artigo com vida

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1 Com-Vida: estratégia de governança nas escolas Tereza Moreira 1 Vinte anos atrás, a presença da sociedade civil no Fórum Global da Conferência Rio´92 evidenciava a necessidade de instâncias de poder diferenciadas para tornar realidade os compromissos firmados em âmbito internacional em direção à sustentabilidade. Naquela época, o número de habitantes do planeta estava na marca dos 5,5 bilhões e alguns dos problemas socioambientais com os quais nos deparamos atualmente eram apenas levemente divisados no horizonte. Em 2012, com uma população de 1,5 bilhão de pessoas a mais e diante de condições ambientais e sociais que se deterioram com grande rapidez, não surpreende o fato de que um dos principais temas debatidos na Conferência Rio+20 seja justamente o da governança global. Está cada vez mais claro que é preciso “tirar do papel” os acordos já firmados em defesa da vida no planeta. Isso exigirá a articulação entre global e local, bem como a busca da coesão social necessária para que as respostas humanas em defesa da vida no planeta sejam efetivas. Para isso, torna-se urgente facilitar formas democráticas de governança, algo que vale tanto para as Nações Unidas e outras entidades mundiais como também para as organizações de caráter local. Governança pode ser definida como "um conjunto de conceitos, representações mentais e culturais, instituições, entidades sociais, regras e mecanismos diversos que, em conjunto, contribuem para a gestão de uma comunidade, desde o nível local até o nível mundial” 2 . A governança em favor da sustentabilidade pressupõe, portanto, uma malha de instituições em diversos níveis capazes de responder às mudanças ambientais globais, descobrindo coletivamente maneiras de viver pautadas no cuidado com a Terra, seus sistemas de suporte e todos os seres que a habitam. Não se trata de tarefa fácil. Os estudiosos do assunto acreditam que, para isso, seja necessário: estabelecer objetivos comuns e um formato para tomada de decisões que se baseie em cidadania e democracia; conquistar legitimidade, isto é, poder adquirido de baixo para cima; desenvolver associação e colaboração, respeitando e dialogando com as diferenças; saber adaptar-se a realidades diversas; criar formas de cooperação entre diferentes níveis. 1 Jornalista, educadora ambiental e consultora da Coordenação Geral de Educação Ambiental, do Ministério da Educação. 2 Segundo o estudo Propostas para a governança global 2 , elaborado pelo coletivo francês para a Rio+20. Disponível em< http://rio20.net/pt-br/propuestas/governanca-as-rupturas-necessarias-para-a-transicao> acesso em 24/04/2012.

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    Com-Vida: estratgia de governana nas escolas

    Tereza Moreira1

    Vinte anos atrs, a presena da sociedade civil no Frum Global da Conferncia Rio92 evidenciava a necessidade de instncias de poder diferenciadas para tornar realidade os compromissos firmados em mbito internacional em direo sustentabilidade. Naquela poca, o nmero de habitantes do planeta estava na marca dos 5,5 bilhes e alguns dos problemas socioambientais com os quais nos deparamos atualmente eram apenas levemente divisados no horizonte.

    Em 2012, com uma populao de 1,5 bilho de pessoas a mais e diante de condies ambientais e sociais que se deterioram com grande rapidez, no surpreende o fato de que um dos principais temas debatidos na Conferncia Rio+20 seja justamente o da governana global.

    Est cada vez mais claro que preciso tirar do papel os acordos j firmados em defesa da vida no planeta. Isso exigir a articulao entre global e local, bem como a busca da coeso social necessria para que as respostas humanas em defesa da vida no planeta sejam efetivas. Para isso, torna-se urgente facilitar formas democrticas de governana, algo que vale tanto para as Naes Unidas e outras entidades mundiais como tambm para as organizaes de carter local.

    Governana pode ser definida como "um conjunto de conceitos, representaes mentais e culturais, instituies, entidades sociais, regras e mecanismos diversos que, em conjunto, contribuem para a gesto de uma comunidade, desde o nvel local at o nvel mundial2. A governana em favor da sustentabilidade pressupe, portanto, uma malha de instituies em diversos nveis capazes de responder s mudanas ambientais globais, descobrindo coletivamente maneiras de viver pautadas no cuidado com a Terra, seus sistemas de suporte e todos os seres que a habitam.

    No se trata de tarefa fcil. Os estudiosos do assunto acreditam que, para isso, seja necessrio:

    estabelecer objetivos comuns e um formato para tomada de decises que se baseie em cidadania e democracia;

    conquistar legitimidade, isto , poder adquirido de baixo para cima;

    desenvolver associao e colaborao, respeitando e dialogando com as diferenas;

    saber adaptar-se a realidades diversas;

    criar formas de cooperao entre diferentes nveis.

    1 Jornalista, educadora ambiental e consultora da Coordenao Geral de Educao Ambiental, do Ministrio da Educao. 2 Segundo o estudo Propostas para a governana global2, elaborado pelo coletivo francs para a Rio+20. Disponvel em< http://rio20.net/pt-br/propuestas/governanca-as-rupturas-necessarias-para-a-transicao> acesso em 24/04/2012.

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    Enfim, no basta s querer exercer governana. preciso aprender como fazer isso.

    Na escola, um convite participao

    Que papel a escola desempenha nessa nova aprendizagem? De que mecanismos pode lanar mo para favorecer o desenvolvimento de princpios, valores, habilidades e atitudes voltadas promoo de culturas de sustentabilidade?

    A Comisso de Meio Ambiente e Qualidade de Vida na Escola (Com-Vida) significa uma resposta do Ministrio da Educao a esses esforos. A Com-Vida um colegiado formado por estudantes, professores e outros profissionais da escola, pais e integrantes da comunidade, que assume a tarefa de debater e buscar resposta para os problemas socioambientais existentes na escola e no territrio onde esta se localiza.

    Para alm dos temas ambientais, a Com-Vida se debrua sobre outras questes relevantes ao contexto escolar, como o enfrentamento da violncia, o respeito diversidade e aos direitos humanos, a acessibilidade. Procura nexos entre o que se vive no local e as grandes mudanas civilizatrias que esto em curso e que nos impactam cotidianamente.

    Trata-se de um espao criado para ouvir as distintas vozes do coletivo escolar, orientar escolhas e definir estratgias pela melhoria da qualidade de vida em toda a sua amplitude. Por meio da Com-Vida possvel articular foras sociais presentes e atuantes em cada localidade.

    Conferncia Infantojuvenil: berrio da Com-Vida

    A Com-Vida surgiu como deliberao de 400 adolescentes de 11 a 14 anos, representantes de cerca de 15 mil escolas de ensino fundamental que participaram da I Conferncia Nacional Infantojuvenil pelo Meio Ambiente (CNIJMA), em 2003. Sua inteno original era manter aceso o interesse pelas questes ambientais no interior das escolas no perodo entre conferncias.

    As mobilizaes para a realizao da segunda e da terceira edies da CNIJMA (em 2006 e 2009) representaram incentivos disseminao dessas comisses por todo o territrio nacional. Atualmente estima-se que existam cerca de 4 mil Com-Vida em distintos estgios de desenvolvimento.

    Partindo dos princpios: "jovem educa jovem", jovem escolhe jovem", e "uma gerao aprende com a outra, a CNIJMA constitui um pretexto pedaggico para dar voz juventude e mobilizar as escolas brasileiras em torno do debate sobre a defesa da qualidade de vida e do ambiente.

    Esse processo, que dura em torno de dois anos, comea com a Conferncia na Escola, na qual so definidas responsabilidades e aes do coletivo escolar frente a questes ambientais, e se faz a eleio de delegados e delegadas para a etapa seguinte. O mesmo ocorre nas instncias municipais ou regionais, estaduais, at chegar Conferncia Nacional.

    Esse modelo, do qual a Com-Vida parte essencial, disseminou-se pelo mundo com a I Conferncia Internacional Infantojuvenil, realizada em Braslia em 2010. Por meio de dilogos interculturais, jovens de 47 pases elaboraram a Carta das Responsabilidades Vamos Cuidar do Planeta , entregue Unesco como parte das comemoraes da Dcada da Educao para o Desenvolvimento Sustentvel.

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    Mais vida no ambiente escolar

    A Com-Vida no um espao institucionalizado, de adeso obrigatria para a escola e para os estudantes. Surge por vontade e determinao da comunidade escolar em trazer a pauta da melhoria da qualidade de vida para o centro do debate na escola e soma-se s demais estruturas existentes, como o grmio estudantil e o conselho escolar.

    Por meio de um Acordo de Convivncia, a Com-Vida mobiliza a inteligncia coletiva em pactos pela transformao do cotidiano escolar e da localidade mais ampla, seja o bairro, a comunidade rural, a cidade, em direo sustentabilidade. A metodologia utilizada para isso envolve formas ldicas de elaborao de projetos colaborativos e transformadores, em que todo o coletivo escolar tem voz e pode exercer responsabilidades.

    Partindo dos mesmos princpios que animam as conferncias, desejvel que a Com-Vida seja formada com auxlio de grupos juvenis interessados nas questes ambientais. Dessa forma, os estudantes aprendem com outros jovens a opinar, negociar divergncias, assumir e compartilhar responsabilidades. Desenvolvem tambm capacidade para trabalhar em equipe e so encorajados a interagir com pessoas adultas em condio de equidade.

    No ambiente de interaes concretas da escola, a Com-Vida representa uma possibilidade de aprendizagem para o exerccio compartilhado de poder. Reedita os crculos de cultura, preconizados pelo educador Paulo Freire, favorecendo a gesto democrtica da escola.

    Coletivo Jovem, papel facilitador

    Os coletivos jovens desempenham papel relevante na formao da Com-Vida. Surgiram da necessidade de se contar com a presena da juventude nas comisses organizadoras das conferncias infantojuvenis. Segundo o Manual dos Coletivos Jovens de Meio Ambiente, os CJ so grupos informais autogestionados e autnomos constitudos de pessoas entre 15 e 29 anos, que atuam local e nacionalmente para estimular o pensamento crtico, planejar e desenvolver propostas, projetos e aes de interveno e formao de cidados responsveis e comprometidos com a temtica socioambiental.

    Ao longo do tempo, esses coletivos expandiram-se em todos os estados e articularam-se nacionalmente por meio da Rede da Juventude pelo Meio Ambiente e Sustentabilidade (Rejuma). Esto presentes em conselhos de juventude em mbito local, estadual e nacional e estimulam diferentes movimentos de juventude ligados questo ambiental.

    Alguns atuais integrantes dos CJ e da Rejuma j participaram das conferncias na condio de delegados. E h alguns ex-integrantes dessas entidades que atualmente executam polticas pblicas voltadas juventude em todos os nveis da federao. Prova de que a metodologia das Conferncias e das Com-Vida mobiliza na juventude sua capacidade de exercer uma nova forma de protagonismo, que se baseia na fora transformadora do coletivo.

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    Ao longo do tempo e com o seu amadurecimento como estrutura educadora, a Com-Vida tem assumido as seguintes atribuies:

    Realizar a Conferncia na Escola;

    Inserir a educao ambiental no projeto poltico pedaggico, de forma a romper com a prtica de s tratar desta temtica em datas comemorativas especficas;

    Manter uma agenda permanente de educao ambiental, por meio de feiras de cincias, gincanas, palestras, visitas guiadas, contao de estrias, campanhas de comunicao, entre outras atividades;

    Observar, pesquisar, conservar e ajudar a recuperar o meio ambiente, produzindo conhecimentos relevantes sobre a comunidade em que se vive e promovendo a troca entre saberes locais e tradicionais e os conhecimentos produzidos no meio acadmico.

    Fazer a Agenda 21 na Escola3, contribuindo para torn-la um espao agradvel, democrtico e saudvel.

    Promover intercmbios com outras Com-Vidas, Agendas 21 locais e outras instncias de governana.

    A Com-Vida e a Agenda 21

    Um dos papis-chave da Com-Vida realizar aes voltadas ao planejamento da Agenda 21, por meio da chamada Oficina de Futuro, que favorece o dilogo entre estudantes, professores e demais adultos, facilitando o planejamento participativo. A Oficina de Futuro constituda dos seguintes passos:

    rvore dos sonhos Momento dedicado a identificar como so a escola e a comunidade dos sonhos dos participantes, fazendo brotar idias sobre o cenrio que se deseja alcanar.

    Pedras no caminho Nesta etapa so levantados os problemas que dificultam o alcance dos sonhos.

    Jornal mural Por meio de aes de educomunicao, adolescentes e jovens, orientados pelos professores, procuram identificar como os problemas surgiram, como era a escola e a comunidade antes deles. Levantam tambm as experincias interessantes que ocorrem ou j ocorreram ali. A ideia divulgar a situao para que todos a conheam.

    Com-Vida para a ao Este momento de levantar as aes necessrias para superar os problemas identificados. Em seguida, se faz uma escala de aes priorizadas para o alcance dos sonhos.

    3 A Agenda 21 foi o principal resultado da Conferncia Rio92 e contm um conjunto de compromissos

    assumido pelos pases participantes na promoo do desenvolvimento sustentvel. No Brasil, a Agenda 21 transformou-se em um plano de ao em nvel nacional, que mais tarde se desdobrou em diversos planejamentos participativos, envolvendo cidades, bairros, empresas e at escolas.

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    O resultado desse processo a Agenda 21 na Escola e a elaborao de um plano para realiz-la, com a definio de responsveis, prazos e recursos. No Portal do MEC possvel acessar a publicao Formando Com-Vida e Construindo a Agenda 21 na Escola: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/publicacao7.pdf, que explica em detalhe cada passo da Oficina.

    Estmulo Com-Vida: da escola s polticas pblicas

    Devido ao seu carter processual, o fomento criao de Com-Vida considerado central nas aes da educao ambiental desenvolvidas pelo MEC. Por isso, diversas iniciativas governamentais promovem a criao de Com-Vida, fornecendo subsdios e recursos financeiros para que suas aes se tornem perenes nas escolas.

    Um exemplo o Programa Mais Educao, voltado para escolas que optam pela educao integral em turnos mais extensos. O Macrocampo Educao Ambiental deste programa prev recursos e formao para a escola criar sua Com-Vida. Em 2011, 427 escolas urbanas solicitaram recursos com esta finalidade.

    Por meio de uma parceria entre a Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao, Diversidade e Incluso (Secadi) e o Sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB), em 2011 cerca de 2000 pessoas realizaram um curso de extenso (90 horas) sobre Escolas Sustentveis e Com-Vida. Como resultado, centenas de escolas de 16 estados brasileiros e do Distrito Federal tiveram oportunidade de desenvolver projetos coletivamente pactuados por meio da Com-Vida e voltados a torn-las mais sustentveis, considerando mudanas nas edificaes, nas prticas de gesto e no currculo.

    Novas verses deste curso so oferecidas na Rede Nacional de Formao Continuada dos Profissionais da Educao Bsica a partir de solicitao das escolas. Isso pode ser realizado por meio do PDE Interativo no incio do ano letivo, como parte do planejamento da escola para a formao continuada de seus professores.

    O MEC tambm est preparando uma modalidade especfica do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) para provocar adequaes no espao fsico das escolas, segundo critrios de sustentabilidade socioambiental. Compreendendo sua importncia como instrumento de gesto da escola sustentvel, h itens especficos para financiamento de aes da Com-Vida nas escolas que solicitarem este PDDE.

    Para alm do MEC, outras instituies pblicas esto percebendo o grande potencial de mobilizao e governana que a Com-Vida representa. No Nordeste, o Projeto So Francisco, desenvolvido pelo Ministrio da Integrao, incluiu o fomento a essa estrutura educadora em escolas de municpios situados nos estados onde ocorrem obras de transposio e revitalizao do rio So Francisco. Em Sertnia (PE), por exemplo, todas as 17 escolas existentes adotaram Com-Vida. Em Palestina do Cariri (CE), as seis Com-Vida criadas se reuniram e formularam 21 Compromissos para com o Meio Ambiente em Palestina, embrio da Agenda 21 do municpio.

    Devido a esse potencial de mobilizao pela qualidade de vida nos territrios, a existncia de Com-Vida tornou-se um requisito para a conquista do Selo Unicef Municpio Aprovado. Este selo conferido s administraes municipais da Amaznia e

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    do Semirido nordestino que comprovem aes concretas destinadas a garantir os direitos de crianas e adolescentes.

    No perodo entre 2012 e 2013, com as mobilizaes em torno da IV Conferncia Nacional Infantojuvenil e com as demais iniciativas j citadas, espera-se que esta tecnologia social e educacional proposta pelo governo brasileiro ganhe mais espao. Afinal, transformando o cotidiano escolar e das comunidades, a Com-Vida soma-se a outras iniciativas planetrias voltadas a fazer deste um mundo melhor para as presentes e futuras geraes, educando para a governana planetria.

    Para saber mais

    Publicaes BRASIL. Ministrio da Educao. Ministrio do Meio Ambiente. Formando Com-Vida e construindo a Agenda 21 na escola. 2. ed. Braslia : MEC/MMA, 2007. Disponvel em: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/publicacao7.pdf. Acesso em maio de 2012. COLETIVO FRANCS PARA A RIO+20. Propostas para a governana global. Disponvel em< http://rio20.net/pt-br/propuestas/governanca-as-rupturas-necessarias-para-a-transicao> acesso em 24/04/2012.

    DEBONI, Fbio. Coletivos jovens de meio ambiente: manual orientador. Braslia : rgo Gestor da PNEA, 2005. Disponvel em DEBONI, Fbio; MELLO, Soraia. Pensando sobre a gerao do futuro no presente: jovem educa jovem, Com-Vidas e Conferncia. In: BRASIL. Ministrio da Educao. Vamos cuidar do Brasil: conceitos e prticas em educao ambiental na escola. Braslia : MEC, 2007. GONALVES, Alcindo. O conceito de governana. Disponvel em Acesso em TRAJBER, Rachel; CZAPSKI, Silvia. Macrocampo de Educao Ambiental. Programa Mais Educao. Braslia : MEC, 2010. Disponvel em Acesso em abril de 2012.

    Sites para consulta Rede de Juventude pelo Meio Ambiente e Sustentabilidade - Rejuma http://www.rejuma.org.br Selo UNICEF Municpio Aprovado http://www.selounicef.org.br/