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  • Arte urbana e a (re)construo do imaginrio da cidade

    N 1

  • Sesc | Servio Social do ComrcioAdministrao Regional do Sesc no Rio de Janeiro Interventor Bruno Breithaupt

    DEPARTAMENTO REGIONALDiretor Mauro Lopez Rego

    Superintendente de Programas Sociais Marcos Henrique Rego

    PUBLICAOCoordenao Editorial Maria Jos Motta GouvaRamon Nunes Mello

    Superviso Editorial Jane Muniz

    Projeto Grfico Hannah (Ana Cristina Pereira)

    Diagramao Avellar e Duarte

    CopidesqueViviane Godoi e Eduardo Frota

    Estagirio de Produo EditorialDiogo Franca

    Sesc Rio de Janeiro, 2015Rua Marqus de Abrantes, 99 FlamengoRio de Janeiro RJCEP 22.230-061www.sescrio.org.br

    Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei n 9.610 de 19/2/1998. Nenhuma parte desta publica o poder ser reproduzida sem autorizao prvia por escrito do Sesc no Rio de Janeiro, sejam quais forem os meios empregados: eletrnicos, mecnicos, fotogrficos, gravao ou quaisquer outros. Distribuio gratuita

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao

    Arte urbana e a (re)construo do imaginrio da cida-de. Rio de Janeiro : Sesc, Administrao Regional no Rio de Janeiro, 2015.

    108 p. ; 17 cm. (Caderno diverso, n. 1).

    ISBN 978-85-85791-06-3.

    1. Arte urbana. 2. Arte e sociedade. 3. Cultura popular Brasil. I. Sesc. Administrao Regional no Rio de Janeiro.

    CDD 700

  • N 1

    Arte urbana e a (re)construo do imaginrio da cidade

    Sesc | Servio Social do Comrcio

    Administrao Regional do Sesc no Rio de Janeiro

    Rio de Janeiro

    2015

  • SUMRIO

    N 1

  • INTRODUO 6

    PALESTRA DE ABERTURA Amir Haddad 8

    ENSAIOS literatura como ferramenta de reiveno da cidade

    cio Salles 20

    Arte de rua, arte efmera

    Bruno Vianna 28

    Arte pblica: a cidade como experincia

    Paulo Knauss 36

    As ruas redefinem o poder

    Alexandre Vargas 44

    O compartilhamento da cidade

    Srgio Magalhes 50

    Remix da cidade: a msica urbana dos velhos aos novos tempos

    Thiago Vedova 58

    Sentidos da vida na cidade

    Jailson de Souza e Silva 68

    Xxxxxxx

    Mauro Lopez Rego 74

    PERFIL 88

    PROGRAMAO 94

    ESPAO PARA O LEITOR 102

  • INTRODUO

    6 Sesc | Servio Social do Comrcio

    O imaginrio e a cidade

  • Arte urbana e a (re)construo do imaginrio da cidade 7

    A arte urbana reflete a diversidade cultural que transita pelas ruas dos grandes

    centros, criando encontros, movimentos e contradies. Um grande caleidoscpio,

    no qual as imagens se modificam de acordo com os diferentes itinerrios que cor-

    tam a cidade. A disputa pelo direito cidade, acirrada pela incluso e potncia dos

    novos atores oriundos de territrios populares, fazem do espao urbano um palco

    de afirmao de identidades urbanas que redefinem e compartilham os espaos

    de sociabilidades.

    Muros, ruas e praas so os suportes e cenrios utilizados por artistas contempo-

    rneos que potencializam o dilogo entre as diferentes linguagens, invadem ruido-

    samente os espaos pblicos, surpreendem os transeuntes e interferem no ritmo da

    cidade. Suas obras provocam um intervalo na rotina apressada dos grandes centros,

    valorizando o tempo presente e provocando uma reflexo sobre o passado e o futuro

    da cidade.

    Como um grande remix, a arte urbana recria constantemente o imaginrio da cidade.

    O encontro Arte urbana e a (re)construo do imaginrio da cidade, ocorrido na Unidade

    Quitandinha, durante o Festival Sesc de Inverno 2014, buscou apreender as novas repre-

    sentaes e sentidos desencadeados por esse processo contnuo de afirmao e interao

    das identidades urbanas.

    Com grande satisfao, reunimos nesta publicao diferentes reflexes sobre a cons-

    tante construo e reconstruo do imaginrio urbano: um movimento contnuo que

    traz para a cidade novos sons, imagens, linguagens, arquiteturas e subjetividades.

  • Amir Haddad

    PALESTRA DE ABERTURA

    8 Sesc | Servio Social do Comrcio

    Amir Haddad

    Hoje conversei sobre muitas coisas, problemas essenciais, questes essenciais da

    nossa vida, da vida moderna e da construo de um possvel novo mundo, atravs das

    nossas concluses, das nossas contradies, idiossincrasias, todas essas coisas. Falei:

    Meu Deus, estou com a cabea que um monte de entulho! Fiquei vendo aquele cara l

    da arte-pblica que vai apagando, apagando... Tenho que dar um jeito para ir apagando,

    apagando, e chegar a algum lugar, para limpar um pouco a cabea porque muita coisa.

    Como posso explicar? Estou com o tempo espremido. Queremos fazer uma pequena

    demonstrao do nosso trabalho e j est nevando l fora, meus atores j esto pneu-

    mnicos esperando. Como vou limpar, e falar o que gostaria, tenho muitas coisas para

    comentar sobre tudo o que foi exposto at o momento. bvio que tenho. No fao outra

    coisa na vida. Tenho 55 anos de teatro e caminhei sempre em uma nica direo. um

    chamado inevitvel do qual voc no pode escapar. Tenho muita coisa para falar, porque

    primeiro fiz tudo, pensei depois. Ento, tenho teoria nascida da minha prtica. Tenho e

    gosto de falar dela. No gosto de esconder nada. O que sei, no posso calar, como dizia

    o Galileu do Brecht. Eu no posso calar, como um bbado, como um amante ou como

    um traidor, entende? perigoso e isso pode levar a vrios lugares, mas eu falo... Eu

    falo. Tudo que eu sei eu falo, nada eu guardo, tudo eu quero compartilhar. Ento, eu

    estava nessa, com essa coisa... Como vou fazer, nesse pouco tempo que me resta, com

    a cabea entupida j de tanta informao e querendo tanto esclarecer alguns pontos

    do discurso de vocs, coisas que aprendi, que j sei, mas que vocs, pelo seu discurso,

    ainda no pensaram, ainda no sabem? Talvez o que eu disser possa ajudar a avanar

    o pensamento de vocs todos e eu enrolado nisso tudo... Como enfio isso na cabea...?

    Esse cara veio e lavou a minha cabea, limpou, me fez descansar... Eu estou feliz aqui e

    ningum vai embora antes da meia-noite!

    J basta fazer o que fao, j basta avanar na direo em que avano, que me deixa fre-

    quentemente muito sozinho longe dos meus pares, mas no me deixa longe do meu povo,

    da minha cidade, da populao com quem eu convivo h 35 anos. Estou na rua h 35 anos

    e costumo dizer que fico mais vontade de cueca na rua do que em casa, entende?

  • Arte urbana e a (re)construo do imaginrio da cidade 9

    Tranquilamente, e h muito tempo. Fico sem saber... Ver e ler esse texto maravilhoso...

    Est tudo a. O Aderbal estudou a minha vida, ele me conhece bastante, ele estudou e

    fala tudo isso de mim. Estou com a cabea limpa. Estaria comeando de outro jeito se

    no tivesse lido o texto dele; me agradou muito, mas ainda fico assim com uma questo:

    da hora, do tempo que ns temos, entende? Da necessidade de falar alguma coisa, que

    eu sinta vontade de falar e ao mesmo tempo de querer mostrar alguma coisa do meu

    trabalho, porque uma coisa educao sexual e outra trepar. Eu queria mostrar esse

    pacto amoroso que o teatro, e no dissertar sobre as minhas coisas. Mas tenho sido

    condenado ultimamente a ser o porta-voz de muitas ideias, a liderar movimentos, a ter

    voz e um discurso, no ficar preso no meu trabalho, mas convocar o mundo com as

    minhas ideias, com o que penso, com os avanos que acho que as coisas podem ter, tudo

    isso. Me sinto obrigado a fazer isso desde que meu amigo Augusto Boal morreu. Quan-

    do ele estava vivo ele falava e eu trabalhava, entende? Ento era bom, ele fazia um dis-

    curso... Que bom! O Boal est falando. O Boal est falando! E eu ficava ali fazendo meu

    teatrinho sem problemas. Depois que ele morreu eu falei: no d mais, no d mais, no

    tem mais vozes. No tem mais voz o teatro brasileiro, medocre, como ele falou aqui,

    medocre, est fechado no shopping. No tem mais nada, a inteligncia brasileira

    cada vez mais burra, cada vez mais burra, o pas cada vez mais perde contato consigo

    mesmo, perde contato com o simblico, como se falou isso aqui tambm, entende?

    Ento, cada vez mais, no tem mais quem fale nada. Com a morte do Boal, desapareceu,

    no tem mais uma pessoa, e eu falei: no posso mais me furtar a fazer isso, e tenho

    feito, falando as minhas coisas. claro que eu no vou falar sobre o Teatro do Oprimido.

    No vou botar azeitona na empada dele! No vou falar do teatro dele, vou falar do meu,

    a minha voz, e isso que eu falo, mas desde ento tenho me transformado quase que

    em um terico, coisa que eu odeio. Mas preciso pensar, e a minha teoria ela extrema-

    mente ligada minha prtica, no tem um conceito, um pensamento que no tenha

    sado da minha observao direta dos fatos e da minha vivncia direta dos fatos, porque

    ao mesmo tempo estou fazendo teatro seja onde for: na rua, no teatro ou em qualquer

    Diretor singular no cenrio do teatro brasileiro contemporneo. Dirigiu grupos alternativos na dcada de 1970 fundamentando uma linha de trabalho

    significativamente pesquisada por essa gerao: disposio no convencional da cena;

    desconstruo da dramaturgia; utilizao aberta dos espaos cnicos; e interao

    entre atores e espectadores. Fundador do Grupo T na Rua, referncia, nacional e

    internacional, para a pesquisa, formao e criao no mbito do teatro de rua.

  • 10 Sesc | Servio Social do Comrcio

    lugar porque at no teatro d para fazer teatro, d, no sou radical nesse ponto, at no

    teatro d para fazer teatro. A maior parte das pessoas no faz. Faz esse arremedo que

    o Aderbal falou, essa apropriao que se faz da linguagem poderosa e real, muito nova e

    muito antiga que o teatro. Ento at no teatro d para fazer teatro, mas cada gesto meu,

    cada movimento, eu estou pensando. Lembro que, na primeira vez que fui fazer teatro

    de rua, estava com meu grupo e de repente fiz um gesto (abre os braos) e fiquei estate-

    lado... Falei: Santo Deus, j vivi isso, j vivi isso, estou me reconhecendo, no a primei-

    ra vez que fao isso, nem ser a ltima, no sei onde, mas j vivi isso, sei que j vivi isso!

    Uma sensao que nunca tinha tido fazendo teatro nas salas fechadas, mas fazendo esse

    gesto na rua, abrindo meus braos, o povo ali fora... Gente pobre, gente rica, todo mun-

    do, cachorro, polcia, todo mundo ali em volta... Eu j vivi isso! J vivi isso no s no meu

    gesto, j vivi nessa gente que est em volta de mim, nessa plateia heterognea que se

    formou em volta de mim, nessa construo de um novo edifcio teatral, que o cidado

    livre se expressando no meio da praa dizendo sua maneira o que ele quer dizer paro

    o outro e respeitando a inteligncia do outro, em nenhum momento tratando nenhum

    ser humano na praa como se ele no fosse capaz de entender todas as linguagens, a

    melhor das linguagens: a mais direta, a mais viva, a mais perturbadora, a mais transfor-

    madora que essa relao direta que o teatro estabelece com as pessoas. Cheguei a

    pensar em trazer um videozinho para publicar tambm... Vou levar, eu levo uma vari-

    nha... Mas no isso, no vou levar, nunca levei e no vou levar dessa vez. Quando vi que

    eles estavam trazendo, eu pensei: poxa me dei mal (risos). Mas no vou levar porque

    acredito nessa coisa que s o teatro pode proporcionar, que o encontro direto entre as

    pessoas. Isso muito novo, porque encontro direto a gente no tem mais, mas muito

    velho, isso eternamente velho e isso eternamente novo. Esse contato direto, essa

    linguagem poderosa, voc vai para o meio da rua e tem esse contato com a populao

    e eu ali no meio... Caramba! Eu j vivi isso. Durante anos fiquei com essa sensao... Eu

    j vivi isso! Depois comecei a pensar assim: ah, caramba, no que eu j vivi isso, eu j

    vi tanto livro de teatro, eu j vi tantas gravuras dos atores nas ruas, eu j vi tantas coisas

    da commedia dellarte que eu vi esse gesto em algum lugar em alguma gravura... Porque

    est cheio nos livros, voc olha e t l o cara... (abre os braos). dali que eu vi, fiquei

    calmo, j sabia de onde tinha visto; no era mgica. Mas depois (a vida no para), depois

    eu fui vendo que era mais que isso: no que tinha visto em um livro, nem que eu tinha

    Amir Haddad

  • Arte urbana e a (re)construo do imaginrio da cidade 11

    vivido, mas era a ancestralidade dessa forma de manifestao dentro de mim. Quando

    fiz o gesto, fiz o gesto da minha ancestralidade, era a memria coletiva do ser humano

    se manifestando dentro de mim em praa pblica da mesma maneira que essa ancestra-

    lidade se manifestava na cara de cada expectador que me assistia e que provavelmente

    nunca tinha ido ao teatro. E entendi o que eu estava fazendo, entendi o meu gesto; eu

    me reconheci ali e eles tambm me reconheceram. Eu comecei a perceber que isso se

    devia recuperao de uma possibilidade ancestral dentro de mim, dentro de cada um

    de ns seres humanos. possvel recuperar essa ancestralidade. Ancestralidade a pos-

    sibilidade de nos colocarmos no mundo de uma maneira contempornea. A ancestrali-

    dade da noo do ser humano, da sua histria e da sua continuidade. Ento ancestral

    ser contemporneo. O moderno nasce velho, o moderno no tem ancestralidade, de

    ontem, hoje moderno, amanh ps-moderno e depois de amanh pr e ps-

    -moderno, cada modernidade de Nova York no dia seguinte est velha... So tantas as

    novidades! E o que me garantia de ser novo a cada instante e velho o tempo todo era de

    repente a descoberta dessa ancestralidade do meu ofcio e daquilo que eu fao, e no s

    do que eu fao, tambm de todos os artistas. Todos os artistas quando se manifestam

    esto manifestando a sua melhor possibilidade humana, a mais ancestral de todas.

    Duvido que aquele cara que pintou o bisonte na caverna estivesse pensando em galeria,

    duvido que ele quisesse que algum fosse l recortar a parede dele e vender por um

    milho de libras. No passa pela cabea dele, como provavelmente no passa pela cabea

    do artista que pinta na rua, ser aproveitado e transformado em uma galeria. Mas no

    falta ideologia capaz de matar o cara que quer ser efmero e no deixar ele ser efmero...

    Por que no? Por que no? Por que no ser efmero? Por que no deixar as coisas se

    acabarem? Elas iro durar se tiverem que durar. Isso o aprendizado que o teatro d: no

    h nada mais efmero do que o teatro. Feito, foi embora, acabou! Mas ancestral; essa

    ancestralidade est viva dentro de cada um de ns. Ento voc pode ser efmero se esti-

    ver trabalhando com sua ancestralidade; se voc estiver pintando uma parede no meio

    da rua como voc pinta um bicho em uma caverna para dizer para os seus que aquele

    bicho existe, que voc caou aquele bicho e voc se deu ao trabalho de ir l e fazer aque-

    le bicho... essencial que essa pessoa exista, que pinte o bicho ali e que o deixe ali para

    quem quiser, no para vender, para filho da puta nenhum. para ser compartilhado!

    para ser compartilhado, ele doa, ele doa a quem doer! Ele oferece, ele oferece aquela obra

  • 12 Sesc | Servio Social do Comrcio

    ali... Eu imagino o homem da caverna indo caar o biso para comer e olha aquele

    outro l desenhando: mas esse vagabundo! Todo mundo trabalhando e esse filho da

    puta pintando!

    E ele visto como o primeiro vagabundo da sociedade, ele o primeiro de todos os

    vagabundos que somos todos ns, entende? Sou um vagabundo, ns queremos ser vaga-

    bundos. Eu sou agora cada vez mais partidrio de ideia de que eu no quero ser nada, eu

    quero ser um vagabundo, eu quero fazer o meu caminho, eu sou vagabundo que pinta

    bisonte na caverna. Eu no quero ser til, eu no quero botar gravata, eu no quero

    trabalhar, eu no quero fazer o que todo mundo faz para ganhar a vida. Eu quero ser

    aquele que anuncia outra possibilidade para o ser humano, no quero ficar prisioneiro,

    burocrata, submetido e massacrado por um salrio, por melhor que ele seja. Quero ser

    um vagabundo como estes que pintam as coisas no meio da rua. Quero ser vagabundo

    como estes que cantam e danam no meio da rua, que escolhem a rua como lugar para

    se apresentar. No quero ser aqueles que vo para a rua porque no tm lugar para se

    apresentar enquanto no tiver suas chances; no, muita gente assim. Tem muitos,

    muitos que escolhem este lugar para se oferecer publicamente com a ideia de que no

    possvel fazer arte e guardar no escaninho esperando o melhor preo. No possvel

    fazer arte para esperar Cristo vir olhar e dizer o que . No possvel fazer arte sob a

    encomenda do museu de arte moderna de Nova York, no possvel fazer arte dessa

    maneira. No por a... Ento, aquele que sabe o que est fazendo, est doando. Arte

    obra pblica pela prpria natureza. Ningum faz arte para guardar. Quando fao, para

    dar, eu doo. Mas se algum quiser escrever uma teoria sobre a oferta que fiz, escreva,

    mas no me mate, no se apodere de mim, no pegue a minha coisa, no bote em um

    museu, no diga que vale um milho; uma ofensa minha liberdade, uma ofensa

    minha possibilidade de me ofertar publicamente sem cobrar pelo que eu estou fazendo,

    oferecer o que eu tenho de melhor para o outro, que a minha possibilidade criativa

    sem nenhuma condio. doao universal. O artista um doador universal. Ele no

    um produto do mercado. Estamos doentes por causa do mercado. O setor de arte, as

    galerias, os teatros, os artistas, os filmes... Todos, todos com a alma partida. No falo

    sobre seus produtos, falo do artista que produz porque no est mais cumprindo o seu

    impulso generoso de ofertar o que ele tem de melhor para o outro, ele est pensando:

    Amir Haddad

  • Arte urbana e a (re)construo do imaginrio da cidade 13

    Vai vender, no vai vender; vou ganhar dinheiro, no vou? O que est usando agora,

    qual a ltima moda da msica? Qual a ultima moda das artes plsticas? O que vou

    fazer? Cara, no faz isso que isso no vende!

    O Vincent van Gogh no vendia, e hoje cobram 120 milhes por um quadro dele.

    um insulto ao van Gogh fazer isso. Principalmente se soubermos que ele quase mor-

    reu de fome, teve uma vida fodida, filha da puta, ficou louco, doente, cortou a orelha...

    E ningum deu nenhum valor para os quadros dele. Hoje, qualquer milionrio compra

    um quadro dele por 120 milhes, isso tem a ver alguma coisa? E quem me garante que

    se a Mona Lisa ficasse na rua no iam t-la pintado, hoje todo mundo faz brincadeira

    com a Mona Lisa. E a gente fala: sagrado, sagrado! Ele pintou o retratinho dele; ele

    tinha os mecenas que tratavam dele; ela no pintou para o mercado, no pintou para

    vender. Tinha um cara que falava: esse cara trabalha bem, voc quer continuar ofertan-

    do? Continue, eu te dou um dinheirinho. No Renascimento, havia esses homens que

    proporcionavam aos artistas a possibilidade deles poderem exercer sua arte livremente

    e poderem oferecer seu talento, sua criatividade para todos, para as igrejas, os palcios,

    as ruas etc. As cidades italianas so obras de arte maravilhosas oferecidas populao.

    Como tambm as cidades gregas, cidades harmnicas oferecidas populao e para

    bens da populao. Imagina se o Fdias, escultor da Grcia Antiga, vai procurar uma

    galeria para expor as obras dele em Atenas. Ele oferece obra pblica, arte pblica; a arte

    pblica sempre.

    A gente precisa parar de pensar a arte como atividade privada e entender que ela,

    como atividade privada, um momento da histria do homem, esse momento difcil por

    que estamos passando, esse momento do fim, da decadncia de uma civilizao que no

    tem mais nenhum valor, no sabe mais onde se segurar. A arte privatizada um aspecto

    desse momento da nossa civilizao, mas ela pblica pela prpria natureza.

    A arte nunca foi propriedade de nenhuma pessoa, de nenhum grupo, nenhum artis-

    ta se sente assim.

    A coisa de que mais gosto que fao o espetculo com meu grupo e amanh no

    fao mais. No vou repetir aquele cadver maquiado todo dia, eu fao isso no teatro, pois

    preciso ganhar dinheiro, mas quando trabalho com o meu grupo, e todos eles sabem

    disso, ns somos cada vez uma coisa. Se der tempo, se a neve deixar, deixar vocs verem

    qualquer coisinha que possa ter a gente aqui hoje, vocs vo ver, nica e exclusivamente

  • 14 Sesc | Servio Social do Comrcio

    Amir Haddad

    hoje, vocs vo ver o que aconteceu aqui hoje. Eu vou ter medo do efmero? O efme-

    ro que me salva, que me deixa livre, que me faz ficar longe. Imagina se eu ficasse

    pensando: Esse espetculo, eu podia ter feito um vdeo desse espetculo, colocado na

    internet, e quem sabe 5 milhes de pessoas vissem e amanh eu iria TV Record dar

    uma entrevista! ou Quando a Globo me disser: Olhe, 5 milhes de pessoas viram o que

    voc fez! Eu vou l? No quero, no posso, no tenho tempo. No poderei ir l; vou estar

    fazendo outras coisas, no quero.

    Ns somos doadores universais, somos todos sangue tipo O. Ns, artistas, somos

    sangue O. E para quem no sabe, na histria do sangue humano, os primrdios eram

    portadores do sangue O. Ento, a primeira leva da humanidade era de doao univer-

    sal. Depois, com a diversificao de agricultura, gado, alimentao, moradia e forma de

    viver, o sangue foi se transformando. Mas na nossa origem cada um de ns seres huma-

    nos somos doadores universais. A nossa natureza de compartilhamento; se algum

    precisar do meu sangue, vou oferec-lo sem sacrficio, pois o que estou fazendo aqui

    me oferecer para vocs de carne, alma e sangue. Estou botando tudo que est aqui

    entende? , ento, ns somos doadores universais. A arte pblica a possibilidade

    de voc recuperar para o cidado sua melhor natureza, sua melhor possibilidade, sua

    generosidade maior, a possibilidade de voc produzir coisas que so para bem e uso

    coletivo, sem que isso seja transformado em uma mercadoria, em uma civilizao a que

    s alguns tenham acesso e outros, no. Como posso produzir uma coisa que acho que

    maravilhosa, que importante, que eu queira dizer para os outros e falo: toma! Para

    voc no, voc tambm no, cad a grana? Voc no vai pagar, no vai ter! Como que

    eu posso fazer uma coisa dessas selecionando meu pblico atravs de um preo? Ns

    temos que pensar em outro mundo, no podemos pensar no mundo com o pensamento

    do mundo em que vivemos hoje porque este mundo j no existe mais, este mundo

    acabou, est indo embora, no vai acabar depois de amanh, nem vai sair uma matria

    no jornal O Globo, como: Acabou o mundo! No vai! Mas prestem ateno: desde que

    Jesus Cristo morreu at Roma se transformar em um imprio cristo, passaram 300

    anos, ou seja, demora a mudar, mas j estamos pelo menos 150 anos mudando, desde

    a primeira revoluo importante no incio do sculo XIX que o mundo vem mudando.

    A partir disso, a gente tem visto cada vez mais a decadncia. Quem pode afirmar algum

    valor no mundo em que vivemos hoje?; quem pode acreditar neste mundo que estamos

  • Arte urbana e a (re)construo do imaginrio da cidade 15

    vivendo, que existe um futuro maravilhoso pela frente para a humanidade? Se a gente

    no questionar esses valores, vamos repetir isso. Eu no quero salvar nada, nada, nada!

    Eu quero comear, eu como eu fao a construo de uma possibilidade, eu fao a minha,

    ele faz a dele na rua; ele faz a dele na msica, mas temos que pensar que estamos

    construindo outro mundo e no estamos ganhando o mercado para os nossos artistas,

    os artistas pobres e os artistas ricos. Eu conversava com o Jos Junior e dizia:

    Junior, o que voc quer? Pretende formar com o pessoal do morro mo de obra

    para o mercado?

    Ele respondia: !

    Eu disse: T fora! Se voc quiser formar cidados conscientes, capazes de modificar

    o mundo, estarei junto com voc, mas se voc quiser criar mo de obra de mercado,

    empregar essas pessoas para esses patres que existem a, meu amigo, t fora.

    Foi assim que parei de trabalhar e sa, porque no quero, vejo a arte como ativi-

    dade pblica.

    Estou h 35 anos na rua fazendo este trabalho. Acredito que a arte pblica. Ela fica

    privada em determinado momento, principalmente com o avano da sociedade bur-

    guesa e com o pensamento mercantilista pragmtico que a Reforma Protestante trouxe

    para o mundo (Rico no entra no cu). Depois, Lutero falou que rico entra no cu.

    Ele era rico. Mas Calvino era podre de rico. Eram burgueses ricos. Mas s porque eles

    tinham dinheiro, iam entrar no cu? No era justo. Prosperidade quem tem dinheiro,

    porque foi abenoado por Deus. Isso uma verdade que formou a sociedade crist. A

    civilizao crist capitalista ocidental trabalhou em cima dessa manifestao protestante.

    Os Estados Unidos so o maior pas protestante do mundo e so os que mais lidam com

    dinheiro. Ento a coisa vai por a... muita coisa que me vai saindo, aos montes.

    O pensamento protestante modificou totalmente essa histria: o que no tinha

    valor, passou a ter valor. Assim, quem tinha dinheiro no estava de maneira alguma

    pecando, pelo contrrio, Deus olhava para quem tinha dinheiro, isso est na origem

    da criao do capitalismo. A tica crist, a tica protestante, criam a possibilidade

    do capitalismo e a esttica da burguesia tambm. Eu abandono essa ideia, mas foi

    esse pensamento da sociedade capitalista, trazido pelo pensamento burgus atravs do

    protestantismo, que criou esse mundo em que estamos vivendo, e um mundo que j

  • 16 Sesc | Servio Social do Comrcio

    est acabando, voc pode olhar isso em qualquer pregao evanglica: o cara sai com

    o carro dele: foi Deus que me deu! Dizendo que se Deus me deu porque eu mere-

    o; se eu mereo, sou abenoado por Deus. Se voc um fodido, voc no merece.

    Voc fodido porque voc no olhado por Deus; se voc quiser que Deus olhe para

    voc, junte dinheiro, ganhe dinheiro, faa um curso aqui de empresariado comigo. As

    igrejas preparam pequenos capitalistas muito melhor que o Sebrae! Ensinam a eles o

    que fazer, tem reunies l, seminrios com empresrios, seminrios com produtores

    disso, produtores daquilo, tudo ali em nome de Deus mexendo no dinheiro. In God,

    we trust, isso que est escrito no dlar americano. Ento, ns vivemos esse tempo,

    esse mundo, essa sociedade... Eu no quero colaborar com nada desses tempos, nada,

    nada, nada! Se for possvel criar outra coisa, por a que eu vou. Eu falo isso: No

    quero colaborar. Antes eu falava com culpa, era uma loucura, mas depois de 55 anos de

    teatro, 35 anos de teatro na rua, eu j sei que possvel um mundo novo, j sei que

    possvel ser de outro jeito, que possvel sobreviver, sei que eu no preciso me vender

    de jeito nenhum, j sei que posso ir para praa diante de uma plateia heterognea,

    abrir meus braos e encontrar com eles a minha ancestralidade, desde o homem da

    caverna que pintou, at agora, at daqui a pouco, at depois de amanh, sem passar

    por isso que a gente est passando agora: esse momento histrico de uma civilizao

    em decadncia muitas outras civilizaes vieram e foram embora, por que a nossa

    vai durar? Por que essa que vai ser eterna? No vai... Est no fim... Preparem-se

    para o fim do mundo. Fico apocalptico s vezes! (risos). Eu falo mal dos evanglicos.

    Fico igual a um pastor. Mas um mundo em finalizao. Vai melhorar por onde?

    Vai melhorar a economia americana e o mundo vai ficar bom? A Europa vai sair do

    buraco e vai ficar tudo bem? Como vai ser? O Brasil vai conseguir se superar e ficar

    tudo bem? Se tem uma possibilidade de criao de um mundo novo, somos ns aqui,

    trabalhando com a nossa diversidade tnica, com a nossa diversidade cultural, com

    as nossas possibilidades enormes que temos como pas, pelo nosso tamanho, pelo

    tamanho da nossa populao, pela variedade cultural que ns temos. Ento possvel

    entrar em contato com a populao, com a plateia no teatro de rua e possvel recu-

    perar a esperana o nico jeito. Se eu no tivesse esperana, no falava Eu no

    quero salvar nada. Eu no quero salvar nada do que est a porque eu tenho esperana

    de que eu posso colaborar para um mundo melhor, e posso, e posso, e colaboro, e

    Amir Haddad

  • Arte urbana e a (re)construo do imaginrio da cidade 17

    colaboro. E fao e me sinto bem, e me mantenho inteiro e vivo, ereto, possvel de

    qualquer encontro amoroso em qualquer ponto da cidade onde vivo. Enquanto houver

    esperana existe caminho, e eu acredito, como algum aqui falou, eu acredito no ser

    humano! Apesar dessa multido de escrotos que existe, eu acredito no ser humano,

    acredito que seja possvel. Por isso, enquanto houver esperana, vou trabalhar a minha

    esperana e no vou levar isso sequer do mundo que eu estou deixando para trs.

    Porque, se eu levar isso, vai contaminar. Ideologia a coisa mais perigosa que existe

    no mundo, come a nossa alma e a gente acha que est sendo livre, mas est s afir-

    mando valores de dominao ideolgica, repetindo padres, repetindo moda, repetin-

    do tendncias e no est se deixando escoar livremente. Assim, enquanto houver um

    artista que pinte um bisonte na caverna, haver esperana. Se a esperana a ltima

    que morre, o artista pblico ser o penltimo. Se ele morrer, acabou! O mundo ficar

    por conta do judicirio, dos executivos, dos financistas, dos religiosos... A acabou.

    Mas enquanto houver a possibilidade da gente estar aqui discutindo a questo das

    artes pblicas, do encontro com outro cidado, da construo de um novo mundo, de

    uma possvel civilizao totalmente diferente dessa, a gente tem que ir tratando. Ns

    estamos propondo a recuperao do sentimento pblico, que uma coisa que vai na

    contramo das tendncias do mundo em que ns estamos vivendo, que a privatiza-

    o excessiva em todos os sentidos. A vida pblica est privatizada. Quando a gente

    comea a ir para rua, eu tenho certeza que um movimento histrico porque ns no

    aguentamos tanta privatizao, ns no somos feitos pra viver nisso, ns precisamos

    ir pra rua porque precisamos respirar. Esse movimento grande e no para. Em 1980

    havia trs grupos de teatro de rua no Brasil, hoje tem mais de 700, uma coisa que

    no para de crescer. O Alexandre estava contando: ele abriu inscries para o festival

    de arte de teatro de rua em Porto Alegre e teve 300 inscries. No para, aumenta,

    uma peste, uma peste, prestem ateno. a peste saneadora, a peste que vem pra

    salvar, a peste que vem liberar a gente, a Arte Pblica. No para de crescer e no

    porque d dinheiro, porque no d. D pro cara que cortou a parede e vendeu. Mas

    o artista quando pintou l no estava nem pensando nisso. Ento no d dinheiro, no

    d fama, de jeito nenhum. Essa fama que o Aderbal falou a porque eu fiz teatro de

    palco durante 25 anos, ento me garantiu um certo prestgio, porque se fosse s na

    rua, nem o Aderbal iria me conhecer.

  • 18 Sesc | Servio Social do Comrcio

    to essencial para cada um de ns e ns sabemos disso, as suas crianas l sabem

    disso, entende? Cada um de ns sabe que isso importante. Como que esse grupo vai

    crescer se eu ficar medindo? Esse pode, esse no pode, esse paga, esse no paga... A a

    gente fica fazendo projeto.

    Vivemos com o nosso lado mais criativo, mais transformador, mais generoso, que

    o lado artstico, s que a arte pblica, no pra ganhar dinheiro, ganha-se dinheiro

    porque esse o mundo onde ns vivemos, mas feio ganhar dinheiro com a arte, voc

    pode arranjar outras maneiras. Eu gosto muito se eu fizer minha arte... Ningum me

    manda fazer nada e falam: opa, toma esse dinheiro aqui, eu adoro. Como o artista

    pblico, algum falou a, que passa o seu chapu. Agora, eu no vou fazer s pra ganhar

    dinheiro, mas se cai um dinheiro no meu chapu claro que eu quero, eu no sei o

    que seria hoje o chapu na mo do governo, no sei qual seria o chapu do artista

    pblico, eu no sei quem seria o mecenas do artista pblico. Que Doge, que Conde, que

    Visconde? Que nobre italiano iria patrocinar a arte pblica no Brasil hoje? Mas uma

    atividade que no pode ser ignorada, e o poder pblico ignora, eles no tm um concei-

    to de Arte Pblica. Todas as polticas so polticas para o mundo privado da produo

    artstica, no para a produo pblica, no para o ato generoso da entrega. O poder

    pblico ignora a arte pblica porque o poder pblico trabalha para a iniciativa privada.

    No existe um pensamento pblico, aberto, generoso. No existe nenhum sentimento

    litrgico da sociedade que nos permita termos juntos uma manifestao que nos faa

    engrandecer a todos. Liturgia uma palavra grega formada de duas palavras que signifi-

    ca: obra pblica feita por particular e que acabou avanando por dentro da organizao

    religiosa, dentro do rito catlico e se transformou em liturgia. um bem pblico, uma

    obra pblica feita para todos. Por isso, se voc participa de um movimento litrgico,

    um movimento religioso qualquer que te eleve, voc est participando de uma liturgia.

    Aquilo para todos!

    Amir Haddad

  • cio Salles

    20 Sesc | Servio Social do Comrcio

    A literatura como ferramenta de reinveno da cidade

    Escritor, autor de Poesia revoltada (um estudo sobre a cultura hip-hop no Brasil), coautor de Histria e Memria de Vigrio Geral, ambos da editora Aeroplano, e curador da coleo Tramas Urbanas, dessa mesma editora. um dos criadores e organizadores da Festa Literria das Periferias (FLUPP), encontro internacional de literatura criado no Rio de Janeiro em 2012 e realizado em favelas cariocas.

    ENSAIO

  • Arte urbana e a (re)construo do imaginrio da cidade

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    Periferia

    Nossos plurais so to singulares

    nis!!!

    Binho

    O mundo das fronteiras

    Uma cidade de leitores no , necessariamente, uma cidade melhor. O mesmo vale-

    ria para o pas ou o mundo. E quando afirmo isso no me refiro a supostos contedos.

    No tem a ver com o que se l ou deixa de ler. Tem a ver com o porqu da questo.

    Acredito que a leitura possa ser transformadora, positivamente transformadora por-

    que, na minha adolescncia, a descoberta desse universo me possibilitou ver alm das

    cercas que separam quintais, alm dos obstculos estabelecidos pela condio social,

    pela histria familiar e por todo o resto. No importou tanto, quela poca, o que eu lia

    tudo comeou com uma paixo inexplicvel pelos livros da fase realista de Machado de

    Assis; depois, passou por Agatha Christie, pelos livros das sries Vagalume e Para Gostar

    de Ler, chegou a Graciliano e, ento, no encontrou mais limites.

    Tampouco importava como eu lia, se li direito ou no esses autores. O importante

    que lia porque queria tocar novos mundos, alm daquele que, de certa forma, me

    oprimia e limitava. E me sentir, quem sabe, capaz de inventar outros.

    Nasci e me criei no bairro de Olaria, zona da Leopoldina, no subrbio da cidade do Rio

    de Janeiro. A casa onde vivi boa parte do tempo ficava, como dizamos, no p do morro.

    Em minha infncia e juventude (dcadas de 1970 e 1980), a presena do trfico j pairava

    sobre a cidade, como um espectro. Mais tarde, o morro em cujo p estava assentada a

    casa de meus pais ganhou uma nova dimenso: o morro do Alemo (que na verdade era

    apenas uma de um conjunto de 16 comunidades) agora era conhecido como o Complexo

    do Alemo. Ainda hoje um conjunto expressivo de estigmas e violncias afeta essa loca-

    lidade, com consequncias quase sempre danosas, especialmente para os moradores.

    Comecei a circular bem cedo jovem curioso apresentando-se cidade e sendo apre-

    sentado a ela. O sistema de transporte no bairro no era to ruim, facilitando o acesso

    ao Centro e a trechos da Zona Sul. O problema era a volta, sobretudo tarde da noite ou

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    na madrugada. Nessas ocasies, via-me obrigado a reservar alguma grana para voltar de

    txi. Essas viagens de volta para casa me marcaram profundamente.

    Com incmoda frequncia os taxistas faziam comentrios pouco generosos com o

    lugar, no raro acompanhados de expresses preconceituosas. s vezes, recusavam-se

    a seguir caminho quando indicava a sada 6 da Linha Amarela, que vai desembocar

    nas ruas do entorno do Complexo. A apreenso, quando no o mais completo terror,

    era visvel no rosto do motorista quando passvamos nas ruas de frente para algumas

    comunidades conhecidas: Nova Braslia, Grota, Morro do Adeus. Nessas ocasies, j

    sabia que seria quase inevitvel ouvir a frase olha, isso aqui sinistro. Perdi a conta de

    quantos debates acalorados mantive com taxistas nessas ocasies.

    Essa experincia fortaleceu em mim uma percepo que outros aspectos de nossa

    organizao social viriam reforar. A cidade, apesar de sua alma encantadora, cheia de

    armadilhas e interdies. Muitas delas tm a ver diretamente com recortes sociais, raciais,

    de gnero, etrios e geogrficos, entre outros. Com o agravamento da questo da violncia

    urbana nos ltimos anos, esses recortes desdobraram-se em vises dicotmicas, limitadas

    e limitadoras sobre a cidade cidade partida, favela e asfalto, lado A e lado B. Por isso

    os problemas colocados circulao, especialmente a circulao dos jovens.

    Um filsofo bem interessante, chamado Sandro Mezzadra,1 pode contribuir para a

    discusso. Ele prope distinguir os conceitos de fronteira e de confim. O primeiro desig-

    naria um espao de transio, contato e reconhecimento do outro. O segundo consistiria

    em uma diviso intransponvel, que dividiria os territrios e atuaria no sentido de fechar

    e proteger espaos polticos, sociais e simblicos previamente consolidados. No casual

    a proximidade semntica entre essa acepo de confim e a noo de confinamento.

    Vivemos, ento, entre dois mundos possveis.

    Um bem conhecido nosso. O mundo do confim explica parte do desenho do Rio

    de Janeiro e de muitas outras cidades no Brasil hoje. Vemos como a violncia divide

    a cidade no em dois, mas em diversos blocos que no se comunicam ou, quando o

    fazem, baseiam-se no conflito, na hostilidade. Essa lgica abrange tanto as aes do

    Estado contra parte da populao (operaes da polcia em favelas, por exemplo), quanto

    os conflitos entre territrios diferentes da cidade.

    O outro, o mundo das fronteiras, aquele em que a cidade encontra seus pontos de

    cerzimento (para usar a potica expresso de Adair Rocha), de contato entre os diferen-

    tes. Isso relevante, porque permite que a radicalizao da democracia na cidade se d

    no na tolerncia diferena, mas no seu efetivo reconhecimento. Parte dos problemas

    1 MEZZADRA, Sandro. Derecho de fuga. Migraciones, ciudadania y globalizacin. Madri: Traficantes de sueos, 2005.

  • Arte urbana e a (re)construo do imaginrio da cidade

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    da festejada diversidade brasileira , de certa forma, o fato de ela ter buscado se funda-

    mentar no apagamento das diferenas. Por esse motivo os repetidos casos de racismo

    (que no se limitam apenas ao futebol) ainda assombram nosso imaginrio.

    Com isso, em vez do surrado discurso do somos todos iguais (que tem sua contra-

    partida na anedota mas alguns so mais iguais que outros), talvez seja o caso de pensar

    o fronteirio como o entendimento de que somos todos diferentes e no apesar

    disso, mas por isso mesmo podemos viver juntos, partilhar o que h de comum e (re)

    construir a cidade, esta cidade.

    Uma histria s versus infinitas histrias

    Chimamanda Adichie, uma escritora nigeriana radicada nos Estados Unidos, alerta

    em suas palestras para o que denomina os perigos de uma nica histria. Ela fala de

    um momento em que s acessava um tipo de histria, quase sempre de origem europeia,

    o que a fez acreditar que os livros tinham sempre que tematizar personagens e situaes

    com as quais ela no poderia se identificar. Isso s mudou quando ela conheceu os livros

    de autores africanos. Eu percebi que pessoas como eu, meninas com a pele da cor de

    chocolate, cujos cabelos crespos no poderiam formar rabos-de-cavalo, tambm podiam

    existir na literatura. Conhecer os escritores africanos salvou-a de ter uma nica histria. E,

    certamente, mais que isso, de saber ou acessar uma nica histria. Reconhecer mltiplas

    histrias, portanto, pode nos afastar das vises e gestos preconceituosos, do mundo do con-

    fim. E construir fronteiras propcias para a inveno do novo e a celebrao dos encontros.

    Por isso, Chimamanda acredita, e eu com ela, nas narrativas como forma de trans-

    formar o mundo.

    possvel Literatura, ou s prticas literrias, mudar o mundo? Essa uma tarefa

    a que muitos se dedicam. E, no campo da cultura, normalmente se valem de formas de

    expresso diversas, como a msica, a dana ou o teatro, de aes socioculturais, das mais

    variadas atividades micropolticas. No entanto, a Literatura acabou se tornando o primo

    pobre das lutas no mundo.

    A Literatura (mas tambm a msica popular, o samba-enredo, o artesanato arts-

    tico, o futebol-arte...), afirma Joel Rufino dos Santos, so as nicas histrias do pobre

    porque o institui como sujeito desejante. Mas, no de modo satisfatrio, uma vez

    que na literatura culta ele no passa de figurante, sombra ao fundo, intruso que se

    mete na conversa.2

    2 SANTOS, Joel Rufino. puras do social como podem os intelectuais trabalhar para os pobres. So Paulo: Global, 2004.

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    No Brasil, a Literatura, assim com maiscula, tornou-se mais um campo de excluso

    dos pobres do pas. No campo das possibilidades de expresso, houve at aqui destaque

    para a cano (incluindo o samba, o rap e o funk), a dana de rua, a batucada, a ginga

    da capoeira, as artes visuais nos muros das cidades. A palavra escrita era um mundo

    fechado. Raramente, encontrava-se uma brecha por onde passava um Solano Trindade,

    uma Carolina Maria de Jesus, um Lima Barreto. Entre outros, claro.

    Isso mudou drasticamente de uns anos pra c.

    H um conto, do Italo Calvino, em que uma das personagens, o arquiteto Enrico, faz

    este comentrio sobre o futuro do urbanismo: no do palacete, mas do casebre, cole-

    gas, que sairemos para traar nosso caminho. Essa uma ideia atraente, que ganhou

    fora em nosso campo, o campo da Cultura, em mais de um aspecto. possvel dizer,

    nesse contexto, que os caminhos para que a Literatura (e a msica, a dana, o teatro...)

    se efetive como uma ferramenta importante para a transformao social e radicalizao

    democrtica sero abertos menos pelas casas-grandes do que pelas senzalas, ou mais

    pelas periferias do que pelos centros.

    A questo : no se pode tratar apenas de uma inverso de sinal. Como se o que antes

    era apenas privilgio do centro passasse a ser privilgio da periferia. O aprofundamento

    democrtico exige a multiplicao de uma e de outra, de forma que se anulem as hierar-

    quias rgidas e surjam novas foras. Preferencialmente, foras alheias ideia de centro

    e periferia. Se hoje possvel dizer que o centro est em toda parte, porque a periferia

    tambm est.

    O advento da Literatura

    Em uma roda de conversa informal (mas com a presena de intelectuais do campo da

    Literatura), um dos presentes alegou que, em sua opinio, no existia mais, nem parece

    que vir a existir novamente, uma cidade literria. Ele talvez pensasse em uma poca

    em que poetas como Olavo Bilac pontificavam nos cafs do Centro do Rio. E, certamen-

    te, ignorava o que se passa nas periferias (e no s nas periferias) de quase todos, seno

    todos, os centros urbanos do pas.

    No fim da dcada de 1990, na periferia de So Paulo, o Sarau do Binho e o Sarau

    da Cooperifa davam os primeiros passos no surgimento de uma cena que se espalha-

    ria pelo pas inteiro. Hoje, dezenas de saraus povoam as noites das cidades brasileiras,

    reunindo uma quantidade incontvel de pessoas que buscam espao para tornar seus

  • Arte urbana e a (re)construo do imaginrio da cidade

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    versos parte de um coletivo.3 A literatura e a poesia, que julgvamos condenada para

    sempre ao ostracismo acadmico domina um amplo territrio, geogrfico e afetivo, do

    atual contexto cultural brasileiro.

    Conta Srgio Vaz que os poetas presentes nesses saraus so professores, metalrgi-

    cos, donas de casa, taxistas, vigilantes, bancrios, desempregados, aposentados, mecni-

    cos, estudantes, jornalistas, advogados

    Muita gente que nunca havia lido um livro, nunca tinha assistido a uma pea de teatro,

    ou que nunca tinha feito um poema, comeou a partir desse instante a se interessar por

    arte e cultura. E agora, continua Srgio Vaz, exercem sua cidadania atravs da poesia.4

    Os saraus se multiplicam em quantidade, variam em qualidade e se diversificam nos

    formatos, adaptam-se a diferentes contextos. Ainda em So Paulo, por exemplo, todas

    as segundas e quintas-feiras de cada ms acontece o ZAP (Zona Autnoma da Palavra),

    encontro de Poetry Slam (ou simplesmente Slam) que rene dezenas, talvez centenas, de

    poetas a cada edio. Slams so encontros em que se realizam performances vocais de

    poesia, normalmente em forma de competio. J o ZAP5 se autodefine como um espa-

    o dedicado poesia falada, gora livre, fresta no tempo onde a diversidade convidada

    de honra e a celebrao da palavra, o principal objetivo.

    J na Bahia, em Salvador, alm do tradicional sarau Bem Black, no Pelourinho, h

    o Sarau da Ona,6 cuja motivao inicial muito significativa em relao a tudo o que

    falamos at o momento: fazer frente ao aumento dos ndices de violncia contra os

    jovens negros do bairro de Sussuarana.

    No Rio de Janeiro, h saraus como Uma noite na Taverna, em So Gonalo; Poesia

    de Esquina, na Cidade de Deus; Donana, em So Joo de Meriti; Corujo da Poesia, em

    So Gonalo e no Leblon; Sarau do Vidigal, da Rocinha, de Manguinhos... So tantos que

    cometerei a injustia de no citar todos. O importante que, citados ou no, eles ajudam

    a redesenhar um mapa do Rio de Janeiro que tem sido, desde o incio, configurado para a

    segregao. Nesse passo, inscrevem-se em um processo recorrente que negros e pobres,

    tambm desde o incio, tm efetivado: o de produzir constantemente narrativas criativas

    de contestao e no permitir a consolidao de uma histria nica sobre a cidade. O

    que produz uma tenso permanente, capaz de inventar fronteiras, muitas vezes sobre os

    escombros das polticas de confinamento. Essa tenso, talvez, seja uma das belezas do Rio.

    3 PADIAL, Diane de O. In Binho (culpado). Sarau do Binho. So Paulo: Sarau do Binho, 2013.4 VAZ, Srgio. Cooperifa: antropofagia perifrica. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008.5 Ver em www.zapslam.blogspot.com.br.

    6 Ver em www.saraudaonca.wordpress.com.

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    26 Sesc | Servio Social do Comrcio

    A literatura como ferramenta de reinveno da cidade

    Quando a FLUPP (Festa Literria das Periferias) surgiu, a ideia era criar um espao

    de fruio, compartilhamento e reflexo focado na literatura. Tornar a literatura uma

    linguagem acessvel, instigante e provocadora de novas interaes. Para mim (como j

    disse antes) e para meu scio, a FLUPP deveria ser um ambiente para ampliar as opor-

    tunidades que ambos tivemos, a de entrar na vida pela rota da palavra criativa.

    Como dissemos na apresentao de um dos livros com textos produzidos pela FLUPP:

    em um pas em que a Literatura primeiro foi empenhada, depois encarada como misso

    e ainda ocupou o entrelugar na ordem do discurso, ela no poderia jamais ser para

    poucos, para os raros. A possibilidade de um Brasil literrio, embora tenha avanado em

    vrios aspectos aumento da produo de livros, crescimento e incremento das biblio-

    tecas pblicas, criao de polticas especficas para o setor etc. , ainda enfrenta alguns

    problemas. Um deles seria, supostamente, a falta de leitores; outro, o entendimento da

    literatura como linguagem reservada a certas elites culturais.

    Por isso, a FLUPP mais do que um evento literrio. Quando criamos a FLUPP

    Pensa um projeto de formao de leitores e autores, com circulao literria pelo ter-

    ritrio , queramos questionar esse lugar-comum. Achvamos que havia numerosos e

    interessantes leitores, e tambm autores, nas periferias do Rio. Faltava encontr-los e

    criar um ambiente favorvel para a convivncia, a fruio e a produo criativa.

    Nos trs anos de existncia do projeto, algumas histrias alm de nos emocionar e

    incentivar demonstram o acerto daquela intuio. No grupo de pessoas que compunha

    essas primeiras geraes participantes do processo, havia uma diversidade que nas

    palavras de Jailson de Souza e Silva,7 durante a edio do evento na Mar a cara do

    Brasil. Homens e mulheres, de diferentes orientaes sexuais, mltiplos e variados tons

    de pele e texturas de cabelo, faixa etria de 12 aos 50 anos, e ainda a diversidade regional

    da metrpole: de Nova Iguau a So Gonalo, da Rocinha Cidade de Deus, do Borel ao

    Batan; havia pessoas de todos os lugares, um conhecendo o lugar do outro. Uma troca

    permanente e produtiva.

    No percurso da FLUPP Pensa pelo Rio de Janeiro de Lima Barreto, notamos ainda

    outro pblico para a Literatura: jovem e predominantemente de pele escura, como per-

    cebeu o escritor Teju Cole, um nigeriano radicado em Nova York que chegou ao Brasil

    como uma das estrelas da FLIP e participou de uma das atividades no Cantagalo. H

    vrios pontos em comum entre esse pblico e a Gerao Prouni, uma das polticas de

    incluso em universidades pblicas mais impactantes das ltimas dcadas.

    7 Coordenador do Observatrio de Favelas, ONG que foi parceira da FLUPP nessa ocasio.

  • Arte urbana e a (re)construo do imaginrio da cidade

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    Uma das obsesses de muitos artistas, escritores inclusive, ao longo da histria a

    de falar pelos que no falam. Dar voz queles que, supostamente, no poderiam falar

    por si porque seriam impedidos ou limitados pela condio social, cultural, geogrfica.

    Bem, certamente uma das grandes novidades dos ltimos anos que, cada vez mais, os

    habitantes das periferias (geogrficas ou discursivas) encontram meios de falar por si. A

    proliferao dos saraus e experincias congneres, as inmeras aes literrias (como a

    FLUPP) espalhadas pelo pas, a publicao crescente de autores das margens parecem

    demonstr-lo de maneira inequvoca. As inmeras e variadas manifestaes da cultura

    popular (o jongo, o maracatu, o rap, o funk, o tecnobrega...) j vinham desempenhando

    esse papel ao longo da histria. Atualmente, o campo literrio se alargou de maneira

    ainda no devidamente avaliada para abrigar um contingente enorme de pessoas que

    recusam os lugares demarcados da subalternidade.

    Essas pessoas constituem, ou podem constituir, esse campo do fronteirio na cidade.

    Afinal, so elas que promovem as articulaes constroem as pontes que tornaro

    viveis as perspectivas de travessia, de contato, de dilogo. Um dilogo que ter de ser

    qualificado no percurso, porque ao mesmo tempo em que se dialoga tambm se mede

    foras. No final, apesar das contradies, ele traz luz sinais de um discurso que dife-

    rente outras formas de vida, outras tradies de representao.8 Se essa diferena ser

    capaz de mudar o mundo difcil dizer, mas, desde j, compe uma fora constituinte

    de um novo tempo cuja marca a criatividade e a imprevisibilidade.

    8 HALL, Stuart. Da dispora: identidades e mediaes culturais. Org.: SOVIK, Liv. Belo Horizonte: UFMG; Braslia: Unesco, 2003.

  • 28 Sesc | Servio Social do Comrcio

    Arte de rua, arte efmera

    Trabalha com esculturas audiovisuais, cinema e suportes mveis. formado em cinema e tem mestrado em artes interativas pelo ITP/NYU. Fazia filmes lineares narrativos de fico

    em formatos curto e longo, at realizar o longa interativo Ressaca; recebeu diversos prmios, desde o

    Melhor Filme no Festival de Gramado at o prmio Vida, da Telefnica

    espanhola. Ultimamente tem se dedicado tambm a organizar e a participar de encontros, residncias

    e produes colaborativas.

    Bruno Vianna

    ENSAIO

  • Arte urbana e a (re)construo do imaginrio da cidade 29

    Bru

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    Se uma viajante em um dia de vero de Londres se cansa de ver quadros famosos,

    tesouros arqueolgicos roubados e monumentos da realeza, h possibilidade de ela se

    lembrar que a cidade tambm a principal tela de uma das maiores referncias da arte

    urbana: Banksy. Munida talvez de uma bicicleta, orientada por blogs sobre graffiti, com

    a ajuda de mapas online, ela vai em busca do frisson de encontrar o original, ntegro,

    com aura benjaminiana, de um sem-fim de Banksys que j viu exausto em sites, redes

    sociais, livros.

    Mas a tarefa que prometia ser prazerosa vai revelando-se rdua: mesmo com o ende-

    reo exato e fotos, o painel parece impossvel de ser encontrado. E no meio do jogo de

    gato e rato, buscando mais fotos, e, quem sabe, conferindo a street view de alguns anos

    atrs, a viajante chega a uma concluso frustrante: o painel no existe mais. Foi comple-

    tamente apagado. O tour segue: em algumas pinturas, ela identifica traos do original,

    uma mancha. Outros foram parcialmente vandalizados por pixaes e outros danos fsi-

    cos. Um pensamento lhe atravessa: mas o painel em si j no era o vandalismo?

    Decidida a no voltar para sua cidade sem ao menos uma lembrana, a viajante insis-

    te. A explorao se estende por dois, trs dias, tempo do qual no dispunha. Alguns

    painis, verdade, esto conservados: geralmente cobertos por um acrlico que ime-

    diatamente se torna uma nova superfcie para ser vandalizada mas uma pequena parte

    sobrevive. Frente decepo de no poder fotografar seus graffiti mais queridos, ela

    comea a se conformar em documentar os restos. A metade de uma personagem, um

    acrlico pixado, a textura sutil de uma parede que revela um fantasma. E ela comea

    a criar um afeto por essas fotos. Elas escapam do bvio da documentao, tem uma

    esttica arqueolgica e, mais importante: uma histria por trs, uma narrativa de criao

    e destruio. Elementos que os graffiti intactos no contm, necessariamente.

    Mas se os graffiti que sofrem a ao do tempo (e das ruas) so mais interessantes

    do que os intactos, qual o sentido de se preservar essas obras? Hoje em dia, grandes

    esforos so feitos com o objetivo de se criar gigantescos acervos de arte. As cinematecas

    esto repletas de rolos de mdias mortas. Colecionadores gastam o dinheiro obtido no

    mercado financeiro montando gigantescas galerias privadas. Instituies como o MAR

    (Museu de Arte do Rio) estimulam artistas a doarem obras para sua reserva tcnica

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    acenando com o canto da imortalidade trabalhos conservados para a posteridade, sar-

    cfagos repousando em pirmides desenhadas no grasshopper. Mas ser que o desapego

    da arte urbana se que ele existe no seria mais apropriado e inovador para um

    planeta que j no se pode dar ao luxo de mais acumulao?

    Apegos e territorialismos

    O fato de um artista trabalhar no espao pblico no o torna necessariamente desa-

    pegado das suas obras. Nas entrevistas realizadas para a documentao da realizao dos

    murais de arte urbana para o Festival Sesc de Inverno, os artistas trouxeram informa-

    es interessantes. Se por um lado existe uma incerteza sobre o destino de obras feitas

    em espao pblico, por outro, muitos grafiteiros vo buscar algum tipo de controle sobre

    os trabalhos prontos.

    A proteo a uma pintura, por exemplo, passa pela noo de respeito. O respeito

    dentro dessa comunidade se traduz em trabalhos de artistas que no sejam pixados ou

    cobertos por outro trabalho. O respeito se mistura com a ideia de territrio: um muralista

    tem prioridade sobre um muro que ele descobriu, ou obteve permisso para pintar. A

    partir da, pintar por cima dessa obra ser um sinal de desrespeito ao dono do mural, ou

    donos muitas vezes os painis so obras coletivas. E o que torna o artista mais respeitado?

    Diversos fatores: o reconhecimento da qualidade do seu trabalho por seus pares, a ousadia

    de pintar painis em lugares mais controlados, o pertencimento a um bairro, rua ou regio,

    e outros elementos subjetivos. A punio a algum que interfere no mural de um colega

    a prpria desaprovao dos seus pares esse violador passaria a ser menos respeitado.

    Direito de imagem, direito ao espao pblico

    Outra forma de territorialismo que surge nas narrativas diz respeito ao direito s

    imagens geradas. As reas com graffiti atraentes tornam-se potenciais cenrios para

    atividades econmicas, como o turismo e o comrcio de rua. Mas a atividade mais pol-

    mica a do audiovisual, que se apropria cenograficamente das obras de rua em video-

    clipes, comerciais, longas e novelas. Ora, diz o pintor, se um diretor de arte escolheu

    determinada locao com um mural porque sabe que minha obra vai enriquecer o

    filme. E, portanto, esse filme teria que pagar direitos de imagem para o grafiteiro, como

    pagaria a uma pintora de cenrio, uma musicista, uma escritora.

    Apesar de diretores e produtores poderem argumentar que o uso das imagens no

    audiovisual serve como difuso do artista e no necessitaria ser ressarcida, a demanda

    dos criadores de imagens plenamente prevista nas leis de direito autoral do Brasil e na

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    amaior parte do mundo. Portanto, quando isso acontece e os artistas acionam a produo

    do filme, eles geralmente conseguem algum tipo de compensao.

    O que curioso no caso do graffiti que, enquanto a imagem do painel amplamente

    protegida, o original no . Afinal, a no ser em um caso muito peculiar, em que o artista

    pinte o muro da prpria casa, a obra est sendo realizada em propriedade de outrem.

    O dono do muro seja ele o poder pblico ou um proprietrio particular tem todo

    direito, por exemplo, de destruir a parede e a obra junto. Em uma inverso que s a arte

    de rua pode provocar, o original est entregue prpria sorte, enquanto as cpias tm

    proteo legal. Extrapolando essa noo para a arte clssica, como poderamos imaginar

    um mundo em que originais de Picasso podem ser rasgados livremente, enquanto suas

    reprodues esto protegidas?

    Publicidade e contracultura

    Essa contradio vem exatamente da opo pelo uso do espao pblico. Ao pintar

    em um lugar que no tem a privacidade de um museu ou a propriedade privada de uma

    galeria o artista est promovendo uma ocupao desse lugar, que pode ser vista como

    melhoria, para os que admiram a arte de rua, ou como imposio, para os que preferem

    uma cidade assptica.

    Essa atitude no muito diferente do uso do campo visual urbano pela publicidade.

    A indstria da propaganda v o urbano como mdia, com preos, alcance e linguagem

    prprias e como uma mina de globos oculares para ser explorada. E nem todos os

    donos desses olhos esto confortveis com essa explorao. A onipresena da publici-

    dade incomoda: o argumento de que basta no olhar j no funciona, j que cada vez

    mais difcil ter na cidade um campo visual limpo de anncios. No toa que So Paulo,

    mesmo numa administrao conservadora, optou por proibir a publicidade externa.

    Esse argumento da inescapabilidade do olhar frente imposio publicitria o que

    nos leva de volta ao artista ingls. Uma carta de Banksy um manifesto publicado no

    livro Cut it Out, de 2004, em que ele sugere que toda publicidade ou elemento visual no

    espao pblico um convite no s depredao, mas tambm ao reuso intencional

    modificao, subverso, ao roubo. Voc no deve nada s empresas. [...] Elas que lhe

    devem. Elas reorganizaram o mundo para colocar-se na sua frente. Nunca pediram sua

    permisso. Nem pense em pedir a delas.

    o mesmo argumento que pode ser usado quando o direito a fotografar ou filmar

    elementos pblicos urbanos como fachadas de prdios ou monumentos limitado. Foi

    usado, recentemente, no caso em que a Arquidiocese do Rio vetou uma filmagem do

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    Cristo Redentor que administrado pela Fundao Roberto Marinho por consider-la

    pouco respeitosa. Mas ele usado (por que no?) quando optamos por enquadrar um

    painel de graffiti em um filme sem autorizao do autor.

    Como recorrente dentro das aes e trabalhos de Banksy, o texto que um estmulo

    expropriao dos outdoors vem a ser, ele prprio, um roubo: foi copiado em sua maior

    parte de um post do blogueiro Sean Tejaratchi, publicado no calor das manifestaes de

    Seattle em 1999.

    Plgio e originalidade, roubo e propriedade, lucro e compartilhamento

    Banksy no de fato um exemplo de originalidade. Muitas das suas obras derivam

    dos trabalhos dos primeiros grafiteiros de renome, como o francs Blek Le Rat que

    pintava ratos muito parecidos com os que Banksy veio a usar depois quase como marca

    registrada. Frente a essas acusaes, ele costuma responder ironicamente dizendo,

    por exemplo, que ele copia os ratos de fato, mas que os copia de outro grafiteiro. Mas

    se fato que Banksy no s copia como lucra em cima desses plgios, por outro lado

    ele no parece se importar quando vtima disso, lembrando de certa forma o caso da

    banda de rock Led Zeppelin, outros plagiadores de distino. O que Banksy parece estar

    construindo uma narrativa que sustenta uma proposta tica de criao onde nada ori-

    ginal, tudo derivado de, inspirado por, criado a partir de outra obra; obras que sofrem

    mutaes e contaminaes o tempo todo.

    Antes de prosseguir com esse argumento, convm algumas palavras de esclareci-

    mento sobre esse artista e os mtodos que utiliza em prol do anonimato e da prpria

    autossustentao. Banksy optou por trabalhar sob o manto do oculto talvez no exista o

    Banksy, ou exista a Banksy ou mesmo os Banksys. No entanto, a personagem se comunica

    com o pblico por uma variedade de canais, geralmente online: no site pestcontroloffice.com

    (escritrio de controle de pragas) so tiradas dvidas sobre a autenticidade ou no de suas

    obras urbanas ou gravuras; o site picturesonwalls.com vendia suas gravuras a preos popu-

    lares, at que o site passou a no dar conta dos acessos quando uma oferta de venda era

    anunciada. Uma empresa o representa quando organiza uma exposio de seus trabalhos

    ou publica um livro. Na sua primeira grande exposio, em Bristol, a diretora do museu

    da cidade, sem poder confirmar a identidade do intermedirio, declarou ter ficado em

    dvida se a negociao seria ou no um trote at o dia da montagem. Mas jamais, atravs

    de nenhum desses canais, ele tentou coibir a difuso ou cpia de suas obras.

    O caso que, alm da ubqua comercializao de suas imagens em camisetas, livros

    e postais, os seus originais tm valor estratosfrico. E, sendo assim, um painel que

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    apintado na rua passa a ser um objeto de desejo no mercado da arte, e est sujeito

    remoo com fins de revenda o que vem acontecendo com mais e mais frequncia.

    Em 2013, Banksy pintou o painel Slave Labour em um bairro de Londres. A vizinhana

    comemorou o presente e chegou a colocar um acrlico para proteo da obra. Mas em

    uma manh os moradores levaram um susto: a parte do muro com a pintura simples-

    mente desapareceu. E ressurgiu, em poucos dias, do outro lado do Atlntico: estava

    venda em um leilo de arte em Miami. Protestos e queixas formais tiveram o efeito de

    intimidar a casa de leiles e o painel foi retirado do lote. Seis meses depois, porm, ele

    foi arrematado, em Londres mesmo, por 1,5 milho de dlares.

    Parece surpreendente, mas uma prtica cada vez mais comum. Apesar de a identi-

    dade do vendedor ter sido mantida em sigilo, bastante bvio que se tratava do dono da

    loja em cujo muro o estncil foi feito. Nenhuma queixa policial foi feita. Em outro caso

    conhecido, da pintura Ball Play, o dono do muro assumiu ter encomendado a extrao e

    revenda do painel. Negociantes de arte chegam a afirmar que ao remover a pea estaro

    garantindo sua preservao. Mas que sentido tem preservar a arte de rua dentro dos

    muros de um colecionador e no sobre os muros das ruas?

    Coautorias, involuntrias ou no

    Alm dos ladres de paredes, a arte urbana est sujeita a diversas outras intemp-

    ries. So comuns os casos em que a conservao urbana apaga obras importantes, por

    engano ou de propsito. E como j comentamos, a prpria comunidade grafiteira se

    encarrega de interferir nos trabalhos de seus pares. So conhecidas as provocaes de

    Banksy para outros artistas, e as ricas narrativas que as disputas geram.

    King Robbo, um dos grafiteiros pioneiros de Londres, teve um de seus painis mais

    antigos parcialmente coberto por um estncil de Banksy, que ilustrava um funcionrio

    tapando a obra; Robbo responde modificando o desenho para fazer parecer que o pintor

    de Banksy estava desenhando sua assinatura, King Robbo, que no lance seguinte foi

    modificado para se tornar Fucking Robbo. O dilogo prosseguiu por alguns meses

    at que Robbo sofreu um acidente e entrou em coma, o que levou Banksy a prestar

    homenagem ao adversrio com a reproduo do painel original adicionado de uma vela

    em formato de spray. Seguidores de Robbo passaram ento a dialogar com obras de

    Banksy por toda cidade, adicionando comentrios, modificaes, ironias; e restauraram

    o painel original de Robbo em todo o seu esplendor.

    Outra briga comprada por Banksy foi contra (ou com) o misterioso Fantasma Cinza,

    de Nova Orleans, que havia tomado para si a misso de tapar todas as pixaes da cidade,

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    depois da passagem do furaco Katrina, usando um rolo de pintura com tinta cinza. Banksy

    cria pequenas narrativas em diversas dessas manchas cinzas deixadas pelo fantasma. E

    depois que ele deixou a cidade essas mesmas interferncias foram devidamente tapadas

    de cinza com a exceo de um estncil que os moradores protegeram com acrlico.

    Banksy no se manifesta sobre a remoo de seus painis e de graffiti apagados por

    engano ou por colegas. Pelo contrrio, parece que escolhe locais e provoca parceiros de

    modo que seus trabalhos estejam ainda mais sujeitos a interferncias.

    Buscando uma concluso

    A arte de rua uma arte viva, dinmica: o ato de pintar o espao pblico s o

    comeo de um processo criativo coletivo, orgnico, de durao indeterminada. Ao inter-

    romper esse processo, conservando a pea em um museu ou uma coleo, decreta-se

    a morte da obra: da em diante ela sobrevive em um estado de suspenso, como um

    animal empalhado nos museus antigos de histria natural.

    A cidade e a natureza evoluem em camadas que vo se sobrepondo: a vontade de

    congelar esse processo um desejo humano de controle sobre o tempo. Em 2007, Miles

    de Viviendas, uma ocupao histrica na cidade de Barcelona, retratada no documentrio

    Squat a cidade nossa, teve seu despejo decretado pela justia. O coletivo j havia

    sido desalojado e o prdio reocupado algumas vezes: dessa vez, para evitar novas aes,

    o prdio seria demolido pela Prefeitura. Ciente disso, o coletivo resolveu deixar uma

    ltima mensagem para a cidade e preparou uma ao nos dias anteriores demolio.

    E na medida em que o edifcio derrubado, a pintura desvelada: em cada parede dos

    cmodos adjacentes ao prdio ao lado foi escrito, em letras colossais, o pedao de um

    poema. Ao final da demolio, a obra estava pronta: um texto que ocupava os cinco

    andares de uma empena na rua principal do bairro da Barceloneta.

    Mas em se tratando de arte urbana, o gesto no iria parar ali: a cidade recobriu a

    empena com chapas de metal, que, por sua vez, recebeu imediatamente uma nova

    camada de pixaes e desenhos. Assim, a viajante que flanar pelo Passeio Joan de Borbo

    talvez repare uma pequena praa sem muitos atrativos. Espreitando a praa, as cha-

    pas de metal da parede alta, aparentemente vazia, no revelam sua verdadeira funo:

    ocultar e conservar um documento de uma histria esquecida da cidade. Quem sabe

    uma arqueloga vai encontrar esse texto daqui a 50 anos e tentar decifr-lo? Ou, mui-

    to provavelmente, essa empena tambm ser demolida e caber simplesmente a uma

    menina ter a curiosidade, despertada por aquelas letras gigantes, sem sentido aparente,

    nos pedaos dos tijolos de uma parede quebrada, a dar significado ao texto.

  • 36 Sesc | Servio Social do Comrcio

    Doutor em Histria, professor do Departamento de Histria da Universidade Federal Fluminense, diretor-geral do Arquivo Pblico do

    Estado do Rio de Janeiro e presidente do Instituto Histrico e Geogrfico

    do Rio de Janeiro. membro do Comit Brasileiro de Histria da

    Arte, membro fundador do Grupo de Estudos de Arte Pblica - Amrica

    Latina e pesquisador do campo da

    histria da arte pblica com trabalhos

    publicados sobre escultura pblica

    e graffiti urbano contemporneo.

    Arte pblica: a cidade como experincia

    ENSAIO

    PauloKnauss

  • Arte urbana e a (re)construo do imaginrio da cidade

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    Direito cidade

    A presena da arte nas cidades uma das fontes de afirmao do pensamento urbano

    moderno? Essa interrogao conduziu discusso sobre a forma urbana e os sentidos de

    sua beleza, condicionando o papel que a arte deveria assumir nas cidades. Nesse sentido,

    o embelezamento urbano se tornou uma medida do desenvolvimento das cidades e legi-

    timou, por exemplo, as grandes reformas urbanas que marcaram a histria dos centros

    metropolitanos ocidentais a partir da segunda metade do sculo XIX.

    O compromisso com a beleza instaurou um urbanismo com foco na forma, capaz de

    traduzir a racionalidade das atividades e dos fluxos urbanos. Pode-se dizer que a opo

    por uma abordagem formal das cidades levou afirmao da hierarquia entre os espaos

    urbanos, seus eixos e ponto de atrao central, definindo a cidade moderna pelo controle

    da ordem espacial. Essa vertente de tratamento das cidades tendeu a uma abordagem

    esttica do espao urbano, favorecendo a promoo das expresses artsticas de carter

    permanente, como a arquitetura e a escultura monumental.

    Por outro lado, preciso reconhecer que o discurso da ordem urbana, com fre-

    quncia, andou junto com a promoo da excluso social, atingindo grupos sociais e

    algumas atividades urbanas tradicionais que dependiam da liberdade de circulao e

    ocupao de espaos urbanos no necessariamente especializados para o seu desen-

    volvimento. Nesse caso, a promoo da ordem urbana se identificou com formas de

    represso, definindo as cidades como espaos de constrangimento e opresso. Assim,

    o controle social das cidades afetou diretamente artistas de rua, como artesos nma-

    des, poesia e teatro de rua, bem como o circo, entre outras manifestaes artsticas

    efmeras. A defesa da ordem urbana tendeu a discriminar os artistas de rua e margi-

    nalizar sua atividade criativa, identificando-a como ao perturbadora da ordem e foco

    da ao repressiva.

    Alm disso, preciso reconhecer tambm que o projeto de cidade ordenada e dis-

    ciplinada nunca abarcou completamente a vida urbana e que o processo de excluso

    social uma resposta dificuldade de submeter o dinamismo citadino e as formas

    variadas de apropriao do espao pela diversidade dos sujeitos sociais urbanos que

    territorializam sua vivncia do espao da cidade. Diante do controle social do espao

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    e da ao repressiva, a presena da arte nas cidades muitas vezes pode ser igualmente

    caracterizada como uma forma de resistncia social.

    O estudo da arte nas cidades permite, ento, sublinhar que o projeto de cidade

    ordenada se confundiu muitas vezes com uma cidade submetida a um controle social

    excludente, incapaz de admitir a cidade como espao de manifestao livre. Contudo, a

    arte fornece igualmente uma medida para identificar como as cidades tambm so capa-

    zes de se definir como territrio de liberdade. Desse modo, a redefinio dos sentidos

    da ordem urbana se traduz na preparao das cidades como espao criativo e de livre

    manifestao, capaz de acolher diversas expresses artsticas, permanentes ou efmeras,

    fixas ou nmades, com circuitos sociais locais ou internacionais, dando visibilidade

    pluralidade da cidade.

    Portanto, analisar a presena da arte nas cidades pode servir para distinguir diferen-

    tes projetos de cidade e colocar em interrogao os sentidos de ordem e de liberdade na

    cidade. Dito de outro modo, por meio do sentido da arte na cidade possvel identificar

    lgicas de poder urbano. Em consequncia, o debate sobre a presena da arte nas cida-

    des se relaciona com a discusso e a luta pelo direito cidade.

    Percursos artsticos

    O Rio de Janeiro foi o lugar da primeira escultura pblica do Brasil, a esttua eques-

    tre de D. Pedro I, imperador do Brasil, inaugurada em 1862, ainda hoje conhecida como

    a pea de maior quantidade de bronze das Amricas. Sua escala traduz sua inteno

    monumental e sua composio, seu carter narrativo, marcando a paisagem urbana.

    Desde ento, muita coisa mudou nas cidades, mas elas no abandonaram seus monu-

    mentos cvicos. Ao lado desse tipo de expresso, porm, as formas da escultura pblica

    se multiplicaram.

    A escultura contempornea no deixa de marcar a diversidade da arte pblica na

    cidade do Rio de Janeiro. Na dcada de 1990, a Prefeitura da Cidade renovou a presena

    da escultura urbana no Rio de Janeiro. Artistas conhecidos, como Franz Weissmann,

    Amlcar de Castro, Jos Resende, Ivens Machado, Ascnio MMM e Waltrcio Caldas

    povoaram a cidade com suas criaes. O feio e o bonito so tematizados pela opo

    por materiais inesperados, desgastados ou comuns, ou de tinta de automvel. O carter

    abstrato e a tradio construtiva dessas obras chamam ateno ao se combinar compo-

    sio de formas cinticas ou incompletas, o que faz com que a obra assuma um volume

    indefinido e nunca se apresente com uma forma absoluta diante do olhar. A cada novo

    ngulo elas ganham uma nova soluo plstica, ora abrindo, ora fechando suas partes

  • Arte urbana e a (re)construo do imaginrio da cidade

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    umas sobre as outras, ou se contorcendo. A mesma forma, por exemplo, pode parecer

    um tringulo ou um trapzio, dependendo do ngulo da viso. Desse modo, ao no defi-

    nirem claramente suas formas, as esculturas contemporneas do Rio de Janeiro recusam

    o poder de centro que os monumentos tradicionais exercem sobre a paisagem urbana.

    Esse aspecto se refora pela ausncia de pedestal, o que deixa uma sugesto de pea

    perdida na cidade sem implantao prpria, aproximando-as dos passantes das ruas.

    Outra caracterstica que completa essas esculturas a marca do vazio. Elas tematizam

    antes o vazio da composio do que o cheio, permitindo que o espao urbano complete

    a obra ao se inserir numa moldura escultrica. Fragmentos so emoldurados em formas

    tortas, ressaltando o momento passageiro em que o olhar capta determinado aspecto da

    cidade em movimento. Para isso preciso conviver com a obra e querer se aproximar

    da sua construo conceitual. Por meio dessas molduras da cidade, as pessoas podem

    descobrir um ngulo prprio pleno de intimidade, quase impossvel de ser repetido,

    como um buraco da fechadura que serve para descobrir a cidade.

    De outro lado, na atualidade, chamam muita ateno as solues coloquiais, que no

    Rio de Janeiro, por exemplo, comearam a surgir a partir da dcada de 1990. So esttuas

    que representam personagens de destaque na histria da vida cultural da cidade, espe-

    cialmente da msica e das letras. Pode-se dizer que o gnero teve estreia em 1996, com a

    inaugurao da esttua de Noel Rosa (autoria de Jos Pereira Passos), junto a uma mesa

    de bar com garrafa de cerveja, em atitude do cotidiano urbano comum. A consagrao

    do gnero veio no ano de 2002, com a inaugurao da esttua do poeta Carlos Drum-

    mond de Andrade, sentado em banco do calado da praia de Copacabana (de autoria do

    escultor Lo Santana). Os exemplos se multiplicaram, variando entre representaes em

    situaes prosaicas da vida urbana ou solues caricaturais. O gnero caricatural uma

    variao da vertente escultrica coloquial, e pode ser exemplificado na cidade do Rio de

    Janeiro pela obra de Otto Dumovich, autor das imagens dos msicos Pixinguinha (1996),

    Braguinha (2004) e, mais recentemente, de Dorival Caymmi (2009). A marca dessas

    peas a intimidade que o passante tem com elas, passando a mo, sentando-se ao lado,

    ou por provocar a alegria do riso. A ausncia de pedestal ou a existncia de um pequeno

    soco e a situao prosaica quebram a distncia entre a obra e o expectador.

    Esse sentido coloquial reaparece de modo muito diferente em intervenes artsticas

    efmeras nas cidades. No Rio de Janeiro, a galeria Gentil Carioca, nos ltimos anos,

    definiu um espao de arte pblica especial no Centro da cidade, ao aproveitar a empena

    lateral do seu edifcio na Rua Gonalves Ledo.1 Todo ano, h produes especficas que

    1 Ver em http://www.agentilcarioca.com.br/Eventos/parede.html

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    caracterizam a empena como espao de curadoria de arte e que compe o programa da

    Parede Gentil. Organizada desde 2005, a cada ano a galeria convida artistas para realizar

    sua criao de arte pblica aproveitando a parede por quatro meses. As solues variam

    entre recursos pictricos diversos, como a parede de estreia de Julia Czeko, de marca

    mais tipogrfica, ou solues mais prximas do graffiti urbano contemporneo como a

    criao de Marinho, de 2006, ou solues mais ilusionistas como a de Carlos Garaicoa,

    de 2008. Ao lado disso, os artistas Botner e Pedro apresentaram Parede Cega, que consis-

    tiu na instalao de um visor eletrnico com um olho que mira a rua a partir da empena

    sem vos do edifcio, normalmente definida como cega. Mas o que mais chama ateno

    da cidade so as criaes que podem ser definidas como instalaes vivas, como a obra

    Abrigo, de Dane Mitchell, do ano de 2006, que consistia numa barraca de camping

    montada na parede habitada a noite pelo artista. Na mesma linha, em 2007, Guga Fer-

    raz apresentou uma instalao denominada Cidade dormitrio, composta de beliches de

    ferro montados uns sobre os outros, por cuja escada qualquer um podia subir e ocupar

    seu lugar. Em 2009, o espao foi ocupado, ainda, pela criao de Tiago Primo e Gabriel

    Primo, denominada A Parede, que consistiu em recriar as reas domsticas, com camas,

    mesa, televiso, sof etc. Os prprios artistas ocuparam durante semanas os mveis

    pendurados na parede pblica, escutando msica, comendo, dormindo, repetindo atos

    cotidianos comuns acompanhados pelos olhos de todos que passavam pela rua. O que

    chama ateno nessas intervenes a proposta de caracterizar o cotidiano urbano no

    pela rotina e o indistinto da multido, mas pela novidade ao criar situaes inesperadas

    e peculiares.

    O graffiti urbano contemporneo tem presena forte no universo da arte pblica das

    cidades dos nossos dias. As formas de inscrio livre sem tratamento de suporte se

    multiplicam tanto quanto seus artistas, que se escondem por codinomes. Os traos e

    tcnicas variam entre o uso da lata de tinta em aerosol (spray), o pincel, o serigrafite e o

    lambe-lambe, entre a nfase na mancha ou na linha, entre o destaque policromtico e as

    solues de cor nica ou matizes da mesma cor, entre a figurao e a abstrao, entre a

    soluo logotpica (tag) e as composies figurativas. No Rio de Janeiro, porm, o grau

    de organizao de grupo de grafiteiros, chamados de crews, garante a visibilidade das

    tendncias do movimento.

    O carter engajado na vida da cidade de muitas crews atribui ao graffiti a condio

    de instrumento de reconstruo de laos sociais de uma cidade carregada de marcas da

    violncia urbana. Por sua vez, em seus diferentes formatos, o graffiti urbano contem-

    porneo subverte os suportes da cidade, transformando pilares de viadutos em murais,

  • Arte urbana e a (re)construo do imaginrio da cidade

    Pau

    lo K

    nau

    ss

    41

    empenas cegas em paredes de formas e cores visveis, muros que separam em painis

    de comunicao, mobilirio e equipamentos urbanos em telas pictricas. Instalando-se

    onde ningum espera e fazendo arte onde no h expectativa alguma, a ordem artstica

    do graffiti inspira o movimento que se opera nas cidades, procurando subverter tambm

    a ordem urbana baseada na violncia.

    O graffiti ganhou assim territrios, multiplicando-se nas favelas do Rio de Janeiro,

    por exemplo.2 Esse potencial criativo e de interveno social contagiou iniciativas de

    artistas estrangeiros em favelas em torno de arte comunitria, aproximando o graffiti e

    a pintura mural. Uma das intervenes pictricas urbanas de grande escala a obra da

    dupla holandesa Jeroen Koolhaas and Dre Urhahn, que coordena o projeto Favelapain-

    ting, desenvolvido na favela da Vila Cruzeiro.3 Em 2007, a dupla de artistas inaugurou

    uma imensa pintura mural sob a fachada de vrias casas que margeiam o campo de fute-

    bol do bairro popular. Sob um imenso fundo azul, o que se v o retrato de um menino

    soltando pipa (ou papagaio). Em 2008, eles fizeram do espao que contorna uma das

    escadas de acesso ao morro um imenso rio com peixes pintados, animando o ambiente

    inspito, dando um sentido ldico rea urbana onde se realizou a interveno artstica.

    Novamente, o que se opera so os sentidos do belo na cidade na inteno de promover a

    transformao social da cidade.

    Cada uma dessas solues artsticas promove leituras distintas da cidade.

    A escultura monumental promove uma leitura nica do espao urbano, caracterizan-

    do a cidade como territrio do civismo, promovendo uma experincia da cidade como

    corpo social unvoco e integrado, como se a existncia de cada cidado se realizasse

    plenamente no plano coletivo. Junto com isso, a soluo monumental sacraliza a pre-

    sena da arte nas cidades tambm como valor abrangente e estabelecido. Tanto o sentido

    integrado do corpo social da cidade quanto o significado da arte questionado pelas

    experincias propostas por outras solues artsticas na cidade. As formas aleatrias da

    escultura contempornea provocam uma compreenso variada das relaes entre a obra

    artstica com o espao em que est implantada desafiando o prprio estatuto da obra de

    arte. Prope a constituio de um olhar ntimo para as cidades, e sem crena especial

    na cidade como conjunto, e aposta nas suas dobras e contradies, mas que provoca a

    interao do passante com seu derredor que, por admirao ou rejeio, desafiado a

    lidar com as obras de arte no seu trajeto urbano. Por sua vez, a escultura coloquial que

    2 Um bom registro desse trabalho se verifica em publicaes como o livro Tinta no morro (Rio de Janeiro, Casa de Arte da Mangueira, 2004), que apresenta um projeto de encontro de grupos de grafiteiros no morro da Mangueira, acompanhados pelos alunos da oficina de fotografia da Casa de Arte da Mangueira, mobilizando a juventude local.

    3 Ver em www.favelapainting.com

  • EN

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    42 Sesc | Servio Social do Comrcio

    provoca o riso nas cidades ou de sentido ttil, ao alcance das mos e da convivncia em

    escala humana, tambm vivenciada individualmente, mas de um modo que contagia

    os outros despertando o convvio prximo com a obra de arte. A interao ganha tons

    sensveis da saudade de algum que nem sempre se sabe quem exatamente, mas que

    seguramente est ausente, despertando a lembrana lrica de outros tempos da cidade.

    De outro lado, a surpresa na cidade explorada pelas intervenes artsticas efmeras

    que, ao final, revelam a inteno de instalar o inusitado alegrando a cidade, mas de

    modo inquietante. As criaes intervencionistas, como o graffiti urbano contemporneo,

    tambm subvertem os suportes da cidade e afirmam o compromisso mais ou menos

    engajado da arte com o debate e a polmica social, promovendo a reflexo sobre o terri-

    trio urbano e seus sujeitos sociais. Portanto, o campo da arte nas cidades diversificado

    e muitas vezes coloca as suas diferentes solues e formas de expresso em disputa.

    Arte pblica

    A arte pbli