artigo arruaça: estudos iniciais sobre o corpo funkeiro ... · partindo do pressuposto empírico...

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REVISTA DA GRADUAÇÃO DA ESCOLA DE BELAS ARTES - UFRJ 116 Ano 2 | n. 2 | junho 2017 ARTIGO ARRUAÇA: ESTUDOS INICIAIS SOBRE O CORPO FUNKEIRO CARIOCA Mayara de Assis Partindo do pressuposto empírico de que o funk carioca é um fenômeno social que manifesta uma natureza incapturável de forma plena aos mecanismos de colonização, dotado de caráter dinâmico, sendo em si o próprio movimento, refletiremos aqui sobre o corpo que dança funk, tendo como principal estudo de caso o espetáculo ArRUAça. Nos caminhos da ArRUAça ArRUAça é o projeto que surge como ilustração do Memorial de curso e produção monográfica 1 de conclusão em Bacharelado em Dança pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (Depar- tamento de Artes Corporal do Centro de Ciên- cias da Saúde). Como espetáculo de funk carioca, nasce das inclinações enquanto pesquisadora em dança, oriundas dos processos reflexivos perpas- sados ao longo da trajetória acadêmica da autora deste presente trabalho, como coreógrafa e bai- larina. Partindo de um debruçar nas “memórias sub- terrâneas” (POLLAK, 1989, p. 5), estas que vêm à tona como reivindicação de uma mulher preta suburbana e funkeira, que teve seu corpo negado como potência ao longo da graduação, em dife- rentes episódios, ArRUAça faz parte da análise na forma de experiência em dança, sobre os múlti- plos borramentos e atravessamentos corpo/terri- tório/Funk. Se aproximando das potencialidades produtoras de dinâmicas corporais que faz surgir o dançar funkeiro, tais ações são borradas e atra- vessadas por uma identidade pessoal e, multipla- mente, formada pelo Ato de se relacionar com os espaços em todas as esferas. O dançar enquanto Ato de colocar-se diante do mundo, estar ereto, considerando isso enquanto Ato político (GODARD,1999), é o que podemos compreender dentro da multiplicidade daquilo que compete ao nosso próprio fazer artístico: uma ruptura pessoal que transborda, pois se re- laciona com a vida, oriunda das relações com os espaços e as memórias, que fazem da identidade dançante algo em constante processo dinâmico de metamorfose. As relações históricas, sociais, culturais, políticas das zonas periféricas serão focadas aqui, no ter- ritório do Velho Oeste 2 , ultrapassando seu conhe- cido status de imensa área verde. O bairrismo do ArRUAça é envolvido pelas energias potentes do morador do Velho Oeste, logo, a discussão tra- rá um contexto desenvolvido por um grupo que “reivindica uma maior visibilidade social face ao apagamento a que foi, historicamente, subme- tido”. (NOVAES, 1993, p. 25 apud MOUTINHO; BORGES, 2015, p. 3). Destacamos em especial a temporada de apresen- tações de 2016, onde oportunizamos as reflexões que compõe este trabalho, onde visamos priori- tariamente os espaços culturais localizados no subúrbio, pois era nosso desejo promover estes, e estimular a população local a participar. Que- ríamos retribuir a estes territórios suburbanos e

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Artigo

ArrUAçA: estUdos iniciAis sobre o corpo fUnkeiro cAriocAMayara de Assis

Partindo do pressuposto empírico de que o funk carioca é um fenômeno social que manifesta uma natureza incapturável de forma plena aos mecanismos de colonização, dotado de caráter dinâmico, sendo em si o próprio movimento, refletiremos aqui sobre o corpo que dança funk, tendo como principal estudo de caso o espetáculo ArRUAça.

Nos caminhos da ArRUAça

ArRUAça é o projeto que surge como ilustração do Memorial de curso e produção monográfica1 de conclusão em Bacharelado em Dança pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (Depar-tamento de Artes Corporal do Centro de Ciên-cias da Saúde). Como espetáculo de funk carioca, nasce das inclinações enquanto pesquisadora em dança, oriundas dos processos reflexivos perpas-sados ao longo da trajetória acadêmica da autora deste presente trabalho, como coreógrafa e bai-larina.

Partindo de um debruçar nas “memórias sub-terrâneas” (POLLAK, 1989, p. 5), estas que vêm à tona como reivindicação de uma mulher preta suburbana e funkeira, que teve seu corpo negado como potência ao longo da graduação, em dife-rentes episódios, ArRUAça faz parte da análise na forma de experiência em dança, sobre os múlti-plos borramentos e atravessamentos corpo/terri-tório/Funk. Se aproximando das potencialidades produtoras de dinâmicas corporais que faz surgir o dançar funkeiro, tais ações são borradas e atra-vessadas por uma identidade pessoal e, multipla-mente, formada pelo Ato de se relacionar com os espaços em todas as esferas.

O dançar enquanto Ato de colocar-se diante do mundo, estar ereto, considerando isso enquanto Ato político (GODARD,1999), é o que podemos compreender dentro da multiplicidade daquilo que compete ao nosso próprio fazer artístico: uma ruptura pessoal que transborda, pois se re-laciona com a vida, oriunda das relações com os espaços e as memórias, que fazem da identidade dançante algo em constante processo dinâmico de metamorfose.

As relações históricas, sociais, culturais, políticas das zonas periféricas serão focadas aqui, no ter-ritório do Velho Oeste2, ultrapassando seu conhe-cido status de imensa área verde. O bairrismo do ArRUAça é envolvido pelas energias potentes do morador do Velho Oeste, logo, a discussão tra-rá um contexto desenvolvido por um grupo que “reivindica uma maior visibilidade social face ao apagamento a que foi, historicamente, subme-tido”. (NOVAES, 1993, p. 25 apud MOUTINHO; BORGES, 2015, p. 3). Destacamos em especial a temporada de apresen-tações de 2016, onde oportunizamos as reflexões que compõe este trabalho, onde visamos priori-tariamente os espaços culturais localizados no subúrbio, pois era nosso desejo promover estes, e estimular a população local a participar. Que-ríamos retribuir a estes territórios suburbanos e

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periféricos com o nosso espetáculo, posto que o morador destes locais haviam sido nossas inspi-rações iniciais. Estamos falando dos dias 3, 10, 11, 19, 23 de novembro3, e do dia 15 de dezembro4.Para finalizar nossa delimitação, ressaltamos que ao longo das etapas de elaboração e monta-gem coreográfica do ArRUAça, nos respaldamos em: oficinas de experimentação corporal, labo-ratórios corporais para elaboração coreográfica, levantamentos bibliográficos diretos e indiretos de fontes secundárias em dados retrospectivos e contemporâneos, escritos e sobretudo observa-ções diretas e intensivas na vida Real, caminhos estes que nos levaram a composição coreográfica e estudos em dança que serão apresentados neste texto.

Uma reflexão sobre o corpo Funkeiro que dança

Entendendo o funk como uma cultura que nas-ce da herança preta, ancestral, acreditamos que a marginalização do funk se dá pelos mesmos motivos aos quais a cultura preta vem sendo cri-minalizada ao longo dos séculos, no discurso das elites dominantes, associados à desordem, e ditas como de “classes perigosas” (CARVALHO, 2015). Não será de nosso interesse aqui apresentar o mapeamento da história do funk no Brasil, posto que vinculamos a dança funkeira como ancorada e herdeira das afeições ancestrais. Mesmo sem que o corpo do dançarino tenha entendimento disto, acreditamos que dançar funk seja ativar a nossa ancestralidade em um híbrido de con-densação histórica sem contradição. (ALMEIDA, 2006).

Da esquerda para a direita: Frederick Assis, Mayara de Assis e Flaviano Rodrigues. O elenco de ArRUAça.

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Esse corpo de dança associado à errância, ao inapropriado, ao transgressor e à subversão dos “altos valores”; o mesmo da escravidão aos dias atuais, quanto mais livre, mais incomoda. Nos queriam escravizados. Nos libertamos, transbor-damos, rebolamos, gingamos, quebramos, per-turbamos, ArRUAçamos.

O funk, esse porta-voz atual da juventude em descolonização corporal, criminalizada por par-te das esferas de poder e elites, e enriquecido de potências corporais jocosas, e sensuais, ligado as danças da diáspora africana, o “tabiado” e a “rabiscada”, no eixo solo – corpo – céu, em um jogo constante na busca por essa perspectiva de eixo vertical, que talvez o corpo do dançante nem queira encontrar, estando a “graça” justamente no desequilíbrio, subvertendo a verticalidade em um eixo vertiginoso. (SODRÉ, 1998).

Em seu livro “Samba, o Dono do Corpo”, citan-do os escritos de um viajante português sobre as manifestações de Cancondos e Quiocos, em Angola, Muniz Sodré diz que “O corpo inclina-do para frente, mexendo os quadris e batendo palmas, ritmicamente, acompanhado pelo ruído incessante dos tambores (…) O que impressiona é o ardor que os pretos põem na dança, como se fosse qualquer coisa de essencial”. (SODRÉ, 1998, p.22). Embora não tenha se referido ao funk carioca, percebemos qualquer coisa de mui-to semelhante aos movimentos corporais que ele descreve, e nos ancoramos nesta frase cita-da para observarmos o corpo preto que, seja no berço africano ou com o passar dos tempos, em manifestações diferentes, carrega características que os aproxima. Um corpo volumoso, de dança poderosa, que começa na vibração interna, que em abundância faz transbordar a bacia. Encon-tramos nisto nosso diálogo.

Segundo Moutinho e Borges, não foi somente a influência da chegada do Soul e dos bailes Black no Brasil, mas toda uma influência vivida no to-que do tambor dos pretos, que já compunham o mapa identitário na formação da nossa socieda-de. “Ao criminalizar o funk, e o estilo daqueles que se identificam como funkeiros, os que hoje defendem sua proibição são os herdeiros histó-ricos daqueles que perseguiam os batuques nas senzalas”. (MOUTINHO; BORGUES, 2015).

Então, todas as oficinas corporais, laboratórios, que direcionaram a pesquisa (teórica e prática) partem do ponto primordial do corpo da falante: eu e minha observação corporal dançando funk e observando as dançarinas e dançarinos funkei-ros do Velho Oeste. Muniz Sodré, falando sobre o corpo preto e seu movimento na música e na dança, nos fala bem, quando explica partindo da síncopa musical, metaforizada por Duke Ellington, famoso band-leader norte-americano no movi-mento do Jazz, expõe o seguinte:

A Síncopa, a batida que falta. Síncopa, sa-be-se, é a ausência no compasso da marca-ção de um tempo (fraco) que, no entanto, repercute noutro mais forte. (...) incitando o ouvinte a preencher o tempo vazio com a marcação corporal– palma, meneios, ba-lanço, dança. É o corpo que também falta – no apelo da síncopa (...). Sua força magné-tica, compulsiva mesmo, vem do impulso (provocado pelo vazio rítmico) de se com-pletar a ausência do tempo com a dinâmica do movimento no espaço. (SODRÉ, 1998, p. 11).

Com esta citação, começamos a pensar o corpo da dança funkeira partindo da expressão popular nos bailes, comum ao Velho Oeste: o Talentinho. Que pode ser interpretado como a ginga, a ma-

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nha, a dinâmica, o colorido ou a graça do movi-mento. Tal como a síncopa, o tempo vazio precisa do preenchimento com o corpo (seja em palmas ou meneios), o movimento precisa de algo que lhe dê sentido, que preencha o “tempo vazio”, e que de uma forma compulsiva é preenchida pe-los funkeiros em suas danças com seus sotaques corporais, e sua própria identidade. Um dança-rino não se movimenta como o outro, e a dança não se limita em apenas uma execução de passos, fica o exemplo quando no passinho, uma espécie de “antropofagia” cultural promovida pelo funk, com alguns movimentos presentes noutra mani-festação popular, o frevo nordestino por exem-plo, se não tiver o talentinho do funk, será o frevo e não uma dança funkeira.

Não é apenas o funk ou apenas frevo, pois todos têm o livre acesso à “técnica” da criação daque-le movimento do corpo, mas, segundo Willians

Flaviano5, nosso intérprete-criador: “é preciso a manha, o Talentinho, se não fica só mexendo o pé para frente para trás, ou abaixando e subindo, isso qualquer um faz”, este mesmo intérprete-criador, quando perguntado de onde vem a “ma-nha” que ele fala, não sabe dizer: “Isso não tem como ensinar”. O Talentinho é algo que não se pode ensinar, e sim podemos experimentar, cada um com o seu, então nosso encontro em dança é promover as experiências corporais na empreita-da de experimentar nosso Talentinho.

Para observação e experimentação desse Talen-tinho, a priori utilizamos três veículos que nos direcionaram às investidas corporais em funk, foram estes: Peso, Volume, Desejo. Estes nossos veículos, foram descortinados ao longo dos pro-cessos de investigações teóricas e práticas deste trabalho. Peso é por nós visto cercado pelo ca-ráter histórico e social, e suas reverberações nos

Flaviano Rodrigues e Frederick Assis, e cena, com o Talentinho

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movimentos. Volume visto como o tamanho que o dançarino atinge em sua artistagem funkeira. Desejo como aquele que direciona todos os ou-tros, é a busca do colorido, graça da dança. To-dos estes estão interligados entre si, e são apenas pontos pelos quais visitamos a dança funkeira, em nossas investidas por experimentarmos o Ta-lentinho.

Peso: Para além do conceito de peso no campo da física, sendo a grandeza vetorial que correspon-de a força exercida por um objeto em virtude da atração de um outro corpo. Esta grandeza veto-rial apresenta intensidade direção e sentido. Nos encontrando com Laban, intermediado por Al-meida (2006), temos o peso como um dos fatores que compõem o movimento assim pensado por ele, sendo esse peso visto como uma atitude ativa de usar a força muscular que resulta em movi-mento. Então nós aqui analisamos o peso como a

potência do estar, uma organização de presença para o corpo.

Em relação ao peso, a gravidade já contém um humor, um projeto sobre o mundo. É essa gestão do peso, específica e individual que nos faz reco-nhecer (…) chamaremos de pré-movimento essa atitude em relação ao peso e à gravidade, que existe antes mesmo de se iniciar o movimento, pelo simples fato de estarmos em pé. (GODARD, 1999, p. 13). Estar de pé já é ato, toda a organiza-ção e o refinamento que é preciso para que nossas musculaturas estejam erguidas, já compõe a pre-sença, antes da expansão do movimento. A aten-ção corporal começa com a ativação dos múscu-los que se organizam para a ação, encarregado das nossas posturas. Para nós, analisamos essa postura como oriunda também das memórias do dançarino. E para Godard “é ele quem determina o estado de tensão do corpo e define a qualidade

Willians Flaviano

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e a cor específica de cada gesto”, agindo sobre a organização gravitacional, quando fala em pré-movimento”. (GODARD, 1999, p. 14).

A resistência do corpo à gravidade, seria seu peso e sua presença diante do mundo. Em um aspecto das reverberações do histórico e do social neste corpo, pensamos que corpo seria como a ruptura dos tabus que pretendiam silenciar o corpo pre-to. Neste sentido, a dança funkeira traz em suas características a postura intrépida de colocação, parado ou no movimento, a atitude corporal que o funkeiro tem relação com o peso e o poder.

Essa tomada de poder a partir do peso, que ain-da se dá na não consciência de uma “identidade de realeza” que habita em cada um; de comum convencimento entre os dançarinos de funk, que se intitulam muitas vezes como Reis e Rainhas da dança, Imperadores e Imperadoras da dan-ça, Dançarinas e Dançarinos Brabos, e outras nomenclaturas que tributam um sentimento de poder pelas formas das quais são vistos. Corpos juvenis negados, destituídos pelas barreiras co-loniais, que outrora não reconhece sua própria potência, por um processo que passa por um não existir6. Esses signos de poder relacionados ao peso, profundamente ligados à liberdade, seja li-berdade de movimentos e a própria liberação do indivíduo que se destaca entre muitos pela sua potência do dançar.

Volume: Neste veículo, estamos direcionados no mesmo sentido da unidade de medida, quando volume é definido como sendo a quantidade de espaço ocupado por um corpo. No entanto visi-tamos fronteiras para além da fórmula, compri-mento X largura X altura, e ousamos falar em volume em um aspecto mais amplo irradiado para as heranças deste corpo, pensamos o volu-me do nosso corpo também competindo ao his-

tórico dos nossos ancestrais e do nosso território. Sendo assim, pensamos o volume enquanto algo em constante movimento de redimensionar-se no corpo da dança FUNKEIRA. Observando nos bailes, os momentos de rodinhas de dança, onde acontecem improvisações de dançarinos, existe uma disputa (muitas vezes intrínseca) por qual tem os movimentos mais expansivos, mais volu-mosos, mais transbordantes, um centro do corpo que comanda e irradia a força e potência gestu-al para as áreas mais periféricas, começando no umbigo para fora e escapando entre os dedos. A expressividade está ligada ao quanto de espaço esse corpo consegue inaugurar com seu movi-mento, mais glamouroso e mais poderoso ele é.

No ambiente dentro dos bailes que pesquisamos [comumente os dançarinos mais retraídos, não são os brabos] o volume do dançarino no espaço o faz ser admirado entre os demais e logicamente, cada um libera a abundância de si através de um estilo (identidade) diferentes. Alguns buscando os movimentos afeminados, outros tendo como referências os movimentos de animalidades, ou-tros expressando sentimentos (teatralizando) ou há ainda os que têm a dança mergulhada na ini-ciativa sexual [erótica].

Desejo: Para nós está ligado, ao já exposto, “cor-po que falta” na síncopa (SODRÉ, 1998); o dese-jo é o veículo com o qual o FUNKEIRO preenche seus “tempos vazios”. No dançar, em um sentido geral, desejar é o que faz transbordar o peso e o volume. No escuro, e no calor do baile funk, quando na mistura do suor em meio a vibração da caixa, nos faz mover sem que nós mesmos estejamos pensando nesse dançar. Quando in-voluntariamente, nossa bacia começa a pulsar e transborda nossa dança, seja batendo o pé no chão ou emitindo a pulsação com a boca, nas zo-nas onde não dominamos. Através destes três ve-

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ículos, pensamos o talentinho, que como já dito não cabe ser ensinado e sim experimentado; com eles estudamos nossos corpos ao longo das ex-periências corporais que originaram ArRUAça. E para a cena, trazemos estas como sendo nossas principais ferramentas de investigação e propos-ta cênica.

Considerações:

Abrindo uma janela mais íntima e afetiva, dentro das reflexões aqui apresentadas, lançamos mão, para perfazer o trabalho no presente momento, de um relato pessoal, este, que talvez tenha sido um dos pontos essenciais para os desdobramen-tos e inclinação como pesquisadora; no próprio texto [autoral] do espetáculo dizemos: “Durante muito tempo a gente evitou, mas agora a gen-te não evita mais, a gente não evita Ser Preto”. Construímos essa fala inspirados nos muitos

Frederick Assisamigos que figuravam dentro do ambiente Aca-dêmico.

Eu, mulher preta, periférica, sempre que ouvia uma amiga ou um amigo, que se encontrava na mesma condição, e relatava o preconceito den-tro do Ambiente Acadêmico, me fazia refletir e pensar modos de não abrir mão dos meus ide-ais, e refutar as provocações trazendo de forma ainda mais PESADA a minha identidade preta, para a minha dança Acadêmica. Quando entrei no prédio da EEFD (Escola de Educação Física e Desportos) da Universidade Federal do Rio de Ja-neiro, na aula inaugural do meu primeiro perío-do em 2011, quando todos os novos alunos foram postos em uma linha de distribuição espacial em frente de todo o corpo Docente e Discente dos cursos das graduações em Dança, cada um, su-cessivamente dizia seu nome, idade, bairro e “de que dança vinha” e na sequência, os mesmos fa-

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riam movimentos que representassem esta dan-ça. Enquanto todos mostravam seu virtuosismo, naquele momento só vinha em meu pensamen-to: “Nossa! Eu não vim de dança nenhuma”.

A realidade de uma garota que nunca teve aulas regulares em uma Escola de Dança, a ingenuida-de de não acreditar que seu corpo dançava, ou eu diria que até ignorância, no sentido de ignorar mesmo, pois no fundo eu sabia, eu tinha certeza que eu sempre tinha dançado funk. Que toda a dança de mim, vinha das coisas que eu observava nas ruas e nos bailes, e que não era bem como esse “De quê dança você vem?”, que pergunta-vam, e mais como um “Que dança vem de você?”. Lembro-me de não ter “dançado” nada naquele momento, e ainda ter dito, bem baixo (e já com vergonha) o bairro onde moro: “- Paciência”, e ouvir umas poucas vozes (surpresa) em ovação a isso.

Foi quando a vergonha da síndrome do “mora mal” e o medo de estar sozinha se dissolviam, dando espaço para uma ponta de satisfação, ain-da sem muito deslumbramento por esse meu lugar. Tive naquele momento força de acreditar. Soube que não estava sozinha, que nós do extre-mo Velho Oeste estamos chegando aos lugares, dando nossos nomes, falando de nosso bairro, retomando os espaços. Durante minha passagem pela graduação em dança, foram alguns episódios de racismos velados que me fizeram refletir e re-pensar meu lugar nas salas de ensaio, episódios desde ter que ficar por último na distribuição es-pacial em sala, até podas em minhas movimenta-ções, lugares que me eram dados a minha revelia, entre outros. Professores que destacavam minha desobediência como algo a ser lapidado para meu próprio crescimento como profissional da dan-ça, no intuito de me encaixar na normatividade do contexto de uma dança embranquecida, onde

Mayara de Assis, em cena com o ArRUAça

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meu corpo preto era negado.

Assumi a desobediência como potência para pes-quisar meu corpo preto e de onde essas raízes vinham, quais eram suas motrizes. Adotei o bor-ramento e o vertiginoso ao revés da pureza e ver-ticalidade, para contar com o corpo a história ne-gada, de uma memória ancestre que é pulsante; priorizando o corpo que se encontra em constan-te processo de obscuridade, entrando em embate com o contexto da produção colonial. (SPIVAK, 2010, p. 84).

Protagonizamos o corpo preto como potência performática em descolonização das estéticas, enquanto a própria gramática histórica. Nossos corpos funkeiros estão contando nossas memó-rias egressas na atualidade, e a dança preta é palavra e organismo vivo, tal como o funk, in-capturável na plenitude no manancial de mani-festações.

Mayara de Assis, novinha Funkeira de Paciên-cia (Zona Oeste Carioca), é bacharela em Dan-ça pela UFRJ; bailarina, coreógrafa e produtora pelo Coletivo RUDE, grupo que realiza o projeto ArRUAça.

[email protected]

notAs

1 Defendido em Novembro de 2016 sob o título de: “ArRUAça, marginalidade e visibilidade: Estudos inspirados na juventude funkeira no subúrbio carioca para uma proposta artística”.2 Inspirado em Mansur (2013), que apelida o extremo da Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, seguiremos com tal nomenclatura durante a escrita.3 Respectivamente em: Arena Carioca Dicró (Penha), Lona Cultural Sandra de Sá (Santa Cruz) e na defesa do TCC, que fez parte da programação do evento II Encontro de Cultura e Dança Afrobrasileira da UFRJ (organização: Profª Drª Tatiana Tamasceno).4 Retorno na Arena Carioca Dicró.5 Willians Flaviano, dançarino de passinho e ator, compõe o espetáculo ArRUAça, juntamente com Frederick Assis e Mayara de Assis.6 O “não existir” do corpo, referente principalmente em corpos pretos juvenis, será trabalhado futuramente ao longo dos processos de investigações em bibliográficas que discutem descolonização.

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referÊnciAs

CARVALHO, Vinck Vitório Ribeiro de. Higieni-zar e Civilizar: A campanha sanitária no Rio de Janeiro. 2015.Rio de Janeiro, Histórias concisas de uma cidade de 450 anos. Secretaria Municipal de Educação. Rio de Janeiro:SME, 2015.

GODARD, Hubert. Gesto e percepção. Lições de Dança, Rio de Janeiro: Universidade, n. 3, 1999.

MANSUR, André Luis. O velho Oeste Carioca – História da ocupação da Zona Oeste do Rio de Janeiro (Deodoro a Sepetiba) Do século XVI ao XXI (volume I). Ibis Libris. Rio de Janeiro, 2008.

________, André Luis. O velho Oeste Carioca – História da ocupação da Zona Oeste do Rio de Janeiro (Deodoro a Sepetiba) Do século XVI ao XXI (volume II). Ibis Libris. Rio de Janeiro, 2008.

MOUTINHO, Renan Ribeiro / BORGES, Roberto Carlos da Silva. Cultura popular suburbuna e relações étnico-raciais: diálogos identitários no bojo do funk e do pagode no Rio de Janeiro. Arti-go. Publicado: V Reunião Equatorial de Antropo-logia/ XIV Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste. 2015.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Revista Estudos Históricos, v. 2, n. 3, p. 3 - 15, 1989. 69

SPIVAK, Gayatri Chakraworty. Pode o subal-terno falar?. Editora UFMG: Belo Horizonte, , 2010.

SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Mauad Editora Ltda, 1998.