arte um tratamento tão íntimo do a festa visual do€¦ · do legado barroco que foi empreendi-do...

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• HUMANIDADES ARTE A festa visual do barroco Livro reúne estudos, com fartas imagens, sobre as raízes da estética colonial U mprojeto de 14 anos - envolven- do viagens, cursos, pesquisa de campo, documentação fo- tográfica e ciclos de palestras dos principais especialistas brasilei- ros em barroco - está por trás do livro Barroco Memória Viva, orga- nizado por Percival Tirapeli, profes- sor do Instituto de Artes da Universi- dade Estadual Paulista (Unesp). No centro do livro estão as igrejas, que de- sempenharam o papel de núcleos de difusão da cultura e da arte coloniais brasileiras. ''A organização dos capítulos sugere um dia festivo religioso, com todas as possibilidades e uso dos sentidos que envolvem a estética barroca", diz Tira- peli. Assim, os primeiros dos 18 artigos apresentam e discutem as cidades co- loniais e sua arquitetura; em seguida, os textos mergulham no interior dos templos, para depois examinar outras formas de expressão, como a música e a literatura, e também as implicações mais amplas da estética barroca, refleti- das na política e na teologia. O tema rendeu o livro e um CD-ROM, ambos com apoio da FAPESP. 92 • MAIO DE 2002 PESQUISA FAPESP Um tratamento tão íntimo do assunto foi possível graças ao projeto Barroco Memória Viva, sob responsabi- lidade de Tirapeli desde que ele mesmo o criou em fins dos anos 80. A idéia es- sencial do projeto é promover viagens culturais a cidades que abrigam monu- mentos históricos, para estudá-los in loco. As viagens do Barrroco Memória Viva, que em 1990 foi oficializado como curso de extensão universitária e em 1994 tornou-se projeto permanente da reitoria da Unesp, são precedidas de um ciclo de palestras realizado em São . Paulo. Participam das viagens professo- res, alunos e funcionários da Unesp e pesquisadores de outras universida- des, que preenchem cerca de 40 va- gas, a cada ano mais disputadas. Os textos do livro Arte Sacra Co- lonial se originam das palestras do projeto. Tirapeli começou a procu- rar patrocínio para publicá-Ias em livro há quatro anos. Os textos fo- ram revistos e reestruturados, num trabalho de atualização e adequa- ção ao formato impresso. Entre os autores estão nomes como João Adolfo Hansen, Benedito Lima de Toledo, Wolfgang Pfeif- fer e Régis Duprat, além do pró- prio Tirapeli. A idéia de publica- ção encontrou boa receptividade nas inscrições para as leis de incentivo (como as leis Mendonça e Rouanet), mas nem tanto por parte de potenciais patrocinadores. Finalmente a própria editora da Unesp se interessou em ban- car o projeto. A Imprensa Oficial encar- regou-se da impressão e do papel. Senhor Morto, do século 18, em Sorocaba, São Paulo: fim da idéia errada de um barroco "caipira" Século dobradu- Ao analisar a organi- zação preliminar do acervo de textos, os pareceristas da editora da Unesp suge- riram que o enfoque do livro fosse di- recionado para as manifestações barro- cas no Estado de São Paulo. "O próprio título é amplo e não delimita", observa Tirapeli, destacando o caráter abrangen- te do livro. "Mas se trata essencialmen- te de arte sacra colonial paulista', afirma o pesquisador. Esse aspecto específico, mas não li- mitador, da obra é uma de suas caracte- rísticas mais interessantes. Como o bar- roco foi a estética dos séculos 17 e 18 ("o século do barroco no Brasil tem 200 anos", brinca Tirapeli), coincide com o período em que o Estado de São Paulo

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Page 1: ARTE Um tratamento tão íntimo do A festa visual do€¦ · do legado barroco que foi empreendi-do por artistas e intelectuais dos mais variados meios, entre os anos 20 e 40 do século

• HUMANIDADES

ARTE

A festavisual dobarrocoLivro reúneestudos, comfartas imagens,sobre as raízes daestética colonial

Umprojeto de 14anos - envolven-do viagens, cursos,pesquisa de campo,documentação fo-

tográfica e ciclos de palestras dosprincipais especialistas brasilei-ros em barroco - está por trás dolivro Barroco Memória Viva, orga-nizado por Percival Tirapeli, profes-sor do Instituto de Artes da Universi-dade Estadual Paulista (Unesp). Nocentro do livro estão as igrejas, que de-sempenharam o papel de núcleos dedifusão da cultura e da arte coloniaisbrasileiras.

''A organização dos capítulos sugereum dia festivo religioso, com todas aspossibilidades e uso dos sentidos queenvolvem a estética barroca", diz Tira-peli. Assim, os primeiros dos 18 artigosapresentam e discutem as cidades co-loniais e sua arquitetura; em seguida,os textos mergulham no interior dostemplos, para depois examinar outrasformas de expressão, como a música e aliteratura, e também as implicaçõesmais amplas da estética barroca, refleti-das na política e na teologia. O temarendeu o livro e um CD-ROM, amboscom apoio da FAPESP.

92 • MAIO DE 2002 • PESQUISA FAPESP

Um tratamento tão íntimo doassunto foi possível graças ao projetoBarroco Memória Viva, sob responsabi-lidade de Tirapeli desde que ele mesmoo criou em fins dos anos 80. A idéia es-sencial do projeto é promover viagensculturais a cidades que abrigam monu-mentos históricos, para estudá-los inloco. As viagens do Barrroco MemóriaViva, que em 1990 foi oficializadocomocurso de extensão universitária e em1994 tornou-se projeto permanente dareitoria da Unesp, são precedidas deum ciclo de palestras realizado em São .Paulo. Participam das viagens professo-res, alunos e funcionários da Unesp epesquisadores de outras universida-des, que preenchem cerca de 40 va-gas, a cada ano mais disputadas.

Os textos do livro Arte Sacra Co-lonial se originam das palestras doprojeto. Tirapeli começou a procu-rar patrocínio para publicá-Ias emlivro há quatro anos. Os textos fo-ram revistos e reestruturados, numtrabalho de atualização e adequa-

ção ao formato impresso. Entreos autores estão nomes comoJoão Adolfo Hansen, BeneditoLima de Toledo,Wolfgang Pfeif-fer e Régis Duprat, além do pró-prio Tirapeli. A idéia de publica-

ção encontrou boa receptividadenas inscrições para as leis de incentivo(como as leis Mendonça e Rouanet),mas nem tanto por parte de potenciaispatrocinadores. Finalmente a própriaeditora da Unesp se interessou em ban-car o projeto. A Imprensa Oficial encar-regou-se da impressão e do papel.

Senhor Morto,do século 18,em Sorocaba,São Paulo: fimda idéia erradade um barroco"caipira"

Século dobradu- Ao analisar a organi-zação preliminar do acervo de textos, ospareceristas da editora da Unesp suge-riram que o enfoque do livro fosse di-recionado para as manifestações barro-cas no Estado de São Paulo. "O própriotítulo é amplo e não delimita", observaTirapeli, destacando o caráter abrangen-te do livro. "Mas se trata essencialmen-te de arte sacra colonial paulista', afirmao pesquisador.

Esse aspecto específico, mas não li-mitador, da obra é uma de suas caracte-rísticas mais interessantes. Como o bar-roco foi a estética dos séculos 17e 18 ("oséculo do barroco no Brasil tem 200anos", brinca Tirapeli), coincide com operíodo em que o Estado de São Paulo

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desempenhava papeleconômico, social epolítico secundário emrelação às regiões mais im-portantes do país (Estados doNordeste e Minas Gerais). A rela-tiva pobreza das manifestações ar-tísticas coloniais paulistas criou um es-tigma. Como Tirapeli observa, "São Paulotem vasta bibliografia de sua arte colo-nial- o que faltava era essa apresentaçãocom o status de arte barroca ou rococócomo as do Nordeste e Minas Gerais':

Entre outros objetivos, o livro preten-de, segundo seu organizador, desfazerequívocos que levaram alguns estudiososa subestimar a produção artística pau-lista com rótulos como "barroco caipi-ra" Se, de fato, não há nas cidades colo-niais paulistas igrejas suntuosas como asmineiras ou baianas, no Estado se desen-volveram alguns veios genuínos da pro-dução escultórica e pictórica colonial.Tirapeli chama atenção para o nome deJoão Gonçalo Fernandes - "portuguêsque fugiu para o Brasil por causa de umcrime'le se radicou em São Vicente, nolitoral paulista -, autor das três primei-ras imagens de barro cozido produzidasno país, ~,or volta de 1560. Além disso,o professor destaca as pinturas de tetosde igrejas paulistas, "muito pouco co-nhecidas". Algumas das mais belas ilus-trações presentes no livro de Tirapeli

são fotos desses tetos, de igrejas deMogi das Cruzes, Itu e São Roque, en-tre outras.

Ainda sobre o barroco paulista, Ti-rapeli observa a importância que asconstruções coloniais do Estado, comtoda sua sobriedade e aparente modés-tia, desempenha no estudo da arquite-tura jesuítica brasileira empreendidopor Lúcio Costa, cujo centenário denascimento está sendo comemoradoatualmente. A pesquisa do arquiteto eurbanista é uma das obras-chave notrabalho de recuperação e organizaçãodo legado barroco que foi empreendi-do por artistas e intelectuais dos maisvariados meios, entre os anos 20 e 40do século 20.

Ostracismo - Foi exatamente em 1924,com a excursão dos modernistas de SãoPaulo às cidades históricas de Minas(tema de um dos capítulos do livro),que \arte barroca brasileira saiu de um

Espírito Santo,século 17, emAraçariguana,São Paulo:um barrocointernacional,mas com saborlocal

o

!

ostracismo de maisde cem anos, durante

os quais representou oexemplo máximo de mau

gosto. No período de pre-dominância do neoclassicismo

na arquitetura, que opunha pu-reza geométrica e cromática ao rebus-camento de formas do barroco, fachadasentalhadas de algumas igrejas chega-ram a ser cobertas de branco e telhadosforam cercados com platibandas, comoa "cobrir vergonhas': nas palavras deTirapeli.

Tendo Mário de Andrade à frente,iniciou-se na terceira década do séculopassado um amplo e profundo movi-mento de reconstrução do passado ar-tístico brasileiro, ironicamente sob ins-piração do futurismo e da procura deuma expressão genuína nacional. Esti-mulados por essa inquietação, pensa-dores fundamentais da cultura brasileira,como Manuel Bandeira, Gilberto Freyree Lúcio Costa, arregaçaram as mangaspara tirar do esquecimento (e da imi-nência de extinção) a arte produzida noBrasil colônia. Momento fundamentaldessa movimentação intelectual foi afundação, em 1937, do Instituto do Pa-trimônio Histórico e Artístico Nacio-nal (Iphan), pelo ministro Gustavo Ca-panema. O projeto do Iphan, "umaverdadeira universidade", segundo Ti-

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Page 3: ARTE Um tratamento tão íntimo do A festa visual do€¦ · do legado barroco que foi empreendi-do por artistas e intelectuais dos mais variados meios, entre os anos 20 e 40 do século

rapeli, foi encomendado por Capane-ma a Mário de Andrade.

Rei ausente - A arte colonial assumiu,então, uma proeminência quase natu-ral 1).0 panorama histórico, na medidaem que muitos estudiosos consideramo barroco a tradução estética da almabrasileira, pelo que tem de opulento e ,intenso. O período de vigência do bar-roco coincide no Brasil com a ausênciado rei, que exerce a função de chefe deigreja. O padre era não só a autoridademoral, mas também um funcionáriopúblico, diz Tirapeli. É uma época am-bígua, em que as fronteiras do religiosoe do secular, do público e do privadosão bastante flexíveis.

Tirapeli acredita que a principal he-rança desse tempo é a tolerância do bra-sileiro, seja a que permite conviver comas diferenças, seja a que faz vista grossaà corrupção. "Nasceu daí um espíritode busca, mas que sabe que nunca vaiachar o fim': diz o professor. "Ele dá atodos a liberdade de completar as re-gras, adaptá-Ias e floreá-Ias."

O fato de ter se enraizado tão pro-fundamente na cultura brasileira nãosignifica que o barroco local tenha gera-

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Isso decorre da fartura, no Brasil, decertos materiais de talha, como madeirae ouro, e da escassez de outros, como omármore. A oposição entre o interior eo exterior dos templos corresponde auma das principais características dobarroco, o jogo de contrastes, presente,por exemplo, no claro-escuro das pin-turas que decoram as igrejas.

Detalhe do azulejo que decora o claustro da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, em Salvador

do características próprias. "Ele já nas-ce sendo o primeiro estilo internacional,como palavra de ordem no Concílio deTrento (1545)': diz Tirapeli, mencio-nando o vínculo fundamental entre osurgimento do barroco e as diretrizes daContra-Reforma, a reação violenta efe-tivada pela Igreja Católica ao movimen-to protestante liderado por MartinhoLutero. ''A estética é a mesma, mostradacom maior ou menor esplendor': acres-centa o professor.

Tirapeli admite, no entanto, queexiste um traço distintivo no barrocobrasileiro: "A simplicidade externa dasconstruções em contraste com a com-plexidade dos ornamentos internos".

o PROJETO

Turismo - Com a autoridade de quemconhece de perto o objeto de seu estu-do, Tirapeli, que aos 14 anos já cuidavade um pequeno museu no seminário emque estudava no interior de São Paulo,faz uma avaliação positiva dos atuaisesforços de preservação do patrimôniohistórico brasileiro. O professor - autortambém dos livros As Mais Belas Igrejasdo Brasil e Patrimônio da Humanidadedo Brasil, e que prepara agora para aeditora da Unesp um volume sobre to-das as igrejas coloniais paulistas - per-cebe o surgimento de "um sentido dehistória" na população, criando pres-sões sobre o poder público para que sepreservem os monumentos históricos.Além disso, acrescenta, "todos estãovendo que o turismo é um grande ne-gócio': afirma o pesquisador. •

Barroco Memória Viva

MODALIDADEAuxílio publicação

PESQUISADORPERCIVAL TiRAPELI - Instítuto deArtes da Unesp

INVESTIMENTOR$ 6.000,00