e Melo (Aeronáutica); General Emílio Garrastazu Médici; General Ernesto Geisel; General João Baptista Figueiredo) caracterizou-se pela falta de democracia, supressão de direitos constitucionais, repreensão à manifestação artística e pensamento (censura), perseguição política e repressão às pessoas contrárias ao regime militar.

Os Direitos Fundamentais do Homem passaram do individual ao coletivo e deste à categoria de direitos de solidariedade. Estes direitos são mais recentes e não estão presentes na Declaração Universal dos Direitos do Homem, mas fazem parte das Convenções e dos Pactos Internacionais declarados e proclamados pela Organização das Nações Unidas - ONU, nas últimas décadas. Estes direitos são difíceis de proteger e respeitar, por isso, exige atenção de cada indivíduo (membro) da comunidade para também empenhar-se e lutar em sua defesa.

Esse artigo pretende mostrar e revelar uma abordagem da desobediência civil em relação indireta aos direitos fundamentais e humanos e diretamente à cidadania e à dignidade da pessoa humana, esta (dignidade da pessoa humana) no exercício daquela (cidadania) e a ética e moral na influência do ordenamento jurídico brasileiro. Esse tema é de suma importância para conservação e preservação do Estado Democrático de

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Direito que é fruto de uma duradoura conquista que ainda não se estagnou ou paralisou no espaço e no tempo.

Neste sentido, baseado e fundamentado nas incessantes modificações e mudanças oriundas das relações políticas e sociais, o Estado como legislador, executor e aplicador têm o dever e a obrigação moral de contribuir ilimitada e irrestritamente com a sociedade para assegurar e garantir-lhe uma ação jurídica, moralista, política e social, porque deve conceder e conferir ao indivíduo a participação política ao pleno exercício da cidadania, divulgando e revelando-se a verdadeira condição de expressão do exercício dos poderes políticos e sociais do cidadão frente ao Estado (Poder Público).

O Brasil, a partir da promulgação da Constituição de 1988, constitui-se em Estado democrático de direito baseado na cidadania e dignidade da pessoa humana (II e III, art. 1º). Por isso, a cidadania, em Direito, é a condição da pessoa natural que, como indivíduo (membro) de um Estado, encontra-se no gozo dos direitos que lhe permite participar direta ou indiretamente da vida política e social, enquanto, cidadão, a pessoa que têm direitos e deveres a exercê-los ativa e passaviamente na sociedade em que vive. Cidadania é o exercício das conquistas desses direitos e dos cumprimentos dos deveres em um campo político e social em permanente construção em que o cidadão (indívudo nacional) participa direta e indiretamente como integrante da coletividade. Portanto, ser cidadão é respeitar e participar das decisões da sociedade para melhorar sua vida e a de outras pessoas.

Neste aspecto, a cidadania se torna o conjunto de direitos e deveres que regem a vida e o modo de atuação do cidadão na sociedade, pela qual este cidadão possa exercer o seu papel basilar e fundamental na conservação, desenvolvimento e preservação da sociedade e, diuturnamente batalhar e lutar por melhores garantias (prerrogativas) tantos individuais quantos coletivas, por direitos essenciais, tais como: direito à vida; às liberdades em gerais, ética e moralmente; à propriedade; à segurança; à igualdade; à fraternidade e solidariedade; a todos os valores civis, éticos, filosóficos, morais, políticos e sociais que possam equilibrar a vida em sociedade.

A cidadania é entendida como a capacidade de o indivíduo - cidadão nacional exercer seus direitos políticos e sociais e a forma constitucional para o exercício de certos direitos e prerrogativas: propositura de ação popular (LXXIII, art. 5º), oferecimento de projeto de lei popular (III, art. 14; §4º, art. 27; XIII, art. 29; § 3º, art. 32), iniciativa popular de lei (§2º, art. 61),

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denúncia direta ao Tribunal de Contas da União – TCU (§2º, art. 74), dentre outros.

Pode-se, clara e plenamente, concluir que a cidadania é compreendida como pressuposto da justiça e da paz social no que se refere ao conjunto dos direitos políticos e sociais de que goza um indivíduo (cidadão) e que lhe permite intervir na direção dos negócios públicos do Estado (Ente Público) a participar de modo direto ou indireto na formação da administração da governabilidade, quer ao votar (direto) e quer ao concorrer (disputar) a cargo público (indireto).

A nacionalidade é pressuposto da cidadania, pois ser nacional de um Estado é condição primordial para o exercício dos direitos políticos e sociais do país (nação). Deste modo, ser cidadão e ter cidadania, para se ter esta é participar dos interesses, no caso, por exemplo, de seu País (Brasil), de seu Estado (Tocantins) e de seu Município (Palmas).

No Brasil, os direitos políticos são regulados pela nossa Constituição Federal especialmente em seu art. 14, que estabelece como princípio da participação na vida política nacional o sufrágio universal que consiste na extensão do sufrágio ou no direito de voto e de ser votado a todos os cidadãos (indivíduos) considerados intelectualmente capazes (em geral aos adultos).

Porém no Brasil tantos os adultos quantos os adolescentes acima de 16 anos têm direito ao voto, sem distinção de crença ou convicção filosófica, política e religiosa; raça e cor; sexo e sua opção sexual; língua e sua ideologia; origem nacional ou social; outra natureza ou qualquer outra condição que não atenta contra direitos e interesses da coletividade ou invocar condição para eximir-se de obrigação constitucional e legal imposta a todos os cidadãos e ainda e recusar-se a cumprir prestação alternativa determina por lei.

A dignidade é fundamental e primordialmente um atributo da pessoa como Ser Humano: simploriamente por ‘ser’ humana, toda e qualquer pessoa merece todo direito e garantia de ser resguardada e respeitada, independentemente de sua origem nacional ou social, língua e sua ideologia; raça e cor; sexo e sua opção; idade e posição social; estado civil, condição social e econômica; crença ou convicção filosófica, política e religiosa.

Nesse sentido, o conceito de dignidade da pessoa humana não pode ser relativizado à pessoa humana, enquanto ser humano, porque não perde sua dignidade quer por suas deficiências físicas ou psicológicas, quer mesmo por seus desvios éticos e morais. Deve-se neste último caso, distinguir entre a violação da norma penal (crime) e a pessoa do delinqüente (criminoso). O

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crime deve ser punido e sancionado rigorosa e severamente, enquanto à pessoa infratora de regra penal (criminoso) deve ser tratada, sem distinção ou restrição de qualquer condição ou natureza (espécie) com respeito, até no cumprimento da pena (sanção) a que estiver sujeito ou que lhe for imposta.

Por exemplo, se o próprio delinqüente deve ser tratado com respeito em face da dignidade da pessoa humana, quanto mais à vida do inocente. Assim, todos, mesmo às pessoas tidas como criminosas de alta periculosidade, são iguais perante a lei e em dignidade, haja vista serem reconhecidas como ser humano ainda mais que não se porta de forma contrária ao ordenamento ético, moral e penal nas relações com seus semelhantes.

A dignidade da pessoa humana engloba necessariamente proteção e respeito da integridade física e psíquica (emocional e moral) em geral da pessoa, em face do que decorre, a proibição de pena bárbara, cruel, difamante, degradante e tortura, sobretudo, de pena de capital (morte), e, ainda da aplicação de penas corporais com a utilização da pessoa para experiências científicas.

Neste aspecto a dignidade é um valor ético, espiritual e moral inerente à pessoa, ou seja, todo ser humano é dotado deste preceito, o qual se constitui como princípio supremo do Estado democrático de direito. A dignidade é qualidade integrante e irrenunciável da condição humana, acima de tudo, esta deve ser assegurada, garantida, promovida, protegida, reconhecida, resguardada e respeitada. Não é criada e não deve ser concebida e concedida pelo ordenamento jurídico, motivo por que não pode ser desconsiderada e retirada, porém é inerente a cada ser humano, por expressar seu valor absoluto e à sua dignidade, mesmo quando à pessoa cometer ações consideradas indignas e infames.

Todavia, cada sociedade civilizada tem suas próprias convenções e padrões a respeito do que se constitua atentado à dignidade da pessoa humana. Assim, a dignidade da pessoa pode ceder em face de valores éticos, econômicos, filosóficos, morais, políticos, religiosos e sociais mais relevantes, designadamente quando o intuito for o de resguardar ou salvaguardar a vida e a dignidade pessoal dos demais integrantes de determinada comunidade ou sociedade.

Por estas considerações, entendo que a dignidade da pessoa humana é a consciência de que o valor da pessoa humana, enquanto Ser Humano é insuperável, irrenunciável e inalienável. Nesta direção à doutrina considera a dignidade da pessoa humana como um sobreprincípio (superprincípio), por prevalência dos direitos humanos, porque se centra na importância atual

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dos direitos humanos no contexto universal, em vista a cláusula encontrável nos estatutos e regramentos das organizações internacionais reproduzida no ordenamento constitucional brasileiro em vigor.

Assim, foi definida pelo nosso constituinte como fundamento da República Federativa do Brasil (III, art. 1º), inclusive o constitucionalista PEDRO LENZA (2010, p. 745), considera o princípio da dignidade da pessoa humana como princípio-matriz de todos os direitos básicos e fundamentais. De maneira a erguer, sob a tutela do princípio da dignidade, um sistema de direitos e garantias que viabiliza a formação da esfera de desenvolvimento da pessoa humana.

Pela ótica advinda da experiência nazista que gerou a consciência universal de que se devia assegurar, garantir, manter, preservar, resguardar e respeitar a qualquer custo, a dignidade da pessoa humana, como uma conquista de valor ético-jurídico intangível, por ser considerada e equiparada a um direito inalienável, sagrado e máximo. Neste sentido afirma o mestre PAULO OTERO (2003, p. 254) que a dignidade da pessoa humana é um direito:

"dotado de uma natureza sagrada e de direitos inalienáveis, afirma-se como valor irrenunciável e cimeiro de todo o modelo constitucional, servindo de fundamento do próprio sistema jurídico: O Homem e a sua dignidade são a razão de ser da sociedade, do Estado e do Direito".

A dignidade, por conseguinte, é um atributo humano criado e sentido pelo homem e por ele desenvolvido e estudado, existindo desde os primórdios da humanidade.

O poder constituinte do povo exige sempre uma perspectiva ativa na conquista de direitos, com o resgate vivo da memória das mobilizações e da participação popular no processo político.

As grandes questões do futuro de nossa sociedade e do caráter do nosso Estado servem de referência para o exame das obstruções das normas programáticas da Constituição.

Nesse movimento de avaliação do processo compreendido de 1988 a 2010 cabe o resgate dos fundamentos constituintes da luta pela democratização como processo de transformação radical dos nossos territórios de desigualdades. Resgatar a dimensão e a consciência do poder da cidadania na ótica das grandes maiorias depende do reconhecimento e efetivação dos direitos de todos e todas.

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O DIREITO NATURAL

O primeiro elemento visível na desobediência civil é a idéia de Direito Natural, isto é, idéia de que acima das leis materializadas e positivas estabelecidas pelo Estado, existe um direito que serve de modelo e de parâmetro às leis humanas. Esse conceito teve origem na Grécia e evolui com a história humana. Isso porque a concepção de Direito Natural se confunde com a própria noção de justiça.

Mais do que uma idéia, os direitos naturais pertencem ao homem pelo fato de ser uma pessoa humana. Por isso, são conhecidos como direitos do homem ou direitos personalíssimos, absolutos, imprescritíveis, inatos, originários, direitos essenciais da pessoa: vida, liberdade, honra, direito de defesa, direito de existência, direito de associação, etc. Direitos que, em sua maioria, constam das constituições dos Estados Democráticos, reunidos nos tópicos que tratam das liberdades fundamentais do homem e do cidadão, conforme constam das Constituições e Declarações de Direitos.

Na Grécia, a idéia de Direito natural aparece na peça Antígona (de Sófocres) que conta a história de Creonte, rei de Tebas que proibiu Antígona de enterrar seu irmão Polinice que empunhara armas contra a pátria. Antígona tenta dar sepultura ao irmão e fora presa em flagrante e condenada à morte. Justificou sua conduta em nome das leis eternas dos deuses, "que não são de ontem nem de hoje" e que estão acima das leis injustas do Estado.

A ação de Antígona é citada pelos defensores do direito natural que usam a peça para mostrar o eterno conflito entre a consciência individual e a razão de Estado. Nesse sentido, Sófocles demonstrou que a consciência humana predomina sobre qualquer lei iníqua do Estado.

É importante citar ainda que o direito natural tenha a sua concepção apoiada sobre as mais diversas bases: originário de Deus (direito natural teológico) durante o absolutismo, de um contrato social (contratualismo) em que os homens convencionaram formar uma sociedade fraterna, justa e solidária.

Inclusive Cícero, em uma passagem do terceiro livro de sua obra República fala sobre o direito natural, dizendo que existe uma verdadeira lei, a reta razão congruente com a natureza, que se estendem a todos os homens e é constante e eterna. Seus mandamentos chamam ao dever e suas proibições afastam do mal. Não ordena e não proíbe em vão aos homens bons, não influi nos maus.

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Para Cícero, não é lícito tratar de modificar esta lei e não é permitido revogá-la parcialmente, é impossível anulá-la por inteiro. O senado e o povo não podem excluir o cumprimento, bem como não há se requer ninguém que a explique ou interprete. Não é uma em Roma e outra em Atenas, uma agora e outra depois, senão uma lei única, eterna e imutável, que obrigam a todos os homens e para todos os tempos: existe um mestre e governante comum de todos, Deus que é o autor, intérprete e juiz dessa lei e que impõe seu cumprimento. Quem não obedece foge de si mesmo e de sua natureza de homem, por isso se faz merecedor das penas máximas, embora escape aos diversos suplícios comumente considerados como tais.

Portanto, observa-se que o homem nunca se conformou em reconhecer que a lei tem um caráter puramente estatal, independente de um conteúdo ético, filosófico, moral, político, religiosa e social, pois há um direito, acima do direito positivo que caminha com a espécie humana e está presente em todas as sociedades, inclusive nas mais rudimentares.

Exemplo de aplicação da idéia de Direito Natural foi o julgamento de Nuremberg pelas leis positivas não havia base legal para processar vencido em uma guerra. Mas as ações nazistas derivavam de um sistema normativo que havia sido aprovado por legisladores, isto é, era um sistema legal válido. Tudo estava previsto na legislação. Porém, o que se violou não foi o direito positivo do Estado alemão, mas o direito natural que acompanha a espécie humana e paira sobre o Estado.

No ensaio da desobediência civil restou evidenciado o apelo de HENRY THOREAU (2002, p. 323) ao Direito Natural, principalmente quando diz:

“Será que o cidadão deve desistir de sua consciência, mesmo por um único instante ou em última instância, e se dobrar ao legislador? Por que então estará cada pessoa dotada de uma consciência? Em minha opinião, devemos ser primeiramente homens, e só posteriormente súditos. Cultivar o respeito às leis não é desejável no mesmo plano do respeito aos direitos. A única obrigação que tenho direito de assumir é fazer a qualquer momento aquilo que julgo certo”.

HENRY THOREAU (2002, P. 345) se refere ao Direito Natural quando afirma:

“O progresso de uma monarquia absoluta para uma monarquia constitucional, e desta para uma democracia, é um progresso no sentido do verdadeiro respeito pelo indivíduo. Será que a democracia tal como a conhece é o último aperfeiçoamento possível em termos de

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construir governos? Não será possível dar um passo a mais no sentido de reconhecer e organizar os direitos do homem? Nunca haverá um Estado realmente livre e esclarecido até que ele venha a reconhecer no indivíduo um poder maior e independente - do qual a organização política deriva o seu próprio poder e a sua própria autoridade - e até que o indivíduo venha a receber um tratamento correspondente”.

No caso para THOREAU a questão do Direito Natural assume uma posição interessante porque a revolução americana foi estruturada e desenvolvida sobre a idéia de Direito Natural. Uma prova disso, de acordo com LOPES (2000, p. 206) é o texto da Declaração de Independência das Treze Colônias de 1776 que diz:

“Quando ao longo dos eventos humanos torna-se necessário que um povo dissolva os laços políticos que o ligavam a outro e que assuma, entre as potências da terra, o estado de igualdade e separação que as Leis da Natureza e o Deus da Natureza lhe concedem, um respeito honesto às opiniões da humanidade exige que declare as causas que o impelem à separação. […] Sustentamos que estas verdades são evidentes, que todos os homens foram criados iguais, que foram dotados por seu Criador de certos Direitos inalienáveis, que entre eles estão a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade. Que para garantir tais direitos são constituídos governos entre os homens, cujos justos poderes derivam do consentimento dos governados. Que toda vez que qualquer forma de governo torna-se destrutiva de tais fins, é direito do povo alterá-lo ou aboli-lo e instituir novo governo, fundando-o em princípios tais e organizando-o, e a seus poderes, de tal forma que lhe pareça mais adequada para a efetivação de sua segurança e felicidade. A prudência, com efeito, dita que governos estabelecidos por longo tempo não devem ser mudados por causas passageiras e levianas; da mesma maneira, toda experiência demonstra que os homens estão mais dispostos a sofrer, enquanto os males forem suportáveis, do que corrigi-los abolindo as formas às quais se acostumaram. Quando, porém, um longo cortejo de abusos e usurpações, perseguindo invariavelmente o mesmo objetivo, evidencia o propósito de submetê-los a um despotismo absoluto, é seu direito, é seu dever, desfazer-se de tal governo e providenciar novos guardiões para sua segurança. […]”.

De acordo com LOPES (2000, p. 206) essas palavras de Thomas Jefferson, na Declaração de Independência é um exemplo da filosofia do Direito Natural moderno incorporada ao discurso político-jurídico. Nela se

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encontram praticamente todos os elementos da teoria, curiosamente distingue-se por não incluir nos direitos fundamentais a propriedade, mas a busca da felicidade. De qualquer modo, esse texto do final do século XVIII é fruto do jusnaturalismo5 do século XVII.

No texto da Declaração Americana é importante prestar atenção nos seguintes pontos: 1- Todos os homens foram criados iguais e foram dotados por seu Criador de certos Direitos inalienáveis, que entre eles estão a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade; 2- Os poderes dos governos constituídos derivam do consentimento dos governados; 3- Quando a forma de governo torna-se destrutiva é direito do povo alterá-lo ou aboli-lo e instituir novo governo; 4- Governos estabelecidos por longo tempo não devem ser mudados por causas passageiras e levianas; 5- Diante de abusos, usurpações e despotismo absoluto, é direito e dever do cidadão desfazer-se de tal governo e providenciar novos guardiões para sua segurança.

No primeiro ponto enunciam-se, com todas as linhas, os princípios do Direito Natural que retira do Estado à capacidade de anular ou revogar as normas que são partes integrantes da condição humana: vida, liberdade e busca da felicidade. O segundo ponto submete o governo ao poder dos governados. O terceiro ponto autoriza o povo a modificar o governo quando ele se torna nocivo à população. Certamente, a nocividade do governo deve ser constante e não um fato isolado, conforme o conteúdo do quarto item. É direito e dever dos cidadãos, resistirem e modificar os governos injustos.

Portanto, a violação de um Direito Natural do homem por parte do Estado e de suas autoridades, justifica, fundamenta e catalisa o direito de resistência dos indivíduos a esses atos. Inclusive, o próprio direito de resistência às injustiças constitui um Direito Natural do homem.

A DESOBEDIÊNCIA CIVIL COMO ELEMENTO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

O conceito de Estado de Direito nasceu em oposição ao Estado em que o poder era exercido com base unicamente na vontade do monarca. Para impor limites a este governo de insegurança, surgiu na Inglaterra a doutrina, com a qual o rei governaria, de acordo com as leis, comprometendo-se a cumpri-las. Assim, instituiu-se o Estado de Direito, porém houve distorção deste conceito.

Como conseqüência passou-se a entender que o Estado de Direito seria o governo a partir das leis, mas de qualquer lei. Para renovar o

5É a corrente de pensamento que reúne todas as ideologias que surgiram no decorrer da história em torno do direito natural.

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conceito, foi incorporada a noção de ‘Democrático’, em função de que não bastavam leis, mas era imprescindível que as normas jurídicas tivessem conteúdo democrático, isto é, que realmente realizassem o ideal de governo a partir do poder do povo, em nome do povo e para o povo.

A letra da lei torna-se morta quando a democracia perde os desafios do poder constituinte, da soberania popular, da cidadania e da dignidade da pessoa humana.

A Democracia para ARISTÓTELES era “a pior das formas boas, mas a melhor entre as variedades más”. É atualmente o regime vigente na maioria dos países do mundo, mas é bom ressaltar que este regime não é um modelo único, pois sofre adaptações e variações em sua essência, de acordo com cada nação. Se utilizarmos de um dos instrumentos da Antropologia Moderna: a observação participativa descobrir-se-ia o porquê da necessidade de adaptação e variação do regime democrático a cada característica de cada país.

Democracia é o regime político em que todo o poder emana da vontade popular. Essencialmente na definição clássica democracia é o “governo do povo, pelo povo e para o povo”. No Brasil a democracia é semi-direta considerada representativa com alguns instrumentos da participação direta do povo nas decisões (parágrafo único, art. 1º, CRFB/1988).

A igualdade e a liberdade é um traço característico deste regime, mas como ser ao mesmo tempo iguais e livres em uma sociedade de notáveis diversidades?

O que seria mais válido a liberdade ou a igualdade? Fazendo esta introspecção lembramo-nos de uma celebre frase “minha liberdade vai até onde começa a do outro”. A igualdade estaria intrinsecamente ligada à liberdade, ou seja, sem uma não se alcançaria outra. Como colocar isto em prática? Na evolução da sociedade o Homem chegou ao que se conhece como Direito, que seria uma ciência onde a ordem é instituída através de leis que determinariam o que fazer ou não fazer, buscando com isto proteger direitos considerados importantes e levando, em princípio, a uma igualdade legal.

Como seria o exercício efetivo do governo do povo. Idealizado por ROUSSEAU este governo seria de forma direta, mas na prática isto seria impossível de se conseguir. Como reunir toda uma população para decidir os rumos de sua Nação? Conseguiríamos um consenso? Teve que se adaptar para chegar à forma da democracia representativa, isto é, a população de forma livre, em tese, elegeria alguns indivíduos dos seus para defender e

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representar seus direitos, isto concederia legitimidade, que é outro delineamento da democracia, às leis vigentes em determinado país.

A sociedade evolui e transforma-se, cada vez mais rápida é essa evolução e transformação. As alterações ou modificações necessárias no ordenamento jurídico para acompanhar o surgimento de novas necessidades, ocorrem de maneira branda e morosa, muitas vezes, para se conseguir um novo direito ou adequação de algum já vigente, necessário se torna o surgimento de movimentos dentro da sociedade, geralmente comandados por uma minoria, movimentos estes denominados de ‘Desobediência Civil’.

Estes movimentos, diferentemente de outras épocas e por vivermos em um mundo globalizado e totalmente informatizado, ultrapassam as fronteiras dos países. Hoje, as relações internacionais principalmente as de cunho público, são direcionadas pela Declaração dos Direitos Humanos. Esta declaração foi um conjunto mundial de mobilizações pela defesa de direitos que se entendiam inerentes a todo ser humano em qualquer localidade do mundo.

O Brasil é conhecido e considerado por muitos, por ter uma Constituição denominada “cidadã”, por expressamente assegurar inúmeros direitos e garantias à população brasileira, bem como aos estrangeiros que residem ou que estiverem no território nacional.

Explicitamente prevê a Constituição que, “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes”. Neste ponto, o cidadão se depara com o Brasil no papel que margeia a perfeição. Mas o Brasil real está lotado de indivíduos que não cumpre as leis, especialmente os políticos.

Os direitos constitucionais regulamentados que visariam uma vida mais dignificada ao povo brasileiro não são cumpridos pelo Estado ou ainda não foram apesar de se ter mais de 22 anos de sua promulgação. Os constituintes, com certeza, antevendo esta realidade consignaram no texto constitucional a obrigação do Supremo Tribunal Federal ser o “guardião” da Constituição. Compreendo e entendo que tem obrigatoriamente, o dever de diligenciar e zelar pelo fiel cumprimento de suas disposições. Mas na prática isto não está acontecendo, sob a justificativa do Supremo Tribunal Federal de que não tem a função de legislar, mas vários operadores de direito e outras correntes dizem que o maior problema da Suprema Corte do Judiciário brasileiro é a interferência política, devido ao critério de escolher os seus Ministros, os quais são escolhidos pelo Poder Executivo a nível nacional, Presidente da República.

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Já fora dito anteriormente que o ordenamento jurídico brasileiro, dentre outras funções, objetiva e visa à igualdade legal. Como proceder se tem leis infraconstitucionais que estão vigentes e violam flagrantemente alguns princípios constitucionais? Seriam, algumas leis ultrapassadas, como: Código Comercial de 1850, Código Penal Brasileiro de 1940, Lei das Contravenções Penais de 1941 ou mesmo novo Código Civil (Lei 10.406, de 10.1.2002) que para muitos doutrinadores já nasceu decadente e velho, devido primordialmente à evolução tecnológica, por não trata de matérias de interesses atuais.

Atualmente vem se fortalecendo a constitucionalização das leis brasileiras, porque o que se pretende é que todo regramento jurídico se passe pelo crivo constitucional para que as novas leis busquem uma interpretação à luz da Lei Maior e seja deixada de lado a incômoda, expressão de verdade que, na grande maioria, as nossas leis são inconstitucionais.

A importância e a indispensabilidade de que se tratam as normas jurídicas é para evitarem as leis injustas, como bem lecionou MONTESQUIEU em seu livro O Espírito das Leis, “Tal é o efeito das más leis, que é preciso fazer leis ainda piores para conter o mal das primeiras”. Entendo, sem margem para dúvida, de que este movimento é uma maneira de desobediência civil, isto é, devido ao desgosto e insatisfação geral, porque a sociedade brasileira está diante da necessidade premente de mudanças jurídicas para conduzir e direcionar a população a efetivação de seus direitos.

Não é que o cidadão deva necessariamente não cumprir determinada lei, ou seja, desobedecer à lei, simplesmente por desobedecer. Muitas vezes quando as cumpre é que consegue demonstrar a todos o quanto a lei ou a norma jurídica é injusta e até imoral. HENRY THOREAU insistentemente dizia “Sob um governo que aprisiona alguém injustamente, o verdadeiro lugar do homem justo é na prisão”.

Embora alguns expressem que a desobediência civil é ilegal por afrontar as leis, digo-lhe, convictamente de que isso não procede. O próprio paradigma democrático, em face de sua construção é perfeitamente válida como instrumento para se conseguir as mudanças na democracia. Nossa própria Constituição assegura, sem limitação ou restrição, direito de manifestar o pensamento (IV, art. 5º), inclusive no inciso V garante, “[...] direito de resposta, proporcional ao agravo, além de indenização [..]”. Segundo a Constituição Federal, o cidadão tem o direito de pelo menos, se manifestar em relação à determinada lei que considerar inadequada ou inapropriada a sociedade civil e até de pleitear indenização por danos

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decorrentes desta norma jurídica, porque o Estado é parte responsável tanto quanto qualquer cidadão comum.

Não pode esquecer-se de que a liberdade é um direito básico indispensável e também é um dos pilares da democracia. No caso brasileiro, o poder emana do povo e também o cidadão está ligado a um estado democrático de direito. O cidadão pode e deve utilizar desta liberdade para não concordar ou comungar com determinadas normas jurídicas, criadas, editadas e sancionadas por nossos representantes políticos. É necessário que se dêem legitimidade ao ordenamento jurídico, ou seja, aceitar, apoiar e concordar com as leis com fim útil não só a um, mas a todos os cidadãos.

É importante fazer este aditivo. Parafraseando o Professor André Azevedo da Fonseca quando da Mesa Redonda realizada no dia 2 de setembro de 2008 no Anfiteatro da Biblioteca da Universidade de Uberaba, sob o tema específico do Ativismo Midiático, disse uma frase que talvez resuma bem a questão complexa da desobediência civil no Brasil: “[...] o povo brasileiro é desobediente [...]”, não civilmente desobediente.

O brasileiro, até por uma questão natural, tem o costume de interpretar às leis aos seus interesses, quer econômicos, financeiros e até mesmo pessoais. Neste aspecto, a sociedade brasileira enfrenta um grave problema, a falta de consciência cidadã. A cidadania, conseqüência do regime democrático, não é somente ter deveres e direitos, mas principalmente participar da elaboração e discussão das leis como também combater, erguer-se e lutar pela aplicação das normas jurídicas para dar-lhes sentido de sua edição e sancionamento. A lei tem uma valiosa ligação em relação à desobediência civil, pois quando se luta contra um poder constituído, legal ou político, o que se deve visar é o interesse da maioria (coletividade) e não da minoria. A democracia é o regime da maioria, não da minoria ou dos interesses pessoais e políticos deste grupo social.

Isto não deixa de ser paradoxal. Como combater ou lutar para alterar ou modificar, por exemplo, uma lei que está causando prejuízos à grande parte da população, se a própria população, às vezes, se utiliza desta norma jurídica quando a mesma a favorece, mesmo que prejudicando os outros, outra enorme parte da população.

Aprender a obedecer talvez seja o início e somente se consegue com a educação e a conscientização, buscando oferecer, propiciar e proporcionar a população valores e virtudes éticas e morais para que, os membros da sociedade possam decidir-se por qual caminho deva seguir.

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O brasileiro tem que se sentir parte, essencial e fundamental no processo de construção de nosso modelo democrático, só assim, terá condições de se propor uma desobediência civil como verdadeiro instrumento de defesa do ser humano contra o abuso de poder, a arbitrariedade, a opressão, a tirania e etc., porque este instituto é um ato político e também é benefício a todos, observando-se restritivamente o respeito à liberdade alheia.

Os fundamentos da República Federativa do Brasil que se constitui em Estado Democrático de Direito, são os alicerces e as bases ideológicas sobre as quais está erigida a vigente ordem constitucional brasileira: soberania, cidadania e dignidade da pessoa humana. Essa soberania não se trata da soberania do Estado brasileiro, entendida como poder supremo dentro dos limites territoriais do Brasil, mas da soberania popular, isto é, o reconhecimento de que a origem de todo o Poder da República Federativa do Brasil é o seu povo e que toda a estrutura do Estado dada pela Constituição foi formada por este princípio.

Com isso, constituir-se em Estado Democrático de Direito é assegurar ao cidadão a “liberdade plena”, que além de exercitar seus direitos, por ter em suas mãos os recursos que se podem empregar para conseguir seus objetivos, no caso a resistência ao exercício exagerado de poder (opressão, tirania) destes direitos.

Nasce o exercício da “Desobediência Civil” que se mostra como elemento integrante à disposição da cidadania, tendo como finalidade principal à proteção de garantias e prerrogativas inerentes à cidadania pela sua anulação ou revogação.

Nesse ponto, ressalta o entendimento da Professora GARCIA (1994), a respeito da desobediência civil:

“[...] uma das formas particulares de resistência ou contraposição, ativa ou passiva do cidadão, à lei ou ato de autoridade, quando ofensivos à ordem constitucional ou aos direitos e garantias fundamentais, objetivando a proteção das prerrogativas inerentes à cidadania, pela sua revogação ou anulação [...]”.

A desobediência civil se constitui como uma modalidade característica e especifica de em um instrumento e objeto democrático para a defesa do indivíduo (cidadão) ou das minorias como também para a defesa da coletividade contra o poder dominante (governo opressor, tirano), as injustiças, a opressão e a tirania.

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A desobediência civil como modalidade específica do exercício do direito de resistência, embora ainda não possua ou tenha uma previsão normativa expressa (regramento jurídico), mas se perfaz como instrumento idôneo à participação popular na res pública, na medida em que objetiva a proteção das garantias e prerrogativas inerentes à cidadania. Ante a falibilidade estatal em atender as intenções sociais legítimas para banir e desprezar a imensa parcela da população à marginalidade do processo político decisório, assim erguem e levantam reclamações e reivindicações que visam à concreção e viabilização de medidas satisfatórias destes anseios.

Nesse aspecto, faz-se necessária e obrigatória seja reconhecida a legitimidade desta ação social, a qual exercida com disciplina, não-violência, ordem e pacífica, incontestável e indiscutivelmente entendo-a como legítimo direito de petição que afasta a caracterização de eventual ou possível delito, por meio da ausência de um de seus predicados, qual seja a culpabilidade.

De acordo com MARIA GARCIA em seu livro Desobediência Civil define a desobediência civil, como uma das formas particulares de resistência ou contraposição ativa e passiva do cidadão, à lei ou ato de autoridade, quando ofensivos à ordem constitucional ou aos direitos e garantias fundamentais, objetivando a proteção das prerrogativas inerentes à cidadania pela sua revogação ou anulação.

A desobediência civil é legítima, pois se encontra inserida no próprio conceito de cidadania como afirmado por HANNAH ARENDT, é o direito a ter direito. Tendo como pontos basilares o modelo federativo de Estado e o exercício democrático do governo pelo Estado, que é de Direito, conforme proclama a Constituição. Como Estado Democrático de Direito implica em uma República que se constitui em Estado (não é constituída pelo Estado - ainda que Democrático de Direito, conforme lembra Garcia), o faz pela afirmação da cidadania como um dos seus fundamentos.

Se o cidadão é que constitui o Estado civil, pode o indivíduo contestar sua legitimidade por meio de um direito que tem constante não de uma norma meramente exposta no artigo 5º e seus incisos, mas na abertura colocada no § 2º do mencionado artigo. Existe uma cavidade constitucional para a desobediência civil: este é seu fundamento, a cidadania.

A desobediência civil é indispensável e necessária, por outro lado, é em sua possível existência no quadro político-social brasileiro que se procederá a uma autêntica horizontalização do contrato social. Mais do que isso: é através do consenso real e factual que inclui o dissenso trazido pela desobediência civil que se pode caminhar para uma autêntica possibilidade

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democrática a despeito da cultura brasileira, legatária de instituições sociais agressivas e inimigas aos princípios democráticos reais.

A cultura é dinâmica e as possibilidades democráticas abertas pela Constituição Federal Brasileira devem ser levadas até uma facticidade plena, sob pena de se tornar mais uma enésima forma de se propor mudanças, através de remédios pretensamente eficazes para todos os males jurídicos, de leis sem eficácia alguma e que servem somente com orientações vagamente piedosas, o que até parece estar se sucedendo desde os tempos do Império.

Defende-se o reconhecimento de uma hipótese de causa supra legal. Causa supra legal é entendida como aquela não prevista em lei, mas que exclui a ilicitude, ou seja, é a conduta que não caracteriza um crime, porém esta conduta deve ser aceita pela sociedade, de exclusão daquele elemento normativo, pautada preliminarmente na inexigibilidade de conduta diversa que consiste em uma condição genérica em virtude da qual não pode a sociedade reprovar a conduta do indivíduo (cidadão).

Circunstâncias desfavoráveis não o permitem conhecer o injusto e/ou proceder de acordo com sua vontade. Devem, para tanto, serem observados certos requisitos, tais como: a defesa de prerrogativas inerentes à cidadania, ou seja, na proteção de direitos fundamentais; a finalidade do ato seja mais inovadora que destruidora; e, finalmente, que o dano perpetrado não seja relevante.

Inegável que a Desobediência Civil enquanto instrumento de garantia de liberdade do indivíduo tanto revela uma íntima ligação com o aspecto social, como de fato vem a possibilitar o uso do direito ao exercício da cidadania, sem que se descaracterize o elemento individual inerente a todo cidadão.

Mormente, o exercício de tais garantias não só impõe limites ao poder Estatal, como torna propício que o indivíduo venha a proferir julgamento a respeito das ações governamentais adotadas pelo Estado, o que reforça a idéia de que na desobediência civil estaria segundo NELSON (2000) o “embrião da força da opinião pública”.

Via de conseqüência, refletir sobre a Desobediência Civil, nos remete à aproximação do que ‘seria para o indivíduo’ uma lei razoavelmente justa ou injusta, especificamente em relação aos juízos de ponderação da ética, moral e justiça.

A questão que se coloca como premissa fundamental para uma breve análise é o fato da possibilidade de resistência (desobediência) do cidadão,

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sempre que houver descumprimento das liberdades conferidas pela lei, o que significaria a coexistência do sentimento de justiça adotado pela sociedade contemporânea com o do próprio ordenamento jurídico (Estado).

Tem-se assim que, o indivíduo virá a apreciar a justiça da legislação e da política social, decidindo sobre as soluções constitucionais de um modo justo e razoável.

A questão se torna um pouco mais tormentosa, uma porque, a Desobediência Civil não se encontra expressa na Constituição Federal de 1988, de outro, também possa encontrar seus limites na própria norma constitucional, especialmente quando da interpretação da disposição contida no § 2º, do artigo 5º do diploma constitucional brasileiro.

Segundo THOREAU: “Existem leis injustas; devemos submeter-nos a elas e cumpri-las, ou devemos tentar emendá-las e obedecer a elas até a sua reforma, ou devemos transgredi-las imediatamente?”.

De fato, consoante a doutrina acima, a desobediência civil pode encontrar limites impostos pela própria lei. Logicamente a liberdade é definida, determinada e estabelecida pela estrutura institucional, enquanto sistemas de regramentos públicos que define deveres (obrigações) e direitos, não se devem permitir aos sujeitos (indivíduos) fazer ou não algo, mas também o Estado e as outras pessoas têm o dever ético, jurídico, moral, político e social de não obstruir a sua ação.

Neste desiderato de contraposições entre as liberdades públicas e individuais e o modelo normativo político constitucional nacional de definição de direitos (garantias e prerrogativas individuais e coletivas), deveres surgem algumas questões que ainda não se encontram pacificadas.

Sem sombra de dúvidas, o instituto da Desobediência Civil, apresenta extrema relevância à medida que vem a elevar o ‘indivíduo-cidadão’ como membro que participa das transformações do Estado Moderno, o fazendo por razões de consciência, de forma a reafirmar os direitos conferidos ao próprio cidadão pelo poder estatal.

Em que pese à desobediência civil parecer distante da realidade jurídica e política brasileira. Creio que com as nuances e transformações da sociedade contemporânea, se torna relevante a análise frente aos direitos basilares e fundamentais conferidos na Constituição da República de 1988, em contraposição à possibilidade de ser efetivada a desobediência civil pelo cidadão nacional.

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Acredita-se assim que somente, conforme MIGUEL REALE, “a ação desobediente”, aplicada através de métodos não-violentos, seria eficaz para provocar mudança social.

Se considerarmos a desobediência civil como instituto não materializado ou positivado na nossa atual Constituição, surge à relevante controvérsia acerca da possibilidade de como o seu exercício possa vir a ser efetivado pelo cidadão brasileiro?

Por outro, a desobediência civil poderá ser considerada como fenômeno social, necessário para as mudanças na lei e na sociedade? A sociedade democrática brasileira seria tolerante a efetivação desse exercício?

Como poderia o cidadão contestar, contradizer, impugnar e negar uma lei, considerada ou não injusta contra um sistema eleito pelo próprio indivíduo? Quais as razões éticas, morais, políticas e sociais que estariam inseridas como um marco - norte para justificarmos o exercício da desobediência civil, sob pena de atar e engessar o próprio sistema jurídico?

Com estas indagações e investigações e tantas outras, das quais não se consignou e mencionou aqui, não tem o objetivo de esgotar a discussão da presente reflexão, mas tem como objetivo o auxílio da adequada e apropriada compreensão deste instituto da desobediência civil na sociedade brasileira.

Apesar deste instrumento doutrinário não se encontrar expresso em nosso ordenamento jurídico pátrio, mormente com base nas indagações acima, resta convicto e posso dizer que, a desobediência civil poderá ser exercida no regramento jurídico nacional, data vênia às vozes doutrinárias contrárias a respeito do instituto, à medida para que se possa dar consecução ao preceito constitucional previsto no § 2º do artigo 5º da Constituição Federal, na qual encontra sua base e fundamento tanto na igualdade material quanto na proteção ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Igualmente, a desobediência civil se mostra como um instrumento de concretização constitucional e mesmo que não se encontra como previsão expressa na Constituição da República de 1988, é perfeitamente legítima e se limita ao cumprimento efetivo desta Constituição, além de ser extremamente necessária enquanto fenômeno social do Estado Democrático de Direito.

Surge a necessidade de se reforçar que no âmbito do Direito Civil, o reconhecimento de que a lei e demais atos legais, estão sujeitos a transformações, cujas mudanças são frutos da ocorrência de determinados

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fatos e valores de relevância e magnitude. A verdade é que tais transformações podem trazer como resultado o aperfeiçoamento das instituições políticas, como também possam gerar conseqüências negativas, as quais se revelam na prática como abuso de poder econômico e político como também tem acontecido com freqüência no Brasil, por exemplo: escândalo do mensalão, escândalo do elevado salários e diárias pagas a servidores e senadores, corrupção do Governo do Distrito Federal e etc.

Nesse sentido, com base nas constantes mudanças advindas das relações políticas e sociais, o Estado não só é obrigado a contribuir com a sociedade para assegurar e garantir uma adequada ação econômica e política como também deve conferir a participação política e social do indivíduo já que advém da Constituição Nacional vigente, “Todo o poder emana do povo...” (1ª parte, § único, art. 1º, CRFB/1988), revelando-se como forma de expressão do exercício dos poderes políticos e sociais do cidadão frente ao Estado.

O ESTADO DE DIREITO E O DIREITO DE RESISTÊNCIA

Para compreender o que se entende por desobediência civil é necessário partir da consideração de que o dever fundamental de cada pessoa obrigada a um ordenamento jurídico é o dever de obedecer às leis. Este dever é chamado de obrigação política. A observância da obrigação política por parte da grande maioria dos indivíduos, ou seja, a obediência geral e constante às leis é, ao mesmo tempo, a condição e a prova da legitimidade do ordenamento, devendo ser entendida, como poder legítimo é aquele poder cujas ordens são obedecidas enquanto normas, independentemente de seu conteúdo. Pela mesma razão pela qual um poder que pretende ser legítimo encoraja a obediência e desencoraja a desobediência, enquanto que a obediência às leis é uma obrigação e a desobediência uma ação ou ato ilícito, passível de punição ou sanção de várias maneiras, como conduta ilícita.

A desobediência civil é uma ação ou ato particular de desobediência, na medida em que é praticada ou executada com o fim imediato de mostrar publicamente a injustiça da lei e com o fim mediato de induzir ou sensibilizar o legislador a alterá-la ou mudá-la. Como tal é acompanhada por parte de quem a cumpre de justificativas com a pretensão de que seja considerada não somente como lícita, mas como obrigatória e seja tolerada pelas autoridades públicas, diferentemente de quaisquer outras transgressões.

Por outro lado, a desobediência comum é uma ação ou um ato praticado que desintegra o ordenamento jurídico, neste aspecto, deve ser

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eliminada ou impedida incontinenti a fim de que a norma seja reintegrada ao estado original, isto é, ao status quo.

A desobediência civil é uma ação ou ato que tem em mira ponto central, em última instância, alterar ou mudar o regramento jurídico, ao final deste processo, mais um ato inovador do que destruidor.

Chama-se civil precisamente porque quem a pratica ou executa pensa que não comete uma transgressão do próprio dever de cidadão, julgando, bem ao contrário, está se comportando como bom cidadão naquela circunstância particular que tendencia mais para a desobediência do que para a obediência.

Exatamente pelo seu caráter demonstrativo e por seu fim inovador, a ação ou ato de desobediência civil tende a adquirir o máximo de publicidade. Este caráter publicitário serve para distingui-la nitidamente da desobediência comum: enquanto o desobediente civil se expõe poder estatal ou ao público e somente expondo-se ao público poderá esperar alcançar ou atingir seus objetivos, o transgressor comum deve realizar sua ação no máximo segredo e sigilo, se desejar alcançar suas pretensões.

As circunstâncias defendidas pelos autores da desobediência civil e que favorecem mais a obrigação da desobediência do que a da obediência. Substancialmente são três as circunstâncias: o caso da lei injusta; o caso da lei ilegítima, isto é, emanada de quem não tem o direito de legislar; o caso da lei inválida, isto é, inconstitucional.

Segundo os defensores da desobediência civil, em todos estes casos não existe lei em seu sentido pleno: no primeiro caso não o é substancialmente; no segundo e no terceiro não o é formalmente.

O essencial e principal argumento de quem defende a desobediência civil, é o de que o dever ético e moral de obedecer às leis existem na medida em que é reconhecido e respeitado pelo legislador o dever de produzir leis justas, legítimas e válidas, conforme aos princípios de direito natural ou racional, aos princípios gerais do direito ou como se lhes queira chamar, constitucionais, ou seja, conformes aos princípios básicos e às regras formais previstas pela Constituição. Entre cidadão e legislador haveria uma relação de reciprocidade: se é verdade que o legislador tem direito à obediência também é verdade que o cidadão tem o direito de ser governado com sabedoria e com leis estabelecidas, com justiça, legitimidade e validade.

Percebe-se de forma cristalina que a partir da assunção do Estado de Direito, nos tempos modernos, pensava-se que esse problema não mais suscitasse interesse, tendo em vista os reflexos advindos dos tempos

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medievais: primeiro, naquelas épocas, o indivíduo se sentia ameaçado e também por ter um sentimento de constante inquietação em face de perigo real a que estava submetido, pois resistir ao poder estatal (decisões do governo) seria sofrer represálias físicas e psicológicas que, em certas circunstâncias, levaria o ‘rebelde’ à prisão ou mesmo à morte em face da arbitrariedade e tirania do Estado; segundo, nos tempos modernos, por ser o indivíduo acomodado e omisso, tem aceitado e concordado com todas as ações do Estado, simplesmente, por não querer exercer seus direitos políticos e sociais.

O Estado de Direito, dentro da experiência filosófica, jurídica, política e sociológica do Ocidente Moderno, atravessou diferentes etapas transformativas. Todavia, seu significado permanece primordialmente ileso e intacto, correspondendo à idéia de uma ordem política e social regida pelo Direito, na qual este Direito se apóia, baseia e fundamenta para atingir o ideário de Justiça e Paz Social.

Nesta face, entendo que o conceito de Estado de Direito não se define por via de regra meramente manifesta (formal), ou seja, pela simplória característica peculiar correspondente à legalidade, é indispensável à presença de uma efetiva legitimidade para basear e fundamentar a ação estatal, também é imprescindível a presença de valores jurídicos e sociais para realmente tornar-se absoluta e perfeita, na ordem ética, filosófica, jurídica, política e sociológica, a atuação dos poderes governamentais.

Compreendo e concordo de que o questionamento da legitimidade, legalidade (fundada no direito, na razão ou na justiça) do direito de resistência encontra-se apoiada e amparada nos Estados que pretendem ser de "direito".

De fato, os freios e contrapesos do Estado considerado democrático contemporâneo, sobretudo no que se refere ao controle de constitucionalidade das normas jurídicas editadas e sancionadas pelo Estado, institucionalizaram no pensamento de BURDEAU, inúmeras sujeições de sanções jurídicas contra a arbitrariedade, autoritarismo, ilegalidade, opressão e tirania.

Em desfavor das leis injustas, não faltam meios constitucionais para neutralizá-las. Portanto, o habeas corpus, mandado de injunção, mandado de segurança e o controle de constitucionalidade, constituem instrumentos para assegurarem e garantirem a cidadania, sobretudo, à dignidade da pessoa humana para combater e controlar as injustiças da lei. Caso isso não seja suficiente, há também para atalhar, coibir, obstar, opor-se, prevenir e remediar a arbitrariedade, autoritarismo, opressão, tirania, por meio do

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impeachment, considerado como instituto adequado e apropriado para afastar a autoridade máxima do Poder Executivo. Entretanto, mesmo com estes instrumentos contemplados validamente, se mostram inoperantes em certas circunstâncias excepcionais nos países em que as desigualdades sociais são intensas e veementes.

A questão da resistência à arbitrariedade, autoritarismo, ilegalidade, opressão e à tirania ocupa no domínio da Teoria Geral do Estado, não só pela vasta experiência ética, filosófica, moral, política e social que lhe possibilitou a História, como também pelas múltiplas e proeminentes desavenças e discussões que derivam e convergem ao direito de resistência.

Como diz BURDEAU, as sanções estabelecidas pelo direito positivo (são as leis jurídicas, regras obrigatória que a todos se vinculam que um país adota) mostram-se insuficientes. Das deficiências sistêmicas da própria dogmática erguem-se eventualmente a necessidade de mecanismos excepcionais que solucione as incongruências relevantes para manutenção da organicidade do sistema.

O problema da resistência não perde a oportunidade: o abuso de poder é fruto de contingência humana, da fragilidade da natureza do próprio homem. A arbitrariedade, autoritarismo, opressão e a tirania podem partir tanto de uma única pessoa como de um grupo de pessoas organizadas ou não. No caso da opressão advir de um grupo de pessoas, certamente é mais difícil de ser combatida, corrigida e extirpada.

Hoje, ainda se pode aplicar com particularidade o que era dito há mais de quarenta anos por JOÃO C. DE OLIVEIRA TORRES:

"o dinheiro e a propaganda permitem que qualquer um se faça eleger e consiga impor a sua vontade ao povo. O resultado de tudo isto, é que o mundo vive sob ameaça de tiranias por parte de grupos minoritários, falando em nome de toda a comunidade nacional".

Para ter certeza se há o direito de resistência, quais são os seus limites e quem será o titular deste direito é a discussão mais importante e proeminente, porque está envolvida ativa e diretamente com os superiores interesses do povo, sobretudo no exercício e realização regular das respectivas funções no que se referem aos próprios princípios e verdades racionais jurídica.

Preliminarmente, deve considerar o caráter da pessoa em sentido amplo por se traduzir no modo de ser, sentir e agir de um indivíduo, grupo ou povo na eventualidade antidemagógica (ação contrária ao processo

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político de captação e utilização da paixão popular) e científica (método de conhecimento obtido pela observação e a experiência), com isso, torna-se ponto mais árduo e crucial na ótica ética, filosófica, jurídica, moral, política e social inclusive à luz do direito positivo moderno e de seus imperativos constitucionais correlacionadas a exercê-lo ou não à resistência das normativas jurídicas.

Outro ponto de suma importância é demarcar as diretrizes que assemelham básicas e fundamentais para que se possa ao equacionar e materializar o direito de resistência com finalidade precípua para que se busque evitar a instabilidade das instituições estatais, bem como as arbitrariedades e ilegalidades eventualmente praticadas pelos governos e demais autoridades governamentais.

São constantes as sanções jurídicas impostas contra arbitrariedades, abuso do poder em geral e ainda do poder econômico e político, ilegalidades, mas não tem se apresentadas suficientes para conter ou reprimir a injustiça da lei ou dos governantes, quando estes excedem ou extrapolam os naturais limites, na maioria das vezes não pode ser mantido dentro dos limites ou sob controle impostos pelos ordenamentos jurídicos superiores que eventualmente são desobedecidas e desrespeitadas pelas próprias autoridades que deveriam contribuir e fazer cumpri-las.

Nesse sentido é de se ressaltar a orientação de COLUCIO SALUTATI: "Mas o problema que, sobretudo nos interessa discutir é se é lícito insurgir-se contra o senhor ou o príncipe que, ainda que tendo o pleno direito de governar, tenha por soberba começado a abusar do poder".

CANOTILHO na conhecida obra Direito Constitucional ensina que um dos meios de defesa não jurisdicional é o direito de resistência: "O direito de resistência é a última ´ratio´ do cidadão ofendido nos seus direitos, liberdades e garantias, por atos do poder público ou por ações de entidades privadas".

Percebe-se que o constitucionalista português chancela que os "tradicionais" meios de proteção dos direitos fundamentais, muitas vezes, não são suficientes para a garantia destes direitos. Assim, surgem às necessidades de utilização de mecanismos extravagantes tendo em vista a insuficiência das sanções jurídicas materializadas e positivadas nos regramentos.

Por causa do abuso de poder, não obstante a própria dogmática admite, considera e reconhece-se aos governados (cidadãos) em

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determinadas condições a possibilidade de recusarem-se à obediência a regra jurídica positivadas.

Em face do direito de resistência manifestam, opõem e rebelam-se os indivíduos contra as consideradas normas jurídicas injustas (leis injustas) com objetivo essencial de concretizar-se o sentimento ou a sensação de aversão (repulsa) de uma determinação particular ou de um conjunto de prescrições em discordância com a lei ética e moral. De modo generalizado a resistência à lei injusta sempre parte por iniciativa individual ou de um grupo limitado (poucos cidadãos desobedientes).

Mediante esse direito que decorre a delegação de poderes deferida ao Estado é que se concretiza a rebeldia, revolta e revolução contra a violação pelos governantes (indivíduos) da idéia de direito de que deveria a força do Poder. Neste direito não há a proposta de ruptura institucional, mas uma provocação para modificação das políticas de governo, por exemplo, como ocorre com os Movimentos dos Sem Terra conhecido como MST.

Ao contrário, pela revolta concretiza-se a vontade de estabelecer uma nova ordem jurídica em face da ausência de uma norma vigente na consciência jurídica dos membros da sociedade. Apesar dos inúmeros sentidos que possa ter as palavras ‘rebeldia, revolta, revolução’ sua essência para este artigo consiste "em uma súbita e variável transição de uma situação política total a outra, especialmente de uma ordem ou sistema de direito público a outro...".

De acordo com a doutrina o insigne publicista brasileiro PINTO FERREIRA:

"O traço característico da revolução é, portanto, a mudança de estilo, ou por outra, a descontinuidade do conteúdo cultural. Não é essencial que ela se realize repentinamente e uno actu ou violenta e abruptamente. Não raro se trata de um processo de longa duração. Pode haver um golpe de Estado (ato único), mas o essencial é que a sociedade em seu conjunto sofra um revolvimento radical".

Por sua vez ORTEGA Y GASSET acentua que a violência é requisito secundário para as verdadeiras revoltas ou revoluções: "A revolução não é a barricada, senão um estado de espírito. Este estado de espírito não se produz em qualquer tempo: como as frutas têm sua estação".

Como leciona PINTO FERREIRA, as revoltas ou revoluções são sempre frutos das épocas não tradicionais e dos tempos racionalistas. Por isso, "o filósofo, o intelectual anda sempre entre os bastidores revolucionários". Assim, na Idade Medieval, por amor à tradição

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desconheceu-se o verdadeiro espírito revolucionário. O homem medieval ao revoltar-se, "rebela-se contra os abusos dos senhores". O autêntico revolucionário, porém "não se rebela contra os abusos, senão contra os usos".

HANS KELSEN com sua Teoria Pura do Direito afirma:

"Uma revolução no sentido amplo da palavra, compreendendo também o golpe de Estado, é toda modificação ilegítima da Constituição, isto é, toda modificação da Constituição, ou a sua substituição por uma outra, não operada segundo as determinações da mesma Constituição".

Segundo esse doutrinador, pouco importa que a modificação da situação jurídica seja produzida através do emprego da força direcionada contra o governo legítimo ou pelos governados (membros da sociedade), por meio de movimentos de massas populares ou de pequeno grupo de indivíduos. Decisivo é o fato, se houver uma modificação não convencional da vigente Constituição.

Taxativa e textualmente HANS KELSEN:

"Com efeito, o imediato fundamento de validade das normas jurídicas recebidas sob a nova Constituição, revolucionariamente estabelecida, já não pode ser a antiga Constituição, que foi anulada, mas apenas o pode ser a nova. O conteúdo destas normas permanece, na verdade, o mesmo, mas o seu fundamento de validade de toda a ordem mudou".

De acordo com o doutrinador, se a revolta não fosse sucedida; se a Constituição revolucionária não se tivesse tornado eficaz; se os órgãos estatais por esta norma jurídica previstos não tivessem estabelecidos quaisquer leis. Mas se, pelo contrário, a antiga (anterior) Constituição tivesse permanecido eficaz, não haveria qualquer motivo para pressupor nova norma fundamental no lugar da antiga. Portanto, a rebeldia ou revolta não seria interpretada como processo transformador de novel Direito, porém segundo a anterior Constituição e a lei penal que sobre a norma antiga se funda e que se considera ainda válida.

Ao contrário da revolução, a desobediência (resistência) não se direciona contra a comunidade política ou contra sua forma, deve dirigir-se somente contra o abuso do poder, arbitrariedade e a ilegalidade podendo realizar-se sem que ocorra a ruptura institucional ou que coloque sob ameaça ou risco as instituições estatais.

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As duas expressões progressivas de recusa de obediência (desobediência) dos cidadãos (governados) são discutidas no presente artigo, centrado e focalizado somente no possível direito de resistência.

Apesar de individual em sua base ou fundamento a resistência ao abuso de poder, arbitrariedade, ilegalidade, opressão e tirania é tipicamente coletiva por seu exercício. Desde que uma parcela, pelo menos do povo, não tenha um determinado governo por opressor ou tirano, não há falar em opressão e tirania, no sentido político do termo.

A opressão não se conceitua in abstrato, mas com correlação à idéia de direito. Implicam em julgamentos individuais indispensáveis, em sua origem, para motivar a desobediência ou resistência.

O cidadão que esboça desobediência ou resistência à autoridade não pode ser considerado como mero rebelde ou revoltoso. Na maioria das vezes tem-se o sentido mais elevado da ordem. O cidadão não desobedece ou resiste por desobedecer ou resistir (reprimir). Desobedece ou resiste para alcançar a harmonia no sentido de obter a paz coletiva (justiça social) e o respeito da ordem que julga violada (lei injusta).

De acordo com a afirmação clássica, "os reis são feitos para os povos e não os povos para os reis" há de tornar-se legítima a resistência contra o abuso e o arbítrio das autoridades governamentais e quando os cidadãos desrespeitam a ordem jurídica que se tornou o fundamento da própria vida coletiva, devem fazer com ordem, não-violência e pacificamente.

O ato praticado pelo desobediente ao resistir ao abuso, arbítrio, opressão é um ato de julgamento em que os cidadãos fazem dos governantes e das políticas públicas que são por estes adotadas. O valor da admissibilidade da resistência não está na prerrogativa que os governados podem invocar para desobedecer como diz BURDEAU que no julgamento estão autorizados a fazer sobre as políticas desenvolvidas pelos governantes.

No âmago do conceito político da resistência como diz LOJENDIO duas idéias essenciais gravitam: "1ª) a concepção da lei injusta, e 2ª) o princípio da mediação do Estado e da retenção última da soberania pelo povo".

A crítica da lei como toda crítica que se possa fazer pressupõe critério, primeiro de uma reflexão ética, filosófica, moral, social para julgamento e se busca interesse da coletividade.

A questão da resistência às leis injustas, subordinado a julgamento do valor da norma jurídica, implica indispensavelmente na fixação

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preliminar de um critério ético, filosófico, moral e social para determinação da força obrigatória das leis.

Embora alguns doutrinadores consagrados e tradicionais como ESMEIN, CARRÉ DE MALBERG, RIPERT, H. BARTHÉLEMY e KELSEN evitarem o problema da conceituação da lei injusta, mas por outro lado, como DUGUIT, HAURIOU, DABIN, GENY, RENARD e BURDEAU não tiveram receio de enfrentar a questão.

Para uma parte dos autores que aceitam e acreditam na existência da lei injusta, consideram que o obstáculo da lei injusta é a incompatibilidade com a regra ética e moral. Conforme ensinamento de GALVÃO DE SOUZA: "Há leis que, em vez de promoverem o bem comum, a tranqüilidade da ordem, são contrárias aos princípios superiores do direito natural e subvertem o direito histórico. Trata-se então de uma legalidade espúria, que pode vir a comprometer a segurança nacional no seu sentido mais profundo".

Quando a lei injusta é inseparavelmente ligada à permissão de ato malévolo, o qual conduz ao abuso, arbitrariedade e opressão do governante, resta ético e moralmente ao governado a não obrigatoriedade (dever) de obediência. Quando a lei ficar sujeita a injustiça, os indivíduos que forem são vítimas da suposta lei injusta podem resistir-se, desde que o faça com ordem, não-violência, pacífica e passivamente, a menos que a mencionada norma injusta não provoque situações de escândalos ou transtornos de elevada magnitude.

De acordo com a famosa definição de SÃO TOMÁS DE AQUINO, a lei é "cierta ordenación de la razón, encaminada al bien común y promulgada por aquél que tiene a su cargo el cuidado de La comunidad".

Traduzindo-se: “certa ordenação da razão encaminhada para o bem comum e promulgada por qualquer que tem ao seu cargo o cuidado para o bem da comunidade”.

Implicitamente esta definição a afirma a possibilidade de lei injusta. A lei é injusta, desde que seja contrária ao texto prescrito na lei, sobretudo quando contenha vício de competência, isto é, quando a lei ultrapassar a esfera da competência do legislador, afeta a matéria (contraria a outra lei superior), de finalidade (quando não vier ao bem comum) e pela forma (quando não respeitar a justiça distributiva).

PEDRO PALMEIRA afirma que, "a regra jurídica que, em vez de produzir o bem comum, causa à coletividade, o mal comum, volta-se contra a sua própria finalidade e torna-se, por isso mesmo e neste sentido, injusta".

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Neste diapasão, sustenta LE FUR, DELOS, além de outros doutrinadores, entendem-se por bem comum, o conjunto organizado das condições sociais que possibilitem à pessoa humana realizar o seu destino natural e espiritual. Mas ainda em face de incerteza dessa consciência coletiva, torna-se critério satisfatório o que tem dado nome às leis injustas, isto é, o da desconformidade da norma jurídica com princípios da ética e moral. Com este critério não se estaria isento na prática de determinados equívocos e erros, até em razão da dificuldade de valoração do que seja uma lei injusta.

Para melhor compreensão do que seria uma ‘lei injusta’, é prudente analisar os entendimentos de alguns doutrinadores que buscam caracterizar com propriedade o significado de “lei injusta” para delimitar ou restringir o próprio “direito de resistência”.

Por outro lado, deve ser destacado que o critério valorativo da lei está sempre relacionado a um sistema de filosofia e sociologia jurídica. Para os formalistas que desprezam por completo o conteúdo axiológico do direito para aderir e valer-se somente à forma, isto é, o Direito é Lei. A lei consubstancia toda a ciência jurídica. Todas as realidades jurídicas devem retirar lei a única razão de ser.

Para esta corrente expressiva no pensamento jurídico contemporâneo, a problemática em questão sob análise e apreciação não se compreende ou entende.

A teoria constitucional da desobediência civil no entendimento de JOHN RAWLS sustenta que não há qualquer dificuldade em explicar porque se deva acatar (obedecer) leis justas, estabelecidas por uma Constituição também justa.

Neste caso, os princípios de dever natural e os princípios do regramento jurídico encontram-se não havendo razão para questionar se a consonância, até porque se apóiam mutuamente. A verdadeira questão põe-se com respeito às circunstâncias e ao grau em que os indivíduos são obrigados a cumprir e respeitar as injustiças.

Não se tem quem diga que nunca foi obrigado a cumprir alguma determinação arbitrária ou injusta. Mas, cumprir uma arbitrariedade, injustiça ou ilegalidade é um erro relevante. O modo de validade justa de uma legislação tem, primeiramente, por obrigação de obedecer estritamente às disposições definidas na Constituição vigente. Por isso, o caráter injusto de uma norma jurídica não deve ser acatado e cumprido pelo cidadão.

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O americano consagrado como professor de filosofia na Universidade de Harvard, JOHN RAWLS afirma que, quando a estrutura básica da sociedade é razoavelmente justa e age com eqüidade, calculada em termos daquilo que o Estado permite sobre as coisas permite, deve ser reconhecida a obrigatoriedade de leis injustas, desde que não excedam certos parâmetros de injustiça. Ao esforçamo-nos para discernir parâmetros ou limites, aproximando-nos do problema mais profundo de dever e obrigações políticas e sociais. A dificuldade e obstáculo residem em parte no fato de surgir um conflito de princípios basilares. Alguns princípios aconselham a obediência, enquanto outros apontam caminho oposto. Assim, as reivindicações do dever e obrigação política e social devem ter contrapartida em concepção do que são as prioridades adequadas e apropriadas para a sociedade justa e solidária.

Nessa linha o ilustre JOHN RAWLS publicou artigo no Philosophical Review, em 1958, intitulado "Justice as Fairness". A este artigo seguiram-se inúmeros outros. Em 1971 publicou o consagrado livro A Theory of Justice que apresenta uma teoria do direito baseado no consenso democrático dos cidadãos, dando enorme importância às minorias, aos dissidentes e ao direito de desobediência civil. Ressalta também que as instituições poderão apresentar aspectos positivos para determinados grupos e negativos para outros, devendo ser analisado nesse contexto o benefício desta para com a sociedade em geral. A justiça distributiva há de ser invocada nas decisões que envolvam conflitos de interesses e devem ter em mente que acarretam como conseqüência o favorecimento de alguns grupos em detrimento de outros.

Para JOHN RAWLS uma teoria de justiça não pode deixar que as desvantagens de alguns cidadãos justifiquem as vantagens dos outros. Assim, se pelo princípio do prevalecimento do voto da maioria, a minoria sempre for relegada ao segundo plano, torna-se necessário a existência de mecanismos que garantam a efetiva participação na sociedade.

Para melhor compreensão, exemplifica-se de modo didático e simplório que em certa entidade, a maioria decide que não irão mais trabalhar aos sábados no período vespertino. Na ocasião, o interesse da minoria deve estar subordinado ao da maioria. Entretanto, se todas às vezes, a minoria não tiver chance ou possibilidade do direito de escolha, por ser vencida, surgir-se-á o conflito pelo critério adotado. Deste modo, dever-se-á adotar ou optar por novas maneiras de decidir a questão, por exemplo, estabelecer a liberdade para quem quiser trabalhar no período vespertino que o faça, porém os demais não poderão ser prejudicados ou penalizados, assim, vice-versa. Como dito, a corrente minoritária, os dissidentes poderão

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trabalhar. O respeito à minoria em uma sociedade democrática, sobretudo quando esta sociedade constitucionalmente se constitui fundamentada no Estado Democrático de Direito implica em permitir a garantia do direito de fazer ou não fazer, porém que não haja ofensa a lei justa ou os cidadãos desta minoria excedam os limites das normas.

Na concepção de JOHN RAWLS que define "desobediência civil como ato público, não-violento, consciente e, apesar disto, político, contrário à lei, geralmente praticado com o intuito de promover modificação na lei ou práticas do governo". Há uma teoria de resistência justa, fundamentada no ideário de justiça e paz social oriundo de consenso, no qual não há dominação, mas respeito mútuo aos integrantes do grupo e não gere conflitos a sociedade.

A teoria constitucional de um direito de resistência (desobediência) de JOHN RAWLS possui três partes. Inicialmente, define esta forma de dissidência e separa-a de outras formas de oposição às autoridades democráticas. Estas variam, desde demonstrações e infrações legais objetivando testar o sistema jurídico até a ação militante e a resistência organizada. A teoria especifica da desobediência civil nesse espectro de possibilidades, deve ser norteada por princípios que preservem a cidadania e a dignidade da pessoa humana.

A seguir, apresenta as razões para a desobediência civil e as condições necessárias para que a ação se justifique em regime mais ou menos democrático e justo. Por fim, assinala que a teoria deve explicar o papel da desobediência dentro de um sistema constitucional e justificar a adequação deste modo de protesto dentro da sociedade livre.

A ação oriunda dessa forma de desobediência atinge o senso de justiça da maioria da sociedade e declara-se a opinião de que os princípios de cooperação social entre cidadãos iguais e livres estarão resguardados e respeitados. Conclui-se, preliminarmente, que esta definição não exige que um ato de desobediência civil viole a mesma lei que está sendo objeto de protesto, rebeldia e revolta.

A desobediência esboçada e expressa com senso de justiça e paz social, considerada por alguns doutrinadores e pensadores, a chamado desobediência civil direta e por outros como indireta. Neste aspecto deve haver delimitação e restrição a este direito, uma vez que há fortes razões para não infringir lei ou política considerada injusta.

Como exemplo, o cidadão poderá resistir (desobedecer) à lei de trânsito, em compensação, como uma forma de apresentar sua posição

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contra a injustiça desta norma jurídica que, eventualmente possa estar contrária a realidade do local (da comunidade).

Por hipótese, se o governo aprova e sanciona um estatuto severo e vago sobre traição, não seria inapropriado cometer-se traição como forma de mostrar inconformidade. Entretanto, a punição poderia ser maior do que o aceitável. Em outros casos, não há como violar diretamente a determinação governamental, como ocorre quando se trata de uma política externa. Uma segunda consideração cinge-se ao ato de desobediência civil ser considerado como contrário à lei, ao menos no sentido de que os cidadãos envolvidos não estão apenas submetendo um caso-teste para decisão constitucional, mas dispõe-se a opor-se ao estatuto, mesmo que este seja protestado e sustentado.

Não há dúvida de que em regime constitucional os Tribunais podem eventualmente apoiar os, considerados, dissidentes, rebeldes e revoltosos quando a regra jurídica protestada for de relevante injustiça. A dogmática permite que os Tribunais declarem a lei ou determinação questionada inconstitucional.

Tal fato não passa de um elemento complicador, não resolvendo a questão de fundo, pois os cidadãos que fizerem uso da desobediência civil para protestar ou rebelar contra lei injusta, eventualmente, não estarão dispostos a ceder, caso os Tribunais venham discordar destes indivíduos, por mais satisfeitos que pudessem estar com a decisão oposta.

A DESOBEDIÊNCIA CIVIL COMO ATO POLÍTICO

Dentro da doutrina de classificação dos direitos fundamentais destaca-se a teoria dos quatro status de GEORG JELLINEK. Esta teoria, para ROBERT ALEXY, constitui-se em "El ejemplo más grandioso de una teorización analítica en el ámbito de los derechos fundamentales".

Traduzindo-se, tem-se: “O exemplo mais grandioso de uma teoria analítica do âmbito dos direitos fundamentais”.

Conforme anota JORGE MIRANDA a classificação de JELLINEK corresponde, aproximadamente, ao processo histórico de afirmação da pessoa humana e de seus direitos basilares.

Enfatizando o enfoque histórico na própria conceituação dos direitos humanos, ANTÔNIO ENRIQUE PEREZ LUÑO ensina que os direitos humanos são: Un conjunto de facultades e instituciones que, en cada momento histórico, concretan lãs exigencias de la dignidad, la liberdad y la

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igualdad humanas, las cuales deben ser reconocidas positivamente por los ordenamientos jurídicos a nivel nacional e internacional.

Traduzindo-se: “Um conjunto de faculdades e instituições que em cada momento histórico, concreta as exigências da dignidade, liberdade e da igualdade humana, das quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos a nível nacional e internacional”.

Neste sentido BOBBIO defende que os direitos basilares e fundamentais são direitos históricos ao afirmar que:

"Do ponto de vista teórico, sempre defendi - e continuo a defender, fortalecido por novos argumentos - que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou sejam, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas".

De acordo com JELLINEK pelo fato de ser membro do Estado, o indivíduo trava com este, pluralidade de relações denominadas status, razão pela qual a teoria de JELLINEK é também, chamada Teoria dos Quatro Status. A primeira relação em que se encontra o indivíduo é a de subordinação ao Estado. Esta é a esfera dos deveres individuais e corresponde ao status passivo.

A segunda relação, o status negativus corresponde à esfera de liberdade na quais os interesses essencialmente individuais encontram sua satisfação. É uma esfera de liberdade individual, cujas ações são livres, porque não estão ordenadas ou proibidas, vale dizer: tanto sua omissão como suas realizações estão permitidas.

A terceira relação resulta do fato de que a atividade estatal é realizada no interesse dos cidadãos, status positivus. Para o cumprimento de suas tarefas, o Estado tem obrigação de exercer determinadas tarefas.

Leciona BONAVIDES:

"dominam o século XX do mesmo modo como os direitos da primeira geração dominaram o século passado (...). Nasceram abraçados ao princípio da igualdade, do qual não se podem separar, pois fazê-lo equivaleria a desmembrá-los da razão de ser que os ampara e estimula".

A quarta relação, relevante para o tema em análise, decorre da circunstância de que a atividade estatal só se torna possível por meio da ação dos cidadãos.

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O conceito de cidadania mostra-se inerente à idéia de agir, atuar e para construir o seu próprio destino. O que tem mudado ao longo das épocas são o grau e as formas de ação, atuação, participação e sua abrangência.

É relevante e significativo o estabelecimento da inter-relação do conceito de soberania popular em relação aos de Direitos Humanos, como faz JELLINEK, ao considerar a participação política ativa como um direito do indivíduo perante o Estado, chamado de stactus activus, não porque, originalmente estas conceituações se identificassem, mas porque com o passar das épocas, sua aproximação ficou cada vez mais evidente, a ponto de chegarem a ser inseparáveis, atualmente acarreta a evolução de um a implementação do outro.

O conceito clássico de cidadão está intimamente ligado à vida nas cidades, centros urbanos. Assim, cidadão era aquele que morava na cidade e participava ativa e passivamente de seus negócios. Destarte, era o indivíduo que podia ter acesso aos cargos públicos. Portanto, estes cidadãos constituíam uma minoria, devido às discriminações restritivas aos escravos e estrangeiros. Por cidadania, entendia-se a qualidade de o indivíduo pertencer a uma comunidade, com todas as implicações decorrentes de se viver em sociedade.

Esse conceito foi enriquecido e modificado com o decorrer dos tempos, chegando a ficar inseparável da democracia, isto é, atinge-se uma situação em que não existem cidadãos sem democracia ou democracia sem cidadãos, por centralizar-se de que a democracia é o governo do povo e para o povo, este povo se representa ativa e diretamente pelo direito de petição para defender os seus interesses contra abuso de poder, direito de voto (sufrágio), direito de interpor ação popular, iniciativa de oferecer projeto de lei popular, direito de fiscalização e denúncia direta ao Tribunal de Contas da União (direitos políticos e sociais).

O cidadão é representado pelos agentes políticos que são eleitos para além de representar o povo, também defender os legítimos interesses deste povo.

Nesse âmbito e contexto a desobediência civil constitui-se em um instrumento cristalino como espécie de concretização, materialização e positivação do stactus activus centrado essencial e indispensavelmente no direito de ação, atuação e participação do cidadão na vida política e social do Estado. Conforme já mencionado por JELLINEK, desde que este mecanismo não anule a sujeição do indivíduo às normas estatais que expressam o stactus passivus que se referem à sujeição do indivíduo ao Estado e ao seu ordenamento jurídico.

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Frisa-se taxativamente de que a desobediência civil é ato ético, edificante, filosófico, moralizador, político e sociológico não somente no sentido em que se direciona à maioria que detém o poder político, mas também por ser um ato orientado, justificado e protegido por princípios éticos, morais, políticos e sociais, isto é, pelos princípios de justiça que regulam a Constituição e as instituições sociais em geral.

Para se justificar o direito de resistência - desobediência, não se deve apelar ou recorrer, exclusivamente, aos princípios da eticidade e moralidade pessoal ou às doutrinas ideológicas e religiosas, embora estes princípios possam coincidir com a exigência constituída e formada, mesmo adotá-la e apoiá-la. É desnecessário afirmar que a desobediência civil não pode adotar-se e apoiar-se unicamente em grupos ou interesses próprios destes grupos.

Ao contrário, assinala o consagrado doutrinador americano que se invoca, a concepção amplamente adotada e apoiada de justiça que serve de embasamento e fundamento à ordem política. Pressupõe haver, um regime democrático razoavelmente justo, uma concepção pública de justiça que sirva de referência à regulamentação pelos cidadãos, de seus assuntos políticos e para a interpretação da Constituição.

A violação, deliberada e repetida dos princípios fundamentais desta concepção durante um período extenso, especialmente a violação das liberdades basilares, convidam à submissão ou à resistência - desobediência. Por empenhar-se e engajar-se em desobediência civil, a minoria obriga a maioria a decidir se prefere reconhecer as exigências legítimas da minoria para que a dissidência cesse e a tranqüilidade retorne a comunidade ou ao grupo.

No contexto da desobediência - resistência como ato ético, edificante, filosófico, moralizador, político e sociológico verifica-se de forma análoga que a resistência, geralmente manifesta-se como expressão política e social na forma de ato público.

Na desobediência as pessoas empenham-se e engajam-se aberta e publicamente, mediante aviso prévio, pois não é um ato anônimo, clandestino, dissimulado ou secreto. É comparável a discurso público por ser forma de comunicação e expressão da convicção ideológica, filosófica, política e sociológica profunda e consciente, dá-se em foro público. Por estas e outras razões, a verdadeira desobediência civil não é anarquista, desordeira e violenta.

A resistência a injustiça esforça acima de tudo deve ser evitada a utilização de ato de violência, especialmente contra as pessoas e contra a

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depredação e destruição das instituições e órgãos públicos, os quais são patrimônios de toda a sociedade, porque o uso da violência desabona tanto o caráter do cidadão como desmerece e desmistifica a legitimidade do instituto, além do que não é aceitável, por ser a violência um ato desprezível, repugnante e covarde, porque causar aversão aos princípios éticos e morais, inclusive aos princípios jurídicos.

Por outro lado, o consagrado Professor de Filosofia, JOHN RAWLS, restringe a abrangência do que denomina "direito à desobediência" ensina que o engajamento, em atos violentos capazes de ferir e de machucar, é incompatível com a desobediência civil como modo de expressão. De fato, qualquer interferência com as liberdades civis de outrem tende a obscurecer o aspecto de rebeldia e revolta civil do ato.

Uma das características essenciais da justiça é a alteridade. A justiça consiste básica e fundamentalmente na disposição permanente de resguardar e respeitar a pessoa e a sua dignidade. Por isso, a primeira condição para que a justiça se realize é a existência de uma pluralidade de pessoas ou pelo menos de outra pessoa de caráter.

A violência do ato descaracteriza e destrói o próprio atributo de justiça de que a resistência busca legitimação. Como dito, sobretudo deve ser evitada a qualquer custo, em reconhecimento e respeito ao aspecto comutativo. O que há de fundamental em toda espécie de justiça, conforme já escreveu DEL VECCHIO, é este elemento de "intersubjetividade" ou de correspondência nas relações entre pessoas.

A desobediência civil não pode ser violenta, por outra razão, preliminarmente por exprimir desobediência à lei - uma norma jurídica já materializada e positivada, dentro dos limites de fidelidade e obediência à lei. Assim almeja apresentar-se no contexto do sistema jurídico vigente, embora esteja em um dos limites exteriores. A lei é infringida, mas por meio da natureza política, pública e não-violenta do ato. Expressar-se na fidelidade à lei e pelo menos, a disposição de acatar as conseqüências legais da conduta adotada.

No livro A Theory o Justice, define-se a desobediência civil como meio-termo entre protesto legal e forma de pôr à prova o sistema judiciário. Por meio do mecanismo democrático de defesa extraordinária, provocando-se conflito de interesses para que o Poder Judiciário adote e valore o preceito normativo aplicável. Dentro deste campo de possibilidades, o professor caracteriza a desobediência civil como forma de dissidência no limite da fidelidade à lei.

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Por este enfoque, existiria legítimo direito à desobediência civil que se fundamenta no direito, na justiça e razão. De acordo com o posicionamento assinala LUHMANN que:

"a legitimidade reside na possibilidade de supor a aceitação. Legítimas são as decisões nas quais se pode supor que qualquer terceiro espere normativamente, que os atingidos se ajustem cognitivamente às expectativas normativas transmitidas por aqueles que decidem".

Nestes termos, pode-se concluir, sem sombra de dúvida, de que o instituto da desobediência civil é ato ético, edificador, ideológico, filosófico, moralizador, político e sociológico como atributo da justiça e da paz social na indispensabilidade de que a justiça é e deve ser altera.

A JUSTIFICAÇÃO DA DESOBEDIÊNCIA CIVIL

A desobediência civil é, como se disse no início, um ato de transgressão da lei que pretende ser justificado e que pensa nesta justificação. A razão da própria diferenciação de todas as outras formas de transgressão. A fonte principal de justificação é a idéia originariamente religiosa e posteriormente laicizada na doutrina do direito natural, de uma idéia moral, que obriga todo o homem enquanto homem, que como tal obriga independentemente de toda a coação, por conseguinte em consciência, distinta da lei editada e promulgada pela autoridade política, que obriga somente exteriormente e se alguma vez obriga em consciência é apenas na medida em que é conforme à lei moral.

Ainda hoje, os grandes movimentos de desobediência civil, desde a época de GANDHI a MARTIN LUTHER KING registraram uma forte conotação religiosa. GANDHI expressou certa vez a um Tribunal que devia julgá-lo por um ato de desobediência civil: "Ouso fazer esta declaração não certamente para subtrair-me à pena que deveria ser-me aplicada, mas para mostrar que eu desobedeci à ordem que me havia sido dada, não por falta de respeito à autoridade legítima, mas para obedecer à lei mais alta do nosso ser”, a voz da consciência.

Uma outra fonte histórica de justificação é a doutrina de origem jusnaturalista, transmitida depois à filosofia utilitarista do século XIX que afirma a supremacia do indivíduo sobre o Estado e de que deriva a dupla afirmação de que o indivíduo tem alguns direitos originários e inalienáveis e que o Estado é uma associação criada pelos próprios indivíduos, através do consenso comum (contrato social) para proteger seus direitos fundamentais e assegurar a sua livre e pacífica convivência.

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O grande teórico do direito de resistência, JOHN LOCKE é contratualista, individualista e jusnaturalista, considera o Estado como uma associação surgida do consenso comum dos cidadãos para a proteção de seus direitos naturais. LOCKE exprime seu pensamento: "O fim do Governo é o bem dos homens; e que coisa é melhor para a humanidade: que o povo se ache sempre exposto à ilimitada vontade da tirania ou que os governantes se achem por vezes expostos à oposição, quando se tornam excessivos no uso de seu poder e o usam na destruição e não na conservação das prerrogativas do povo?”.

Uma terceira fonte de justificação é a idéia libertária da perversidade essencial de toda a forma de poder sobre o homem, especialmente de o máximo poder que é o Estado com o corolário de que todo o movimento que tende a impedir a prevaricação do Estado é uma premissa necessária para instaurar o reino da justiça, da liberdade e da paz.

O ensaio de HENRY THOREAU iniciar-se com estas palavras: "Eu aceito de bom grado o mote: O melhor Governo é o que governa menos”. Levado às extremas conseqüências conduz a esta outra afirmação em que também crê: “O melhor Governo é o que de fato não governa”. Evidenciada é a inspiração libertária em alguns grupos de protesto e de mobilização de campanhas contra a guerra do Vietnam nos Estados Unidos dos anos 1960 que teve no livro de Noam Chomsky, os novos mandarins de 1968, uma das expressões culturais mais sábias.

Por fim, JOHN RAWLS, tendo em mente várias distinções, examina as circunstâncias em que se justifica a desobediência civil. Para simplificar, restringe a discussão a instituições e às injustiças internas a uma determinada sociedade.

Apresenta o que considera ser condição aceitável e permitida para que se empenhar-se em desobediência civil, em seguida, associa de forma mais sistemática estas condições que sejam permitidas ao lugar da desobediência civil para objetivar cessar ou minimizar as injustiças.

Revela de forma sintética como pressuposto a ser adotada para a desobediência civil a verificação do tipo de mal que é objeto da desobediência. A desobediência é considerada como ato político direcionado ao sentido de justiça da comunidade. Aponta ser razoável limitar as instâncias da injustiça clara e substancial, isto é, casos em que há obstrução ao esforço de combater e eliminarem-se outras injustiças. Expressando-se claramente o posicionamento, limita a desobediência civil a violações sérias de direitos fundamentais diretamente normatizados nos princípios da

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cidadania e dignidade da pessoa humana e indiretamente no princípio da isonomia (igualdade).

De acordo com BONAVIDES (2010, P. 376) leciona: “O centro medular do Estado social e de todos os direitos de sua ordem jurídica é indubitavelmente o princípio da igualdade. Com efeito, materializa ele a liberdade da herança clássica. Com esta compõe um eixo ao redor do qual gira toda a concecpção estrutural do Estado democrático contemporâneo”.

Assinala a dificuldade de apreciação dessas violações, exemplificando que a negação do direito de certas minorias exercerem o direito ao voto ou o direito de possuir propriedade, bem como o de ir e vir (liberdade de locomoção), por serem violações "óbvias", legitima o direito de resistência.

Criticando o professor americano, afirma-se que ao tentar ser objetivo, criando padrão justificador do direito de resistência como a violação de direito fundamental, não logra êxito pleno em razão da relatividade do conceito de "violações sérias" ao princípio da isonomia. Entretanto, a busca de um critério objetivo e o estabelecimento de limites a esse direito deve ser elogiada para que se possa caracterizar e delimitar um direito político de resistência no âmbito da moderna dogmática jurídica.

A questão principal deste artigo refere-se à legitimidade do direito de resistência não-violenta contra os governos considerados injustos e opressores e a aceitação desta resistência (desobediência) no âmbito da dogmática jurídica.

Em livro publicado sob o título: A Democracia e o Brasil, o professor GOFFREDO TELLES JÚNIOR preocupa-se com a justificação da legitimidade da resistência, que é, indiscutivelmente, fato social, compreendendo-a em consonância com os autênticos interesses da vida humana. Por outro lado, ressalta a ilegalidade do procedimento.

Para o doutrinador da obra O Direito Quântico, a legitimidade da normatização jurídica funda-se nas realidades genéticas e decorre das estruturas de elementos quânticos. Para GOFFREDO TELLES JUNIOR as normas jurídicas são "os mandamentos sobre os movimentos humanos que, em sociedade, podem ser oficialmente exigidos e oficialmente protegidos".

Essas regras são mandamentos da inteligência governante. À semelhança dos centros de comando que existem nas células e que representam um patrimônio genético, os Centros de Governo de uma sociedade devem emanar um patrimônio que é a experiência de um povo ou de um grupo humano.

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Os regramentos jurídicos não são umas invenções do governo ou ao menos, não o devem ser. A norma jurídica é uma descoberta. A inteligência humana descobre, em cada circunstância social, as interações que são necessárias, as reações que devem ser permitidas e as reações que devem ser proibidas e repelidas.

Para GOFFREDO TELLES a coação e a coatividade não são elementos distintivos da norma jurídica. Sanção e coação não se confundem. A sanção é o remédio prescrito pela lei. A coação é a ministração - receita deste remédio. A sanção está na lei e a coação está no ato de alguém, do indivíduo.

Se considerar o Direito como um sistema de controle do comportamento humano, não revela a certeza de um controle efetivo, mas somente a possibilidade de um controle fundado na maior ou menor probabilidade dos comportamentos. Não se devem direcionar as considerações a respeito da certeza e segurança do Direito, não porque não fossem cabíveis, mas porque exigiria do indivíduo um comportamento ético, moral, ordeiro, pacífico, não-violento, porque não se rebate ou resiste a um direito com instrumento e prática violenta. A violência é ato inaceitável e repugnante.

No âmbito da teoria de fundamentação da norma jurídica, JOHN RAWLS questiona:

“Seria, o não cumprimento da ordem jurídica, uma forma de os indivíduos, como partes do sistema social, reagir às contradições entre a norma e a realidade social? Uma forma de reação às contradições do campo social e às tensões entre Direito e realidade? Por outro lado, teria o direito de resistência um fundamento legal?"

Sintetizando a resposta dada por GOFFREDO TELLES considera não ser o problema da resistência à opressão (tirania) um problema de Direito Positivo. A resistência, considerada em si mesma, é fato, cuja legitimidade, não legalidade depende de sua consonância com os autênticos interesses da vida humana na sociedade atingida pela norma injusta ou pela injustiça do ato.

Considera a resistência admissível, porém somente nos casos em que os governantes se encontram afetados por um mal sem cura, qual seja, por não quererem manifestar reprovação ou regenerar-se. Assinalando que o problema da resistência à opressão não é problema de Direito Positivo, o professor JOHN RAWLS indica duas ordens para que o direito de resistência atenda aos autênticos interesses da vida humana: a primeira

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ordem denomina-se condições extrínsecas que são as circunstâncias sociais cujos malefícios tornam admissível a resistência; a segunda ordem denomina-se condições intrínsecas, referindo-se às qualidades ou requisitos que devem realçar a insurreição.

Com relação às condições extrínsecas fizeram-se precisam descobrir, preliminarmente, os tipos de governo contra os quais é admissível a desobediência. Firmou-se o conceito de governo injusto, como sendo aquele que não dinamiza a idéia de ordem social, para cuja realização o grupo existe.

Com outras palavras, o governo injusto é aquele que se afasta do conceito de "bem comum". Finalmente no que se refere às condições intrínsecas, concernente à atuação do direito de resistência, afirma que para a resistência ser justa, deverá ser legítima, necessária, proporcional e útil. A legitimidade da resistência ocorre quando se fizer dominante, na opinião pública, o valor objeto da resistência e quando a resistência for praticada em nome dessas idéias. É preciso ainda que a resistência seja indispensável e necessária. Não se admite na concepção do professor JOHN RAWLS, meios ilegais para a transformação da ordem, a não ser quando não for possível atingir o mesmo fim por meios legais.

Precisa ser útil à medida que se torna apta a restabelecer a ordem justa, como exemplo, nesse sentido, o Movimento dos Sem Terra tem efetivamente mobilizado a opinião pública para que o Congresso Nacional (Senado e Câmara dos Deputados) vote, procedimento sumário de desapropriação. Como última característica, exige-se que seja proporcional aos males que a resistência combate. Se a dissidência causar maiores transtornos e maiores escândalos do que os causados pelo Governo a que se opõe, melhor será não fazê-la.

DIREITO DE RESISTÊNCIA EM FACE DO DIREITO POSITIVO CONSTITUCIONAL

A natureza do direito de resistência é um poder de fato, isto é, de uma força que se impõe como direito ou um direito previsto na dogmática ou pelo menos tolerado, ou seja, um poder que deriva de regra jurídica existente no ordenamento?

O que se observa é que a resposta à questão envolve o problema do fundamento do Direito. Os que entendem que o Direito só é Direito quando materializado ou Positivado, obviamente só poderão admitir que o direito de resistência seja um direito desde que o localizem no complexo das normas jurídicas positivas vigentes. Para os que admitem a existência de um Direito

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anterior ao Direito Positivo, a possibilidade de resistência apresenta-se como poder de direito, cujo fundamento seria a de poder natural, decorrente da própria liberdade humana, admitida na expressão de direito jusnaturalista.

Seria necessário diferenciar a possibilidade de um direito de resistência desde que se buscasse a proteção de valor constitucional ou legal positivado como o que ocorre com a reforma agrária, na qual os integrantes dos Movimentos dos Sem Terra buscam, porém, devem buscá-lo com ordem, pacificamente e não-violência.

O Direito Positivo só existe a partir de uma organização que constitui o ponto de partida da ordem jurídica e sobre a qual, deve-se centrar a ética, moral, ordem, não-violência e a tranqüilidade estabelecendo-se a paz social.

Para a tese positivista o Direito sintetiza-se ao Direito Positivo. Todo o Direito resume-se ao Direito editado e sancionado pelo Estado. De acordo com a tese positivista a Constituição é um fato, não é gerada e produzida por um poder de Direito. O direito de resistência só existe se previsto no sistema jurídico.

Para essa corrente positivista, poder-se-ia defender a existência do direito de resistência - desobediência, uma vez que consiga respaldá-lo no ordenamento constitucional. A obrigatoriedade da Constituição pode ser explicada juridicamente e a explicação jurídica, de acordo com HANS KELSEN na famosa Teoria Pura do Direito.

HANS KELSEN no capítulo A ESTRUTURA ESCALONADA DA ORDEM JURÍDICA no título A CONSTITUIÇÃO, afirma que a norma que regula a produção é a norma superior. A norma produzida segundo as determinações daquela é a norma inferior. Este doutrinador afirma que a relação entre a norma que regula a produção de outra e a norma regularmente produzida pode ser configurada pela imagem espacial da supra-infra-ordenação.

A norma produzida segundo as determinações da norma que regula a produção - norma superior é a norma inferior. A ordem jurídica não pode ser entendida como sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas.

A unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a validade da norma, que foi produzida de acordo com outra norma, apoiar-se sobre essa outra norma, cuja produção é determinada por outra.

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Assim por diante, até que no fim da cadeia de validação encontre-se a norma fundamental pressuposta.

Conforme magistério de HANS KELSEN: a norma fundamental hipotética, nestes termos é o fundamento de validade última que constitui a unidade dessa interconexão criadora. A norma representa o fundamento da validade de outra norma, em face desta, é uma norma superior. Mas a indagação do fundamento de validade de uma norma não pode, tal como a investigação da causa de determinado efeito, perder-se no interminável. Tem que terminar em norma mais elevada. A norma tem de ser pressuposta, visto que não pode ser editado por autoridade, cuja competência se teria de fundar em norma ainda mais elevada. Uma norma pressuposta como a mais elevada, será designada como norma fundamental.

O Direito obriga, em vista de pressupor-se uma norma existente. Entendo estar vigente um direito de resistência fundado na ‘desobediência civil’ no nosso ordenamento jurídico, se considerar o conjunto dos preceitos prelecionados na Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988, os quais constituem as bases e pilares do normatização jurídica vigente:

“PREÂMBULO. Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a

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marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

A Constituição Brasileira apresenta diversos direitos e garantias consideradas básicas e fundamentais, porém admitem outros direitos além dos enumerados em seu texto.

Assim dispõe no § 2º, artigo 5º: “Os direito e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

Depreende-se que a Constituição admite outros direito e garantias que estejam inter-relacionados com o regime e com os princípios adotados por esta norma jurídica superior. O regime adotado pela Constituição é a República que de acordo com GARCIA (2004, p. 236) compreende na realidade: “[...] todo o quadro da estrutura estatal definida no artigo 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal constitui-se em Estado Democrático de Direito [...]”.

O regime republicano quer dizer aquele em que é res pública - coisa do povo, conforme observa MONTEIRO (2003, p. 155), “[...] do qual emerge a cidadania e a participação popular nas decisões políticas [...]”.

A República é a forma de governo, cujas bases e essenciais características são as possibilidades de responsabilização dos governantes, a temporariedade do mandato de governo e a eletividade para o mandato.

Portanto, ser um país republicano significa ter representantes eleitos pelo povo para defender os interesses deste povo (o povo é o titular primeiro e único do poder do Estado, exercido através dos representantes que são eleitos: Presidente da República, Governador, Senador, Deputado Federal e Estadual, Prefeito e Vereador); a existência de soberania popular (o poder de sufrágio e voto, o plebiscito, o referendo, a iniciativa popular de leis, o direito de informação em órgãos públicos, o direito de petição administrativa, a ação popular, o mandado de injunção, a denúncia direta ao TCU ou ao Ministério Público, a fiscalização popular de contas públicas); a repartição de poderes (unicidade do poder e o povo é o titular soberano, os órgãos estatais exercem cada um suas funções básicas do poder uno do povo, funções: administrar, julgar e legislar: a administrativa - Executivo; a judiciária - Judiciário; a legislativa - Legislativo), mandatos eletivos temporários (exercício do cargo político com prazo determinado) e agentes

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políticos passíveis de responsabilização por seus atos (sujeições a sanções pelos atos praticados).

É esse regime com todos os seus significados que justificam a adoção de demais direitos e garantias mesmo que não expressos na Constituição.

Dentre estes direitos, há outros direitos e garantias fundamentais que a Constituição, permita sejam encontrados implicitamente a desobediência civil, a qual é ética, moral, política e socialmente explicada e justificada, através do regime republicano e dos princípios constitucionais, no caso brasileiro, centrada na soberania popular, cidadania, dignidade da pessoa humana, cujos princípios são os pilares básicos para a manutenção da democracia, todos servem de fundamentos constitucionais ao direito a desobediência civil, principalmente o princípio democrático que traduz a essência da soberania popular e da cidadania, além da dignidade da pessoa humana, outorgando a origem do poder ao povo e legitima-o a assumir partido nas situações políticas fáticas.

Os princípios fundamentais concedem e produzem pleno embasamento para o Estado Democrático de Direito e para a ordem jurídica editada, de acordo com GARCIA (2004, p. 237) os princípios “[...] denotam origem, começo e sentido jurídico, as normas elementares de formação estrutural, instituídos como base ou alicerce de um sistema [...]”. O princípio democrático está vinculado à participação popular efetiva e produtiva nas decisões das autoridades governamentais na busca da justiça social e partir-se em defesa dos direitos sociais para superar as desigualdades.

BRANDÃO (2003, p. 78) analisa que a ação desobediente representa a “[...] intervenção popular direta no exercício da autoridade pública [...]” com isso resta cristalino a efetividade do princípio da cidadania, conclui ainda “[...] a desobediência civil é garantia (ou direito-garantia) - detém caráter eminentemente assecuratório e desempenha papel instrumental em relação aos direitos fundamentais [...]”.

Estes direitos e garantias que a Constituição se refere, segundo lecionam GARCIA (2004, p. 236) “[...] são aqueles compreendidos ou contidos implicitamente, no regime, nos princípios constitucionais ou que venham a constar dos tratados internacionais firmados [...]”.

Ainda de acordo com GARCIA (2002, p. 297) concluiu que dentre esses direitos e garantias, deverá estar o direito a desobediência civil. Dentro do ordenamento jurídico deverá ser possível ao cidadão, que é o titular do poder do Estado, promover a alteração, a revogação ou mesmo

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deixar de atender a lei ou ato que atente contra a ordem constitucional ou aos direitos e garantias basilares.

A participação ativa do cidadão no processo político é assegurada pela norma jurídica constitucional brasileira e a desobediência civil é uma forma de manifestar essa participação popular, o qual se torna um direito fundamental decorrente do regime republicano e dos princípios que fundamenta o Estado brasileiro trazido no artigo 1º Constituição Brasileira.

A Constituição Brasileira concebe a soberania popular, a cidadania e a dignidade da pessoa humana como fundamentos da República Federativa do Brasil. A soberania popular, a cidadania e a dignidade da pessoa humana são princípios que norteiam o Estado Democrático de Direito, sem os quais o Estado não teria fundamento. São esses conceitos de relevante importância para o Estado democrático que justificam a desobediência civil.

Dessa correlação e vinculação, percebe-se claramente de que a desobediência civil tem magnitude por ser um instituto primordial para uma efetivação de direitos e garantias fundamentais asseguradas e reconhecidos ao cidadão. É por intermédio da resistência que o cidadão poderá manifestar oposição aos atos que contrariem a justiça, mas não se devem negar outros caminhos, incluindo os judiciais para a resolução de conflitos, porém quando a prestação jurisdicional faltar ou não for suficiente, à desobediência civil é plenamente eficaz.

A soberania é a base sólida da democracia e da participação ativa do cidadão. Neste sentido se refere BONAVIDES. Também é constitucionalmente assegurada no parágrafo único do artigo 1º, “Todo poder emana do povo” e do artigo 14 “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos”. Não existem dúvidas quanto à importância que a soberania popular tem em relação à justificação constitucional para a desobediência civil, porque se fundamenta no poder do povo como base política.

MONTEIRO (2003, p. 122) afirma que “[...] a doutrina da soberania popular conferirá a fonte de todo o poder político ao povo, povo como corpo, associação política fundadora do Estado, não admitindo qualquer exclusão de participação na formação da vontade geral”.

COSTA (1990, p. 41) ao iniciar o estudo sobre desobediência civil fala primeiramente do que seria a cidadania “[...] a cidadania pode ser entendida como o status concedido aos membros integrais de uma comunidade, iguais em direitos e obrigações”.

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Mais adiante COSTA (1990, p. 74) analisa ainda que em uma democracia deva existir uma preocupação constante na relação limite do poder do Estado e respeito aos interesses dos cidadãos. Segundo este magistério, os mecanismos adotados de “[...] eleições de representantes, processo legislativo, controle recíproco de poderes estatais, mostrou-se insuficiente para aferir a vontade social na atualidade”.

COSTA (1990, p. 75) acredita ainda que a desobediência civil seja um “[...] comportamento do cidadão inspirado nos princípios maiores que dão origem à própria obrigação ao Estado democrático, ou seja, a cidadania”.

A cidadania conceituada por MORAES (2002, p. 50) “[...] representa um status e apresenta-se simultaneamente como objeto e um direito fundamental das pessoas”. Neste contexto se conclui com facilidade de que a desobediência civil surge como um importante instrumento de freio às ações estatais abusivas, arbitrárias e opressoras ou as normas de natureza não-democráticas, justificadas por meio do principio da cidadania adotado por Constituições Democráticas, especificamente no caso brasileiro, a Constituição Federal de 1988.

A desobediência civil é um recurso preexistente para os cidadãos combatem contra lesões aos seus direitos basilares e fundamentais. O cidadão, somente este cidadão é quem tem o poder de exercer os direitos políticos e sociais em sua magnitude e plenitude com o intuito de construir uma nova política e um novo Estado que se preocupe com o bem estar da sociedade, com a justiça e a paz social.

A cidadania vivenciada atualmente quando se refere ao Brasil, está vinculada somente ao sufrágio e voto que, conforme preleciona a Constituição Brasileira, é obrigatório. Isso não reflete plenamente a idéia de cidadania, a qual é enobrecida e reconhecida nos dias de eleições, mas não pode falecer nestes dias. A nossa Constituição é luminosa ao afirmar que todo poder emana do povo. O que emana do povo não é somente a possibilidade de eleger um ou outro candidato, diga-se, que infelizmente é a realidade atual.

É indispensável fazer-se outra observação. O poder é uno e indivisível, a separação dos poderes Executivo, Judiciário e Legislativo não lhe retira a condição de unicidade. Todo o poder, isto é, toda a estrutura do Estado tem origem no povo.

O povo tem primeiro dever e depois direito a observação dessa estrutura. Cabe ao povo observar, se o que está sendo desenvolvido através das políticas públicas, é ou não satisfatório a sociedade. Se essas políticas

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estão ou não sendo de favorecimentos a pessoa ou grupo, porque se assim o for será injusto e ao povo não é defeso resistir aos atos, além de combaterem e lutarem pela modificação quer do ato de autoridade ou quer da lei. É através dessa consciência que se estará resguardando e reconhecendo os direitos fundamentais defendidos pela Constituição Federal.

A DESOBEDIÊNCIA CIVIL COMO UM DIREITO BÁSICO

Os direitos fundamentais expressos na Constituição Federal brasileira estão distribuídos no Titulo II que estende do artigo 5º ao artigo 17, é um rol relativamente extenso, mas não é exaustiva, a própria Constituição dá ampla abertura a outros direitos e garantias fundamentais, desde que esteja de acordo com o Estado democrático de direito.

Os direitos e garantias instituídos subdividem-se em: direitos individuais e coletivos; direitos sociais; nacionalidade; direitos políticos e partidos políticos.

A doutrina analisada por MORAES (2002, p. 59) apresenta a classificação de direitos fundamentais em gerações: direitos de primeira, segunda e terceira gerações. Os direitos de primeira geração são os direitos e garantias individuais e políticos; os direitos de segunda geração são os direitos culturais, econômicos e sociais; os direitos de terceira geração são os direitos de solidariedade ou fraternidade.

Para BONAVIDES (2010, p. 562/570), os direitos fundamentais classificados em gerações:

Liberdade, igualdade e fraternidade (primeira geração), “Os direitos de primeira geração são os direitos da liberdade, os primeiros a constarem no instrumento normativo constitucional, a saber, os direitos civis e políticos [...]. [...] direitos da liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado”.

São os direitos culturais, econômicos e sociais, bem como os direitos coletivos ou de coletividades (segunda geração). Referentes aos direitos sociais fizeram surgir à consciência de que são importantes tanto salvaguardar o cidadão quanto às garantias institucionais (meios e técnicas de defesa dos direitos).

São os direitos de solidariedade e fraternidade consistentes ao direito de desenvolvimento; direito à paz; direito ao meio ambiente; direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade; direito de

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comunicação. Ressalta que o direito ao desenvolvimento diz respeito tanto ao Estado quanto ao cidadão, que a estes cidadãos se traduz em uma pretensão ao trabalho e à saúde para que se possa obter à alimentação adequada.

BONAVIDES (2010, p. 571) analisa um direito o qual define como de quarta geração que é o direito a democracia, a informação e ao pluralismo. Também enfatiza a sua importância no desenvolvimento do país em face da globalização política na esfera da normatividade jurídica que corresponde à fase da institucionalização do Estado social, é vista como única alternativa para derrubar a crise que aflige o meio político, através de uma democracia participativa.

Discutir e refletir sobre o que se considerado como ato político, a desobediência civil é sem dúvida, um importante instrumento da cidadania que tem a finalidade de alterar e modificar a legislação ou as eventuais práticas governamentais com ética, moral, ordem, pacífica e não-violenta. Não se deve utilizar-se da força física para se conseguir o objetivo. A atuação dos cidadãos, em minoria ou não, sustentados nos princípios jurídicos do sistema vigente, sem a pretensão de substituir a ordem jurídica por outra e estas ações devem estar nos limites da legalidade jurídica visando à satisfação dos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados. Conclui-se com isso, sem margem para controvérsia que esta ação está plenamente garantida, implicitamente, na Constituição Brasileira.

É uma maneira democrática de participação porque admite ao povo que é o legítimo detentor e titular do poder, participar ativa e diretamente do processo político.

Partindo de princípio apreciado, neste artigo, como o da cidadania, da soberania popular e do princípio democrático com todos os seus efeitos, além do princípio da dignidade da pessoa humana e ainda da liberdade. Entendo seguramente que posso referir à desobediência civil como um direito fundamental facultado ao povo (cidadão) utilizar quando um direito esteja violado ou na iminência de violação, bem como que o poder público esteja omisso, silente ou mesmo injusto, resguardado constitucionalmente (§ 2º, art. 5º, CRFB/1988).

Este instituto encontra-se baseado não só na teoria política e constitucional, mas na Lei Suprema - Constituição, sobretudo nos princípios constitucionais. As leis são sem dúvida, indispensáveis para a sociedade, quando estas são injustas ou quando embaraçar ou paralisar o direito de alguns, deixam obviamente, de atingir o seu objetivo.

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É neste entendimento que o cidadão deve defender o direito de resistência como fundamental porque visam proteger a Constituição, seus princípios essenciais e salvaguardar o cidadão quanto às garantias institucionais.

O mais relevante política e socialmente está na legitimidade existente no instituto, visto que parte diretamente da sociedade sem precisar de intermediário, como ocorre com outros mecanismos formais de participação ativa e direta, por exemplo, do plebiscito e referendo garantidos e reconhecidos expressamente na Constituição, os quais precisam de autorização do Congresso Nacional para se realizar.

Se uma norma jurídica (lei, decreto-lei, medida provisória, decreto, resolução, etc.) estiver em desacordo com a Constituição e com seus princípios que, são os mandamentos maiores do Estado democrático de direito, nada mais justo que se busque sua correção, alterando ou modificando-a.

É fundamental a desobediência civil por se propor a efetivar mandamentos constitucionais em busca da justiça e da paz social, por ir diretamente ao encontro de atos e ações abusivas, arbitrárias, autoritárias, opressoras e tiranas emanados das autoridades governamentais.

É indispensável sempre lembrar que o ordenamento jurídico brasileiro, obviamente possui inúmeros mecanismos e meios institucionalizados para correções de possíveis injustiças, ameaças de lesões ou propriamente lesionados e violados ao direito, como é o direito de petição, habeas corpus, mandado de segurança individual ou coletivo, dentre outros.

Conforme já fora dito, estes direitos positivados podem ser falhos ou inoperantes. Neste momento nasce e surge para o cidadão o legítimo direito de utilizar outros mecanismos e meios na busca por justiça e paz social, mesmo através do instrumento ou instituto ainda não institucionalizado materialmente como é a desobediência civil, tendo em vista direitos do mais alto grau terem sido lesados e violados.

Segundo GARCIA (2004, p. 296), a desobediência civil é direito fundamental decorrente do “[...] regime republicano de governo, e pelo princípio democrático e princípio da cidadania, elencados entre os princípios fundamentais do Estado Brasileiro [...]”.

Por intermédio deste instrumento, o povo legítimo titular e detentor do poder, agarram e segura para si a possibilidade de se manifestar quando houver abusos, arbitrariedades ou injustiças advindo da lei ou de atos que firam a sociedade, a Constituição e os direitos fundamentais do cidadão.

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A desobediência civil é um direito fundamental, mas não é só por essa razão, também por efetivar princípios constitucionais como: soberania popular, cidadania, dignidade da pessoa humana e ainda por vincular ao princípio da igualdade, isto porque visa à participação da minoria, geralmente excluída política e socialmente, a fim de abrir caminho para o povo em todos os níveis participar politicamente com ética, moral, ordem, pacífica e não-violência.

O direito de desobediência civil existe essencialmente para garantir outros direitos, neste aspecto, só existirá a desobediência civil quando um direito essencial for lesionado ou violado, mas que a resposta a esta lesão ou violação se dê de forma ética, moralizada, ordeira, pacifica, sem força ou violência física.

As análises dos dispositivos essenciais e principais da nossa Constituição assinalam a existência de princípios materializados e positivados que protege a igualdade, a liberdade, sobretudo a dignidade humana na expressão de garantia de uma sociedade fraterna, justa, livre e solidária, na qual o direito de resistência se encontra introduzido como instrumento inerente à garantia da promoção do bem comum. Deste modo, o poder político poderá ser considerado legítimo em seu exercício por razão da primeira origem essencial: a soberania popular.

Como anotado por BENJAMIN CONSTANT, "a obediência à lei é um dever, mas, como todos os deveres, não são absolutos, é relativo; repousa sobre a suposição de que a lei parte de uma fonte legítima e se mantém dentro de justos limites".

A resistência não passa a ser legítima simplesmente porque esteja algum direito ou garantia fundamental, por exemplo, a igualdade, a liberdade, a dignidade humana ameaçada ou violada mais unicamente porque a ordem que o Poder Estatal pretende impor representa ordem contrária à realidade, imaginária e simulada, separada da idéia de direito e justiça.

O sacrifício praticado por SÓCRATES que preferiu submeter-se a um julgamento iníquo do que dar aos seus contemporâneos, o exemplo perigoso do desprezo às leis, por isso tornou-se admirável porque representou aceitação consciente do mal para salvaguarda do bem supremo, a ordem.

Em uma época em que não havia espaço para oposição entre a consciência individual e coletiva, entre o indivíduo e o Estado, SÓCRATES ensinava a obediência irrestrita às leis emanada do Estado, também

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pronunciava o respeito pelas leis más, mesmo que fossem injustas, a fim de que se não estimulasse a violação das leis que fossem boas. Este notável filósofo foi acusado injustamente de haver corrompido a mocidade, condenado, pôs em prática a doutrina que pregava, em que pese à sentença de morte que lhe pesava sobre a cabeça.

A ordem jurídica positiva, em todas as suas manifestações e gradações, circula e decorrem da necessidade de certeza, ordem, segurança e tranqüilidade social. Tanto a ordem como a certeza, segurança e tranqüilidade têm como ponto básico e primordial, o direito estatal, ao qual cabe como atributo essencial e indispensável, o de fazer merecer de forma inexorável.

O Estado encarna e representa as aspirações mais essenciais e gerais dominantes na coletividade. Colocam-se a serviço daqueles valores que pairam a todos os demais, inclusive aqueles que informam as normatizações jurídicas singelas. É compreensível que esses valores socialmente sobreponham-se aos demais, de modo a preservar a coletividade, em si mesma e permitir a consecução dos fins a cujo serviço se coloca.

A ordem geral, aquela que esgota e extrai a motivação nos interesses básicos da pessoa, tem assim no Estado como detentor do poder e supremo garantidor.

O Direito estatal é a fixação típica de princípios inarredáveis que devem servir de regras de conduta, capazes de estabelecer ambiente de ordem, segurança e tranqüilidade, imprescindíveis à convivência. É notória que a razão fundamental que justifica o direito é a exigência de certeza, de ordem, de segurança e de tranqüilidade social nas relações que se estabelecem na sociedade.

Não se poderá deduzir o que seria lamentável equívoco, que a ordem jurídica seja indiferente à idéia de justiça. Tem-se na ordem jurídica a superior justificação e não se pode prescindir do valor do justo para a exata compreensão da ordem jurídica positiva. Quando existe abuso, arbitrariedade, injustiça, insegurança e opressão, o próprio sentido ontológico da sociedade está fragmentado. Fragmenta-se pilar basilar e fundamental da soberania popular quando a normatização se afasta do bem comum.

FORMAS DE RESISTÊNCIA

Se for lícito desobedecer às leis, em que casos, dentro de que limites e por parte de quem, tornou-se já um problema tradicional que foi objeto de

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infinitas discussões e reflexões entre filósofos, juristas, moralistas, teólogos e etc.

A expressão "desobediência civil” a que se refiro bem ao contrário, é moderna, nasceu no uso corrente através dos escritores político anglo-saxões, a começar pelo ensaio clássico civil desobediente de 1849 de HENRI DAVID THOREAU, no qual o escritor americano declara recusar o pagamento das taxas (tributos) ao Governo que as emprega para fazer uma guerra injusta, a guerra contra o México, afirmando: "a única obrigação que eu tenho o direito de assumir é a de eu fazer em cada circunstância o que eu acho justo”. Depois perante a conseqüência do próprio ato que poderia levá-lo à prisão, responde: "Num governo que prende injustamente qualquer pessoa, o verdadeiro lugar para um homem justo é a prisão”.

A desobediência civil é tão-somente uma das situações em que a violação da lei é considerada como eticamente justificada por quem a cumpre ou dela faz propaganda. Trata-se de situações que habitualmente são compreendidas pela tradição dominante da filosofia política sob a categoria do direito à resistência.

ALEXANDRE PASSERIN d'ENTREVES distinguiu oito modos diferentes de o cidadão se comportar diante da lei: “1- obediência de consentimento; 2- obséquio formal; 3- evasão oculta; 4- obediência passiva; 5- objeção de consciência; 6- desobediência civil; 7- resistência passiva; 8- resistência ativa”.

As maneiras tradicionais de resistência iniciam na resistência passiva e terminam na resistência ativa. A desobediência civil em seu significado limitado e restrito, é uma forma intermédia. Na esteira de RAWLS e d'ENTREVES definem-na como uma ação ilegal, coletiva, pública e não-violenta, que se atêm aos princípios éticos superiores para obter uma mudança nas leis.

Com isso podem distinguir-se as situações que entram na categoria geral do direito de resistência, baseados e fundamentados nos diversos critérios calcados no tipo de desobediência por ação ou ato:

a) omissiva ou comissiva que consiste em não fazer o que é mandado - determinado (por exemplo: o serviço militar) ou em fazer aquilo que é proibido – vedado (por exemplo, o caso do negro que se sentam em um lugar público interditado as pessoas de cor);

b) individual ou coletivo, é realizada por um indivíduo isolado (é típico o caso do opositor de consciência, que geralmente age só e em decorrência de um ditame da própria consciência individual) ou por um

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grupo cujos membros dividem os mesmos ideais (são típicos disso as campanhas de GANDHI pela libertação da Índia do domínio britânico);

c) clandestina ou pública, ou seja, preparada e realizada em segredo - sigilo, como acontece e não pode deixar de acontecer no atentado anárquico baseado na surpresa, ou anunciada antes da execução, como acontece habitualmente com a ocupação das fábricas, de escolas e de casas realizadas com a finalidade de obter a revogação de normas repressivas ou impeditivas consideradas discriminatórias;

d) pacífica ou violenta, isto é, realizada através de meios não-violentos, como o sit-in e toda a forma de greve, de uma maneira geral, tanto da greve ilegal e ilegítima quanto da greve legítima e lícita, sempre há formas de greves consideradas ilícitas ou com armas próprias ou impróprias, como acontece geralmente em uma situação revolucionária (nota-se que a passagem da ação não-violenta para a ação violenta coincide com a passagem da ação omissiva para a ação comissiva);

e) voltada para a mudança de uma norma ou de um grupo de normas ou até do ordenamento inteiro. A natureza do instrumento da desobediência civil não é modelo para questionar todo o ordenamento, como acontece com a objeção de consciência em relação à obrigação de prestar o serviço militar, muitas vezes em circunstâncias excepcionais, como é o caso de uma guerra considerada particularmente injusta, por exemplo, na recente discussão com particular intensidade sobre o tema da desobediência civil lançada na Faculdade de Palmas - FAPAL). Também não tende derrubar um sistema por inteiro como acontece com a ação revolucionária.

A desobediência pode ser, segundo uma distinção que remonta às teorias políticas da idade da Reforma, ativa ou passiva. É passiva aquela que visa à parte preceptiva da lei e não à parte punitiva. Por outras palavras, é aquela que é realizada com a vontade precisa de aceitar a pena que resultar, enquanto tal, na medida em que não reconhece ao Estado o direito de impor obrigações contra a consciência, reconhece-lhe o direito de punir toda a violação das próprias leis. Ativa é a que se dirige ao mesmo tempo para a parte preceptiva e para a parte punitiva da lei, de tal modo que o que a realiza não se limita a violar a norma, mas tenta subtrair-se à pena de todas as maneiras.

Para dar um exemplo, a objeção de consclencta ao serviço militar, nos países onde a lei não a reconhece é omissiva, individual, pública, pacífica, parcial e realiza uma forma de desobediência passiva. Outro exemplo clássico é o do tiranicídio que é comissivo, geralmente individual e clandestino, não declarado por antecipação, violento e total, tende como o

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dos monarcômacos das guerras religiosas dos séculos XVI e XVII ou o dos anarquistas das lutas sociais do século XIX para uma mudança radical do Estado em exercício e realiza, também uma forma de desobediência ativa.

Retornando à desobediência civil como é concebida habitualmente na filosofia política contemporânea que leva em consideração as grandes campanhas não-violentas de GANDHI ou as campanhas para a abolição da discriminação racial nos Estados Unidos, é omissiva, coletiva, pública, pacífica, não necessariamente parcial, a ação de GANDHI foi certamente uma ação revolucionária, não necessariamente passiva, as grandes campanhas contra a discriminação racial tendem a não reconhecer ao Estado o direito de punir os pretensos crimes que lesa a discriminação.

Com a finalidade de distinguir a desobediência civil de todas as outras situações que entram historicamente na vasta categoria do direito de resistência, as duas características mais relevantes entre as que acima foram citadas são a ação de grupo e a não-violência.

A primeira característica serve para distinguir a desobediência civil dos comportamentos de resistência individual sobre os quais se apoiaram geralmente as doutrinas da resistência na história das lutas contra as várias formas de abuso de poder.

Típico ato de resistência individual é a objeção de consciência, pelo menos na maior parte dos casos em que a recusa de servir às Forças Armadas não é praticada em nome da militância em uma convicção religiosa, como a dos Mórmons ou das Testemunhas de Jeová. Ou o caso hipotético aventado por HOBBES daquele que se rebela contra o soberano que o condena à morte e lhe impõe que se mate.

A desobediência é individual mesmo quando recorre para a consciência de outros cidadãos, como é o caso de HENRY THOREAU em não pagar os tributos (impostos). Individual também o caso extremo de resistência à opressão, o tiranicídio.

A segunda característica a da não-violência serve para distinguir a desobediência civil da maior parte das formas de resistência de grupo, que diferentemente das individuais, geralmente não-violentas deram lugar a manifestações de violência onde quer que fossem realizadas, desde o motim à rebelião e desde a revolução à guerrilha.

A consideração dos dois critérios mais característicos dos vários fenômenos de resistência, o que distingue resistência individual de resistência coletiva e resistência violenta de resistência não-violenta, a desobediência civil, enquanto fenômeno de resistência de grupo e não-

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violento, ao mesmo tempo, ocupa um lugar preciso e bem delimitado entre os dois tipos extremos, historicamente, mais freqüentes e também mais estudados, da resistência individual não-violenta e da resistência violenta de grupo.

A desobediência civil tem o caráter de fenômeno de grupo próprio da resistência coletiva, pelo menos em certos casos de massa, ao mesmo tempo, tem o caráter predominante da não-violência próprio da resistência individual. Por outras palavras, é uma tentativa de repelir do grupo sedicioso a técnica de luta que lhe são familiares, o recurso às armas, próprias ou impróprias e levá-lo a adotar comportamentos que são característicos do opositor individual, a recusa de porte de armas, o não-pagamento de taxas, a abstenção da realização de um ato que repugna à própria consciência, como a adoração de deuses falsos e mentirosos e etc.

A desobediência civil é uma das várias formas que pode assumir a resistência à lei, é também e sempre caracterizada por um comportamento que coloca intencionalmente em ação uma conduta contrária a uma ou mais leis. Deve distinguir-se de comportamentos que acompanham, embora tenham o mesmo fim de contestar a autoridade fora dos canais normais da oposição legal e do protesto público, não consistem em uma violação intencional da lei.

A primeira distinção a fazer é entre desobediência civil e o fenômeno recente e clamoroso da contestação, ainda que a contestação termine em episódios de desobediência civil. O melhor modo de distinguir a desobediência civil da contestação é o recurso aos dois respectivos contrários: o contrário de desobediência é a obediência e o contrário de contestação é a aceitação. Quem aceita um sistema está obedecendo ao sistema; mas pode-se obedecer sem o aceitar, na verdade a maior parte dos cidadãos obedece por força de inércia, por hábito ou por imitação ou ainda por um vago medo das conseqüências de uma eventual infração, sem ficar convencida de que o sistema a que obedece seja o melhor dos sistemas possíveis.

Por conseqüência, a desobediência na medida em que exclui a obediência constitui um ato de ruptura que coloca em questão o ordenamento constituído ou uma parte da norma, mas não o coloca efetivamente em crise. A desobediência civil corresponde sempre a uma ação ainda que meramente demonstrativa (por exemplo, rasgar o certificado de convocação para o serviço militar), a contestação é feita através de um discurso crítico, através de um protesto verbal ou da enunciação de um slogan, não é por acaso que o lugar onde se desenvolve mais freqüentemente

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um comportamento de contestação é a assembléia, que é um lugar onde não se age, mas se fala.

O outro comportamento que convém distinguir da desobediência civil é o do protesto sob a forma não de discurso, mas de ação exemplar, como jejum prolongado ou o suicídio público mediante formas clamorosas de autodestruição, como o pegar o fogo no próprio corpo depois de derramar nele matérias inflamáveis. Antes de tudo, estas formas de protesto não são, como a desobediência, ilegais, se pode discutir a liceidade do suicídio, não é certamente discutível a liceidade de jejuar na medida em que não existe a obrigação jurídica de comer; segundo lugar, elas pretendem atingir como meta modificar uma ação da autoridade pública considerada injusta, não de uma forma direta, isto é, fazendo o contrário daquilo que deveria ser feito, mas indiretamente, buscando despertar um sentimento de reprovação ou de execração contra a ação que se quer combater, lutar.

A RESISTÊNCIA À OPRESSÃO E A ATOS ILEGAIS

O elemento essencial que integra a desobediência civil se refere ao direito de resistência a atos ilegais e a injustiças das leis que constitui um direito natural específico.

NORBERTO BOBBIO afirma que o cidadão tem o dever moral de obedecer às leis na medida em que for respeitado pelo Estado. O legislador tem o dever de produzir leis justas, de acordo com os princípios de direito natural ou racional e constitucional, de acordo com os princípios fundamentais e às regras básicas e formais previstas na Constituição.

Neste aspecto, entre o cidadão e o legislador deve haver uma relação de reciprocidade: se o cidadão tem deve de obediência. O legislador e o governo têm direito à obediência, também o cidadão tem o direito de ser governado com sabedoria e leis justas.

Para que se possa entender o que é injustiça ou ilegalidade, primeiro, se deve fazer uma análise conceitual. Entendo que, lei injusta é aquela que viola os princípios fundamentais da vida moral do homem e dos valores éticos que se assenta uma sociedade. Ilegalidade é o caráter do que é contrário à lei.

O segundo elemento que integra a desobediência civil refere-se ao direito de resistência a atos ilegais que constitui um direito natural específico.

O que é uma lei injusta? De acordo com a Enciclopédia Jurídica SOIBELMAN, lei injusta é aquela que viola os princípios fundamentais da

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vida moral do homem, os valores sobre os quais se assenta uma sociedade. Contudo, existe uma série de controvérsia entre os autores para saber até que ponto se distingue leis injustas de leis opressivas e ilegais.

Isso porque não é toda lei injusta que é opressiva, ou sendo opressiva não é ilegal. Ao lado desse problema, distinguem também as formas de resistências a estas leis, defendendo uns a idéia de que para reagir contra as leis injustas só se justifica a resistência passiva, porque a resistência ativa que seria a chamada resistência à opressão caracteriza-se paradoxalmente pelo seu caráter conservador, isto é, pelo restabelecimento do direito violado, ao passo que para a instauração de uma nova ordem o instrumento não seria a resistência, mas a revolução.

Contudo, toda essa discussão só é possível porque se admite a existência do direito natural, somente admitindo que os direitos subjetivos dos homens sejam anteriores ao Estado e que não é o Estado que os cria, é que se pode concordar e sustentar o direito de resistência. O direito de resistência é um elemento do direito natural.

Sobre o direito de resistência, THOREAU (2002, p. 325) afirma que:

“Todos os homens reconhecem o direito à revolução, isto é, o direito de recusar sujeição ao governo e de resistir quando sua tirania ou incompetência são em alto grau e insuportáveis. […] Em outras palavras, quando,num país que se propôs a ser o refúgio da liberdade, a sexta parte da população é constituída de escravos, e quando uma nação inteira é injustamente invadida e conquistada por um exército estrangeiro e submetida à lei marcial, penso que não é cedo demais para que homens honestos se rebelem e façam a revolução”.

HENRY THOREAU (2002, p. 331) também se refere ao direito de resistência quando diz:

“Se a injustiça faz parte do necessário atrito da máquina governamental, deixe estar, deixe estar: quem sabe se desgastará suavemente, a própria máquina acabando por se desgastar. Se a injustiça, no entanto, tem mola, polia, corda ou manivela, talvez possais considerar se o remédio não será pior que o mal; mas se é de tal natureza que exija de vós ser agente de injustiça para com outra pessoa, digo-vos então, rompei a lei”.

Outra questão que aciona o direito de resistência refere-se à questão da legitimidade. Essa questão veio à tona com o advento do nazismo, que atingiu o poder sem violar a legalidade constitucional alemã, mas que depois

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de estar no poder transformou-se no mais terrível regime político conhecido pela humanidade, colocando em pauta a discussão filosófico-jurídica do tema da legitimidade. Não existe dúvida de que todo regime ilegal é ilegítimo, mas será legítimo todo governo legal?

Este é o problema, cuja solução ainda não foi encontrada. Muitos ditadores chegam ao poder legalmente, mas exercem-no ilegitimamente. De Gaulle, durante a II Guerra Mundial, criou um governo ilegal no exílio, mas foi considerado legítimo pela opinião pública internacional. A discussão envolve todo o conceito de direito e de justiça, e nela os jusnaturalistas, que concebem a existência do Direito Natural, estão bem mais à vontade que os positivistas, que só consideram válido o direito posto pelo Estado, pois estes, ao contrário daqueles, partem da lei para diante, sem querer indagar das origens ou fins da lei.

Do ponto de vista democrático, o fundamento do poder está na opinião pública que o consagra. Assim, ilegítimo é todo poder que não se baseia no consenso dos governados. Contudo, após certo tempo de poder ilegítimo os seus detentores conseguem também criar uma vasta opinião pública ou até mesmo mais de uma geração que o aceita e defende. Logo, a opinião pública não é um bom critério para legitimar o governo.

Nesse sentido, o critério menos problemático seria considerar como legítimos apenas os governos que defendem a liberdade humana através de eleições livres pluripartidárias, garantindo o direito de a minoria manifestar-se. Em épocas de crise vale a opinião popular espontânea.

Enfim, o segundo ponto que fundamenta a desobediência civil é a existência de uma lei injusta ou uma lei ilegítima (isto é, emanada de quem não tem o direito de legislar) ou, então, o caso de uma lei inválida (ou inconstitucional – produzida em desacordo com a Constituição vigente).

Os estudiosos do Direito entendem que a justiça é um sentimento determinado pelo espírito, fundado na razão que nasce no íntimo do ser humano e que se manifesta de dentro para fora. É um elo de harmonização que a moral e a razão estabelecem entre direito e dever. Partindo-se deste conceito, vislumbra-se que as leis antes de tudo devem primar pela ordem e organização de toda e qualquer sociedade, porém sem esquecer-se de seu aspecto fundamental, o bem estar dos que vivem sob sua vigência. Não se sabe, se o cidadão faz parte da imensa "engrenagem jurídica" do nosso país ou apenas é um cidadão, de alguma forma menosprezado, pela visão dos que defendem ou pelo menos deveriam defender, os interesses da sociedade face às barreiras que ela própria, através de seus vários agentes públicos ou privados, interpõem entre a Justiça e o Direito.

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Assim, podemos compreender de que a justiça é um sentimento que nasce dentro de nós, mas sinto-me na obrigação de discordar quando diz que esse sentimento tão íntimo e particular se funda na razão. Esse sentimento pode ter fulcro tanto na razão humana quanto, acredito mais frequentemente, na emoção. Não exigimos justiça por análise; exigimos justiça por sensibilidade, compaixão, perda e etc.

A moral tem raízes ainda mais profundas, de origem cultural e social. Como acadêmico do Curso de Direito, faço-me essa indagação: será que para as sociedades medievais e pré-medievais as "sanções jurídicas" aplicadas naquele tempo eram tão bárbaras quanto às enxergamos hoje? Justiça é o que almejamos para nós e para os nossos descendentes e ainda para toda a sociedade em todos os aspectos. Direito é o limite, muitas vezes, destoante, porém certamente necessário, para que seu sentimento de justiça não penetre, nos de outras pessoas. Visualize essa situação da seguinte forma: imagine dois círculos concêntricos o maior é o da Justiça e o menor o do Direito. Nosso trabalho? Aproximar suas bordas, sem a utopia de torná-los simétricos, porém com certeza sem alterar o maior.

A obediência irrestrita é aquela celebrada entre Deus e o povo por intermédios das leis reveladas. Igual fora o convênio bíblico de Moisés e do povo Hebreu.

Para compreender o que se entende por desobediência civil é necessário partir da consideração de que o dever fundamental de cada pessoa obrigada a um ordenamento jurídico é o dever de obedecer às leis. Este dever é chamado de obrigação política. A observância da obrigação política por parte da grande maioria dos indivíduos, ou seja, a obediência geral e constante às leis é, ao mesmo tempo, a condição e a prova da legitimidade do ordenamento. Pela mesma razão pela qual um poder que pretende ser legítimo encoraja a obediência e desencoraja a desobediência, enquanto que a obediência às leis é uma obrigação e a desobediência uma coisa ilícita, punida de várias maneiras.

HENRY DAVID THOREAU decide que é possível transgredir as leis injustas, imediatamente, mas de forma não violenta, ordeira e pacífica. Assim, a obediência às leis e práticas governamentais, para este autor, dependia da avaliação individual que devia negar a autoridade do governo quando este tivesse caráter injusto. Não importava se o governante fosse oriundo da vontade da maioria, pois essa maioria dos governados, muitas vezes, não age da melhor forma possível para o bem estar de todo o povo.

A desobediência deve resultar dos direitos essenciais do cidadão sobre o Estado, sempre que o poder estatal extrapolar suas prerrogativas ou

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não corresponder com as expectativas geradas ou que não seguir os critérios de justiça ou ainda que contrariar os princípios morais dos indivíduos. Cada cidadão nacional tem por obrigação possuir um compromisso ético com a sua consciência.

A desobediência civil é uma forma particular de desobediência, na medida em que é executada com o fim imediato de mostrar publicamente a injustiça da lei e com o fim mediato de induzir o legislador a mudá-la. Como tal é acompanhada por parte de quem a cumpre de justificativas com a pretensão de que seja considerada não apenas como lícita, mas como obrigatória e seja tolerada pelas autoridades públicas diferentemente de quaisquer outras transgressões (quando se viola uma lei para atacar apenas o conteúdo da lei a que viola).

Os doutrinadores que defendem o instituto da desobediência civil, afirmam que a lei deve ser desobedecida em três circunstâncias: quando a lei for injusta; quando a lei for ilegítima (emanada de quem não tem o direito de legislar); quando a lei for inválida ou inconstitucional. Portanto, nestes casos não existe lei em sentido pleno. Se o cidadão tem o dever moral de obedecer às leis, cabe ao poder estatal a obrigação de editar leis justas, legítimas e constitucionais.

A desobediência comum é um ato que desintegra o ordenamento e deve ser impedida ou eliminada a fim de que o ordenamento seja reintegrado em seu estado original. A desobediência civil é um ato que tem em mira, em última instância, mudar o ordenamento, sendo, no final das contas, mais um ato inovador do que destruidor. Chama-se civil precisamente porque quem a pratica acha que não comete um ato de transgressão do próprio dever de cidadão, julgando, bem ao contrário, que está se comportando como bom cidadão naquela circunstância particular que pende mais para a desobediência do que para a obediência. Exatamente pelo seu caráter demonstrativo e por seu fim inovador, o ato de desobediência civil tende a ganhar o máximo de publicidade.

Este caráter publicitário serve para distingui-la nitidamente da desobediência comum: enquanto o desobediente civil se expõe ao público e só expondo- se ao público pode esperar alcançar seus objetivos, o transgressor comum deve realizar sua ação no máximo segredo, se desejar alcançar suas metas.

Todos têm o direito de não cumprir as leis. Não qualquer lei, claro, mas sim aquelas que impeçam o exercício dos direitos fundamentais e naturais como a liberdade, a vida, a dignidade e a integridade física. Isso é o que se chama desobediência civil, teoria elaborada pelo filósofo e poeta

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estadunidense Henry David Thoreau, depois de ter sido preso por não pagar os impostos que serviriam para cobrir as despesas das tropas dos Estados Unidos na Guerra contra o México, no século XIX. Ele não concordava com essa guerra e, por isso, não achava que tinha que pagar para que ela continuasse.

A desobediência civil é uma forma de protesto que consiste em violar deliberadamente a lei, sem fazer uso da violência. O objetivo de um ato de desobediência civil é chamar a atenção para uma lei injusta ou para uma causa justa, apelar consciência da população e forçar as autoridades a negociar ou reconhecer sua exigência como legítima. Trata-se de nada mais que um ato político, não violento, que pretende uma mudança nas leis ou na política. Em geral as pessoas que praticam essa forma de protesto pacífico não se negam a cumprir sanções legais a que ficam sujeitas em decorrência de seus atos. Mahatma Gandhi se inspirou em suas leituras de Leon Tolstoi, Henry Thoreau e John Rawlsn para propor sua vitoriosa campanha de desobediência civil na Índia. Hoje ele é considerado, assim como Martin Luther King, um dos principais formuladores dos princípios da desobediência civil. Uma das formas de expressão do Direito de Resistência.

A desobediência civil, também são exemplos de resistência o direto de greve (para proteger os direitos homogêneos dos trabalhadores) e o direito de revolução (para resguardar o direito de o povo exercer a sua soberania quando esta é ofendida). Essas idéias são as concepções de Direito Natural e de resistência a atos ilegais.

A desobediência civil consiste na desobediência à lei ou à medida governamental que não atende aos ideais de justiça e moralidade. É uma ação pública não violenta (Mahatma Gandhi e Martin Luther King), uma ilegalidade amparada em justificativas legítimas, de aceitação popular, com o escopo de modificar a lei ou a regra injusta ou imoral.

Henry David Thoreau, que dizia que “o melhor governo é o que menos governa”, entendia que o respeito à lei deve se firmar na consciência do indivíduo e que eventual prisão pela desobediência tratar-se-ia de mérito pessoal, portanto um ato louvável. Também não buscava a revolução, quando afirmava “o que desejo imediatamente é um governo melhor, e não o fim do governo”, que o governo não submeta seus governados às leis injustas.

O direito à resistência tem suporte no fundamento de que os homens e o Soberano firmam entre si um contrato social. É, contratualista. Por outro lado, isso parece, ao mesmo tempo, condizente e contraditório, posto que, para Rousseau (pai) da teoria do contrato social, a liberdade civil consiste no

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fato de que o homem, parte do social e “membro do eu comum”, é um ser autônomo, mas que se submete às regras da comunidade. Dado este, contratualismo, uma característica essencial à desobediência civil é sua natureza pública, apresentada pela filosofia política de Hannah Arendt, judia alemã que criticava a opressão política. O caráter público da desobediência civil é primordial, visto que, sem ele, se confundiria com a desobediência criminal.

Os direitos essenciais à pessoa humana nascem das lutas contra o poder, das lutas contra a opressão, das lutas contra o desmando, gradualmente, ou seja, não nascem todos de uma vez, mas sim quando as condições lhes são propícias, quando passa a reconhecer a sua necessidade para assegurar a cada indivíduo e a sociedade uma existência digna.

A convicção, explicitamente assumida pelo totalitarismo de que os seres humanos são supérfluos e descartáveis, representa uma contestação frontal à idéia do valor da pessoa enquanto "valor fonte" de todos os valores políticos, sociais e econômicos e, o fundamento último da legitimidade da ordem jurídica tal como formulada pela tradição, seja no paradigma do Direito Natural seja na Filosofia do Direito.

É importante ressaltar que o individuo é muito mais do que integrante de uma ordem generalizada, ele é o próprio fundamento de legitimidade da ordem jurídica, política e econômica do Estado, e por esse motivo o direito e todos os outros instrumentos de garantia democrática devem atender aos interesses do corpo social como um todo, não apenas aos interesses de uma determinada classe. Como ocorreu no Brasil durante a Ditadura Militar, que viam os seres humanos como supérfluos. Logicamente não deve ser esta a visão adotada pelo direito, haja vista que sua função dentro de qualquer sociedade é garantir a integridade física e psicológica e a dignidade da pessoa humana.

Outro fator importantíssimo para a saída de um regime totalitário se trata da desobediência civil. Sobre esse tema LAFER aborda juntamente com ARENDT a seguinte interpretação:

“Hannah Arendt entende que, em situações limites [...] a desobediência civil é legitima e pode ser bem sucedida na resistência à opressão. [...] De fato, [...], a desobediência civil, sendo a expressão de um empenho político na resistência à opressão, não se constitui como rejeição da obrigação política, mas sim como a sua reafirmação”.

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Nesse trecho LAFER elabora seu debate com ARENDT centrado na importância da desobediência civil, politicamente organizada, como meio de resistência e saída de um modelo político-jurídico opressor para uma democracia voltada para o atendimento dos direitos civis e direitos fundamentais. Ressalta-se que a desobediência civil proposta por ARENDT não é qualquer tipo de resistência ao governo opressor, trata-se de um movimento politicamente organizado que busca sua legitimidade não a partir da violência, mas sim por meio de manifestações ideológicas em defesa de um regime político voltado para os interesses sociais.

Outro ponto relevante que entendo que se deve considerar, diz respeito às situações limite, para se evitar a anarquia e o enfraquecimento da segurança jurídica brasileira, pois a resistência ao poder opressor do Estado tem que se pautar pela ordem, pacificidade e não violência.

Com isso, tende-se a assegurar a liberdade plena ao indivíduo, que além de exercitar seus direitos, possui em suas mãos o instrumento de resistência à opressão do exercício destes direitos, nasce o exercício da desobediência civil, que se mostra como elemento integrante à disposição da cidadania com a finalidade principal de proteção das prerrogativas inerentes à cidadania e aos direitos fundamentais.

Nesse aspecto a Professora MARIA GARCIA entende que a desobediência civil é:

“uma das formas particulares de resistência ou contraposição, ativa ou passiva do cidadão, à lei ou ato de autoridade, quando ofensivos à ordem constitucional ou aos direitos e garantias fundamentais, objetivando a proteção das prerrogativas inerentes à cidadania, pela sua revogação ou anulação”.

Inegável que a desobediência civil é o instrumento de garantia de liberdade do indivíduo que se revela uma íntima ligação com o aspecto social, como de fato vem a possibilitar o uso do direito ao exercício da cidadania, sem que se descaracterize o elemento individual inerente a todo cidadão.

O exercício de tais garantias não só impõe limites ao Poder Estatal como torna propício que o indivíduo venha a proferir julgamento a respeito das ações governamentais adotadas pelo Estado, o que reforça a idéia de que na desobediência civil estaria à força da opinião pública, organizada e pacífica.

Refletir sobre o tema desobediência civil, nos conduz à aproximação do que seria para o indivíduo, uma lei razoavelmente justa ou injusta,

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especificamente em relação aos juízos de ponderação da moral e da teoria de justiça.

A questão que se coloca como premissa fundamental para uma breve análise é o fato da possibilidade de resistência (desobediência) do cidadão, sempre que houver descumprimento das liberdades conferidas pela lei ou outras normas legais, o que significaria a coexistência do sentimento de justiça adotado pela sociedade contemporânea com o do próprio ordenamento jurídico.

A desobediência civil ao permitir o cidadão participar do controle de constitucionalidade das leis em um verdadeiro "controle informal de constitucionalidade", constitui-se em medida de proteção às prerrogativas de cidadania. Esse atributo exclusivo de reserva do cidadão diante do Estado e agente transformador de mudança decorre do que dispõe a Constituição Federal no artigo 1º, parágrafo único, "Todo poder emana do povo”.

Baseado no fundamento constitucional da cidadania, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Maurício Corrêa, Relator do Habeas Corpus 73.454, julgado no dia 22 de abril de 1996, decisão publicada no DJ de 7 de junho de 1996 decidiu que:

“Ninguém é obrigado a cumprir ordem ilegal, ou a ela se submeter, ainda que emanada de autoridade judicial. Mais: é dever de cidadania opor-se à ordem ilegal; caso contrário, nega-se o Estado de Direito".

A desobediência civil não se encontra expressa formalmente na

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, de outro, também possa encontrar seus limites na própria norma constitucional, especialmente, quando da interpretação da disposição contida no § 2º, do artigo 5º, da citada Constituição Federal.

O § 2º, do artigo 5º, da Constituição Federal de 1988 assegura que: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Para a abordagem desta questão, interessa-nos, especificamente, a

primeira parte do dispositivo constitucional acima transcrito:

“Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados”.

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MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, Comentários à Constituição brasileira, 3ª edição, São Paulo, Saraiva, 1983, p. 632, expõe de forma precisa o alcance do preceito:

“O dispositivo em exame significa simplesmente que a Constituição brasileira ao enumerar os direitos fundamentais não pretende ser exaustiva. Por isso, além desses direitos explicitamente reconhecidos, admite existirem outros, decorrentes dos regimes e dos princípios que ela adota, os quais implicitamente reconhecem”.

O regime instituído pela Constituição Federal de 5 de outubro de 1988 é o Estado Democrático destinado a assegurar o exercício dos direitos individuais e sociais, a liberdade e a segurança, além de outros explicitados no preâmbulo que, como sustentamos, incidem sobre inúmeros pontos e artigos da Constituição, como, por exemplo, neste § 2º do artigo 5º, que os invoca como decorrentes do regime e dos princípios adotados pelos constituintes, na constituinte, e que agora figuram na Oitava Constituição da República Federativa do Brasil.

MARIA GARCIA, ao estudar o tema da desobediência civil como direito fundamental do cidadão, escreve o seguinte:

“[...] o sistema dos direitos fundamentais, na Constituição de 1988, pelo que estatui no art. 5º, § 2º, apresenta abrangências que ainda não se chegou a precisar, as quais dão o sentido desse dispositivo, internacionalizando, por essa forma, o âmbito dos direitos e garantias fundamentais”.

Segundo essa doutrinadora, a norma contida no § 2º do artigo 5º da Constituição Federal, se classifica como uma norma:

“[...] de eficácia plena, que abrange os ‘outros direitos e garantias’ decorrentes do regime e princípios adotados pela Constituição. É dizer, localizável e identificável a partir do regime e dos princípios constitucionais, nos quais têm fundamento e limite e então aplicáveis desde logo, como o são ‘as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais’, por força da determinação do § 1º ao art. 5º”.

Trata-se, como afirmado, inclusive por PEDRO LENZA, de uma norma constitucional de eficácia plena e de aplicabilidade direta, imediata e integral, norma esta, conforme também sustentado por JOSÉ AFONSO DA SILVA que, desde a entrada em vigor da Constituição, produz ou poderá produzir todos os seus efeitos essenciais. MEIRELLES TEIXEIRA afirma que aquelas normas que produzem, desde a sua promulgação, todos os seus

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efeitos essenciais, porque portadoras de normatividade suficiente, incidindo direta e imediatamente sobre a matéria que lhes constitui objeto.

Nesse sentido, também, a colocação de EROS GRAU, Ministro do Supremo Tribunal Federal sobre a aplicação direta das normas instituidoras de direitos e suas garantias, afastando a doutrina tradicional dos direitos fundamentais dentro da reserva da lei, em favor da doutrina da reserva da lei dentro dos direitos fundamentais.

MARIA GARCIA insere dentre os direitos e garantias decorrentes do regime e princípios adotados pela Constituição, o direito de desobediência civil. Essa autora também cita a opinião de MARIA HELENA DINIZ, que destaca:

“‘a essência ética da norma jurídica: Comando voltado para o comportamento humano, como ordem do ‘dever ser’, a norma jurídica pertence à ordem ética que tem por objeto as ações humanas’”.

Adiante, com base em Henry David Thoreau, MARIA GARCIA escreve o seguinte em relação ao dever da desobediência civil:

“Esse ‘repensar o Estado’ e as formas sutis de opressão, a dominação tecnocrática e tecnológica, a comunicação de massas - a cidadania como expressão máxima do direito à liberdade - aqui entendida, sempre, no sentido de participação política ou ‘como opção política de vida’ (Arendt) envolvem, inelutavelmente, novas formas de participação direta do cidadão no exercício do poder pelo Estado e tem, como uma de suas prerrogativas, a desobediência civil, num primeiro momento, forma de participação pelo non agere, diante da lei ou do ato emanado da autoridade ou de ação, em desobediência ou de um agir em prol da participação política (tomada de decisão)”.

A desobediência civil é segundo NORBERTO BOBBIO, uma forma particular de desobediência, na medida em que é executada ‘com o fim imediato de mostrar publicamente a injustiça da lei e com o fim mediato de induzir o legislador a mudá-la. Como tal, explicita, é justificada pelo transgressor de justificativas que levem à sua consideração não apenas como lícita, mas como obrigatória e seja admitida pelas autoridades públicas, diversamente do que ocorre com outras transgressões’.

É preciso delinear a desobediência civil como ‘um ato que tem em mira, em última instância, mudar o ordenamento sendo, no final das contas, mais um ato inovador do que destruidor’.

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No fundo do conceito político da resistência, têm-se as idéias: a concepção da lei injusta; o princípio da mediação do Estado e da retenção da soberania pelo povo.

O elemento que integra a desobediência civil refere-se ao direito de resistência a atos ilegais que constitui um direito natural específico.

Diante dessas idéias, destaca-se a demonstração de que a desobediência civil (espécie distinta da resistência à opressão), não se dirige ao direito de revolução; não se dirige ao direito de objeção de consciência, ou se constitui em dever moral; não objetiva a destruição da lei ou da ordem, da autoridade ou do respeito às regras erigidas em normas de coexistência social: é um direito de garantia do exercício da cidadania, a qual outorga ao cidadão o poder de fazer a lei e de descumprir a lei, quando em desacordo com a ordem constitucional e aquela consubstanciada nos direitos e garantias expressos na Constituição.

Assim, pode-se conceituar desobediência civil como uma forma particular de resistência ou contraposição, ativa ou passiva do cidadão, à lei ou ato de autoridade, quando ofensivos à ordem constitucional ou aos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, objetivando a proteção das prerrogativas inerentes à cidadania e à dignidade da pessoa humana, pela sua revogação ou anulação.

O direito de resistência é entendido como garantia individual ou coletiva regida pelo direito constitucional que está a serviço da cidadania, da democracia, da dignidade da pessoa humana, dos direitos sociais e da livre iniciativa, da liberdade, das transformações sociais e políticas, na medida em que os governantes e governados estão sujeitos ao Direito, os quais só estão obrigados enquanto ambos cumprirem as leis (Constituição, Leis, Decretos, Resoluções e etc.).

A violação do Estado Democrático de Direito ou ofensa aos direitos fundamentais possibilita o uso da resistência, na medida política e jurídica, na tentativa imperiosa do retorno à ordem democrática e da segurança jurídica, portanto, o direito de resistência não é mera admissão formal do texto constitucional, mas uma relação justa entre o comando normativo e as práticas constitucionais. Os elementos fundamentais que indicam a presença do direito de resistência no direito constitucional se referem aos valores da cidadania, da dignidade humana e ao regime democrático.

Na Constituição brasileira, os direitos e as garantias fundamentais expressos, não são ilimitados, uma vez que nos encontram demais direitos igualmente consagrados pela Constituição (princípio da relatividade). A

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nossa Constituição faz uma promessa de construção do Estado de Direito, pois o Brasil vem consolidando lentamente o processo democrático e de efetividade dos direitos fundamentais, independentemente de não ter sistematizado no texto constitucional o direito de resistência.

Quando a Constituição anuncia, logo no início, os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito (cidadania, dignidade da pessoa humana e etc.), quer indicar que não há Estado Democrático de Direito sem direitos fundamentais, já que esses direitos são uns elementos do Estado, assim como não existem direitos fundamentais sem democracia.

A Constituição Federal de 1988 inovou por ampliar o rol dos direitos e garantias fundamentais ao incluir não só os tradicionais direitos civis e políticos, mas também os direitos sociais (a educação, a saúde, a alimentação, ao trabalho, a moradia, ao lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados - art. 6º, CRFB/1988). Os direitos civis e políticos são guiados pelo princípio da liberdade, enquanto os direitos sociais são fundados no princípio da igualdade e articulados com os direitos coletivos que provocam a emergência da justiça social.

Têm-se ainda os direitos de acesso ao emprego, à renda e a terra constitui o maior desafio do Estado brasileiro que tem a função de formular políticas que alcancem à massa humana que se conhece por “sem-terra”, “sem-teto”, “sem-renda”, “sem-emprego”, enfim, “sem-nada”. A não distribuição equânime da justiça social, além de descumprir um preceito constitucional, legitima política e juridicamente o povo, através dos movimentos sociais a exercerem o direito de resistência.

O exercício do direito de resistência não pode ter como objetivo a subversão da ordem jurídica vigente, ao contrário, deve ser um instrumento de modificação dessa ordem pelos mecanismos que esta estabelecer, ainda que em uma fronteira próxima da ilegalidade. Um meio que permite ao indivíduo e à sociedade intervirem diretamente nas instituições públicas, através de métodos legais que se permite defender todo o direito que se encontra ameaçado ou violado, com forma de pressão legítima, de protesto, de rebeldia contra as leis, atos ou decisões que ponham em risco os direitos civis, políticos e sociais do indivíduo. Uma dessas ações contrárias à lei é a desobediência civil.

A desobediência civil é um instrumento que visa aprimorar a democracia ao permitir que os indivíduos, as minorias ou mesmo as maiorias oprimidas participem diretamente do processo político, tornando-se um mecanismo adequado na defesa dos direitos da cidadania, da dignidade

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da pessoa humana, pois se aplica em todos os domínios econômico, político e social, exprimindo protesto contra os abusos do Estado.

A desobediência civil é tida como um ato ilegal que se pode justificar, pelos seguintes motivos: é um instituto da cidadania, pois tem como finalidade, manter, proteger ou adquirir um direito ameaçado, negado ou violado; é um fundamento dos princípios de justiça e equidade.

O direito de resistência é um direito de caráter político, porque diz respeito à participação dos cidadãos e a influência da soberania popular nos processos decisórios que pode ser realizado através dos instrumentos do plebiscito, referendo, veto popular, entre outros e de formação das vontades públicas e estatais. Não é um Direito novo que se busca com a desobediência civil, mas a efetiva implementação dos ditames do Direito que já existe, portanto, legítimo.

Não é concebível a desobediência do indivíduo contra Estado, mas quando o poder estatal opera contra o direito, cessa a permissão da autoridade pública. Nesse caso, se o cidadão resiste não fará outra coisa senão se opor à violência comum em defesa dos seus direitos, não estará desobedecendo a um direito do Estado, mas a uma injusta pretensão de seus órgãos. Portanto, os limites do direito de resistência se apresentam dentro do próprio texto constitucional, por exemplo: na preservação da cidadania, da dignidade da pessoa humana, dos valores democráticos, do Estado Democrático de Direito e no respeito aos direitos fundamentais (à vida, à liberdade, à propriedade, à segurança), dentre outros.

O direito de resistência existe na ordem constitucional que pode ser constatado, no preâmbulo: artigo 1º, caput, inciso II, §§ 1º e 2º; artigo 9º; artigo 14, caput e seus incisos. Entre outros, além do artigo 28, item 2 do artigo 29 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

É louvável a afirmação de CARLOS MAXIMILIANO que a Constituição:

“não pode especificar todos os direitos, nem mencionar todas as liberdades. A lei ordinária, a doutrina e a jurisprudência completam a obra. Nenhuma inovação se tolera em antagonismo com a índole do regime, nem com os princípios firmados pelo código supremo. Portanto, não é constitucional apenas o que está escrito no estatuto básico, e, sim, o que se deduz do sistema por ele estabelecido, bem como o conjunto das franquias dos indivíduos e dos povos universalmente consagrados”.

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O povo brasileiro, caso queira, possui mecanismo e meio para o exercício da desobediência civil, na sua expressão ativa ou não, pois a primeira parte do parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal de 1988 diz: “Todo poder emana do povo”, implicitamente defende a idéia de que o cidadão detém a soberania popular, e, o poder de elaborar a lei e de participar da tomada de decisão, a respeito do seu próprio destino e ainda tem a prerrogativa de deixar de cumprir a lei ou de obedecer a qualquer ato da autoridade sempre que referidos atos se mostrem conflitantes com a ordem constitucional, direitos ou garantias asseguradas.

Assegura o inciso XXXIV, alínea ‘a’, do artigo 5º, da Constituição da República de 1988: “o direito de petição aos Poderes Públicos”, o qual se destina, na dicção constitucional, “em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”. Isso mostra que a desobediência às leis consiste em um meio de cidadania importante, através da participação popular de forma não violenta e extremamente legítima, em busca de modificar, pacificamente, a legislação e as práticas governamentais para garantir-lhes os direitos econômicos, jurídicos, políticos e sociais.

Portanto, pode ser exercido, em face do Executivo, do Judiciário ou do Legislativo, conforme acentua JOSÉ CELSO DE MELLO FILHO para quem ‘a importância desse direito público subjetivo mais se acentua quando se verifica que os Poderes do Estado não podem deixar de responder à postulação deduzida’.

Em outras palavras, é a atitude do cidadão que, declarando-se em desobediência civil, com fundamento no princípio da cidadania (art. 1º, II; art. 5º, § 2º, e XXXIV, a, da CRFB/1988), peticiona ao Poder Público demandando a sua exclusão dos efeitos de uma lei ou ato de autoridade ou a sua revogação ou alteração, à vista da sua demonstrada conflitância com a ordem constitucional ou determinado direito ou garantia fundamental contrária à cidadania e à dignidade da pessoa humana.

Por seu turno, a desobediência civil não se define pela negativa de qualquer ordem, de qualquer governo e de qualquer direito. Trata-se, ao contrário, de questionar e de resistir a uma específica ordem, a um tipo de governo e a um particular direito, que, por diversas razões, são tidos por imorais e injustos. Nesse sentido, o reconhecimento do estatuto da desobediência civil aparece como um modo de salvaguardar ou mesmo de resgatar à cidadania e à dignidade da pessoa humana diante da massacrante e crua realidade do poder brasileiro.

Assim, a desobediência civil não pode representar a função de sustentáculo teórico para indivíduos e grupos que lançam mão de ações

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violentas com o único fito de atingir objetivos privados e egoísticos, descomprometidos, com o significado original da idéia, que, em essência, é uma maneira de se resistir à opressão e não de gerá-la.

A desobediência civil significa a desobediência dos cidadãos, dentro de determinadas situações, diante de uma ordem instituída. Esta transgressão político-jurídica pode ter uma força altamente perturbadora da estabilidade da experiência jurídica e como tal é um instrumento poderoso à disposição dos membros de uma comunidade.

Se a soberania realmente pertence ao povo e é graças a essa soberania que o Estado se mantém, não é absurdo afirmar que quem construiu o Estado pode, por diversos motivos, desconstruí-lo. Do contrário, a sociedade civil corre o risco de assumir a aventura sem volta da obediência cega à autoridade, que, interessada em maximizar o poder e o império, não hesita em sacrificar os direitos fundamentais dos cidadãos.

A aceitação da desobediência civil como um dos direitos fundamentais representa uma espécie de garantia segundo a qual aqueles que concederam o poder podem retomá-lo a qualquer momento, através de razões fortes para justificar a quebra do status quo, com resistência organizada, pacífica e não violenta. Ora, desobediência civil é apenas uma forma de dizer resistência à opressão do poder estatal.

É prudente reconhecer que a desobediência civil não se constitui como anomalia, ato ilícito ou subversivo, mas como exercício regular de direito fundamental. Antes de tudo, deve-se entender que as normas jurídico-positivas não são todo o direito, posição que já é aceita inclusive pelo positivismo jurídico. A desobediência civil integra a noção de direitos fundamentais que é a base do Estado Democrático.

Essa visão da transgressão política do cidadão como perfeitamente admissível para a recuperação democrática de uma comunidade político-jurídica é compartilhada por JOHN RAWLS em sua obra ‘Uma Teoria da Justiça’, a desobediência civil é um ato político, público e não violento, contrário á lei, praticado com objetivo de promover a mudança de leis e de políticas governamentais. O papel da desobediência civil é de ser utilizada como um mecanismo de estabilização de um sistema constitucional mesmo que ilegal, por isso é importante à recepção pelo ordenamento da possibilidade de sua prática, atuando assim como um instrumento de controle democrático da justiça social.

No centro desta discussão está a desobediência civil como um direito de resistência à opressão, como um instrumento na defesa da cidadania e ao

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mesmo tempo a sua realização plena. O direito à cidadania é visto como o direito de ter direito. A afirmação da cidadania é a afirmação da pertinência de todo homem a algum tipo de comunidade juridicamente organizada. A cidadania confere ao ser humano o seu lugar no mundo e a condição para o exercício da sua singularidade entre homens iguais. A igualdade que deve permear a diversidade.

Diante dos comentários expostos, podemos concluir que em especial no âmbito tributário, há leis, perversa e abusivamente criadas e aprovadas pela classe política detentora do poder do Estado, que não são obedecidas pelos contribuintes (pessoas físicas e jurídicas), principal e justamente porque exigem tributos (impostos, contribuições, taxas e etc.) escorchantes, abusivos, iníquos, imorais e injustos e também porque, não raras vezes, são eivadas de ilegalidades e inconstitucionalidades, e ainda porque são carentes de sentido e fundamento éticos, bem como de um fim efetivamente social.

Ao resistirem ou se oporem à obediência de leis notadamente injustas, por imporem tributos injustos, os cidadãos-contribuintes estão exercendo a desobediência civil, prevista implicitamente em nossa Constituição Federal de 1988, segundo o artigo 5º, § 2º, os direitos e garantias nela expressos, não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, que objetiva demonstrar essencialmente a injustiça de tais leis/tributos, com vistas à mudança deles.

A desobediência civil há de ser vista, como legítima e lícita, precipuamente à luz do artigo 5º, § 2º da nossa Constituição e também como um dever moral e ético e um direito que podem ser exercidos em virtude da nossa condição de cidadão.

Segundo HENRY THOREAU: “Existem leis injustas; devemos submeter-nos a elas e cumpri-las, ou devemos tentar emendá-las e obedecer a elas até a sua reforma, ou devemos transgredi-las imediatamente?”.

De fato, segundo a doutrina de HENRY THOREAU, a desobediência civil pode encontrar limites impostos pela própria lei. Logicamente, a liberdade é determinada pela estrutura institucional, enquanto sistema de regras públicas que definem direitos e deveres não se devem permitir aos sujeitos fazer ou não algo, mas também o Estado e as outras pessoas têm o dever jurídico de não obstruir a sua ação.

Na concepção de JOHN RAWLS que define "desobediência civil como ato público, não violento, consciente e, apesar disto, político, contrário à lei, geralmente praticado com o intuito de promover modificação na lei ou

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práticas do governo". Há uma teoria de resistência justa, fundamentada em ideal de justiça oriundo de consenso, no qual não há dominação e, respeito mútuo aos integrantes do todo.

Neste desiderato de contraposições entre as liberdades públicas e individuais e, o modelo normativo político constitucional nacional de definição de direitos (garantias individuais e coletivas) e deveres, surgem algumas questões que ainda não se encontram pacificadas.

Sem sombra de dúvidas, o tema desobediência civil, apresenta extrema relevância à medida que vem a elevar o “indivíduo cidadão” como membro que participa das transformações do Estado Moderno, o fazendo por razões de consciência, de forma a reafirmar os direitos conferidos ao próprio cidadão pelo poder estatal.

Em que pese à desobediência civil parecer distante da realidade jurídica política brasileira, entende-se que, com as nuances e transformações da sociedade contemporânea, torna-se relevante análise frente aos direitos fundamentais conferidos na Constituição da República de 1988, em contraposição à possibilidade de ser efetivada a desobediência civil pelo cidadão nacional.

Para MIGUEL REALE acredita-se que, somente com “a ação desobediente”, aplicada através de métodos não violentos (pacíficos) e ordeiros, seria eficaz para provocar mudança social.

Se considerarmos a desobediência civil como instituto não positivado em nossa Constituição Federal de 1988, surge a controvérsia acerca da possibilidade como o seu exercício possa vir a ser efetivado pelo cidadão brasileiro?

Se for lícito desobedecer às leis, em que casos? Dentro de que limites? Por parte de quem?

A desobediência civil poderá ser considerada como fenômeno social, necessário para as mudanças na lei e na sociedade? A sociedade democrática nacional seria tolerante a efetivação desse exercício?

Como poderia o cidadão “contestar” uma lei injusta contra um sistema, eleito por ele mesmo? As razões morais e logicamente políticas, estariam inseridas como um marco (um norte) para justificarmos o exercício da desobediência civil, sob pena de engessamento do próprio sistema jurídico?

Esses questionamentos e outras indagações, das quais não se mencionou, não tem como objetivo esgotar a presente discussão, mas sim,

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tem como objetivo, o auxílio da adequada compreensão do instituto da desobediência civil na sociedade brasileira.

Em que pese o instituto não se encontrar expresso em nosso ordenamento jurídico pátrio, mormente com base nas indagações acima, podemos dizer que, a desobediência civil poderá ser exercida no ordenamento nacional, mesmo em face das vozes doutrinárias contrárias a respeito, à medida que, além de dar consecutividade ao preceito constitucional previsto no artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal de 1988 encontra seu próprio fundamento na igualdade material e na proteção ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Igualmente, a desobediência civil se mostra como um instrumento de concretização constitucional e mesmo que não se encontra previsão expressa na Constituição da República de 1988, é perfeitamente legítima e se limita ao cumprimento efetivo da Constituição Federal, além de extremamente necessária enquanto fenômeno social do Estado Democrático de Direito.

CONCLUSÃO

Vislumbra-se neste artigo que são conceitos fundamentais aplicáveis ao instituto da desobediência civil, o de justiça social e o de direitos humanos.

Considera TIERRY PAQUOT que HENRY DAVID THOREAU pronunciava que, qualquer governo corresponde a um déficit de consciência entre os cidadãos que se reflete no princípio moral de que: “A única obrigação que me cabe, justamente, consiste em agir sempre em qualquer situação, de acordo com a idéia que me faz bem”.

No decorrer deste artigo, percebe-se claramente que a história do constitucionalismo no Brasil foi marcada por diversas reviravoltas, com momentos plurais de interesses políticos. Ressalta-se a importância da Constituição da República de 1988, como afirmação dos direitos humanos no Brasil, bem como a primeira Constituição Brasileira que abrange os direitos fundamentais com magnitude considerável. A atual Constituição pode ser considerada a mais significativa para a formação do Estado Democrático de Direito com respeito à soberania popular, à cidadania e à dignidade da pessoa humana.

Os Direitos Humanos com a sua evolução influenciaram grandiosamente o ordenamento jurídico brasileiro. A Constituição

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Federativa do Brasil é considerada a Lei Maior do ordenamento jurídico pátrio. É um instituto jurídico moderno que se coaduna com o Estado Democrático de Direito, prevendo nos incisos I a III, do artigo 1º que são fundamentos da República Federativa do Brasil: a soberania (popular), a cidadania e a dignidade da pessoa humana.

Assim, todos os seres humanos têm o direito de serem tratados com toda a dignidade e respeito frente às outras pessoas e ao Estado Soberano. Os Direitos Humanos devem ser efetivados e aplicados sempre, por serem resultados de uma conquista de luta histórica contra o abuso e arbitrariedade do poder que ainda não se chegou ao fim.

A desobediência civil é um instrumento de justiça política e social, legítimo de afirmação e aprimoramento da democracia, por ter a função reguladora, limitando as prerrogativas e as ações do Estado para que não adentre ou extrapole nos direitos dos cidadãos (coletividade). Não há como se pensar em um regime democrático que oprima a soberania do povo em lutar pela efetivação do Estado Democrático de Direito. Apesar de justo, legítimo e válido, de às vezes ser o início de um movimento organizado com ordem, pacífico e não-violento, que nascerá ou surgirá mudanças. O simples e condicionado protesto não é desobediência civil por que a mesma se prolonga no tempo e se concretiza. A desobediência civil caminha lado a lado com a construção democrática.

O processo democrático sempre será inacabado porque este sistema é o reflexo do que a sociedade quer em determinado momento de sua história.

O ordenamento jurídico é peça chave nessa eterna construção e reconstrução democrática. É por essa razão que compreendo e entendo o fundamental e primordial papel desempenhado pela desobediência civil, como magnífico instituto de caráter ético, jurídico, moral, político e social, além de considerá-lo como poderoso combustível (aditivo) para provocar a ebulição e o surgimento de leis mais adequadas e apropriadas às necessidades dos cidadãos.

A sociedade como um todo e não só os que operam o Direito devem fazer esta engrenagem girar, mas todos os cidadãos, independentes de cor, credo, opinião, raça, etc.

O simples fato de uma lei está em vigência ou um poder está constituído não significa que não possa ser contestado ou impugnado para que se altere ou modifique. Esta modificação só ocorrerá quando os cidadãos interessados nas alterações ou mudanças começarem a se moverem

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organizados e pacificamente para colocarem em prática de que a “democracia é o governo do povo e para o povo”.

A desobediência civil é um instituto indispensável para o exercício da cidadania e para a busca dos nossos direitos civis, jurídicos, políticos e sociais. Esse instituto não deve ser usado de forma desregrada e irresponsável. Para ter legitimidade para o exercício de tal direito, tem-se que preencher uma série de requisitos, de forma que esse meio de participação popular, tão importante para os membros da sociedade, não se banalize por falsas alegações ou utilização viciosa.

A manifestação da desobediência civil é o nascedouro das leis mais legítimas, pois as leis que derivam das reivindicações dos desobedientes são baseadas na moralidade, equidade, justiça e realmente nasceram da vontade popular que se apresenta como um grande canal de reforma, na medida em que visam retirar do ordenamento jurídico as leis injustas.

A desobediência civil surgiu como um fruto amadurecido do direito de resistência, uma vez que esse instituto era um meio utilizado somente pela maioria com o intuito de proteger os direitos fundamentais e controlar o absolutismo dos monarcas, já que essa época era caracterizada pela tirania e despotismo.

Foi nesse contexto que surgiu a desobediência civil caracterizada, neste trabalho como um meio que serve para dar voz às minorias e até às maiorias oprimidas que não tinham institutos eficazes para manifestar suas reivindicações e não requeriam seus direitos fossem reconhecidos institucionalmente, uma vez que o direito de resistência não assegurava à minoria a posição de legítimos aplicadores deste mecanismo.

A desobediência civil deve ser conceituada e considerada como um comportamento que os membros da sociedade civil assumem frente ao Estado, questionando normas ou decisões originárias de seus representantes, através de ação ou de omissão desobediente à ordem jurídica, mas nos limites dos princípios da soberania popular, cidadania e dignidade humana com o intuito e objetivo de mobilizar a opinião pública para reformar ou revogar aquelas normas jurídicas consideradas ilegítimas ou injustas.

A desobediência civil não visa romper com todas as instituições, mas resistir às normas de natureza não democráticas, em situações ocasionais e limitadas. Este direito se justifica pela necessidade de instrumentalizar o desenvolvimento da soberania popular, cidadania e dignidade humana. As reivindicações em torno de direitos tendem a ser o mecanismo adequado

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para efetuar as mudanças essenciais nas estruturas institucionais do Estado, representado um momento muito importante para a sociedade civil. Não visam o esfacelamento do poder político, mas o aperfeiçoamento do processo social.

A manifestação da desobediência civil vem reforçar a idéia de que o Direito não é estático, é dinâmico, em constante procura da democracia e da justiça. Nesse contexto, o cidadão deve se comportar como um sujeito ativo dessa busca guiando-o para que a desobediência - resistência consiga, de fato, ser um instrumento propiciador da cidadania e justiça.

Um Direito para que exista não é necessário que esteja codificado ou expressamente escrito, há direitos superiores e naturais que não necessitam de codificação. O direito a desobediência civil é um desses que precede qualquer escrita, é um direito fundamental como o é o direito a vida, o direito a liberdade ou a dignidade.

Verifica-se claramente de que este direito está vinculado intimamente a princípios que norteiam o Estado Democrático de Direito e assim aos Estados que se denominem nestes termos acabam por admitir a desobediência civil em nome de bens maiores como a vida e a liberdade.

A explicação se centra no fato de o Estado Democrático de Direito encontrar sustentado no princípio da soberania popular o que acarreta o poder político pertencer ao povo e este poder político nas mãos do povo dá a estes o direito de intervir ativa e diretamente nos rumos políticos a procura de efetivar a justiça, sempre em nome de leis justas e contra atos opressivos.

A desobediência civil que se defende não é uma desobediência violenta e sem razão de ser. A desobediência não existirá por motivo individualista ou insignificante. A resistência legítima encaminha além disso, haverá sempre um motivo e uma fundamentação constitucional, ou seja, estará baseado em princípios essenciais como o da cidadania, democracia, dignidade da pessoa humana, liberdade e soberania popular.

A desobediência civil existirá para garantir a efetivação de direitos e garantias basilares e fundamentais que lhes foram contestados e recusados. A desobediência vem com a meta e objetivo de defender a Constituição quando esta for deliberada e flagrantemente descumprida e os mecanismos institucionais, isto é, os judiciais não se efetivarem por se mostrarem omissos ou inoperantes.

A desobediência civil somente será exercida quando houver um ato ou lei que sendo injusta ou opressiva, descumpra direitos fundamentais da sociedade ou mesmo do Estado, quando tal descumprimento por em risco o

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próprio ordenamento jurídico ou a estrutura constitucional vigente, através de desrespeito aos princípios constitucionalmente assegurados.

Esse meio de participação direta do cidadão é legitimado pela própria constituição através dos direitos e garantias fundamentais asseguradas pelo ordenamento jurídico pátrio.

A Constituição da abertura a direitos e garantias além dos expressamente assegurados por ela e assim se justifica a desobediência civil como um direito e garantia assegurado constitucionalmente apesar de não estar positivado.

A justificação nasce nos princípios que são base de sustentáculo para o Estado. O principio democrático é essencial para comprovar a legitimidade do instituto, tendo em vista este trazer a ampliação de participação política do cidadão, o que é essencial para explicar a desobediência civil.

O direito a desobediência civil é um instrumento legítimo colocado à disposição do cidadão para agir em nome de seus interesses e garantir a efetivação de direitos da minoria quase sempre oprimida pela vontade da maioria, sem violência e em nome da defesa de direitos e garantias constitucionais, resistindo a atos e a leis injustas ou opressivas, objetivando sua revogação ou anulação, sempre embasada em princípios maiores: cidadania, dignidade humana e soberania popular.

Os defensores da desobediência civil consideram que, quando existem leis injustas, não se conseguem alterá-las ou modificá-las através dos mecanismos e meios éticos, legais e morais, como as campanhas, as redações de cartas, etc., existem justificação moral para desobedecer à lei.

A ocasião para a desobediência civil emerge quando as pessoas descobrem que lhes são pedidas que obedeçam a leis ou políticas governamentais que consideram injustas.

A desobediência civil corresponde a uma tradição de violação com ordem, pacífica e não violenta pública da lei, concebida para chamar a atenção para leis ou políticas injustas. Os que agem nesta tradição de desobediência civil não violam a lei para seu benefício pessoal, mas fazem-no para chamar a atenção para uma lei injusta ou uma política moralmente objetável e para publicitar ao máximo a sua causa.

Os cidadãos que realmente, agem na tradição da desobediência civil evitam geralmente todos os tipos de violência.

Concluo convicto e seguramente este trabalho em defesa da existência da desobediência civil no universo jurídico e político brasileiro

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justamente no sentido de proporcionar almejada e esperada vigência e eficácia da nossa Constituição Federal da República Federativa do Brasil, no reino da facticidade. Esta só se dará em uma sociedade estabelecida em consonância, especialmente, com os ditames e preceitos, ou seja, uma sociedade democrática que institui horizontalmente, a cidadania, dignidade da pessoa humana e a soberania popular como fundamento, um Estado Democrático de Direito.

Face ao exposto, acreditamos que a desobediência civil é um ato ilegal que deve ser tomado como legal, pois é fundamentado no princípio da justiça, onde mais vale uma ilegalidade justa, do que uma legalidade injusta, valorizando, dessa forma, o homem e seus princípios; estes deveriam refletir-se no ordenamento jurídico e serem respeitados, protegidos e ampliados.

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