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ARTESANATO AFROBRASILEIRO: LEITURA DO MUNDO NA GERAÇÃO DE TRABALHO E RENDA – PERSPECTIVA PARA TRABALHADORES/AS DE UM LIXÃO IVONETE APARECIDA ALVES (CENTRO DE DIREITOS HUMANOS ELS/ GEPEP UNESP PRUDENTE). Resumo A educação de Jovens e Adultos é um caminho que deve colaborar para diminuir as imensas desigualdades que ainda vigoram no Brasil. Vivemos em um mundo onde o código escrito ocupa um lugar de destaque, em todos os momentos de nossa vida. Mesmo quando estamos ouvindo a emissora de rádio há um apelo para nossos conhecimentos prévios e uma organização textual de nossas experiências de leituras anteriores. O trabalho previsto para ser implementado na zona leste de Presidente Prudente tem como objetivo essencial promover atividades dentro de processo de formação continuada para mulheres e homens que foram impedidos de estudar na época devida, que residem nesta região da cidade de Presidente Prudente e que ainda permanecem como coletores do lixão que tem prazo para ser fechado, mudando para o aterro sanitário que está em processo de construção. Para tanto iniciamos realizando uma pesquisa qualitativa e quantitativa sobre os anseios dessas pessoas para identificar as que possuam interesse em participar de um projeto–piloto, onde seja possível aliar a formação profissional ao processo de escolarização, planejando, organizando e implementando oficinas de qualificação profissional para pessoas com baixo índice de escolaridade, egressos e egressas do sistema penitenciário, seus familiares e componentes da sociedade que possam sustentar o desejo de trabalho do grupo focal desse projeto, visando o acolhimento social pleno, através de geração de renda, essencialmente através de cooperativas de trabalho, ou organizações similares. Palavras-chave: Educação de Adultos, Geração de Renda, Educação Popular.

Apresentação

A educação de Jovens e Adultos é um caminho que deve colaborar para diminuir as imensas desigualdades que ainda vigoram no Brasil. Vivemos em um mundo onde o código escrito ocupa um lugar de destaque, em todos os momentos de nossa vida. Mesmo quando estamos ouvindo a emissora de rádio há um apelo para nossos conhecimentos prévios e uma organização textual de nossas experiências de leituras anteriores.

Os adultos que foram impedidos de aprender a ler e escrever na época devida são constantemente lembrados dessa ausência de saber que dificulta em muito suas expectativas de melhoria de vida e também de sobrevivência no mundo.

Algumas pessoas tiveram suas vidas forjadas no ambiente rural, ou urbano-rural, aprendendo assim a lidar com o trabalho pesado, desgastante, trabalhando de "sol a sol".

Descrevo algumas situações vivenciadas pelos trabalhadores/as de um lixão em Presidente Prudente/SP, mas poderia também estar descrevendo outras situações presentes pelo Brasil afora.

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O chorume que no calor fede muito e na chuva aumenta a volumes indescritíveis impregna a roupa, o olfato e a pele das pessoas, que no decorrer do dia passam a ter a cor e o odor do lixo. Alguns com luvas, outros com pouquíssima proteção, vão lidando com os grandes bags lotados dos diversos materiais que separam: papel, papelão, plástico, metal...

Ao longe, o caminhão da prefeitura despeja os galhos de árvores, depenados dentro de uma cratera, bem acima de várias nascentes de rios. A educação escolar e todos os seus ritos parecem algo muito insólito para esta rotina surpreendente da vida no lixão e dos bairros que compartilham a visão, os odores, as dores e também as alegrias que este povo vai construindo, colaborando para diminuir em muito o volume de tantos resíduos sólidos, que poderiam ter sido coletados seletivamente, evitando assim um trabalho tão insano. Alguns recortes de jornais e revistas são olhados com mais atenção. Vez ou outra alguém chama para compartilhar a leitura que parece tão interessante para fazê-la esquecer de tudo a sua volta e ler. O olho que transvê o mundo agora está imerso na leitura da palavra, enquanto o mundo dentro do lixão, com sua bela vista panorâmica espera para ser novamente revirado.

Diante da experiência bem suscedida de várias prefeituras Brasil afora fica a questão: Por que ainda existe um lixão em céu aberto na cidade de Presidente Prudente? Quais leituras serão necessárias para quebrar com esta cadeia de gozo que insiste em permanecer na pior opção de armazenamento de lixo. E essas pessoas que aqui trabalham, como ouvir sobre seus registros de vida? Qual o Real que permeia suas presenças no mundo?

Breve Histórico do Trabalho

A pesquisa iniciou-se com a coleta de dados empíricos em conversas informais com as pessoas que já residem no bairro desde sua implantação, ou mesmo antes, quando ainda era uma área rural. Ainda resistem algumas áreas de pastagem ocupadas vez ou outra pelo gado, em regime de aluguel. Seu Mané percorre a vila entregando o leite sobre seu cavalo bem cuidado e adestrado. O cavalo já sabe o percurso de cor e sozinho poderia parar na frente da casa de cada compradora de leite. Seu Mané entende e colabora com os/as trabalhadores/as do lixão e até fez quebra-corpo para facilitar a passagem pelo pasto. O trio economiza caminho e diminui em até um quilômetro a distância entre o bairro e o lixão.

Objetivo

O trabalho previsto para ser implementado na zona leste de Presidente Prudente tem como objetivo essencial promover atividades dentro de um processo de formação continuada para mulheres e homens que foram impedidos de estudar na época devida, que residem nesta região da cidade de Presidente Prudente, onde um grupo ainda permanece como coletores do lixão que tem prazo para ser fechado, mudando para o aterro sanitário que está em processo de construção.

Para tanto iniciamos realizando uma pesquisa qualitativa e quantitativa sobre os anseios dessas pessoas para identificar as que possuam interesse em participar de um projeto-piloto, onde seja possível aliar a formação profissional ao processo de escolarização, planejando, organizando e implementando oficinas de qualificação profissional para pessoas com baixo índice de escolaridade, egressos e egressas do sistema penitenciário, seus familiares e componentes da sociedade que possam sustentar o desejo de trabalho do grupo focal desse projeto, visando o acolhimento social pleno, com geração de renda, essencialmente através de cooperativas de

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trabalho, ou organizações similares. Uma das propostas inicialmente pesquisada é a confecção de peças de arte e artesanato afrobrasileiro.

Objetivos específicos

. realizar 30 entrevistas para melhor conhecer as mulheres e homens, sujeitos da EJA, procurando encontrar pistas que possam colaborar na construção de uma proposta inicial de profissionalização e geração de renda, aliada ao processo de escolarização, entrevistando possíveis lideranças comunitárias para a organização;

. preparar e operacionalizar um curso de artesanato, com aulas que estejam aliando escolarização e profissionalização, compatíveis com a Lei 11.645/2008, onde está inclusa a Lei 10.639/2003, que trata da obrigatoriedade do Ensino de História da África e Cultura Afro-Brasileira no currículo escolar;

. propor a profissionalização através de adesão à [1]SUTACO - Superintendência do Trabalho Artesanal nas Comunidades, que está subordina à Secretaria de Relações do Trabalho;

. identificar outros cursos de qualificação profissional que respeite os desejos das pessoas do grupo, organizando estas propostas futuramente e organizar estes cursos, em um cronograma de trabalho factível, inclusive com as parcerias necessárias;

. criar e manter uma rede social que possa dar continuidade às propostas construídas com as pessoas do grupo;

. propor novas parcerias para continuidade do processo de acompanhamento, após a primeira etapa de qualificação profissional na escolarização dessas pessoas;

. montar uma biblioteca comunitária para que as pessoas residentes nessa região possam criar e/ou manter o hábito da leitura, inclusive promovendo eventos que iniciem ou mantenham o exercício da leitura e da escrita;

. montar uma sala de informática com monitoria visando a inclusão digital;

. organizar sessões de filmagens e apresentação de vídeos para criação e implementação de uma proposta de educação popular continuada voltada para a comunidade em geral.

Justificativa

Desde 1989 venho acompanhando vários projetos de Educação de Jovens e Adultos e quase sempre, estas pessoas relatam a necessidade de continuar estudando para conseguir melhorar sua renda e a de seus familiares.

Em alguns casos, há uma enorme dificuldade para manter-se na escola, pois a maioria possui uma atividade remunerada durante o dia, e as aulas da EJA costumam acontecer no período noturno. A zona leste de Presidente Prudente é a região onde se concentra o lixão da cidade, que fica a céu aberto.

Diante da realidade de trabalho árduo e sem nenhuma proteção legal, em 2001, houve a iniciativa do Prof. Antônio César Leal - FCT/UNESP de Pres. Prudente, propondo aos trabalhadores e trabalhadoras do lixão que se juntassem em uma organização para criar uma entidade que os protegesse e melhorasse suas

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condições de trabalho. As pessoas envolvidas no processo optaram por criar, EM 2003, uma cooperativa: a COPERLIX, que atende nesse ano de 2009, 45 cooperados/as. Ainda trabalham no lixão cerca de 120 pessoas. Como existe um projeto, que já deveria ter sido implantado, de retirada do lixão dessa região da cidade e a instalação de um aterro sanitário, estas pessoas ficariam sem ter nenhuma fonte imediata de renda. A grande maioria é analfabeta, ou analfabetas funcionais. Foram forçadas a trabalhar no lixão por não conseguirem trabalho em outra atividade, ou mesmo pela dificuldade de adaptar-se na sociedade de mercado, com regras estabelecidas e quase sempre injustas para os pobres.

No lixão trabalham cerca de 120 adultos. Parte das pessoas envolvidas nesse processo de coleta e outra que no momento, não exercem atividade remunerada, ficarão fora do mercado de trabalho. Na zona leste também é alta a taxa de egressos e egressas do sistema penitenciário. É destinado a estas pessoas, que por diversas razões, não conseguirão encontrar uma alternativa de trabalho, a aplicação deste projeto-piloto, razão pela qual é justificado.

Escolarização na qualificação profissional para pessoas adultas

Há vários conflitos de ordem prática, quando propomos um caminho de formação profissional com base na construção da autonomia de pessoas adultas:

1. Faltam organizações na região que tenham uma posição política libertadora: a maioria optou por trabalhar numa vertente paternalista e assistencialista;

2. Há poucos/as profissionais que consigam entender a posição de uma educação libertadora, pois o estudo teórico é fundamental para sustentar um desejo de mudança tão radical, já que pessoas com boa formação humana e profissional acabam aderindo ao trabalho melhor remunerado seja na iniciativa privada ou na pública;

3. A maioria das instituições de qualificação profissional não possuem um trabalho de acompanhamento, sendo pouco acessíveis às pessoas que mais necessitam de informações e de uma formação continuada, ao longo da vida, como apregoam os documentos da área da educação. Como exemplo, no segundo semestre de 2008, o SENAC ofereceu um curso de informática gratuito, mas a prova para conseguir uma vaga eliminou todas as pessoas do Cambuci, José Rotta e Paraíso que tentaram obter uma vaga. Dessa forma, estamos propondo um projeto que venha a transformar-se em um programa de qualificação profissional, com objetivos e metas factíveis, estabelecidos no coletivo, já como um processo de estudo, com um investimento na formação e no acompanhamento dessas pessoas.

Uma questão que devemos nos ater diz respeito ao brutal sistema de exploração da população pobre, com uma reserva tão grande de mão-de-obra, certamente agravada com a discriminação contra o egresso ou egressa do sistema penitenciário, e pela discriminação racial. Esta exploração deve ser tema de todos os cursos de qualificação profissional, seja este inicial ou em continuidade.

A economia solidária, afirma Paul Singer e outros/as autores/as (SINGER, 2002; MELO, 1997; SANTOS, 2005) deve ser construída no bojo do capitalismo, pois é possível aprender com os equívocos cometidos por este sistema brutal, que segrega em algumas regiões as pessoas, com o intuito de melhor explorá-las e mantê-las como reserva de mercado.

A promessa de aumentar o bolo para então reparti-lo foi uma retórica vazia que não promove mais a crença de ninguém, fazendo a sociedade mergulhar em uma

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desesperança no futuro, dificultando a luta para diminuição da pobreza de forma democrática e de fato libertadora (KI-ZERBO, 2006; MELO, 1997; SANTOS, 2005).

O trabalho consciente e o empoderamento terão como base os aspectos de uma cidadania comprometida também com as decisões que sejam mais viáveis para o grupo social de oprimidas/os, por isso a qualificação profissional deverá ser precedida de um processo de discussão e formação política e possuir o acompanhamento de grupos de pessoas que já tenham optado pela luta em prol de uma sociedade menos injusta (FREIRE, 1999; TEDESCO, 2006).

A existência de processos discriminatórios e preconceituosos contra os egressos/as do sistema penitenciário, extensivo à família mais próxima, são mecanismos que não podem ficar escondidos ou sub-reptícios. Portanto, pensar seriamente em diminuir as taxas de reincidência criminal é fundamentalmente pensar em alternativas de geração de trabalho e renda que estejam condizentes com a inteireza da pessoa. Isto requer a qualificação profissional e a construção de todo um sistema simbólico, baseado no diálogo franco, mas sustentado por um forte desejo de [2]transferência de trabalho (MRECH, 1998).

Metodologia

Diante da proposta de trabalho formativo para a qualificação profissional, estamos propondo a pesquisa-ação como metodologia, pois esta prevê a participação efetiva das pessoas, tendo na sua concepção ideológica um projeto de ação social. (THIOLLENT, 1999: 84/85)

A escolha inicial de um caminho formativo: a implementação da Lei 10.639/2003

Trabalho com artesanato desde 1975, e com nove anos, fui introduzida nesse campo para ajudar minha irmã que é canhota e pouca gente conseguia explicar a ela os pontos de crochê. Três anos depois já trabalhava como empregada doméstica e fazia arranjos de cabelo para completar nossa pequena renda doméstica.Tenho aprimorado o artesanato produzido, em 2007 estudando e produzindo com cuidado os brinquedos étnicos, sem conseguir atender sequer a demanda próxima. Como é um trabalho fruto de anos de pesquisa, o resultado são peças únicas e que promovem uma discussão muito enriquecedora, tanto das crianças como das professoras/es que têm participado dessas oficinas.

Fizemos uma intervenção na EMEF "João Sebastião Lisboa", em Pres. Prudente, na Semana da Consciência Negra, em 2007, na disciplina "História da África e da Cultura Afro-Brasileira", coordenada pela Profª Drª Maria de Fátima Salum da FCT/UNESP de Pres. Prudente. Tanto a professora como as crianças ficaram encantadas com as bonecas confeccionadas com material reaproveitado e miçangas, respeitando, mas nunca copiando as originais feitas na África.

Além das bonecas étnicas já produzimos armários e caixas de madeira decorados com motivos étnicos. As pessoas dessa região da cidade já trabalham com reciclagem e reaproveitamento, mas poucas têm consciência de como agregar valor para esses materiais tão importantes e acabam só comercializando por tonelada. Um bloco de papel é vendido em média por 15 centavos o quilo. Quando transformamos um bloco de papel em 1 quilo de papel-machê posso comercializá-lo por até 15 reais, uma valorização enorme do trabalho aplicado e uma técnica simples, limpa e barata, que exige o mesmo tempo de mão-de-obra. É o conhecimento sobre o trabalho que faz dessas peças muito mais que "um mero epifenômeno da reprodução biológica. Ao pensar e refletir, ao externar sua

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consciência, o ser social se humaniza e se diferencia das formas anteriores do ser social." (ANTUNES, 2005:67/68)

Existe, por parte de algumas editoras, inúmeras publicações para implementação da lei 10.639/2003 (que torna obrigatório o Ensino de História e Cultura Afro - Brasileira e Africana), algumas de excelente qualidade e outras que estão se aproveitando do bum editorial para lucrar um bocadinho; porém há uma carência de objetos, de aplicabilidade de técnicas, jogos, roupas, acessórios que atendam a enorme demanda criada pela emergência da "moda negra". Em alguns locais pode ser um modismo que vai passar, mas há um interesse genuíno nascido no bojo das lutas pela democratização dos conteúdos, até então dominados pela visão eurocêntrica do mundo (HALMENSCHLAGER, 2001; KI-ZERBO,2006). Onde encontrar os brinquedos étnicos, onde as peças de decoração que possam colaborar na formação da identidade negra? As meninas e meninos do movimento Hip-hop têm dificuldade de encontrar quadros, roupas e estamparias com ídolos desse campo, como DJ Afrika Bambaataa (organizador das primeiras manifestações das batalhas de Hip-hop em 1968, nos EUA), Nação Zumbi, Racionais MCs', Facção Central, Realidade Cruel e muitos outros grupos (ROCHA et al, 2001).

Estamos na emergência de um novo Real, que poderá ser muito eficaz na diminuição da pobreza encontrada nessa região da cidade. Para confeccionar cada peça há a necessidade de pesquisa, de leitura e de uma imersão na cultura afro-brasileira, o que promove um processo de educação continuada muito instigante (ainda que sofrido, em alguns momentos) para as pessoas envolvidas com a questão.

As crianças que ensinam os adultos

Logo após aplicar os primeiros questionários, fiz um convite para as pessoas do bairro, com o objetivo de implementar algumas propostas e atender um mínimo da demanda coletada com a aplicação do questionário. Vieram 6 pessoas e depois de mostrar a elas um pouquinho do trabalho com os questionários pedi que pudessem sugerir a continuidade do trabalho. Uma pessoa quis vir para aprender a confeccionar algumas bonecas, mas não pode dar continuidade.

Evidente que a frustração foi grande, mas ainda assim continuei atendendo cada pessoa que indagava sobre a proposta. Percebi que a estrutura solicitada, em geral, é a já vivenciada por muitos anos, correspondente à capitalista, que mesmo sendo autoritária, garante uma renda mínima registrada em carteira, ou atendendo as demandas que a "cliente" pediu. A garantia da venda, o pouco dinheiro ganho, desde que seja garantido é melhor que uma ousadia para mudar. Já com as crianças a demanda veio com a proposta delas: "Deixa a gente fazer também!". Elas me viram fazendo uma máscara com papel machê e insistiram várias vezes até que considerei o pedido delas. Atendi três no início e duas semanas depois formamos um grupo com 22 crianças. Então elas passaram a explicar para mães, pais, avós, avôs e outros próximos o que a gente produzia. Foi assim que nasceu o grupo Nzinga Afrobrasil - Arte, Educação, Cultura. Em maio fizemos uma exposição com o trabalho de todas as crianças e conseguimos produzir esta peça no coletivo, inclusive com a colaboração das pessoas adultas.

A pesquisa

Depois de refletir muito sobre uma possível interferência no bairro, optei pela aplicação de um questionário para identificar pessoas que já fazem artesanato, algumas tendo-o como atividade principal. Identificando as possíveis lideranças e disponibilidade para ensinar, poderíamos aumentar a equipe no momento de iniciar

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o processo de formação. O gráfico a seguir é resultado da aplicação do questionário:

[3]

Atividade principal

A questão 04, com uma resposta espontânea sobre a atividade principal, gerou algumas incongruências, pois existem mulheres que são donas-de-casa e acabaram respondendo que a principal atividade é a de "doméstica", que é muito utilizada para denominar a profissão de mulheres que trabalham em outras casas de família realizando uma atividade profissional. Fiz algumas voltas para conseguir as respostas que me possibilitassem classificar melhor os dados colhidos. Em alguns casos, tive que retornar à casa da pessoa para saber se sua atividade principal era de fato a de cuidar da casa, para diminuir as categorias de análise da pesquisa. Basicamente decidi voltar a pergunta da seguinte forma: "Durante o dia todo, da hora que você se levanta até a hora de dormir, qual é a atividade que toma mais de seu tempo?" Dessa maneira pude obter dados mais confiáveis e que retratam melhor a realidade.

Foram identificadas 14 atividades sendo que o artesanato representou 11%, costureira 8% e dona-de-casa 48%. As outras atividades foram citadas apenas uma vez, representando pouco mais de 3% cada uma, compondo um cenário onde a formação universitária está totalmente ausente, mesmo sendo uma média de idade de 38 anos, o que ilustra um grupo de excluídos do mundo acadêmico.

Escolarização e profissionalização

Os documentos mais recentes (MEC/SECAD/DPEJA, 2009) sobre educação de jovens e adultos tem frisado a importância de aliar a escolarização com uma atividade profissionalizante ou mesmo pensar na educação ao longo da vida. Ao aliar a escolarização com a profissionalização é possível pensar em atividades que permearão toda a vida das pessoas da comunidade. Tanto a escola como as demais entidades seriam aliadas nesse trabalho.

Considerações sobre Cultura popular, artesanato e a EJA

A cultura popular passou pelas mudanças do século XXI e estas a influenciaram profundamente. Desvalorizada e revalorizada em ocasiões diferentes teve seus defensores dentro e fora da academia. Em muitas famílias pobres foi o artesanato popular que garantiu, em diferentes ocasiões, a sobrevivência da família. Em Minas Gerais, centenas de organizações buscam melhorar a qualidade dos produtos e a comunicação entre as comunidades de artesãs para que possam comercializar melhor e garantir preço para suas produções, além de facilitar o intercâmbio com outras regiões do Brasil. Estes processos de aprendizado continuo é uma das neessidades da EJA e se configura como a necessidade de "uma garantia de Educação ao longo da vida".

Ao aliar o processo de educação com as atividades cotidianas, o saber fazer (que caminha do saber empírico para o científico), as pessoas adultas conseguem compreender e até mesmo solicitar a continuidade do processo de escolarização, que de mudança em mudança, hoje solicita alguns conhecimentos que a escola comum pública ainda não é capaz de compreender para atender as demandas. Este processo iniciado tem permitido que exista uma escuta de qualidade sobre este novo Real que emerge da Educação de Jovens e Adultos, dentro da vida mesma, que ora busca no passado seu mote principal, ora visualiza o futuro, com foco no

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presente que é percebido e vivenciado com tanta riqueza, provocando sensações e reações surpreendentes. Este momento presente é que instiga a busca de tantas indagações que nem sempre respondemos, mas que faz desse "estar-no-mundo" uma experiência ímpar e bela.

Referências Bibliográficas

ANTUNES, Ricardo. O caracol e sua concha: ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. Boitempo: São Paulo, 2005.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Ed. Paz e Terra, São Paulo, 1999, 27ª edição.

HALMENSCHLAGER, Vera Lucia da Silva. Etnomatemática - uma experiência educacional. Selo Negro/Summus: São Paulo, 2001.

KI-ZERBO, Joseph. Para quando a África? - uma entrevista com René Holenstein. Tradução de Carlos Aboim de Brito. Pallas: Rio de Janeiro, 2006.

LOPES, Nei. Bantos, malês e identidade negra. Autêntica: Belo horizonte, 2006

MEC/SECAD . Orientações e ações para a educação das relações étnico-raciais. Brasília, 2006.

LUDKE, Menga & André, Marli E. D. A.. Pesquisa em educação - abordagens qualitativas. EPU: São Paulo, 1986.

MELO, Orlinda Carrijo. Alfabetização e trabalhadores: o contraponto do discurso oficial. UNICAMP: Campinas, 1997.

MÉSZÁROS, István. Para além do capital. Tradução de Paulo Cezar Castanheira e Sérgio Lessa. Boitempo: São Paulo, 2002.

__________. A educação para além do capital. Tradução de Isa Tavares. Boitempo: São Paulo, 2005.

MEC/SECAD/DPEJA. Resolução 51/2008 Economia Solidária - Edital de Seleção N° 03/2009.

MOORE, Carlos. A África que incomoda: sobre a problematização do legado africano no quotidiano brasileiro. Nandyala: Belo Horizonte, 2008.

MRECH, Leny Magalhães. Transferência e saber. FEUSP, 1998. Texto de aula.

PEREIRA, Paulo Henrique. Noções de estatística: com exercícios para administração e ciências humanas. Papirus: Campinas, 2004.

SANTOS, Gislene Aparecida dos. Filosofia e as gentes - um estudo sobre as origens das diferenças. In. SILVA, Divino José da Silva; LIBÓRIO, Renata Maria Coimbra. Valores, preconceito e práticas educativas. Casa do Psicólogo: São Paulo, 2005, p.49-71.

SINGER, Paul. Introdução à economia solidária. Perseu Abramo: São Paulo, 2002.

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SOUZA, Ana Lúcia Silva & CROSO, Camila. (coord) Igualdade das relações étnico-raciais na escola: possibilidades e desafios para a implementação da Lei 10.639/2003: Petrópolis/ Ação Educativa/Ceafro/Ceert: São Paulo, 2007.

ROCHA, Janaina; DOMENICH, Mirella & CASSEANO, Patrícia. HIP HOP - a periferia grita. Perseu Abramo: São Paulo, 2001.

THIOLLENT, Michel. Notas para o debate sobre pesquisa-ação. In. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Repensando a pesquisa participante. Brasiliense: São Paulo, 1999, p. 82-103.

[1] Este órgão possibilita às artesãs e artesãos expor, comercializar dentro e fora do país, sua produção em feiras oficiais, além de permitir que seja recolhido o INSS, garantindo amparo para licença-saúde e aposentadoria por tempo de serviço, além da possibilidade de emissão de nota fiscal de seus produtos.

[2] O conceito de transferência de trabalho foi desenvolvido pela Profª Livre Docente da Faculdade de Educação da USP Leny Magalhães Mrech, que partiu do conceito freudiano significado por Jacques Lacan, tendo como foco a transferência positiva de sentimentos afetuosos e amigáveis, ainda que a transferência negativa esteja presentes em momentos dessa relação que deve levar o Outro a conseguir quebrar as cadeias de gozo, onde foi capturado. Para que exista a transferência de trabalho há necessidade de que o educador ou educadora consiga, através da fala e do compromisso ético convencer o Outro da necessidade de "ler" os registros do inconsciente que o obrigam a permanecer no pior. Sair do pior é conseguir quebrar as cadeias de gozo e passar a percorrer outro caminho de compromisso com a própria mudança, para então ser capaz de sustentar o desejo de uma mudança cognitiva, simbólica e real: a emergência do Real ou ®.

[3] O Critério de Classificação Econômica Brasil é utilizado para estimar o poder de compra das pessoas de famílias urbanas, abandonando a pretensão de classificar a população em termos de "classes sociais". No entanto, para fins de solicitar auxílio e até recursos financeiros para o financiamento de projetos, ao lado de outros fatores de análise, a classificação econômica extrapola o seu objetivo essencial que é o de analisar o poder de compra dessas pessoas entrevistadas. Nesse caso utilizamos a classificação como uma base para descobrirmos se há uma ligação mais direta com os recursos da família e a intencionalidade de ter acesso a uma Educação de Jovens e Adultos que esteja vinculada com a geração de renda proposta pela área de organização que se utiliza de elementos da Economia Solidária, ainda pouco conhecida e quase sem divulgação no Brasil.

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