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Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais / EBA / UFRJ
ano XVIII · n. 23 · novembro 2011
ISSN - 1516-1692
Semestral
BARTHOLOMEU, Cezar, TAVORA, Maria Luisa (org.)Arte & Ensaios n. 23. Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais/ Escola de Belas Artes, UFRJ, novembro de 2011. 224 p. 1. Artes Visuais 2. História e Teoria da Arte 3. Imagem e Cultura 4. Linguagens Visuais
I. Universidade Federal do Rio de Janeiro II. Título
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Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais / eba / ufrj. Qualis A2 – CAPES
Apoio CNPq e CAPES
UFRJ · Universidade Federal do Rio de JaneiroReitor | Carlos Antônio Levi da ConceiçãoDecano do Centro de Letras e Artes | Flora De Paoli FariaDiretor da Escola de Belas Artes | Carlos Gonçalves TerraCoordenadora do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais | Maria Cristina Volpi Nacif
EditorEs rEsponsávEis
Cezar BartholomeuMaria Luisa Tavora
Comitê Editorial
Carlos Alberto MuradMaria Luisa TavoraMilton MachadoRogério Medeiros
ConsElho Editorial
Amaury FernandesAna CavalcantiAngela Ancora da LuzAngela LeiteCarlos MuradCezar BartholomeuDóris KosminskyFrançois Soulages (Université de Paris VIII)Georges Didi-Huberman (EHESS/Paris)Gerardo Mosquera (New
Museum of Contemporary Art NY)Giselle RuizGlória FerreiraGuto NóbregaGuy Brett (Curador independente Inglaterra)Jean-Claude Lebensztejn (Université de Paris 1)Livia FloresMarcus DohmannMaria Luisa TavoraMaria Luiza FragosoMarize MaltaMilton MachadoPaulo VenancioRogério MedeirosSonia Gomes PereiraTadeu Capistrano
EditorEs ExECutivos
Gloria CostaRonald Duarte
EquipE Editorial
Analu CunhaAna MannarinoCarla de CiccoClaudia BakkerDenise LopesGabriela MuredGloria Costa Mariana EstellitaMarina MenezesRoberta BarrosRonald DuarteViviane Viana
rEvisão
Maria Helena Torres
abstraCts Elvyn Marshall
projEto gráfiCo
Mary Paz Guillén
Capa
Milton Machado
agradECimEntos
Bárbara Spanoudis
Inês de AraujoFloriano RomanoGabriel AmorimConchita MorgadoElizabete Marin RibasLouise GanzLuiza VidalLuis Camillo OsorisMAC USPMaria Isabel BrancoMarisa FloridoPriscila PlantaridaVanessa Santos
6
40
Apresentação
O que eu quero que você veja é a sombraMilton Machado
Espetáculos de civilidade: modernidade e pós-modernidade no papel-moeda brasileiroAmaury Fernandes
Festas reais em Portugal e no Brasil Colônia: organização, sentido, função socialCybele Vidal Neto Fernandes
A imersão no panorama de Victor MeirellesCristina Pierre de França
O ticumbi: imagens e memória da Vila de ItaúnasLuciana Alvarenga
De quantas partes se faz uma quimera maquínica?Bete Esteves
Sob palavras e imagens: proposição poética e contextualização cultural de um disposi-tivo digital de artemídiaMano Vianna
Robert Morris e o estúdio do artistaKim Paice
Teatro de imagens e autobiografia: espetáculo?Gabriela Lírio Gurgel Monteiro
As Exposições Gerais da Academia de Belas Artes: teatro de corte e formação de um mercado de artes no Rio de JaneiroLeticia Squeff
Theon SpanudisArte das formas e arte das formações
ENTREVISTA
52
ARTIGOS
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74
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94
104
118
COLABORAçõES
REEDIçÃO
128
138
5
SUMáRIO
APRESENTAçÃO
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxAlém da crítica institucionalIsabelle Graw
Representação, apropriação e poderCraig Owens
A função do ateliêDaniel Buren
Espetáculo, atenção, contramemóriaJonathan Crary
Analu Cunha
Heloisa Schneiders da Silva obra e escritosGlória Ferreira
No contemporâneo: arte e escrituraexpandidasAna Mannarino
Gerhard Richter, SinopseAlvaro Seixas
José ResendeFelipe Scovino
Ana Linnemann, CartoonVera Beatriz Siqueira
Francis Alÿs - A Story of DeceptionDoris Kosminsky
Sumário das edições anteriores
160
186
196
210
212
213
214
216
217
220
222
PáGINA DUPLA
RESENHAS
TEMáTICAS 148
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 20116 7ENTREVISTA | MILTON MACHADO
Cezar Bartholomeu Acho interessante começar pensando sua relação com a arquitetura.
Milton Machado Minha história curricular é a seguinte: na minha infância, um tio da Marinha, que
era capitão de mar e guerra, me trazia brinquedos importados, carrinhos com controle remoto e tudo o
mais. Por influência dele, eu quis ser da Marinha também para poder viajar, ter coisas importadas, mas
para isso tinha que ser militar, e eu não tinha a menor vocação. Tomei um gosto por montagens, por
engenharias, a partir de um brinquedo francês que ele me trouxe chamado Mecano, fantástico, com o
qual você monta estruturas, helicópteros, rodas-gigantes. Eu brincava com esse brinquedo diariamente,
montava coisas incríveis, às vezes fugia do figurino dos manuais, fazia coisas que eu mesmo inventava,
minhas próprias máquinas. Então eu achei que estudar engenharia seria, além de uma coisa de geração,
vocação. Fiz um ano de engenharia na PUC, em 1964. No meio do ano, comecei a sentir certa dificuldade
com geometria analítica no espaço. Achava que era possível aquilo fazer sentido, mas para mim não
fazia, era muito além de minhas possibilidades, de minha realidade construída a Mecano. Some-se
a isso o fato de eu passar muitas das aulas jogando boliche em uma pista em frente à faculdade.
Comecei a sentir uma dificuldade imensa, primeiro porque era um universo muito diferente do meu
próprio círculo tijucano – na PUC, muitos alunos foram do Santo Inácio, eu era do Aplicação, chegavam
lá de BMW, Alpha Romeo, e eu de carona num Fusca. Falei então para meus pais, que eram muito
compreensivos: quero mudar de curso. Minha mãe consultou um psicólogo que me aplicou um teste
vocacional e apontou que seria aconselhável eu fazer arquitetura. Que, aliás, era uma atividade que meu
pai exercia, mesmo sem ser arquiteto formado. Fiz vestibular para arquitetura e fiquei até o fim, formei-
me arquiteto. Fundei com Antônio José, que é meu amigo até hoje, o cineclube da FAU, que dirigimos
com nosso entusiasmo típico de Geração Paissandu, apesar da interferência do diretor, que apagava a
luz da faculdade inteira para nos impedir de mostrar os filmes, obrigando-nos a transferir nossas sessões
para teatros da Zona Sul, o que acabou nos proporcionando maior visibilidade e publicidade. Foi um
O QUE EU QUERO QUE VOCÊ VEJA É A SOMBRA
Milton Machado
Entrevista de Milton Machado a Arte & Ensaios – com a participação de Tânia Rivera, Cezar
Bartholomeu, Livia Flores, Marina Menezes, Rodolfo Caesar, além de Glória Ferreira e Guilherme
Bueno, que enviaram perguntas por e-mail – no ateliê do artista em 14 de outubro de 2011.
Kosuth Teóricoobjeto, cartões impressos, foto, verbetesdécada de 1980
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cineclube importantíssimo nos anos 60. Comecei a estudar cinema loucamente, vi montes de filmes e
com isso não tinha muito tempo para assistir às aulas. Assistia a poucas aulas, mas participava de um
grupo de estudos extremamente dinâmico com colegas e com arquitetos, como Paulo Casé, com quem
trabalhei por uns cinco anos.
Tânia Rivera Grupo de estudos sobre o quê?
MM Sobre arquitetura, basicamente. Muitos de nós trabalhávamos com Paulo Casé e Luiz Acioli num
escritório bastante dinâmico dos anos 60. Some-se a isso minha aproximação à música. Ainda na
arquitetura eu já tocava um pouco de violão e comecei a estudar mais seriamente. Estudei sete anos
de violão clássico, de modo que acho que posso incluir a música como parte de minha formação. A
FAU já funcionava no prédio da EBA, que não tinha EBA, que na verdade é uma intrusa. Tínhamos uma
relação muito intensa com aquele edifício, porque virávamos noites lá fazendo projetos de arquitetura
sobre pranchetas fantásticas desenhadas por Jorge Moreira, com armários individuais e equipamento
perfeito, hoje tristemente sucateado. Apesar da distância, era um lugar que nos acolhia muito. Tínhamos
professores incríveis, bons arquitetos atuantes, como o próprio Paulo Casé, Henrique Mindlin e vários
outros, pessoas bacanas. A atuação política no diretório, do qual eu era representante externo, também
foi fundamental porque me fez participar de reuniões do DCE, da UME, da UNE. Então, minha vida era
isso, assistir a filmes, alguma militância, ir ao Museu de Arte Moderna; eu me lembro de exposições de
Genovese, de Ivan Serpa, Flavio Shiro, e tenho quase certeza de que era capaz de sentir o cheiro da tinta
a óleo, que me inebriava.
TR Isso foi em que ano mais ou menos?
MM Eu entrei para a faculdade de arquitetura em 1965, me formei em 1970. O próprio fato de
frequentar o MAM, de estudar cinema, estudar música, me fazia um peixe fora d’água na engenharia.
Assim, quando me formei eu já estava completamente embananado, porque, além de estar entregue,
como alguns nesta sala, à experiência psicodélica com relativa intensidade, havia a experiência musical,
sexual, drogal, entremeadas por sessões de análise de grupo e meditações budistas. Isso me deixava um
tanto perdido, literalmente perdido nas minhas tentativas de encontro. Em 1973, fascinado por Robert
Crumb e companhia, organizei e publiquei A Esperança no Porvir, uma revista de quadrinhos, o que
aumentou mais ainda a balbúrdia. Lembro que fui ao escritório do Casé tentar vender a revista,
todos ficaram chocadíssimos: mas você não é arquiteto? Acho que sim, eu devo ter dito, mas isso
não impede que eu faça revistas em quadrinhos… Assim que me formei em 1970 fui para o Instituto
Villa Lobos, onde conheci Rodolfo Caesar; somos amigos desde então. Estudei um pouco de música
no Villa Lobos, mas comecei a estudar mais seriamente com professores como Jodacil Damasceno,
Yan Gestzi, entre outros. Isso tudo gerava uma confusão danada, mas produtiva. De uma coisa eu não
fazia parte de jeito nenhum: ser artista, não havia o menor ... não sabia o que significava isso. Eu não
imaginava uma situação de artista expositor, embora eu desenhasse desde pequenininho. Mas houve
uma circunstância que me deixou frente a frente com Gilberto Chateaubriand. Ele foi a uma galeria
muito importante para a história das artes no Rio de Janeiro – Veste Sagrada, depois Central de Arte
Contemporânea – para comprar uma coisa qualquer e se deparou com um desenho meu que é a capa
de A Esperança no Porvir, e começou a me procurar. Um ano depois ele estaria comprando os primeiros
trabalhos meus de sua coleção, e assim tudo começou, um pouco a minha revelia. Sintomaticamente,
esse desenho se chama O Princípio do Fim.
Glória Ferreira Você chegou a frequentar cursos de arte antes de participar da Bienal de São Paulo,
em 1969?
MM Acho que só fui frequentar curso de arte quando fiz o doutorado na Inglaterra, se é que se pode
considerar um PhD Fine Arts um curso de arte, em que acabei escrevendo algo mais voltado para a filosofia.
Da Bienal de 1969 participei como estudante, um concurso internacional de escolas de arquitetura, em
que nossa equipe tirou segundo lugar, empatando com a da França. Nos anos 70, tive umas poucas
aulas de gravura em metal com Eduardo Sued. Mais tarde, início dos anos 80, já às voltas com a pintura,
inscrevi-me no curso de Aluísio Carvão no MAM, pensando em travar com ele interlocuções mais teóricas,
mas logo saí quando ele descobriu, constrangido, que eu não era exatamente um iniciante, julgando
que eu não teria nada a aprender com exercícios rudimentares que ele passava para totais iniciantes.
Não me incomodava com isso, mas talvez não fosse mesmo necessária tal iniciação para usufruir da
sabedoria dele, de pintor e gente fina. Para não perder o dinheiro da inscrição, transferi-me para o curso
de serigrafia de Dionísio del Santo, que era genial, experiência da qual resultou uma única serigrafia
com tiragem de 1/1. Aí ocorreu algo semelhante ao encontro com Carvão. Dionísio achou que, antes
de me aventurar por caminhos mais experimentais e de pretender ambicionar uma linguagem própria,
eu deveria “soltar o traço”. Os catálogos que então dei a ele causaram a mesma surpresa que causaram
em Carvão, mas Dionísio me acolheu de modo caloroso, e fui com ele até o final do curso. Não sei mais
como se faz, mas tenho e gosto muito de minha única serigrafia de impressão única.
TR Quando é que virou uma arquitetura sem medidas?
MM Não sei se existe arquitetura sem medidas, mas sei que existe o arquiteto sem medidas, que tento
ser eu mesmo. É claro que existe arquitetura sem medidas, a arquitetura dos jardins de Canterel em
Locus Solus, por exemplo. Uma arquitetura sem medidas é a que recorre a medidas marotas, peculiares.
Os metros de Duchamp só servem para levantar construções fictícias, porque se você construir um
edifício com os metros de Duchamp o edifício vai ruir. A denominação “arquiteto sem medidas” veio
com História do Futuro. Esse é um trabalho que surgiu da vontade – ou eu poderia dizer desejo, fazendo
contraponto com a palavra desígnio, projeto –, do desejo de um arquiteto sem medidas preocupado
com a perda da unidade e sua recuperação. A primeira vez que me deparei com esse problema foi
quando li um livro escrito em 1938 pelo paleontólogo Alfredo Brandão, A escripta pré-histórica no
Brazil, em ortografia antiga. Ele especulava sobre a existência do Pangea, o continente único que foi
separado por cataclismos, terremotos, no período cambriano. Com o instrumental que eu tinha da
arquitetura, dispus-me a projetar um sistema de pontes gigantescas que, progressiva e artificialmente,
iriam reconstituir a unidade perdida. Era um projeto originado de especulações científicas, lidas num
livro de paleontologia, mas que nasce de uma ficção, de um projeto utópico, imaginário, de minhas
pontes simbólicas, sem medidas. É curioso, porque se a gente lê o Timeu, uma primeira referência que
Platão faz é à Atlântida, uma porção de terra ideal e fantástica, que desapareceu. Um “mito verossímil”,
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segundo Francisco Samaranch, na introdução da edição espanhola que tenho. Assim, o “arquiteto sem
medidas” surge como o autor desse projeto inexequível, inútil, totalmente especulativo, mas do qual
emerge a preocupação – e, aí sim, essa é uma medida que se pretende universal – de reconstituição da
unidade. O trabalho começa, então, com desenhos muito rudimentares, cheios de erros aliás, ou melhor,
imperfeições. A primeira série de desenhos de HF tem erros, por exemplo na direção em que o Módulo
de Destruição caminha, entre outros pequenos detalhes gráficos, mas...
TR Erros de continuidade?
MM Sim. Erros na configuração das chamadas Cidades Mais-que-Perfeitas, por exemplo. Eu não conhecia
ainda a conformação dessas cidades, que só depois fui descobrir, quando percebi que não estava lidando
apenas com o desejo de construir pontes imaginárias, mas com um problema seríssimo, com a própria
questão da unidade, uma recorrente idealidade ocidental, vide a busca de unidade do self, unidade do
planeta, unidade da arte, unidade de Deus, essas coisas todas que perturbam nossa natureza fragmentária
e que nos fazem aperfeiçoar cada vez mais a busca da coisa una. História do Futuro começa em 1978,
justamente quando eu frequentava uma especialização em urbanismo na própria FAU, que não terminei.
Mas no mesmo andar já funcionava o Instituto de Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional – IPPUR,
que era excelente. E eu passei lá cinco longos anos fazendo mestrado em planejamento urbano. Minha
dissertação chamou-se História do Futuro. Levei o trabalho para lá, causando certo problema para mim e
para eles. Ouço dizer que os bibliotecários até hoje caminham com o volume História do Futuro para lá
e para cá sem saber onde colocar. Aliás, tenho eu também a mesma dificuldade.
TR É um Módulo de Destruição.
MM Exatamente, é um Módulo de Destruição; eu diria até que minha passagem pelo IPPUR foi um
pouco assim; talvez eu tenha causado certo rebuliço pelo fato de ter reivindicado minha presença lá não
como arquiteto, mas como artista. Fiz questão de me identificar como artista e, na defesa da dissertação,
tive que enfrentar a banca como tal. Fizeram-me uma pergunta que me colocaria numa situação difícil,
porque me cobrava interlocuções com o planejador urbano. Algo que eu não era mesmo. E que os
professores do curso também não eram. Respondi argumentando que não conhecia nenhum planejador
urbano. Um economista, que aliás é um sujeito brilhante, Carlos Vainer, queria me colocar em exigência.
Mas eu falei: não posso ter interlocução com quem não conheço, não conheço qualquer pessoa que seja
planejador urbano, e nem vocês são. Meu orientador, Carlos Nelson Pereira dos Santos, era arquiteto e
antropólogo, completamente avesso à ideia mais ortodoxa de planejamento. O que estou dizendo é que
uma ideia de planejamento urbano que proponha uma teleologia de projeto e daí o controle do espaço
urbano vinha fortemente criticada na dissertação. Afinal, era a tese de um “arquiteto sem medidas”.
CB Fico pensando na ideia de um problema de projeto e trazer isso para um problema de experiência e
não mais de projeto. A perplexidade é o modo de tirar uma coisa de seu projeto e causar a experiência?
MM A perplexidade é uma inevitável condição contemporânea. Você tem no início do século 20 a
necessidade imperiosa da certeza, sem a qual você não poderia ter Mondrian, não poderia ter Malevitch,
História do Futurodetalhe, 2 de 14 desenhos
1. Cidades Mais-que-Perfeitas, Módulo de Destruição2. Cidades Mais-que-Perfeitas, Ciclos de Vida, Destruição e Construção
1978– em progresso
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o construtivismo russo, nem mesmo o dadaísmo. Mesmo em sua negatividade, o dadaísmo tinha certeza
pelo menos de ser contra a arte, contra o Dada inclusive. É o que o Danto chama de Era dos Manifestos.
Era necessário que os artistas tivessem certezas absolutas daquilo que estavam propondo. Se pensarmos,
por exemplo, no temor quase insuportável que os pintores abstratos tinham do nonsense, que faz
Kandinsky recorrer ao espiritual na arte, ou Malevitch ao suprematismo, ou Mondrian dizer que só
existe um caminho para a vida, portanto um único caminho para a arte, o que se vê são veredictos,
diagnósticos e proposições definitivas. Hoje em dia, se alguém lhe apontar o caminho de qualquer coisa,
você pode estar certo de que está mentindo. Isso me faz pensar numa proposição muito interessante de
Jeff Koons. Ele diz: se você me mostrar uma imagem abstrato-expressionista, ficarei desconfiado de suas
boas intenções; mas se você me mostrar algo em que eu consiga ver os pixels, aí saberei que podemos
falar seriamente, porque saberei que você está me enganando, portanto estaremos combinados.
Sabemos hoje que só a ficção não mente. Não temos mais nem a necessidade de ter certeza de alguma
coisa. Pensemos na derrocada das grandes narrativas, na perda da unidade, na ideia da arte como
projeto unificador. A perplexidade vem dessa incapacidade, e mais, da inutilidade de termos certezas.
É preciso viver a experiência micrologicamente. Por isso recorro, lá nas minhas teorias, até no título da
exposição (1 = n), um intervalo, aos parênteses. É uma ferramenta conjuntural, para tratar não com
extensões, mas com intensidades. Por exemplo: (1 = n) é um intervalo que fala da indeterminação e,
ao mesmo tempo, da igualdade. Coloco arte entre parênteses para poder falar dela, de alguma arte,
durante certa vigência intervalar. O subtítulo da minha tese é (arte) e sua exterioridade. Recorro aos
parênteses para poder garantir – muito provisoriamente – que estamos entendidos: arte com inicial
minúscula, necessariamente. Ou, se quisermos, de cavanhaque e bigode e com o rabo quente. Uma arte
que seja nossa, mais próxima de nós, como distâncias em proximidade.
CB Começar uma premissa de não certeza.
MM Sim. Qual arte? A arte de Joseph Beuys, a arte de Andy Warhol. Sim, mas qual trabalho? Em qual
circunstância? Nesse intervalo, vamos falar que língua? Em qual contexto? Lygia Clark entra no livro Art
Since 1900 como arte não ocidental, e eis aí um intervalo barra-pesada. Acho até que Paulo Venancio
cobrou isso do Yve-Alain Bois. E aqui, na palestra que deu em São Paulo, Rosalind Krauss foi extremamente
fugidia. Recusou-se a responder à pergunta, nem sequer admitiu que o livro do qual é coautora diz isso
de Lygia Clark. O livro comete a generosidade de nos “reconhecer” como não ocidentais. Bem, esses
intervalos, os parênteses que os demarcam, não devem permanecer para sempre. São como as margens
de História do Futuro, a que me refiro no Texto Descritivo de 1978. Posso inventar qualquer maluquice
dentro desse universo, porque ali eu sou deus. Estou garantido por aquelas margens, porque aquilo é
desenho, drawing, não é design, não é projeto. Então, até segunda ordem, eu não tenho qualquer tipo
de compromisso de ser consistente com as realidades objetivas, nem com outras histórias. É claro que
faz parte de minha responsabilidade, em determinado momento, romper com essa margem, que é (de)
limitadora, por isso excludente. Ela deve cumprir o papel de romper-se, de vazar para além dos papéis,
ou seja, de tratar a relação desse intervalo com outros intervalos. Daí a proposição: tudo é intervalar e
modular. Isso tem a ver com o modernismo; foi aí que eu aprendi sobre os módulos, você cria módulos
que funcionem segundo ordens específicas.
TR História do Futuro é uma grande alegoria crítica, mesmo da linguagem de ordem simbólica. Você
reafirma que ela não se refere a nada, mas você reconstrói uma grande fábula que é uma espécie de – e
estou evitando o termo metalinguagem – uma espécie de linguagem crítica, autocrítica, que diz respeito
à arte e ao mundo.
MM Falei que até certo ponto eu poderia me garantir naquelas margens desenhadas a lápis. Esse certo
ponto pode ser o momento em que eu, estudando a teoria do planejamento urbano – com mergulhos
profundos na economia política de Karl Marx, por exemplo, e é claro por conta de meu interesse
pela cidade como urbanista e arquiteto – senti que meu trabalho era devedor de algum coeficiente
de realidade. Eu reconhecia que era de minha responsabilidade recorrer a algum tipo de mecanismo
que derrubasse os parênteses. Isso aconteceu radicalmente na Sicília, onde vivi uma experiência
absolutamente mágica. Eu estava na Itália por conta de uma exposição. Fui o curador e convidei quatro
artistas [Cinque Artisti Brasiliani: Angelo Venosa, Daniel Senise, Frida Baranek, Ivens Machado, Milton
Machado, Sala Uno, 1990] para uma coletiva em Roma, e como decorrência surgiu o convite a mim e
Ivens Machado para fazermos individuais numa pequena cidade siciliana chamada Gibellina, destruída
em 1968 por um terremoto, que abriga um museu importante e inúmeras esculturas públicas. A Sicília
é um lugar muito inóspito, totalmente isolado de tudo, um lugar onde você percebe o isolamento de
forma muito clara. Pois bem, eu fui para uma cidade destruída por um terremoto. Ora, em História do
Futuro, a origem dos chamados plissements, que remetem às fissuras na crosta terrestre de que fala
Alfredo Brandão, são geológicas, são terremotos, cataclismos, o que já traz uma primeira analogia. Pois
eu estava ali, instalado nessa nova Gibellina, absolutamente nova, construída ao lado de uma cidade
velha destruída por um terremoto...
TR A analogia vem depois, e não antes…
MM A analogia vem depois, são as histórias do futuro, que vêm com as simbologias. Além disso, as
coincidências não são coincidências, são histórias coincidentais. Que se sucediam de forma vertiginosa!
Quando cheguei ao espaço em que fizemos as exposições, um prédio inacabado, ainda em construção
– lembrando que em História do Futuro há um Ciclo de Construção, um Ciclo de Vida e um Ciclo de
Destruição – havia lá, como que esperando minha presença, uma sequência de pilares de concreto
armado, vazios. Pois me pareceu óbvio que sua função era a de receber o Módulo de Destruição!
E foi exatamente o que fiz; meu cubo está lá até hoje e nunca mais vai sair, a não ser que apodreça;
foi adotado pelo edifício e pelo arquiteto como escultura pública permanente. Está plantado sobre
Pilares do Novo Mundo, que foi como passei a enxergar os pilares outrora vazios de Gibellina, que são
elementos do chamado Mundo Perfeito de História do Futuro.
E aí veio a esfera, representação do Nômade. Lembrem-se de que a origem do trabalho é a separação
dos continentes. Olho pra ela: uma bola de mármore port’oro, peça que foi desviada de uma construção
onde funcionaria como terminação de uma balaustrada. E aí eu vejo, marcados pela natureza, pelos
deuses meridionais, em ouro sobre negro, os continentes desenhados na superfície da esfera! Pensei: os
deuses estão me provocando, querendo que eu leve minhas analogias até o fim. E assim foi: bem em
frente ao prédio onde expus havia uma igreja de forma e gosto duvidosos: uma esfera atravessando um
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cubo! Que remete, justamente, à situação crucial em História do Futuro, em que o Nômade, que é uma
esfera diminuta, atravessa o Módulo de Destruição, que é um imenso cubo.
Isso me fez repensar, mexeu comigo e com o trabalho. Embora possa ser muito interessante, poético,
muito belo até, eu dizer que o “O Nômade se move” [do texto Fast Forward, História do Futuro] ou
dizer que o que importa é o caminho, coisas que tirei de minha própria cabeça ou de citações filosóficas
interessantes, ali eu olhava em volta e via pessoas reais no papel do Sedentário, do Nômade. Todos
esses “personagens conceituais” estavam conversando comigo, numa língua que eu, aliás, não entendia,
porque, se eu falava bem italiano, muitos deles só falavam bem siciliano. Era uma situação intervalar, em
que as analogias que eu propunha como possibilidade do trabalho, até como uma espécie de álibi para
justificar o trabalho, caíam por terra, ou caíam do céu com a força dos cataclismos, fazendo-me deparar
com realidades não mais Mais-que-Perfeitas, mas mais-que-totalmente-objetivas.
TR A realidade vem depois da ficção.
MM Exato. É uma espécie de confirmação, justamente, da perplexidade. Isso acontece muito em meu
trabalho, e de certa forma me causa sobressaltos como, por exemplo, desenhar uma paisagem de
meu quarto para, na mesma semana, sofrer dois assaltos consecutivos, em que me roubaram exatamente
os objetos que estavam no desenho.
Livia Flores Acho curioso, ouvindo esse seu relato de vida e de trabalho, como os títulos acabam se
amalgamando. Fico pensando em Homem Muito Abrangente, em Sobre a Mobilidade. Você fala da
situação em que o Gilberto vai lá e compra seus trabalhos, você diz que ali você não estava na posição
de artista, foi um acidente. Depois você está numa banca de defesa de mestrado, e ali você se afirma
como artista. Fico pensando no trabalho sobre a mobilidade que faz do móvel imóvel e do imóvel
móvel... esses modos de mobilidade.
MM É, a mobilidade. O Nômade se move, mas não é o único. A exposição Sobre a Mobilidade, no Paço
Imperial em 2001 e que depois itinerou por Brasília e São Paulo, tratava de uma situação específica, tinha
a ver com meu retorno para o Brasil. Os títulos são importantes para mim. Somas e Desarranjos é outro
título importante...
LF Um homem muito abrangente, você fala de inúmeras possibilidades…
MM “O título é o fim, no mais são vitrines”. Essa era uma de minhas pequenas tentativas poéticas no
catálogo da exposição Somas e Desarranjos [Galeria Saramenha, Rio, 1985]. Havia pinturas “íntegras”
na vitrina da galeria, quando lá dentro aconteciam operações desconstrutivas extremamente elaboradas
e matemáticas. As somas são importantes, mas os desarranjos são mais, porque se somam às somas.
Havia o slogan “ver as coisas pela metade para conhecê-las em dobro”. Enfim, essa derrubada, essa
desconstrução, já está no próprio projeto; então, “o título é o fim, no mais são vitrines” porque, se chego
ao título, é como se o trabalho estivesse pronto para acabar. Não que ele acabe, o trabalho não acaba
nunca; tem o trabalho e depois tem o trabalho do trabalho, que muitas vezes se pode apelidar de arte, o
trabalho do trabalho da escultura, da pintura, da fotografia, do filme. Pode-se chamar de arte o trabalho
do trabalho, não aquele objeto que ali está, prostrado, inerte. É o trabalho do trabalho que faz com que
a arte esteja sempre à procura, até de si mesma. Assim, se eu chego ao título é porque, de certa forma,
cheguei à necessidade dessa demonstração. CQD – como queríamos demonstrar. O título nunca aparece
antes, sempre depois. História do Futuro já se chamou História do Processo, e se você for aos originais
verá que está escrito História do Processo, antiga História do Futuro, que preferi não apagar. Isso me
diverte, eu me arrependi de chamar História do Processo, antiga História do Futuro, de História do Futuro.
História do Futuro é um título do futuro para um trabalho em processo, em progresso.
TR Você acha que essa diversão não é fortuita em seu trabalho, existe uma diversão que é uma torção
que é feita...
MM Não é fortuita, há uma certa maldade, no sentido maldoso, uma certa travessura. Sobre a Mobilidade
é o subtítulo do trabalho Edifício Galaxie. Fotografei os originais de Edifício Galaxie em 1975, quando
Nômade de História do Futuro, 1978 escultura, detalhe da instalaçãoin Interventi, Museo Civico Gibellina 1990-91
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o carro era 0Km, um Ford Galaxie verde-metálico que era do pai de um amigo. O edifício também era
novinho, nem tinha sido inaugurado, na esquina da Farme de Amoedo com Vieira Souto. Em 1975,
cliquei as 36 fotografias de um filme, mas só descobri que aquilo podia tornar-se um trabalho em 1982,
quando ampliei as sete fotos finais. Aí descobri que havia em uma delas um grupo de capoeiristas
que conheci em 1978, quando eu era capoeirista amador. Portanto, conheci os caras em 1978, os
fotografei em 1975, mas só fui descobrir isso em 1982! E tem mais, eram capoeiristas, não eram
jogadores de pôquer. Nada mais móvel do que um capoeirista. Em 1990, quando estava na Sicília, perdi
o negativo original, que havia feito a partir de fotomontagens manuais, construídas com tesoura e cola.
Os laboratoristas sicilianos, quando ampliaram as fotos, perderam justamente a tira do negativo com
os capoeiristas, e tive que fazer novo negativo a partir de uma reprodução. No lugar de minha tira de
negativos veio outra, com imagens de um aniversário de crianças. Crianças que, na minha cabeça, só
podiam ser sicilianas, naturalmente. Então vim para o Brasil e mostrei ao Zé Roberto, que me ajudou com
as ampliações em 1982, e ele disse: “Que crianças sicilianas qual nada, este aqui é o João, meu filho!”
E eu: “Zé, como é que um negativo da festa do teu filho em Teresópolis foi parar na Sicília?” Claro que
pode vir algum gaiato e explicar que a tira sempre esteve dentro do envelope. Mas eu não quero ouvir
isso, sabe, não quero ouvir. Que tipo de pergunta é essa? Essa é daquelas perguntas que não são para ser
feitas. Perguntas que, se fossem ouvidas, poderiam vir a comprometer até o mito verossímil da Atlântida,
que inaugura toda a cosmologia do Platão, a criação do mundo, o Universo. É como na Utopia, de
Thomas More. Alguém está descrevendo aquele lugar, aquela agricultura, aquela economia saudável e
tudo o mais, e aí vem um cara e pergunta: “Existe mesmo esse lugar?” Um outro alguém ao lado tem um
ruidoso acesso de tosse, de modo que a pergunta não é ouvida. Sempre que a pergunta é feita, alguém
tosse e não se ouve a pergunta... O curioso é que Thomas More admite e inclui o risco da pergunta, isto
é, a pergunta pode vir a ser feita; portanto é preciso cuidado com as proposições, assim como é preciso
cuidar dos ruídos que as cercam. Cuidar da tosse, da rouquidão, por assim dizer, junto com a bela voz.
TR Você usa frequentemente um discurso pseudocientífico, acho que como uma espécie de paródia.
Você traz uma diversão que é, talvez, o que faz o Investigador entrar em férias.
MM O Investigador está em férias; em férias porque ele/eu precisa ser, precisa dar uma de Artista. Na
verdade, são uma mesma coisa, em diferentes personificações. Quando comecei a pensar no vídeo que
faz parte da coleção do RioArte [As Férias do Investigador, direção Arthur Omar, 1994], eu seria um ator
travestido ora em Madame, ora em Artista, ora em Investigador, que é uma triangulação perfeita, um
personagem não existe sem o outro. Quando está investigando, o Investigador está desenhando, sua
demonstração é toda desenhada com cores, formas e tudo mais. Quando ele se retira em férias entra
em cena o Artista, no mesmo lugar em que a investigação se passou, à beira da piscina de Madame.
São coisas concorrentes, são falas, investimentos concorrentes para demonstrar uma situação sem saída,
sem solução, porque em As Férias do Investigador a pergunta crucial, “Afinal, quem é a vítima?” não é
respondida (mas é formulada, sem acessos de tosse). Na exposição [Galeria Cesar Aché, Rio, 1981], se
você conhece As Férias do Investigador, a resposta que ele consegue decifrar é: “O artista matou a vítima
Screwpintura, de Somas e DesarranjosRio de Janeiro 1985
Edifício Galaxie (sobre a mobilidade)7 fotografias, fotomontagens, vídeo detalhe, 1982
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201118 19ENTREVISTA | MILTON MACHADO
afogando-a na piscina e escondeu o corpo no jardim das hortênsias, à tardinha.” A tardinha era 5:30h:
a hora em que o Investigador entra em férias e que eu chegava à galeria, recebia o público e abria os
livros desenhados para as pessoas que estavam vendo desenhos na parede. Havia uma troca o tempo
todo de identidades, de personagens, de suportes, de posições. Eu no centro, como Artista Madame
Investigador, mas o meio mesmo era a imagem, o desenho e as investigações. A vítima do trabalho do
trabalho pode ser o trabalho.
TR O que são esses livros?
MM São desenhos feitos em folhas superpostas, como cadernos que você folheia de certa forma e
vão acontecendo coisas curiosas, uma espécie de quebra-cabeça vertical. O que eu fazia era submeter
os objetos pintados – que
nem eram pintados, eram
desenhos em pastel seco
sobre papel – a testes de
desconstrução. Por exemplo,
eu desenhava um original,
feito com 36 gestos, e ao
mesmo tempo a anotação
de sua fatura gesto a
gesto, de modo que um
primeiro desenho contém o
primeiro gesto, o segundo
contém o primeiro mais o
segundo gesto e assim por
diante. O trigésimo sexto
desenho é semelhante ao
original. Rauschenberg faz
um pouco essa provocação
com o expressionismo
abstrato, com pinturas em
que ele repete uma imagem
à semelhança de outra, em
princípio espontânea. O que
de certa forma concluí com
As Férias do Investigador é
que a imagem não precisa
da integridade, de uma unidade de pintura; que a mobilidade, as transações, os contrabandos, as trocas
de posição e outras molecagens que usei para desconstruir ou construir aqueles objetos não conseguiam
comprometer a potência da imagem. Acho que o que garante a permanência da pintura é o interesse
na imagem, mas sem privilégios, porque há o cinema, há o desenho, a fotografia e todos os meios pelos
quais as imagens circulam sem cerimônia. A pintura não está mais discutindo pintura em sua eventual
autonomia, e isso vale para a fotografia, o cinema ou qualquer outro meio. São, propriamente, meios.
Em relação ao discurso pseudocientífico, ou à paródia, gostaria de lembrar o problema da bola de
pingue-pongue que atravessa a parede de concreto. Claro que não é possível isso acontecer. Mas não
me interessa saber se é possível; quero saber se é provável. O professor que propôs esse problema de
física teórica para meus amigos que estudavam engenharia no IME quando eu estudava na PUC não
era nenhum maluco de propor isso, pois a premissa é uma só: isso não é possível. O enunciado pedia
que se calculasse o número que expressaria a probabilidade de uma bola de pingue-pongue atravessar
uma parede de concreto. A resposta objetiva também é uma só: (1x10)–n quando n tende ao infinito.
Não é 0, até segunda ordem. O estudante preguiçoso que respondesse “zero” se daria mal, porque o
professor retrucaria: você não enfrentou o problema, não considerou o problema como problema. Não
estou querendo discutir possibilidades, pois já sabemos que, na prática, isso não é possível. Eu quero
que você prove que, em teoria, a bola pode atravessar, nem que para isso você tenha que recorrer a uma
física alternativa, a uma patafísica. O que estou querendo discutir não é da ordem das possibilidades,
mas das probabilidades.
CB O problema é ser verossímil... O espírito do seu trabalho é essencialmente antitécnico, então a
resposta só responde ali, depois ela…
MM É uma resposta em andamento, na verdade é uma demonstração em progresso. Se eu estiver
correto em meu entendimento de Montaigne, é possível provar que esses óculos, que esse objeto que
tenho na mão é um ovo amarelo. É claro que não é, se você estiver falando em nome da claridade, da
luz, mas o que eu quero que você veja é a sombra, o monstro, a máscara, o rabo quente da Mona Lisa.
Como fazer isso? Você cria um intervalo, abre parênteses, e bota ali dentro o que você bem entender
porque o trabalho, a demonstração é sua. Até segunda ordem, porque depois vêm os julgamentos.
História do Futuro é julgado em Gibellina, embora aquelas pessoas não tenham a menor ideia de que isso
aconteceu lá. Se a ciência dá conta disso ou não, a ciência teórica pelo menos, eu não sei. O importante
é que certas circunstâncias nos levam a fazer coisas alternativas, muitas vezes incertas. Estou sempre
mudando de uma situação para outra.
TR Você chama isso de negociar uma posição…o Nômade, o Módulo de Destruição…
MM O personagem Nômade é mínimo, infinitesimal, é minúscula a escala dele, só que esse Nômade, em
algumas situações, como na instalação da 29a Bienal e em Gibellina, precisa crescer e tomar o aspecto
de uma esfera de mármore, como representação. Mas essas são representações tridimensionais. Nos
desenhos de História do Futuro o Nômade não aparece, é apenas aludido. Já o Módulo de Destruição é
um imenso cubo. A representação gráfica de alguns elementos desse trabalho é uma questão curiosa. As Férias do Investigador, 1981capa da revista Módulo, Rio de Janeiro 1982foto de Sebastião Barbosa
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201120 21ENTREVISTA | MILTON MACHADO
Como representar, por exemplo, as Cidades Mais-que-Perfeitas, já que não dispomos de modelos
para isso? Um modo imediato seria partir das cidades imperfeitas, das cidades familiares pelas quais
circulamos, dos marcos culturais que conhecemos. Sendo esse o caso, talvez a melhor representação
fosse um espelho, em nome das semelhanças, do mimetismo. A negociação de posições entre o Nômade
e o Módulo de Destruição é a negociação de suas diferenças. Isso é o que promove o movimento.
TR Você situa o Nômade como artista, e é ele que trapaceia, ele que de alguma forma introduz uma
presença, ele é um intruso que consegue driblar alguma coisa, transformar alguma coisa nesse esquema
tão perfeito.
MM Nos textos de HF, o Nômade é referido como a “figura emblemática do Homem criador”. Na
verdade o Nômade é um aplicador de cosquinhas, que faz cócegas no Módulo de Destruição, de modo
a provocar sua agitação. São várias as leituras, algumas anedóticas. É um mecanismo, um relógio, um
jogo perfeito, um videogame, uma perseguição Tom & Jerry. Lembro-me, na defesa da tese de mestrado,
de alguém perguntar: mas por que o Nômade só pode mudar de cidades passando pela Posição Alfa?
Dei uma explicação, digamos, técnica, mas que não vem ao caso agora. Eu também poderia ter dito
que é assim porque sou deus nesse trabalho. O que importa é que o Nômade vai ao encontro do
Módulo de Destruição, que ocupa justamente a Posição Alfa. Pois é aí que vão se dar as negociações de
posição. Não é a Posição Alfa que é negociada, e sim a Cidade Mais-que-Perfeita contígua que vai viver
um Ciclo de Vida. Para passar a essa nova cidade e continuar vivendo, para adquirir a tal “forma móvel
de eternidade”, o Nômade terá que passar por dentro do Módulo de Destruição. Mas quem disse que
o Módulo quer? Há, no trabalho, uma leitura possível desse encontro, às vezes bélico, às vezes lúdico,
como um intercurso amoroso, sexual. Platão se refere em determinado texto à transação entre a Alma do
Mundo e a Teoria, com a ideia de bom e de belo, como um encontro sexual, do qual nascem filhos: os
discursos, as obras, a política. Na verdade, uma grande e banal proposição de História do Futuro é que
as diferenças produzem o movimento, do qual o Nômade é causa ativa.
TR Essa proposta é uma leitura alegórica da arte numa dimensão política de negociação das diferenças,
trapaças, jogos, contrabando.
CB O atraso que os parênteses determinam é um atraso da ordem da negociação e é um atraso temporal
também, a analogia vem depois, o mundo está atrasado.
MM Há a formação de uma cadeia, um adiamento permanente. A potência política dos trabalhos,
sejam eles quais forem, está nessa possibilidade de ocupar vários espaços, de migrar de uma cidade para
outra, de buscar e atravessar módulos de destruição. Se não fosse assim, não teríamos mais arte, a
arte teria seu universo específico e delimitado. Ninguém teria mais paciência para a arte, porque se a arte
não tivesse dado essa escapadela com a bunda quente que Duchamp diz que ela tem, se não tivesse se
travestido em outra coisa que não arte e saído por aí rebolando, o que mais poderíamos estar fazendo
em seu nome? Rezar?
Marina Menezes Você poderia falar sobre sua tese? Os parênteses no título implicam exterioridade?
MM O título da tese é After History of the Future, que em português é mais complicado porque fica
Depois de História do Futuro, como Art After Philosophy, que foi traduzido como Arte Depois da Filosofia,
quando talvez fosse mais correto Arte Segundo a Filosofia. Mas não me incomoda tanto a tradução
Depois de História do Futuro, que é como traduzo mesmo. No original, chama-se After History of the
Future: (art) and its exteriority. Isso parte de uma constatação muito confortadora para mim, de que a
arte não existe. Mas não é como diz o Gombrich, que diz que arte não existe, o que existe são os artistas.
Digo de outra maneira: digo que nada existe já como arte, nada acontece como arte, assim como nada
acontece como história. Se você não escrever, e se não escrever bem, você não vai conseguir colocar
a arte nos lugares em que as coisas bem escritas estão bem escritas e fazem história, e aí nada vai virar
arte. Estou falando de julgamentos, do trabalho do trabalho. E estou, de certo modo, apelando para a
lógica do evento.
MMz Os parênteses, a definição, como uma forma de delimitar determinado sentido.
MM Exatamente. Assim como nada acontece como história, nada acontece como arte. Arte não existe
senão como negociação de sua exterioridade. Eu apelo para Heidegger, uma argumentação dele que
já está manjada, a questão do Lichtung, a clareira, em A Origem da Obra de Arte. Eu gosto muito
disso, de sua ideia de uma fissura constituinte. A clareira é uma fissura, um vazio, que apesar ou por
conta de não ter árvores, você percebe, justamente pela claridade, que aquilo é uma floresta mais
facilmente do que se você estiver em uma floresta densa, porque aí você percebe a relação da floresta
com o que está fora. A clareira é a sombra da floresta. Negociação de posições, como em História do
Futuro. Essa sua exterioridade é o que o trabalho tem de mais potente, porque é a partir desse potencial
que está aí dentro, latente, que você vai produzir os julgamentos capazes de levar à ideia de que aquilo
seja arte. Pensar a lógica do evento me ajuda a lidar com isso muito bem. Infelizmente, a palavra em
português foi traduzida como acontecimento, que me parece uma tradução equivocada, pois o evento
seria justamente o contrário do acontecimento, evento é aquilo que só acontece eventualmente. Chama-
se événement, event e traduz-se como acontecimento, ou seja, o caráter eventual da ocorrência a
tradução joga fora. O evento é uma coisa inusitada, tão inesperada que quebra todas as expectativas;
você tem que reorganizar, expandir, reagrupar, renomear as coisas para poder caber aquilo, aquele
evento, ou seja, para que aquilo seja incorporado como história, como arte etc. E arte precisa dos
julgamentos; não adianta você botar um mictório lá no salão dos independentes porque mictório não
vira arte, assim como bolas de pingue-pongue não atravessam paredes. Fonte, o readymade, demorou
meses para ser visto e nem foi visto como Fonte nem como readymade; foi visto como fotografia,
correndo, portanto, o risco de ser visto como mictório. O trabalho ficou conhecido por meio de uma
foto de Stieglitz publicada numa revista, com a legenda: o trabalho de Marcel Duchamp recusado no
salão. E entrou para a história das artes visuais sem nunca ter sido visto, a não ser muito mais tarde,
em suas consagrações. Portanto, negociar uma posição não é brincadeira. Então, o que eu falo sobre
exterioridade é isso, é a negociação com o que não é arte que mostra a eventualidade, a probabilidade
de aquilo ser entendido como arte, discutido como arte, politizado como arte, porque muitas vezes você
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201122 23ENTREVISTA | MILTON MACHADO
coloca aquilo no universo da arte e o trabalho perde potência política. O trabalho do Ilya Kabakov, por
exemplo, incrivelmente político, é tão poético que, colocado em determinadas circunstâncias, poderia
virar um trabalho quase alegórico. Estou falando mais especificamente de um trabalho lindo no qual ele
pede a pessoas quaisquer que tenham ideias, boas ideias [The Palace of Projects, Roundhouse, Londres:
http://srg.cs.uiuc.edu/Palace/projectPages/palace.html]. Um motorista de táxi sugere: todos os mortos
deveriam ser ressuscitados. Ótima ideia! Outra: poderíamos ter uma escada individual que nos levasse,
cada um de nós – como fazemos com nossos orixás –, uma escada altíssima só minha para eu conversar
com o meu anjo da guarda, exclusivo e pessoal. Perigoso? Claro que não, o anjo da guarda protege. Era
maravilhosa a exposição. Exibicionalidade é uma ideia da Sonia Saltzstein que me parece importante.
Usei esse seu conceito em um texto que escrevi, exemplificando com o trabalho do Kabakov, como o
contrário da exibicionalidade. Simplificando, a exibicionalidade que, claro, é um neologismo, se refere a
trabalhos que se valem e dependem da condição de exibição. Nesse trabalho de Kabakov você se senta
no banco de trás e vê o artista na frente conversando com o motorista do táxi; você vê o processo, refaz
a história do processo. Vê da exposição para trás. Curioso que ele expõe isso na Roundhouse, que era
onde o bonde literalmente fazia a curva, em Londres, para voltar atrás. Ele construiu nesse lugar uma
espécie de espiral de madeira, bem tosca mas belíssima – tudo ali era tosco e belíssimo. Por exemplo,
os mortos ressuscitados saíam de uma caixa de papelão cortada com tesoura, totalmente mambembe,
cheia de terra preta com bonequinhos recortados em papel branco, mal enfiados, tortos, amassados.
Era tão rica aquela porcaria toda, aqueles trapos, aquelas bolas de isopor pintadas com guache de
papelaria... era absurdamente poético. Não havia nenhum aparato senão a própria linguagem. Fiquei
muito impressionado com o despojamento desses trabalhos, que contraponho à minha irritação atual,
que já vem de longa data, com trabalhos polidos. Tem-me irritado essa coisa reluzente, bem acabada, eu
não tenho mais muito tempo para gostar desse tipo de trabalho.
Módulo de Destruição na Posição Alfade História do Futuro, 1978–
escultura, detalhe da instalaçãoin Interventi, Museo Civico Gibellina 1990-91
Módulo de Destruição na Posição Alfade História do Futuro, 1978– escultura, detalhe da instalação29a Bienal de São Paulo, 2010
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201124 25ENTREVISTA | MILTON MACHADO
TR Você fala em História do Futuro das imperfeições que o trabalho vai adquirindo ao longo do processo:
as imperfeições, as diferenças em relação a si próprio. Pelo que entendi, a negociação tem a ver com
essas diferenças também, incorporadas.
MM Como eu disse, cada livro que leio, situações que eu vivo, como por exemplo o desafio de levantar
aquele cubo de duas toneladas na Bienal, faz surgir um monte de ideias novas. Depois, o cubo migrar para
o Sesc de Santos, onde se tornou algo totalmente diferente. Era o mesmo cubo, mas era absolutamente
outro; era o mesmo personagem, mas que mudou de cidade. Em Santos era uma situação peculiar,
o cubo ficou transparente. Na Bienal de São Paulo ele também era transparente, afinal era o mesmo
objeto, mas sobre um fundo branco, a coluna branca em forma de árvore de Niemeyer. Me lembro que
alguém até me advertiu: cuidado, porque você está instalando um canhão de luz direcionado para o
cubo, o que vai acabar criando uma projeção de sombras no pilar lá atrás. Exatamente, respondi; é por
isso mesmo que estou fazendo os caras se pendurarem perigosamente em andaimes, justamente para
obter esse efeito, para mostrar a sombra.
TR Mas você acha que, numa situação expositiva como a Bienal de São Paulo, o Módulo de Destruição
destruiu alguma coisa, ele agiu como um intruso?
MM Ainda está agindo. O fato de a escultura estar, não destruída, mas desconstruída na oficina de meu
serralheiro significa alguma coisa. O fato de eu ainda não ter conseguido doar o trabalho, primeiro para
algumas instituições paulistas, depois inscrevê-lo num edital pretendendo sua incorporação à coleção
de um museu carioca e meu projeto ser “inabilitado”, sob a alegação de que o orçamento não era
consistente com os termos do edital, para mim são atuações de algum módulo de destruição. O fato
de eu ter um monte de ferro empilhado numa serralheria quando aquilo não é um monte de ferro,
deve sinalizar que algum módulo está agindo. Não o meu, metafórico, simbólico, que também constrói
nos Ciclos de Construção, mas um outro, esse sim, intruso, que age por meio de ações destrutivas,
afirmações equivocadas de diferenças improdutivas, más negociações de posições mal ocupadas. Alguma
Cidade Mais-que-Perfeita está indo para o brejo, e algumas Cidades Imperfeitas estão lá buscando sua
perfeição. Uma forma de procurar a perfeição é recusar meu projeto, porque meus orçamentos não são
consistentes com editais perfeitos e porque meu cubo, diferente do motorista do Kabakov, não consegue
uma habilitação.
TR Você estava falando sobre o nômade que não é um artista.
MM Eu não preciso literalizar para demonstrar que as propostas audaciosas – ou pretensiosas – de
História do Futuro se reidentificam diariamente. É óbvio que aquilo tudo é um comentário com muito
respaldo no real; para você ver, eu mencionei o Nômade como personagem conceitual em 1978 e logo
em seguida, em 1980, Deleuze e Guattari escrevem seu Tratado da Nomadologia; em 97 Maffesoli
escreve Sobre o Nomadismo. Qualquer curador hoje fala em nomadismos, no artista em trânsito, nas
mobilidades. Eu não falo de um artista que pinta, de outro que faz escultura, afinal em HF o Nômade
é uma esfera. Mas, como disse antes, nas analogias de HF, o Nômade é apresentado como “figura
emblemática do Homem criador”. Há, nos textos do trabalho, alguma referência a Beuys. Sem querer me
alinhar a Beuys, que embora seja um artista incrível tem um quê de messianismo, aquela coisa romântica
alemã, voos e quedas da Luftwaffe, gordura e cera demais, que me importunam um pouco. Pode ser
verdadeiro que “todo homem é um artista”. Eu ando lendo algo cujo subtítulo é “todo artista é um
artista”. Melhor assim, todo artista é um artista, uma vez que todo homem é um homem. O Nômade é
uma esfera, mas nem toda esfera é um nômade.
TR Mas o Homem Muito Abrangente é um nômade, o Nômade é um homem muito abrangente.
MM Não, veja, o Nômade é uma esfera. O Homem Muito Abrangente não é feito de fatos, ele também
não existe, é outro personagem conceitual. A frase escrita na parede pelo assistente do atirador de facas,
que na performance sou eu mesmo, fornece o aporte teórico: “Um homem tão abrangente que ocupasse
o mundo todo menos o próprio espaço de seu corpo poderia sair-se muito bem como assistente de um
mau atirador de facas”. É um enigma, de certa forma. Outro dia eu me peguei escrevendo algo assim: “a
verdade é uma resposta a perguntas que não admitem respostas porque só admitem a verdade”. Escrevi
esse negócio e é isso mesmo, tem aí um jogo de palavras que cria uma situação meio tongue in cheek.
Homem Muito Abrangenteperformance, instalação, detalheInstituto Tomie Ohtake, São Paulo 2002
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201126 27ENTREVISTA | MILTON MACHADO
Então é preciso ir costurando a coisa aos pouquinhos. O mau atirador de facas vai acertar todas as facas
no interior da figura. No texto de Homem Muito Abrangente, cito o personagem de Daniel Auteil no
filme A mulher do atirador de facas, que diz: o importante não é o atirador, o importante é o alvo. No
caso do meu atirador de facas, ele faz o papel de um mau atirador – não no real, porque ele é um ótimo
profissional; ele é um mau atirador porque “erra” tudo, cravando as facas todas dentro da figura. Num
regime cotidiano ele teria matado sua pobre assistente várias vezes. Nesse caso, não há problema em
errar, porque o Homem Muito Abrangente não ocupa este espaço, o espaço de seu corpo, o espaço que
lhe é próprio. Antes da performance, escrevo a palavra PELE em todos os lugares que consigo alcançar,
até na própria câmera, no vídeo, nas paredes, no chão, no mundo todo. O título do texto, aliás, é Este
corpo é todo poros.
TR Ele é muito abrangente, mas ele não está dentro dele mesmo, ele está fora.
MM É, ele tem esse dilema da interioridade e da exterioridade porque é um híbrido, um impuro, porque
não tem nada de próprio; e, no entanto, ele é pura exterioridade. Um sujeito que é pura relação.
CB Nessa relação com os personagens conceituais, eu tenho a sensação de que é a primeira vez que
o corpo é implicado diretamente no seu trabalho porque o tempo todo ele está sub-reptício nos
personagens, na questão do movimento, no diálogo. Aí tem efetivamente o atirador.
MM Na verdade, foi a primeira e única performance que fiz em minha vida. Homem Muito Abrangente
é um desenho de 1978, em aquarela e nanquim, que originou as performances de 2002, 2003 e 2006.
Desenho, aliás, que deixei inacabado.
CB Todos os seus trabalhos potencialmente são alcance, se modulam e podem estar aqui, podem estar
no futuro.
MM Eu gostaria muito que isso fosse verdade.
CB Basta calcular quanto demora a probabilidade de viver para sempre.
MM A tal “forma móvel de eternidade”? Mas, enfim, quanto ao desenho de 1978, não terminei porque
perdi o saco de desenhar faquinha com aquarela e o expus todas as vezes que fiz a performance. Em
2002 veio o convite do Instituto Tomie Ohtake, para participar de uma exposição chamada Territórios,
com curadoria de Agnaldo Farias. Eu sempre estive a fim de realizar esse trabalho, e arrisquei. Você
pode imaginar o terror que senti, não só porque eu estava pela primeira vez fazendo uma performance,
mas por ter que contar com a boa pontaria de um “mau” atirador de facas em um lugar que não era
propriamente o meu circo. Mas o pânico do meu bom atirador, que certamente nunca ouviu falar de
Vitruvio nem de Leonardo, era ainda maior.
TR Um atirador de facas que é o Módulo de Destruição.
MM É o que lhe digo, é possível fazer articulações, que me surpreendem o tempo todo. Por exemplo, um
trabalho anterior a História do Futuro é uma série de oito desenhos chamada Poder, que é um prenúncio,
uma espécie de esboço de História do Futuro. Mas se eu vou lá atrás e vejo uma série ainda mais antiga
como A Invasão, que vira A Evasão, que vira ao contrário, pelo lado avesso; ou se vejo uma estação
que vira trem, um avião que vira pipa, um jornaleiro que vira bicicleta, um 1 que vira 7 [série CQD,
anos 70], caramba! É tudo a mesma coisa, e tudo parece começar com O Princípio do Fim, que é esse
tal desenho que o Gilberto comprou e que foi capa de A Esperança no Porvir. As esperanças no porvir
produzem histórias do futuro. Chamava-se A Esperança no Porvir, e o que aconteceu, naquele presente,
com o esperançoso no porvir? Fui preso! Fiz a revista e fui preso, preso por agentes da elite da repressão
brasileira, o SIEX, Serviço de Informação do Exército. Não apenas por conta do conteúdo subversivo da
revista, tudo ali era subversivo, era uma revista clandestina, udigrudi, hippie, da contracultura, mas isso
só ganhou importância depois. O que me levou mais imediatamente à prisão foi eu ter invadido, sem
querer e sem saber, a casa do novo presidente da República, Geisel, que antes de ir para Brasília ocupou
uma casa no Jardim Botânico, onde eu estava passeando e fotografando. Nas definições de História
do Futuro, o Nômade é descrito como um passer-by, um passante, que tem dificuldade em reconhecer
Trem analisadodesenho, série CQD1973
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limites e fronteiras, mas não tem dúvidas quando está sendo alvejado, quando invade o pomar do
proprietário da terra para colher maçãs e o sujeito atira nele. Eu nunca havia pensado nisso, nessa nova
articulação, pensei agora: eu fiz A Esperança no Porvir e fui alvejado porque invadi a casa do presidente
da República.
LF Para pegar maçã.
MM Para pegar maçã, ou abacaxi, que seja, tudo é muito coerente. Então, eu não preciso me preocupar
em dar coerência, porque o mundo é tão absurdo, tão coerentemente nonsensical, as coisas são tão
inacreditavelmente eventuais e se demonstram o tempo todo, como CQDs que são demonstrações do
absurdo pelo absurdo. Você pode, na matemática, fazer demonstrações por absurdo, só que no caso
essas demonstrações por absurdo demonstram justa e exclusivamente o absurdo.
CB Há a expressão latina reductio ad absurdum; ao absurdo, mas, no seu caso, nada de redução, mas
diferença... não por redução mas por diferença, digamos assim.
MM Eu não sei, algumas vezes é preciso reduzir. Uma coisa até da guerra, fique pequenininho, esconda-
se, reduza-se a sua insignificância, reduza a coisa à insignificância. Se você pensar no readymade, acho
que traduz bem, se você reduzir totalmente a fala própria do mictório você não vai mais ter mictório e
você não vai ter uma fonte, porque uma fonte é um emissor e o mictório é um receptor, ele recebe o
seu xixi. Se você retirar, se você silenciar, reduzir totalmente a fala, a vibração do mictório ou da roda de
bicicleta, você não vai ter possibilidade alguma, quando girar lá os potenciômetros de seus aparelhos
amplificadores, de ouvir os ruídos da significação, porque as coisas adquirem significado pela produção
de ruídos, não pela produção dos belos sons, das eufonias. É como diz o Derrida, você não pode estar
sempre na transgressão, é preciso que aquilo que transgride venha a ser incorporado. É a questão
da tradição, você primeiro trai, de tradire, depois traduz, de tradure, e a coisa ordinária incorpora o
extraordinário. Se a coisa não produz ruído, se a pintura do Matisse da mulher com pincelada verde
não fosse estranhada de forma tão absurda como uma pintura absurda, se o mictório não tivesse...
aliás, repare como era sortudo Marcel Duchamp, o cara foi recusado em todos os salões, com o Nu,
com Fonte.... Então, são trabalhos que produzem atrito, que produzem estranhamento, mais uma vez
a questão da lógica do evento, algo que põe sob suspeita todas as teleologias, todos os projetos, todas
as academias, todas as lógicas sistemáticas, que faz Descartes se retirar para trazer de volta Montaigne,
que nos faz pensar menos em possibilidades e mais em probabilidades. Assim, a redução, o nonsense,
a insignificância, é uma arma importantíssima para você criar o significado, para você silenciar não
totalmente, mas reduzir o barulho do apartamento ao hmmm da geladeira, de modo que você possa
ouvir o silêncio e, quem sabe, dormir em paz.
TR Tem outra operação a que você alude, acho que para falar desse estranhamento, esse atrito no
sentido, que é a diáfora. Qual é esse trabalho?
MM Na verdade é uma sequência de três trabalhos. Diáfora é uma palavra... aliás, em nossas conversas
com Rodolfo Caesar sobre Raymond Roussel lembramos que ele usava muitas diáforas, palíndromos,
espelhamentos. Diáfora é quando você usa o mesmo vocábulo com significados diferentes, portanto
recorrendo a certo nonsense. Ou à relatividade, à instabilidade do sentido. Não é uma distorção, é
uma torção, uma alteração. Isso está em Mallarmé, nos formalistas russos, no Marinneti, nos poemas
dadaístas, enfim. Essa procura da materialidade da palavra, do vocábulo, da sílaba e do espaço da página,
esse tipo de coisa. Eu fiz essa série de trabalhos, o primeiro um objetinho que se perdeu em algum lugar
deste mundo, de que eu gostava muito porque ele era manual, como um brinquedo. Depois, fiz outra
versão em Roma, daí o exemplo
de diáfora em italiano que é Il
sogno della mia vita è perdere la
vita, que se pode traduzir como o
sonho da minha vida é perder a
vida, ou como o sonho da minha
vida é perder a cintura. No caso,
são objetos que apresentam
situações de similaridade, por
exemplo, quadrados que, de
acordo com as circunstâncias,
vibram diferentemente enquanto
ocupam espaços diferentes. O
quadrado, compreendido como
signo, migra, no trabalho de
Roma por exemplo, do formato
das cerâmicas do chão para os
quadrados que eu delimito com
pregos numa placa de metal
perfurada, que ora preenchem ora
não preenchem as perfurações,
dos buracos vazios aos cheios,
de uma placa pendurada a uma
outra apoiada; ou seja, posições
negociadas, diferenças que criam
esse atrito que você talvez esteja
chamando de ruidoso e que...
Rodolfo Caesar Bem, eu poderia
só adicionar algum, somar uma
subtração para você. Você não
contou, talvez esqueceu, de
que uma vez lhe roubaram uma
Diáforachapas perfuradas, pregosSala 1, Roma, 1990
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201130 31ENTREVISTA | MILTON MACHADO
camisa no estacionamento do Sérgio Porto quando íamos fazer o seu Dueto 1 + I [Dueto 1 + I, para
executantes extremamente atentos e isolados um do outro, desenho/partitura de 1978, interpretado por
Rodolfo Caesar e Vania Dantas Leite, 2002].
MM É verdade, mas está desenhado, faz parte da série dos Atentados, como aquele outro, do roubo
das roupas do desenho. 1 atentado + I atentado, e assim, extremamente atentos, vamos seguindo as
partituras.
TR Será que a sua tradução
para evento não é atentado?
MM De certa forma sim,
são atentados, às vezes ao
pudor (rs).
TR Às vezes à lógica, às vezes
à ordem.
Guilherme Bueno Quando
lido com o universo
enciclopédico dos seus
trabalhos, penso se ele não
participa ainda de uma
condição “moderna” da pós-
modernidade. Dito de outra
maneira: é uma definição
de pós-modernidade que,
como o termo assinala, ainda
não descarta seu “índice”
moderno. Em 21 Formas de
Amnésia notei ainda uma
curiosidade que me lembrou
outro projeto seu, O Paraíso
Perdido de Milton M...
achado. Há um dos desenhos,
Assinatura verde de um artista
maduro, que tem um corte
semelhante àquele imaginado
no Paraíso... Para retomar esta
fronteira moderno/pós-moderno que às vezes sinto nos trabalhos, ela não assume ou parte do problema
kosuthiano da definição da arte, só que, ao invés de uma definição universal e especulativa, uma outra
pessoal, aquela justamente da passagem da Arte para a /arte/? Não seria também essa responsabilidade
que nos deixa tão perplexos?
MM Enciclopédico? E mesmo assim pós-moderno? Bem, Diderot pesquisou as propriedades da involuta
do círculo, caso especial das espirais, curvas descritas em Dois burros girando em torno de dois postes
aos quais estão amarrados... Por outro lado, sua noção de máquinas situacionais inspirou Lyotard, que
Falo de Cézannedesenho, colagemde 21 Formas de Amnésia, detalhe1988-89
21 Formas de Amnésiainstalação, desenho, colagens1988-89
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201132 33ENTREVISTA | MILTON MACHADO
discorre sobre a condição pós-moderna, a propor a sátira como a mais eficaz estratégia contemporânea.
Pois as máquinas situacionais de Diderot, assim como a sátira de Lyotard, partem do princípio de que a
natureza nos mostra não apenas uma mas muitas e diferentes coisas e de muitas e diferentes maneiras.
De modo que os artistas, diz Lyotard, evitam os diagnósticos, os pronunciamentos definitivos sobre a
natureza do ser. Isso vale para a arte. E o que fazem os artistas, então? Ensaiam! O ser ou os seres, e
isso vale para a arte, jamais se revelam, e sim apresentam pequenos universos, micrologias, a cada vez, a
cada trabalho. Micrologias con-correntes, que babam e bufam de inveja umas das outras, diz ele. Esses
ensaios – incompletos, insuficientes, fissurados – constituem a sátira. E a condição para seu acionamento
e continuidade é a experimentação. A experimentação é separada da experiência por uma distância
desregulamentar. Isso parece diferir da ideia kosuthiana de que a função da arte seria a de questionar
a natureza da arte, e que a arte agiria via proposições analíticas, exclusivamente. Essa noção tem um
quê de diagnóstico, de pronunciamento modelar, sobre o ser da arte. A mim – e isso procuro sugerir
por meio de meus ensaios experimentais, ensaios satíricos de um Investigador em Férias que só perfaz
horas extras – interessa mais o excesso de resultados e de respostas do que as justas medidas. Interessa
mais o deslocamento da experiência e dos lugares da experiência do que a comunicação imediata, mais
a ultrapassagem de fronteiras e limites do que as delimitações de território. Interessa mais o exercício
experimental da imaginação (ou da liberdade, como ensaiou Mário Pedrosa) do que a busca de coerência
das proposições analíticas. Interessa mais a munição amnésia1 do que a persistência da memória.
Interessa tanto a assinatura verde quanto o artista maduro.
TR Você concorda com a afirmativa de Joseph Kosuth de que a arte teria tomado para si, na
contemporaneidade, as questões sobre o homem e o mundo nas quais a filosofia teria fracassado?
MM Ever tried. Ever failed. No matter. Try Again. Fail again. Fail better: sátira, com jeito de Samuel
Beckett. Arthur Danto descreve as primeiras décadas do século 20 como a “era dos manifestos”, mas
não inclui Art After Philosophy, que para mim seria o último dos manifestos. Kosuth acredita piamente
em arte, acredita que exista uma função para a arte, qual seja questionar a (verdadeira?) natureza da
arte. Ora, não existe tal coisa; a natureza da arte é justamente não ser verdadeira, desde o mimetismo
cavernoso de Platão, passando pela falsificação da natureza no Renascimento, pela imitatio e pela morte
de Deus, pela mentira nobre em Nietzsche, pela crise da representação, por Benjamin e suas auras
transferidas, por Malraux e seu museu imaginário, por Beuys e seus mitos de origem, por Duchamp
e sua fonte de gerar securas, chegando a nós como uma grande ficção em constante revisão de sua
pretensa identidade de grande narrativa. Arte e filosofia caminham juntas, não necessariamente numa
mesma direção, daí estarem sujeitas a esticamentos, estiramentos, distensões, fraturas mesmo. Mas têm
em comum a característica de serem avessas às aplicações. A filosofia de Kosuth me parece por demais
aplicada, tal qual um manifesto – um aplicativo, propriamente. A arte de Kosuth também é aplicada, mas
me parece, ao contrário do texto e apesar de sua seriedade, uma arte que ri às gargalhadas de si mesma,
de seu fracasso na busca da tal natureza da arte, de suas risíveis tautologias, como no caso de One and
Three Chairs. Gosto bastante de seu trabalho, e a leitura de seu texto é fundamental; foi fundamental
para nós traduzi-lo, cultivá-lo e discuti-lo nos anos 70.
CB A pergunta do Guilherme diz respeito um pouco a sua relação com história, porque faz referência à
história moderna e pós-moderna, depois ele cita trabalhos específicos, ele faz essa pergunta referenciando
O paraíso perdido de Milton M achado e Assinatura verde de um artista maduro.
MM É outra coincidência divertida, quem sabe outra diáfora. Um cara chamado Milton escreve O Paraíso
Perdido, séculos depois vem outro Milton, chamado Milton M achado (rs...), ora, tem que fazer esse
trabalho! Esse é um trabalho que sempre quis, mas nunca fiz.
RC Tem algo também a ver com o corpo, o Cezar até te fez uma pergunta sobre o corpo e eu acho que
aí já tem a coisa corporal no desenho, no desenhar, aliás, muito evidente nesses desenhos recentes que
você tem feito.
Dois burros girando em torno de dois postes aos quais estão amar-radosperseguindo um pássaro que voa das mãos de Denis Diderot (Ceci n’est pas un conte)livros artesanais, madeira de balsa, desenho técnico, 1986foto de José Roberto Lobato
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201134 35ENTREVISTA | MILTON MACHADO
MM Eu tenho que fazer este trabalho, O Paraíso Perdido de Milton M achado. Quase aconteceu uma
vez, a partir de um convite de Agnaldo Farias para fazer uma exposição no Instituto Tomie Ohtake
paralela a A Bigger Splash, uma coletiva de arte britânica na OCA, mas que por algum motivo acabou
não acontecendo. Era um espaço complicado, uma sala muito comprida, alta e estreita, mas muito
conveniente para o trabalho. John Milton era cego, e O Paraíso Perdido foi ditado por ele para uma
de suas filhas. Daí que a única iluminação da sala seria por meio de dois lampiões a gás, colocados no
chão, sob as duas iniciais M, uma de cada lado da sala. Seriam a luz dos olhos do poeta. De um lado,
a frase O PARAISO PERDIDO DE MILTON; do outro, na parede em frente, apenas a letra M. O resto, a
palavra ACHADO, seria depositada em Londres, aos pés da tumba e da estátua de John Milton, que está
enterrado em uma igreja do Barbican Centre, onde, por outra coincidência, já expus, uma individual em
2000. As letras de ACHADO, assim como as demais, seriam confeccionadas em latão polido, dessas de
escrever nomes de edifícios. Uma câmera de vídeo fixa sobre essa palavra transmitiria sua imagem, assim
como a do poeta, diretamente de Londres para o espaço da exposição, aqui no Brasil. Se alguém aí do
paraíso estiver ouvindo e quiser patrocinar...
Sobre Assinatura verde de um artista maduro, é uma das colagens de 21 Formas de Amnésia, feitas
com fragmentos de um desenho que cortei em 1.750 quadrados de 1cm de lado. No caso, são quatro
quadradinhos, com partes de minha assinatura. O Guilherme, com seu olho enciclopédico, indicou algo
que nunca percebi; que algo semelhante aconteceria em Paraíso Perdido..., isto é, a inicial M isolada de
ACHADO pelo corte. A assinatura verde ficaria por conta da cor de fundo, verde para um artista, quem
sabe, M ADURO.
RC Quem o conhece pessoalmente sabe o valor que você dá às analogias, aos jogos de palavras e
entre imagens, às relações lúdicas e inicialmente desinteressadas mas que sempre adquirem sentidos.
Mas há também em sua arte o lado mais selvagem, vernacular, paisano, que se percebe no abrangente
aproveitamento de trouvailles. Seus desenhos parecem resultar de um processo no qual você, de lápis
ou caneta entre os dedos, às vezes talvez meio embalado pelo ritmo de alguma música, ou pelo som
da ponta no papel, vai fabricando linhas que de repente – ou mais lentamente – transformam-se em
pequenas células esperando desenvolvimento. A improvisação põe em jogo um erotismo meio especial
entre os corpos, excitando desde a pele mais fina do tímpano até os movimentos corporais. Não é por
acaso que a improvisação teve grande impulso na escrita automática surrealista, movimento do qual
eu considero você fiel e psicodélico leitor. Por que, então, você subestima o valor desse trabalho? Seria
por conta de uma atenção às contingências do mercado? O conceito de obra/objeto é determinante no
processo de avaliação?
MM Não sei se sou propriamente um fiel leitor da escrita automática surrealista, que já me fascinou mais
na juventude, assim como o psicodelismo; mas desse não nos livramos nunca, uma vez intensamente
experimentado e bem vivido. Sou muito chegado às improvisações, mas como músico, em minhas
aventuras jazzísticas ao violão. Mas na produção de arte costumo trabalhar por partitura, ainda que
elas possam surgir depois da execução, como notações do improviso. Geralmente são séries, como
(1=n) um intervalo, Mundo Novo, Somas e Desarranjos, As Férias do Investigador, História do Futuro,
que, mais do que títulos temáticos e de exposições, são demonstrações de alguma ideia subjacente.
De uma matemática esquerda, gauche, naturalmente, daí a referência a um “arquiteto sem medidas”.
Os desenhos a que se refere, e sei que você tem em mente os mais recentes, anacronicamente a bico
de pena sobre papel, são de certo modo improvisações. Nisso alinham-se, pelo menos por enquanto,
com trabalhos que chamo de “vira-latas”, por seu caráter marginal às séries mais sistemáticas. O fato
de serem vira-latas não impede que sejam “fora de série”, isto é, que tenham suas qualidades, que
uivem em alto e bom som em noites de lua cheia. Na verdade, estou fascinado por eles, de um modo,
digamos, quase psicodélico. Arrisco comentar que não os considero arte, e sim desenhos. Não os
subestimo, pelo contrário. Apenas reservo a eles a oportunidade, antes de se tornar arte, de ser “o
que são”. Arte implica negociações de seus objetos com “sua exterioridade”. Esses desenhos, mas essa
talvez seja uma característica própria do desenho, são prenhes de interioridade, com vocação de diário,
de escritura, de anotação, de monólogo ensimesmado. Talvez façam boa companhia a meus poemas,
outra forma de improvisação reclusa com vocação confessional. Usando os termos de sua pergunta,
seriam trabalhos com alto valor de uso, aguardando outras valorações que possam resultar de trocas
de mercado, de outros julgamentos. Seriam, não ainda obra, mas canteiros, construções, trabalho-em-
progresso. Investimentos, antes dos eventuais revestimentos. Por enquanto, basta a eles e a mim que
sejam desenhos.
RC Pelo que conheço de seu trabalho, destaco dois aspectos relacionados à música. Um é de cunho
erudito, que tem a ver com a ars nova do século 14. O outro é vernacular, associando a figura do
trovador. No contrapelo da Arte Moderna, a Arte Contemporânea tem uma de suas origens na obra
de Duchamp, que, por sua vez, nunca se esqueceu do dia em que foi exposto à obra de Raymond
Roussel. Logo adiante, a ars subtilior do início do século 15 confirmava esse prenúncio ao modernismo
demonstrando “emphasis on generating music through technical experiment”, cf. o musicólogo Daniel
Albright. Ex.: “Tout par compas suy composés”. (Sou todo composto a compasso, na partitura circular
de Baude Cordier.)
Uma espécie de opinião (tácita?), dominante no mundo das artes plásticas, administra a noção de que ela
seria, de todas as artes, aquela que empreende um projeto reflexivo mais amplo, seja estético, político,
histórico, cultural, etc. Como você se coloca?
MM Eu não sei o que Giotto ouvia em sua vitrola, mas sei que ele tocava, ele também, por partituras.
Se a catedral gótica do século 13 era construída na base de certo empirismo, numa espécie de “pra
cima com a viga, moçada!”, com Giotto – e depois mais ainda com Brunelleschi – o desenho, em sua
acepção de projeto, de design, desígnio mais que desejo, passa a fazer parte do processo construtivo,
transformando radicalmente a estrutura produtiva. Por isso era possível a Giotto ausentar-se da produção
direta de algumas de suas obras, mesmo de pintura, desde que seus assistentes seguissem à risca seus
rabiscos e riscos. Com Brunelleschi, o projeto é mandatório. Sem projeto, sem os modelos reduzidos
que o arquiteto construiu, não teria sido possível construir o duomo da Santa Maria del Fiore, em
Florença, que ele nem chegou a ver realizado, como aliás quase tudo que projetou. Projeto que, diga-
se de passagem, foi escolhido por concurso. Desejo não ganha concurso. A ars subtilior do século 15
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201136 37ENTREVISTA | MILTON MACHADO
coincide com o tempo em que a perspectiva era objeto principal do interesse de arquitetos e pintores,
e tal interesse contribuiu para dar ao artista, agora às voltas com o cálculo e a matemática, o status de
profissional liberal. “Gerar obra por meio de experimentação técnica”, traduzindo sua citação, parece-
me resultar justamente dessa complexidade. Os mistérios da perspectiva eram extremamente sedutores
para os artistas – lembremos a crítica (injusta) de Vasari a Paolo Uccello, de que teria sido um grande
pintor se não tivesse perdido tanto tempo na companhia de sua amante, a perspectiva. Em Uccello,
até cavalos em uma batalha morrem em perspectiva! Se o caso é o experimentalismo de um Raymond
Roussel, e por tabela um Duchamp, há que acionar outros botões de nossa agilíssima máquina do
tempo, primitiva geringonça que alguém deve ter inventado nos tempos da ars antiqua. Botões que
acionam defeitos, disfunções, engasgos, chabus. Experimentar com a linguagem era mania corrente
entre escritores do início do século 20, na cola de Mallarmé no século 19, tais como o futurista Marinetti,
a balbúrdia desconstrutiva dadaísta, os formalistas russos, companheiros de Malevitch e Tatlin. O recurso
a certas genealogias é sempre salutar, e não custa apontar, como você faz, que a ars subtilior do século
15 prenuncia o modernismo. Mas há que recorrer também às “quebras de paradigmas”, via Thomas
Kuhn, para valorizar mais ainda esses empreendimentos experimentais mais próximos de nós. Sobre a
opinião tácita ou dominante de que as artes plásticas empreenderiam um projeto reflexivo mais amplo,
eu diria que essa eventual amplidão depende e resulta justamente da própria plasticidade, mais do
que propriamente da arte e de suas operações específicas, que podem ser duras. Para lidar com a
perplexidade contemporânea, só um projeto que seja flexível, moldável, adaptativo. Plástico, enfim. Com
a plasticidade da sátira, como sugerido por Lyotard. Não me parece que tal elasticidade seja exclusiva das
artes plásticas, a não ser que você flexibilize o termo a ponto de pouco restar de sua dada identidade.
Não há nada de próprio da arte, a arte nunca é idêntica a si mesma. As operações da arte há muito não
são específicas. Arte é um troço mole, por isso são necessários fios flexíveis para tirar suas medidas.
GF Em um texto de Roberto Pontual de 1976, há uma citação sua: “o desenho tem para mim
essencialmente um sentido: o de trazer ao plano da consciência os rumores que me povoam o mundo
interno. Meus desenhos são cartas que chegam do interior”. Algo que, de certo modo, se pode dizer
de qualquer trabalho de arte. Esse é um período importante de seus desenhos, com projetos, digamos,
ficcionais, com uma lógica de ordem conceitual. Esse viés conceitual permanece em seus trabalhos
posteriores. Como você avalia essa dimensão conceitual em seu trabalho e na produção artística atual?
MM Caramba, eu disse isso? Rumores que povoam o mundo interno? Pelo jeito se aplica mesmo a todo
trabalho de arte, já que Pollock disse mais ou menos a mesma coisa. Mas meu interior não é o mesmo
de Pollock, que nasceu em Cody, Wyoming, e cresceu em Tingley, Iowa. Meu interior é a Tijuca, onde
nasci e cresci, meu exterior Copacabana, que me parecia, quando era menino, algum lugar bacana no
exterior. Não havia ainda túneis separando e unindo essas lonjuras cariocas. A dimensão conceitual
é como um túnel separando e unindo, talvez por isso sua condição subterrânea, de escavação, que
pede mergulhos mais profundos do que conseguem as toupeiras. Animais, por sinal, quase cegos, mas
com olfato muito sensível. Desenho e pintura em condições de igualdade é um trabalho feito com pós
de pastel seco, recolhidos durante a produção de desenhos, ao lado de fragmentos de tinta acrílica
raspados de minhas palhetas de pintura. Algumas vezes os túneis são escavações no papel, outras no
vidro, às vezes no pó, outras na tinta. Algumas vezes levam a Pollock, outras a Copacabana. Descobri por acaso, visitando o Louvre, uma provável (humm...) origem dos desenhos de pedra portuguesa das famosas calçadas cariocas: viriam de uma pintura de batalha pelo já citado Paolo Uccello, na qual o pintor representou uma bandeira preta e branca quadriculada tremulando em perspectiva. (Micheletto da Cotignola Envolvido em Batalha, 1450s, têmpera sobre madeira: http://www.wga.hu/). Quem diria que existem túneis conceituais separando e unindo Florença, Paris, Portugal e Copacabana?
GF Desde 1979 você tem dado aulas, na Santa Úrsula, no Parque Lage e, já há 10 anos, na EBA. Que transformações você identifica no ensino de arte e na formação dos artistas? Como você avalia a formação de pós-graduação para artistas?
MM Do Centro de Arquitetura e Artes da Santa Úrsula saíram muitos artistas, já contei mais de 50. Muito devido à presença ali, nos anos 70 e 80, de Lygia Pape, que me convidou e com a qual tive o privilégio de trabalhar, por alguns dos 15 anos que lá estive, junto a outros artistas, na cadeira de Plástica, que tinha um caráter eminentemente experimental. Aliás, é comum artistas terem formação em arquitetura, que pode levar a muitos caminhos. Talvez a maior transformação seja o fato de que novos e bons artistas estejam se formando em escolas de arte, no Rio de Janeiro com maior concentração ainda no Parque Lage, e cada vez mais na nossa EBA, que por décadas afugentou estudantes mais antenados com a contemporaneidade e menos dispostos às formalidades acadêmicas. Um renitente conservadorismo ainda impede que a EBA assuma de vez, como deveria e na medida de sua importância universitária, um papel progressista, de vanguarda, em contato estreito e interessado na produção e na reflexão de excelência, de modo a participar do debate contemporâneo de forma mais intensa e eficaz. Não que isso não se dê, mas é pontual. Os recentes concursos, que têm trazido para o corpo docente da escola professores com esse perfil, vêm mudando, ainda que lentamente, o perfil da própria escola. No âmbito da pós temos tido, na linha de Linguagens Visuais do PPGAV, destinada a artistas praticantes, cada vez mais alunos graduados pela EBA, muitos já atuando no circuito profissional, participando de exposições, publicando livros, ganhando prêmios. Nosso programa obteve o grau 6 nas avaliações da Capes, o que se deve em grande parte às atuações dos professores e alunos de nossas quatro linhas em circuitos profissionais, não só acadêmicos. Tudo isso deve ser celebrado. Falando da pós-graduação em artes no contexto nacional, a proliferação de programas de mestrado e doutorado também é motivo de celebração. Se cabe algum reparo, nunca procurei disfarçar – ao contrário, sempre manifestei claramente – meu estranhamento em relação ao formato mais comumente adotado pelos programas de pós-graduação para artistas no país, nos quais se privilegiam pesquisas de mestrado e doutorado calcadas em e voltadas para a produção prática do próprio candidato, num exercício autoanalítico e autointerpretativo que considero, em regra, improdutivo. Sempre que posso, o que procuro fazer com meus orientandos mais dispostos ao desafio é convidá-los a refletir sobre questões conceituais contempladas em seus trabalhos de artistas, de modo a definir, antes, o território e, depois, a inserção. Diferente disso é quando o próprio trabalho é tratado como o território, a partir do qual se buscam eventuais inserções.
MMz Você tem um cartão de visitas do Parque Lage que o apresenta como teórico.
MM É verdade, e isso é curioso. É uma coincidência, outra dessas coincidências. A EAV imprimiu um cartãozinho trazendo o nome do professor e o núcleo ao qual pertencia. Fizeram então um cartão em que se lê Milton Machado, Teórico. Eu disse: isso dá pano para manga. Fiz uma série de trabalhos
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201138 39ENTREVISTA | MILTON MACHADO
com esses cartões, que são muito bonitinhos. Tem o Mondrian teórico, Milton Machado teórico, os nascimentos e óbitos teóricos. Kosuth teórico, por exemplo, é uma cadeira feita com esses cartões, ao lado de uma foto dessa mesma cadeirinha e dos verbetes de dicionário com as definições de cadeira e de teórico: “Teórico – aquele que conhece muito bem os princípios de uma determinada arte, mas que não a pratica.” Na época em que dava aulas na EAV eu era frequentemente acusado por alguns críticos de ser um artista excessivamente teórico, o que é uma bobagem... Era uma coisa típica dos anos 80, em que tudo era emoção, arte nascendo no coração, pintura como sintoma de prazer, essas bobagens todas que se alardeavam nos anos 80, que falam mais dos anos 80 do que de arte. Havia uma condenação explícita a artistas dos anos 70, de minha geração, que estariam se metendo em áreas sem competência para delas tratar, como a matemática, filosofia, política, sei lá mais o quê. O que mais então “não podemos” discutir? Nos anos 80, eu vivia perguntando isso a meus interlocutores entusiasmados ou inebriados com a pintura, o prazer, o cheiro da terebintina e tudo o mais. De modo que é um trabalho de fato muito irônico, que se vale da coincidência incrível de eu ter sido presenteado com um cartão que identificava, meio sem querer, os excessos de um Milton Machado teórico.
MMz Eu estava lendo seu artigo Dance a noite inteira mas dance direito [in Arte Brasileira Contemporânea em Textos, org. Ricardo Basbaum, Editora Marca d’Água, Rio de Janeiro 2001], em que aparece o cartão, e você faz uma análise crítica do sistema, do circuito, dos críticos durante os anos 80 comparando com os anos 70. Aí eu tenho uma curiosidade: como você vê esse circuito hoje?
MM Produzimos uma arte de muito boa qualidade, discutida em alto nível internacionalmente, e no entanto nosso circuito interno ainda nos impõe condições muito ruins. A própria universidade, à qual pertencemos mais do que ela nos pertence, talvez exemplifique isso de forma pontual, com cursos de graduação em arte quase sempre voltados para uma orientação conservadora, ainda muito calcada nas técnicas, radical e intencionalmente alienada da discussão contemporânea. Talvez o circuito reflita distorções como essa, pontual mas importante, porque tem a ver com a própria formação, de artistas e de opinião. Quanto ao circuito profissional, trata-se de questão igualmente complicada. Nosso circuito, mesmo precário, ou até por isso mesmo, é extremamente complexo, talvez daí se possa falar não de um circuito, mas de circuitos, no plural, com precariedades concorrentes, algumas vezes rivais, o que agrava ainda mais seu grau de perversidade. Como é complexa a questão política das alianças que é preciso fazer e das que não se deveriam fazer mas se fazem, em prol dos pertencimentos, das pertinências, das adequações, dos favorecimentos, das celebrações institucionais e comerciais. De algum modo, é preciso que os orçamentos sejam consistentes com os editais. Mas pertence quem diz que não pertence? Consiste quem diz que não é consistente? Então, essas geometrias mais por tangentes do que por secantes, mesmo que não bastem para regular o círculo, são reguladoras do circuito. Dance a noite inteira mas dance direito seria um tipo de andamento
servil, que obedece ao compasso, muitas vezes em detrimento da música.
Edição Marina Menezes e Cezar Bartholomeu
Transcrição Priscila Plantanida
HI-FI (alta fidelidade)mapotecas de aço FIELmúsica por Rodolfo Caesar19a Bienal de São Paulo, 1987
NOTAS
1 Ammunition Amnesia foi o texto de contribuição do artista para o catálogo da coletiva Other Modernities (Cildo Meireles, Foreign Investment, Milton Machado, Yinka Shonibare), The London Institute Art Gallery, curadoria de Oriana Baddeley e Michael Asbury, Londres 2000, da qual fazia parte o trabalho 21 Formas de Amnésia. Esse mesmo trabalho foi remontado na exposição Europalia, Bozar, Bruxelas 2011, sessão curada por Guilherme Bueno.
ARTIGOS | AMAURY FERNANDESArte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201140 41
Estado nacional é conceito bem recente na história,
assim como os sentimentos de identidade e de
pertencimento nacional. As formas de manifestação
da nacionalidade passam pelos espetáculos de
civilidade, e sua presença no imaginário coletivo
se constrói através dos símbolos oficiais e oficiosos
que os governos produzem e disseminam pela
sociedade, em especial para a comemoração das
datas nacionais mais importantes.
O dinheiro é elemento da cultura material anterior aos Estados, mas é parte da construção do imaginário
coletivo que modela o das nações. Inventado no século 6 aC. e presente desde então nas sociedades,
muitas vezes é elemento determinante dos fatos e funciona plenamente como signo. Expressa identidades
nacionais coletivamente construídas, o que o legitima como representação máxima do valor das coisas
materiais e, muitas vezes, das imateriais. Por essa razão, do ponto de vista sociológico, o dinheiro pode
ser compreendido como elemento da cultura material quase ubíquo e que funciona como o principal
signo do valor na cultura contemporânea. Signo universal, apesar de, em algumas de suas formas, ainda
manter características locais.
ESPETáCULOS DE CIVILIDADE: modernidade e pós-modernidade no papel-moeda brasileiro
Amaury Fernandes
identidade nacionalimaginário dinheiro Estado
Analisa as expressões plásticas presentes em duas cédulas comemorativas brasileiras,
emitidas em 1972 e 2000, relativas a grandes festividades cívicas. Busca compreender
de que forma as identidades nacionais predominantes em determinados momentos
históricos podem ser plasmadas em representações do Estado que servem de veículo
para sua divulgação.
SHOWS OF CIVILITY: modernity and post-modernity in Brazilian banknotes | This article analyzes the plastic expressions in two Brazilian commemorative banknotes issued in 1972 and 2000 for major civic festivals. It aims to understand how predominant national identities at certain historical times can be shaped into representations of the State that act as vehicles for its publicity. | National identity, imaginary, money, State.
Anverso e reverso da cédula de 500 cruzeiros novos, 1972 e cédula comemorativa dos 500 anos do descobrimento do Brasil, 2000. Imagens capturadas da cédula (coleção pessoal)
ARTIGOS | AMAURY FERNANDESArte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201142 43
Segundo Simmel1, o dinheiro é “uma dessas
imagens do mundo que consideramos como a
expressão mais adequada dos conhecimentos e
sentimentos atuais”. Marx afirma que “a fixação do
preço do numerário é da competência do Estado,
assim como o trabalho técnico de cunhagem”, e,
por essa razão, “o dinheiro adquire um caráter
local e político, fala línguas diferentes” por vestir
“diferentes uniformes nacionais”. De acordo
com o senso comum, o dinheiro parece ser algo
que simplesmente trafega pela sociedade. Quase
nunca há questionamentos sobre sua materialidade
nem se indaga a respeito de sua fabricação
que, assim, acaba anônima. Aparenta surgir
naturalmente, do que decorre boa parte de sua
silenciosa onipresença, e converte-se em uma
das representações mais fortes das narrativas de
nacionalidade.
Neste artigo analisa-se o discurso visual, as imagens
do mundo, os uniformes nacionais, as narrativas
de nacionalidade materializadas em duas emissões
comemorativas que celebram datas históricas para
a afirmação da brasilidade: o sesquicentenário da
independência e os 500 anos do descobrimento.
O dinheiro como símbolo nacional é objeto
privilegiado para análises semiológicas. Alterações
em bandeiras, hinos e armas nacionais não são
comuns nos Estados modernos, e a imutabilidade
de tais representações dificulta a análise de
aspectos mais flexíveis ligados a cada um dos
diferentes momentos históricos; estes são como
representações congeladas de uma identidade
nacional fixada no tempo, elementos que refletem
mais a narrativa fundadora dos Estados. Ainda
que o verde e amarelo ou o “Ouviram do Ipiranga”
efetivamente sejam expressões da brasilidade, são
antes representações congeladas concebidas em
momentos muito distantes no tempo. Servem
mais de âncora aos sentimentos fundadores do
pertencimento nacional do que de espelho dos
sentimentos dos brasileiros contemporâneos.
Diferentemente, as cédulas brasileiras variam
muito ao longo do tempo; suas estampas são
alteradas quase que governo a governo. Tornam-
se narrativas da identidade nacional privilegiadas
por suas mudanças e, assim, refletem melhor
seus desdobramentos.
O sesquicentenário da independência:
o espetáculo da modernidade no papel-
-moeda brasileiro
Em 1972 a independência brasileira completa 150 anos; o governo militar promove intensa campanha publicitária para o evento e decide emitir cédula em comemoração à data, com valor facial de 500 cruzeiros novos. Aloisio Magalhães3
é convocado para criar o projeto da nova cédula, pois já desenhara as que então circulavam e o
logotipo da comemoração.
Assim com nas primeiras emissões concebidas por
Aloisio Magalhães, o trabalho de valorização da
narrativa histórica oficial é privilegiado também
nessa, voltada para o conceito de integração. A
estrutura compositiva é rigidamente estabelecida
pela divisão geométrica do espaço plástico em áreas
retangulares que se cortam, e cujas massas visuais
amarram a composição; nelas estão acomodados
os motivos figurativos de anverso e reverso.
A iconografia da cédula recorre à plasticidade das vanguardas geométricas da época e à valorização da mestiçagem como formação do povo brasileiro, exaltando e modernizando um discurso que, do ponto de vista sociológico e literário, está referenciado principalmente nas teses de Gilberto Freyre (pernambucano como Aloisio Magalhães e amigo íntimo de sua família) e nas narrativas
Anverso e reverso da cédula de 500 cruzeiros novos, 1972Imagens capturadas da cédula (coleção pessoal)
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heroicas da brasilidade de Euclides da Cunha, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa.
No anverso a cédula representa a integração racial. Uma sequência de rostos é desenhada em retângulo horizontal mais escuro que atravessa a composição; nessa imagem estão
as diferentes etnias que formariam o povo
brasileiro; a posição é determinada pela ordem
cronológica de sua inclusão na população
brasileira, e acompanha o sentido de leitura,
da direita para esquerda, o que poderia implicar
leitura “evolucionista”. Nessa sequência estão
estampados os rostos que representam índios,
portugueses e negros, e duas figuras com feições
de mestiços. Na composição as cabeças se
apresentam organizadas do perfil exato do índio,
ao frontal completo da face mestiça mais à direita
da composição. A rotação da figura destaca o
último rosto, em claro favorecimento ao elemento
mestiço, que se torna mais evidente e é reforçado
por ser o único com dois retratos na composição.
A ordenação das cabeças sofre críticas do
brasilianista Thomas Skidmore “considerando-a
portadora de todos os preconceitos praticados no
país”.4 Aloisio Magalhães as rebate; apontando a
ordenação cronológica e o conceito historicista do
projeto, afirma: “Não estaria o eminente professor
transpondo, para análise do nosso contexto
cultural, modelos e estruturas preconceituais
de onde o problema se apresenta de maneira
diversa? Que outra nação usou com naturalidade
sua formação étnica em objeto de comunicação
tão amplo como o seu próprio papel-moeda?”5
No reverso o conceito de integração é aplicado às
fronteiras nacionais. Uma nova sequência, dessa
feita com o sentido cronológico da direita para a
esquerda, estampa os mapas cartográficos que re-
presentam o país ao longo de cinco séculos, com
a geografia representativa do descobrimento mais à
direita e o mapa da “integração” mais à esquerda;
entre eles outros três mapas (denominados “comér-
cio”, “colonização” e “independência”) estampam
as modificações das fronteiras brasileiras.
O da esquerda, primeiro no sentido de leitura,
apresenta linhas axiais que cortam o território
brasileiro; elas representam as vias de transporte
(ferroviário e rodoviário) que os governantes
militares prometem construir como parte do
processo de integração nacional.
Mais uma vez há apelo a “uma narrativa
através da qual uma história alternativa”6 pode
ser construída para reafirmar legitimidades e
constituir “um campo de significados e símbolos
associados com a vida nacional”.7
As associações visuais com a comemoração
do sesquicentenário apoiam-se também nas
tipologias. Letras utilizadas nas legendas e dísticos
oferecem recurso visual igual ao empregue
por Aloisio Magalhães para criar o logotipo
comemorativo da celebração. Sombras são
projetadas, e as faces dos tipos são vazadas, se
apresentando mais claras. Os fundos de segurança
recorrem ao efeito de moiré, como nas emissões
anteriormente projetadas pelo designer.
Como emissão comemorativa, a cédula se diferencia
das que compõem a família em circulação menos
por sua estrutura compositiva, bastante próxima
da utilizada nas demais emissões do medalhão, do
que pelas características das imagens calcográficas,
gravadas quimicamente e sem a delicadeza
do trabalho de gravado manual da família em
circulação. A principal diferença, contudo, está na
narrativa sociológica que apresenta.
Não há mais panteão nobiliárquico-militar8 de
heróis, mas sim o enaltecimento da mestiçagem
que conforma o povo brasileiro. Não há exaltação
de personagens históricos ou de elementos da
cultura brasileira como prédios ou obras de
arte, mas sim confirmação das fronteiras e da
integração do território de uma nação.
A cédula é concebida para, de forma inconfundível,
ser entendida como documento histórico, o que é
almejado para validar a narrativa historiográfica
que ela representa ainda mais. Os conceitos
visuais reafirmam essa característica em quase
todos os detalhes, e as próprias palavras de Aloisio
Magalhães confirmam a intenção de o projeto
provocar, antes de tudo, essa interpretação. Uma
peça de comunicação de massa que reafirma uma
leitura específica da brasilidade.
Tratar o objeto cédula como um objeto de
comunicação mesmo foi o que o Aloisio
descobriu com as primeiras cédulas; ele
falava isso o tempo todo: ‘Depois que eu fiz
o primeiro, a questão da forma para mim se
relativizou muito. A questão é: esse é o objeto
de maior comunicação do país.’9
Na cédula do sesquicentenário é apresentada
configuração visual que reforça a concepção
de que o Brasil seria um “cadinho de raças”,
ideologia que é sobreposta ao projeto político do
governo militar.
Há exaltação do projeto de integração nacional
pelas vias de transporte, pelas grandes obras
e pelos projetos de ocupação com atividades
agropecuárias e industriais das áreas menos
povoadas das regiões Norte e Centro-Oeste
do país, cujas baixa densidade demográfica e
dificuldade de acesso, crê o governo militar,
podem estimular a cobiça de outras nações.
No imaginário dessa cédula somam-se as repre-
sentações de uma visão sociológica e antropoló-
gica da formação do povo brasileiro e um projeto
político, ambos como reforço da importância da
integração nacional, quer seja via misturas étnicas
ou transporte. Afirma-se uma modernidade auto-
ritária, que corrobora o projeto individual de Aloi-
sio Magalhães de civilização do Brasil pelo design
e o projeto político do governo ditatorial.
Os 500 anos de descobrimento no papel-moeda: do papel ao polímero, o espetáculo do pós-moderno
Em 2000, quando a chegada de Pedro álvares
Cabral ao Brasil completa 500 anos, é emitida
nova cédula comemorativa; após muitos anos,
o dinheiro circulante no Brasil tem uma data
histórica como tema de uma denominação.
Várias possibilidades temáticas são debatidas
entre as equipes do Banco Central e da Casa
da Moeda:
O que é que se fez na época? Vários estudos
de tema. Um deles era a língua portuguesa
(...) porque é o elemento que dá unidade
ao Brasil (...) e é também uma herança da
colonização. Só que foi muito difícil trabalhar
o tema língua portuguesa em imagens (...).
Na época (...) não se achou interessante se
adotar [essa linha] para a cédula de polímero
(...) Começou a ficar muito difícil, porque (...)
grande escritor nós temos vários também,
então fica difícil você definir, é uma questão
polêmica, e a gente estava querendo fugir
dessas polêmicas naquele momento também.
Mais uma vez uma questão do momento,
não é? Do governo da época. Então optou-
se pelo tradicional: Cabral e imagens relativas
ao descobrimento: mapa do Brasil de época,
uma caravela que foi usada como elemento de
segurança e para marca-d’água, os motivos de
ARTIGOS | AMAURY FERNANDESArte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201146 47
azulejos portugueses que estão nos fundos de
segurança...
Pois é. E do outro lado o que fazer? (...) Pensou-
se em fazer, depois de algumas discussões, a
história de homenagear tipos brasileiros, mas
não na linha do gaúcho, ou da baiana e tal...
Mas pessoas! Pessoas comuns. E aí então, tem
aqueles rostos atrás que você vê na cédula de
polímero, essa foi a linha da época.10
Na definição do tema e do imaginário pelo Banco
Central, da forma relatada, fica óbvio que há uma
preocupação a atender no projeto da cédula: uma
determinada narrativa do nacional comprometida
com o projeto político do governo da época.
Provavelmente o ocorrido com a troca do desenho
da família de moedas metálicas tenha influenciado
essa opção, uma vez que a eleição popular
escolheu o projeto dos profissionais da Casa da
Moeda do Brasil, que tem seu imaginário baseado
em uma visão mais tradicional do meio circulante
e promove o retorno dos vultos históricos.
A cédula da Thereza Regina agradou em cheio ao cliente (...). No anverso é abordado o Brasil ano um, com contorno do mapa Terra Brasilis, com portrait do descobridor, com microtexto da carta de Caminha, com fundos de segurança baseados em perfis de caravelas e naus, e enfim, todo o anverso é uma homenagem ao ano um e todo o reverso é uma homenagem ao ano 500. Afinal de contas, depois do descobrimento o que aconteceu é o que está sendo retratado no reverso (...) a miscigenação, as características do povo brasileiro como é hoje, através dos portraits lançados em diversas regiões do mapa, que é todo fragmentado, para efetivamente mostrar o resultado dos 500 anos de história, de influências de diversos povos, áreas de colonização diferentes.11
Uma pesquisa bem fundada permite escolha de
elementos visuais afinada com as determinações
do grupo misto. Como relata a autora do projeto,
todo o processo de escolha da iconografia da
cédula é permeado pela mesma lógica utilizada
nas moedas metálicas, havendo, em especial, a
preocupação de manter a vinculação do retrato
utilizado para imagem historicamente aceita no
imaginário do país:
Eu sei dessa importância até pelas moedas; participei dessas moedas de real. O escolhido pelo povo mesmo foram as figuras históricas, e as figuras históricas são reconhecidas por aquele retrato, por aquele ícone (...). Eu usei a gravura mais antiga que existe do Cabral.12
Durante seu relato Regina Fidalgo aborda o fato de
ter descoberto que a imagem de Cabral tida como
oficial é produzida bem posteriormente à morte do
navegador. Evidencia-se que a intenção principal
é determinar qual a figura sedimentada no
imaginário brasileiro como representativa do vulto
histórico. Além disso, toda a iconografia remete ao
que a projetista classifica como “livros de história”,
detalhes como o mapa que ladeia o portrait e
mesmo os demais elementos complementares,
todo o imaginário do anverso da cédula é específico
e vinculado ao fato do descobrimento.
No reverso a imagem central é a do mapa atual
do Brasil; esse lado é marcado pela atualidade,
imaginário centrado em vocabulário visual
mais contemporâneo. Segundo as palavras da
desenhista “coisa de computador, não é? Como
se o Brasil estivesse estourando os pixels assim...
No mapa do Brasil... E o último pixel crescia
e vinha uma pessoa”. Cada pixel carrega uma
representação de brasilidade encarnada em um
tipo físico que é imaginado, nesse momento, como
representativo do cadinho étnico da brasilidade.
Cédula comemorativa dos 500 anos do descobrimento do Brasil, 2000Imagens capturadas da cédula (coleção pessoal)
ARTIGOS | AMAURY FERNANDESArte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201148 49
Os pixels estariam em primeiro plano, assim... Aquelas pessoas... Na realidade eram cinco quadrados, por causa das cinco regiões, caracterizando cada região, o tipo... Não é? Assim: Santa Catarina uma loirinha... acabou por se chegar à conclusão de que era melhor não caracterizar mesmo regiões, só as etnias... Tipos físicos... Eu queria mesmo assim mais simples... O povo, o povo brasileiro assim... Que existe... A parte dos índios é que foi mais complicada...
Sobre a construção de imaginário que reforce determinada identidade nacional de interesse oficial Regina Fidalgo afirma que “a identidade é uma coisa política” − outros entrevistados, aliás, também colocam claramente a questão da escolha de personagens, temas e elementos
visuais sob esse prisma.
O projeto tem como característica principal de
seu discurso visual uma mescla de elementos:
os consagrados da representação histórica e
numismática – em especial a representação
figurativa bem realista, o portrait, a marca-
d’água, a gravura de talho-doce etc. – e outros
extremamente contemporâneos, como o
próprio polímero no qual a cédula é produzida
ou os pixels como fragmentos visuais que
explodem da composição do reverso e acabam
dominando a cena.
Se, entretanto, procuramos compreender quais
as “narrativas ideológicas dissimuladas, que estão
em curso, em todos os conceitos aparentemente
não narrativos”,13 como os signos visuais e mesmo
a base física sobre a qual essa cédula é impressa,
poderemos perceber algumas relações significativas
que esse novo dinheiro pode representar.
Em um primeiro nível de análise a escolha
do polímero como matéria-prima para
impressão de uma cédula por si só já
contrasta significativamente com o material
tradicionalmente utilizado para fabricar dinheiro:
o papel-moeda. A textura própria e diferenciada
do papel-moeda, reconhecida pelo tato de
praticamente todos os seres humanos como
sendo a do dinheiro, já substituiu há décadas o
toque do ouro e da prata no imaginário coletivo
como matéria-prima do numerário; só em
nível mais profundo, quase onírico, as moedas
com valor intrínseco reaparecem no imaginário
coletivo como representação da riqueza. O
contraste estabelecido, aos dedos mais do que
aos olhos, já denuncia a passagem desse dinheiro
do campo do moderno para o do pós-moderno,
pois a proximidade táctil com os cartões de
crédito e os smartcards similariza as peças tanto
quanto a função econômica, e ambos os aspectos
aproximam essa manifestação monetária da
economia virtual, e não das formas tradicionais
do dinheiro da época do capitalismo industrial.
São, porém, necessárias reminiscências visuais
que repercutam no imaginário coletivo para que
a cédula venha a ser reconhecida como tal; é
preciso fazer parte de certo conjunto de signos
socialmente partilhados para que esse significante
novo ancore seu sentido ao sentido tradicional
do dinheiro como representação do valor em si.
Nesse sentido, o portrait de Pedro álvares Cabral
torna-se o elemento físico principal para espelhar
uma tradição numismática incorporada ao objeto
com ar contemporâneo e tecnológico.
O artifício que mais denuncia essa ancoragem é
o fato de a imagem escolhida para o portrait ser
muito similar a outros já utilizados em cédulas
brasileiras. A identidade histórica do personagem
remete à representação centenariamente aceita,
que valida a circulação do signo novo com
autoridade muito superior à que uma gravura
atualizada pode ensejar.
Quase todas as imagens do anverso possuem
aspectos ancorados na tradição numismática,
reforçando a ação do portrait. Por seu tipo de
configuração visual estão ligadas, no imaginário
brasileiro, ao descobrimento e aos primeiros
tempos da colonização as naus, a Cruz da Ordem
de Cristo, os motivos da azulejaria portuguesa
colonial, mas principalmente o mapa Terra Brasilis.
As figuras humanas retratadas no reverso são
mais simplificadas, personagens anônimas que,
segundo o site do Banco Central, representam
a “pluralidade étnica e cultural” do Brasil. As
imagens estão embutidas em fundo com os
contornos do mapa nacional, que faz a ligação
visual entre esses elementos. O mapa, com o
contorno desenhado como imagem digital muito
ampliada, atualiza a linguagem gráfica do símbolo
que representa uma face da identidade da nação;
nas palavras da projetista Regina Fidalgo, é “o
Brasil em pixels”. A fragmentação da imagem na
composição não é do mesmo tipo das chamadas
artes sequenciais, nas quais cada parte pertence a
uma narrativa claramente encadeada, como nos
vitrais sacros ou nas histórias em quadrinhos. Na
cédula, o mapa que sustenta a representação das
etnias brasileiras explode, e as figuras humanas –
encapsuladas nos pixels que partem do centro do
mapa – são distribuídas por dispersão por toda a
composição sem que isso represente uma forma
estruturada ou ordenada de narrativa.
Nesse aspecto há marcante contraste com
a composição da cédula comemorativa do
sesquicentenário da independência que teve
temática idêntica. Nela as faces representantes
das diferentes etnias integram-se e se apresentam
em composição aglutinadora naquilo que está
descrito pela documentação do Banco Central
como sendo “uma sequência das diversas raças,
por ordem de precedência histórica”.
Em meio aos elementos que promovem a
integração do discurso visual dos dois lados é
interessante perceber que a harmonização da
paleta de cores se dá por contraste da temperatura
da cor. A cor fria (o azul) nos remete à sensação
de afastamento, e a quente (o laranja), de
proximidade, tanto física como temporalmente.
Uma vez que “as cores quentes parecem convidar-
nos enquanto as frias mantêm-nos à distância”14
e devido ao azul frio aplicado, o centro visual da
composição do anverso se contrai, e sua presença
dominante auxilia na construção de um foco
de atenção nessa área, que destaca a narrativa
histórica ali concentrada. No reverso, a expansão
do laranja quente das bordas, em maior área,
reforça a sensação de que os pixels se movimentam
rumo a um tempo futuro. Assim, a leitura das cores
intensifica o jogo passado/presente do discurso
plástico da cédula como um todo.
Os aspectos cromáticos somam-se à composição
centrípeta do layout do anverso, que concentra os
elementos gráficos de maior interesse nos centros
e deixa a periferia da face ocupada por elementos
cujos significados são menos presentes − em
contraponto à composição centrífuga do reverso,
que expande o tempo através dos elementos
que flutuam ao redor do mapa “pixelado”.
Alguns outros elementos gráficos, como dísticos
e numerais, parecem flutuar nas espirais visuais
determinadas pelas composições e pelas cores,
soltos pela inexistência das tarjas e rosáceas –
desenhos geométricos tão comuns em cédulas
mais antigas. Dessa forma o anverso/passado e
o reverso/presente estão igualmente estruturados
ARTIGOS | AMAURY FERNANDESArte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201150 51
e unidos visualmente, apesar de separados pela
linguagem gráfica aparentemente contraditória.
Um elemento mais do que todos promove
a integração de significados e essa união de
passado e presente: a rosa dos ventos que envolve
a janela transparente e vermelha do polímero e se
reproduz em ambos os lados da cédula. Indicadora
das direções de navegação, seu sentido pode ser
tanto o de representar a guia dos navegadores das
naus portuguesas do anverso/passado quanto dos
modernos navegantes da internet, cujos pixels do
reverso/presente explodem.
Por essas razões é possível considerar que o
imaginário da cédula foi extraído “de um novo
domínio da realidade das imagens, que é a um
só tempo ficcional (narrativo) e factual”,15 no qual
as imagens de personagens históricos e realidades
passadas e futuras são construídas, tornando-se
tradicionais e partes de uma invenção da narração
coletiva do nacional pressentida e representada
através do inconsciente da projetista.
Diferentes, mas iguais
Em 2002 a União Europeia lançou a família
de cédulas de sua moeda, o euro, que se vale
de elementos arquitetônicos para transpor a
barreira das nacionalidades e integrar o meio
circulante do continente sem que haja polêmicas
por conta do emprego de algum vulto histórico.
Recentemente os Estados Unidos iniciaram a
troca de seu meio circulante, e a manutenção das
efígies dos “Pais Fundadores” foi adotada para,
exatamente ao contrário da Europa, reforçar a
identidade nacional estadunidense.
Os discursos apresentados pelas duas cédulas
comemorativas emitidas no Brasil são distintos
e representam, cada um a seu modo, narrativas
visuais sobre a brasilidade oficialmente instituída.
Próximos, por expressar a mestiçagem como
identidade nacional, diferenciam-se na importância
atribuída a esse ponto, nas opções plásticas que
constroem seus imaginários e nos vínculos que
estabelecem com o imaginário coletivo.
No projeto da cédula do sesquicentenário opta-
se por esquema rígido de divisão geométrica
das áreas da composição, com aprisionamento
e subordinação dos elementos figurativos à
geometria; a paleta cromática é muito discreta, e
os contrastes de tom determinam a concentração
da atenção em determinadas áreas; além disso, a
composição visual muito se aproxima das cédulas
em circulação, não a distinguindo como signo
novo, mas reforçando a validade de um discurso
visual moderno, já em circulação. Nesse momento
o discurso da integração nacional se estabelece
pela sucessão e aglutinação dos elementos
discursivos, e é referendado pelo panteão de
heróis nacionais em circulação.
Na cédula do descobrimento há contraste
discursivo entre anverso e reverso. Linguagens
visuais diferentes estabelecem narrativas
distanciadas no tempo e integradas no
plano discursivo pela paleta cromática e pela
visualidade das composições, complementares
em seus aspectos estruturais. A absorção de
elementos tradicionais, em sua maior parte
respeitando a linguagem estabelecida pela
numismática, vincula o signo à tradição, em
contraponto com seu suporte, que o liga ao
meio monetário do século 21.
Os aspectos visuais da emissão do
descobrimento destoam da família existente
no meio circulante, em movimento oposto
ao realizado pelo Banco Central do Brasil em
1972, no sesquicentenário. O valor facial da
cédula não é o maior do meio circulante. A
primeira emissão compõe o meio circulante e é
concebida de forma publicidade da ideologia do
governo militar. A emissão do descobrimento é
fruto da celebração, mas ainda assim espelha as
dificuldades de construção da identidade nacional
na virada do milênio, expõe a fragmentação dos
discursos políticos e as tentativas de apropriação
das grandes narrativas do nacional por um governo
com dificuldades de construir narrativa própria.
NOTAS
1 Simmel, Georg. Filosofía del dinero. Granada:
Comares, 2003:5. Biblioteca Comares de Ciencia
Jurídica. Colección Crítica del Derecho, v.44.
2 Marx, Karl. Contribuição à crítica da economia
política. São Paulo: Martins Fontes, 2003:107.
Coleção Clássicos.
3 Antes da cédula comemorativa do sesquicentenário
da independência Aloisio Magalhães desenvolve
a família do padrão cruzeiro novo, que entra em
circulação em 1967 – chamada de família medalhões.
4 Leite, João de Souza. A herança do olhar. O design de
Aloisio Magalhães. Rio de Janeiro: Artviva, 2003:210.
5 Idem.
6 Hall, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade.
10 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005:55.
7 Bhabha, Homi K. Narrando la nación. In Bravo,
álvaro Fernandez (org.). La invención de la nación:
lecturas de identidad de Herder a Homi Bhabha.
Buenos Aires: Manantial, 2000:214.
8 Até a emissão dessa cédula em 1972 todos os
personagens que tiveram seus portraits estampados
nas cédulas brasileiras, emitidas por entidades
governamentais, eram figuras das nobrezas
portuguesa e brasileira ou militares já falecidos,
exceção feita ao presidente Getúlio Vargas,
homenageado em vida.
9 João de Souza Leite, designer e um dos principais
colaboradores de Aloisio Magalhães, em entrevista ao
autor em 2006. Todos os relatos aqui apresentados
são originários das entrevistas realizadas para a
pesquisa da minha tese de doutorado Uma etnografia
do dinheiro: os projetos gráficos de papel-moeda no
Brasil após 1960, PPCIS/Uerj, 2008.
10 Márcia Barbosa Silveira, funcionária do
Banco Central, formada em arquitetura, então
coordenadora do grupo misto de trabalho que
resolve as questões relativas aos projetos de cédulas
e moedas, em entrevista ao autor em 2006.
11 Entrevista ao autor de Glória Ferreira Dias, chefe
da Seção de Projetos Artísticos da Casa da Moeda do
Brasil na ocasião, em entrevista ao autor..
12 Thereza Regina Barja Fidalgo, desenhista da Casa
da Moeda do Brasil, autora do projeto da cédula
comemorativa dos 500 anos do descobrimento do
Brasil, em entrevista ao autor em 2007.
13 Jameson, Fredric. Modernidade singular: ensaio
sobre a ontologia do presente. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005.
14 Arheim, Rudolf. Artes & percepção visual: uma
psicologia da visão criadora. São Paulo: Pioneira/
Edusp, 1980:360. Biblioteca Pioneira de arte,
arquitetura e urbanismo.
15 Jameson, Fredric. Pós-modernismo: a lógica
cultural do capitalismo tardio. São Paulo: ática,
2002:283. Série Temas, v.41.
Amaury Fernandes é professor da Escola de
Comunicação e do Programa de Pós-Graduação
em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFRJ.
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011 ARTIGOS | CYBELE VIDAL NETO FERNANDES52 53
O cortejo joanino passeou-se com todo o seu
esplendor, por ruas e praças de Lisboa até ao
Terreiro do Paço, onde se apearam e se dirigiram,
debaixo do pálio, levado por membros do Senado
de Lisboa Ocidental (...) Os dias que se seguiram
foram tempos de festa popular. Ao pasmo que as
montanhas de ouro e as luzidias galas provocaram
em todos os que, passivamente, se deixaram
embalar pelas grandezas dos que iam passando
pelas ruas e praças, seguiram-se dias de touradas
e noites de luminárias e fogos de artifício no Terreiro e no Castelo, enquanto os salões do Paço da Ribeira
se enchiam de bela música.1
Desde a Antiguidade as sociedades organizavam cerimônias de comemorações motivadas por
acontecimentos que fugiam à realidade cotidiana. Essas celebrações podiam referir-se a fatos
extraordinários ligados à vida dos governantes, como nascimentos, mortes, casamentos, vitórias em
batalhas, datas especiais referentes ao calendário anual, ou às festas religiosas. Eram acontecimentos
singulares, impregnados de forte carga simbólica, capazes de sensibilizar a sociedade e promover
momentaneamente uma transformação, uma nova ordem social. A festa criava um sentimento especial
que unia os cidadãos em torno de um objetivo comum, a manifestação da aceitação do motivo da festa,
através das mais diversas formas de expressão.
FESTAS REAIS EM PORTUGAL E NO BRASIL COLÔNIA: organização, sentido, função social
Cybele Vidal Neto Fernandes
festas artistasartífices barroco
O artigo trata do conceito de festa no mundo português e no Brasil colonial. Analisa
os elementos que fazem parte de sua estrutura, assim como a relação com projeto
único e a relação que mantém com as mais diversas camadas da população. A análise
visa compreender a festa como expressão sociopolítica e cultural.
ROYAL FESTIVALS IN PORTUGAL AND COLONIAL BRAZIL: organization, meaning, social function| The article addresses the concept of festival in Portugal and colonial Brazil. It analyzes the elements that are part of its structure and the relationship with a unique project and the continuing relationship with the different layers of the population. The analysis aims to understand the festival as a cultural and socio-political expression. | Festivals, artists, crafts, Baroque.
Prestígio das endoenças, c. 1722, nave da Igreja da Santa Misericórdia, Salvador, Bahia. Azuleijos de Portugal e Brasil. Revista Oceanos, Lisboa: Comissão Nacional para as comemorações dos Descobrimentos Portugueses, n. 36-7, outubro 1998-março 1999: 63-64. Foto André Ryoki.
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011 ARTIGOS | CYBELE VIDAL NETO FERNANDES54 55
Foi a partir do século 17, na corte de Luiz XIV,
na França, que as celebrações das monarquias
ganharam maior importância em toda a Europa,
com o surgimento do sistema absolutista e do
fortalecimento dos Estados Nacionais. Naquela
época, observou-se a reapropriação de antigas
tradições ligadas às festas gregas e romanas,
para homenagear a figura divina do rei e criar
os magníficos cenários das festas reais, que se
tornaram cada vez mais elaboradas. Sua realização
promoveu a formação de equipes dos mais diversos
profissionais, cada vez mais bem preparadas. Esse
modelo francês espalhou-se por toda a Europa,
graças às notícias e às gravuras que circulavam,
especialmente sobre a corte de Versailles.2
Essa forma de celebração chegou a Portugal
e alcançou ampla repercussão no país e nas
colônias, onde as festas reais eram celebradas
por ordem régia, mesmo que ocorressem muito
tempo depois do acontecimento que as movera.
As celebrações dos séculos 17 e 18 tinham ênfase
na festa barroca, com todos os elementos que
traduzissem o dramático, o excesso, o simulacro,
o êxtase, a luz, a vida, a morte. Portugal soube
interpretar com entusiasmo esse fenômeno, com
celebrações comemoradas com toda a pompa,
fosse na capital ou nas demais cidades e vilas
do país e das colônias. Esse modelo alcançou o
Brasil de forma oficial, ou chegou através dos
artistas e artífices migrantes. Era inegável que
o brilhantismo das celebrações dependia da
participação de todos, letrados ou não, ricos ou
pobres, nobres ou negociantes, representantes da
Igreja, delegações estrangeiras.
Nas regiões interioranas, em especial em Minas
Gerais, no século 18, esses acontecimentos
alcançaram enorme sucesso a partir da descoberta
de ouro e pedras preciosas, levando ao rápido
aumento da população, graças à migração
interna, ou originada de Portugal e outros países,
fato que impulsionou o surgimento de numerosas
vilas e cidades. Essa população deu origem a uma
sociedade muito complexa, na qual ambição
de enriquecimento era o sentimento comum,
alimentado pela euforia do ouro cada vez mais
abundante. Nesse contexto, foi na região das
Minas Gerais que ocorreram os mais grandiosos
espetáculos ligados às festas reais e religiosas.3
Os diferentes grupos da sociedade atuavam em
conjunto para a preparação da festa, participando
com seu trabalho ou patrocinando parte dos
festejos, visando sempre a seu brilhantismo. A festa
promovia o conhecimento, o congraçamento, a
alegria, o orgulho da cidade.4
Foi também no século 18 que ocorreu o
fortalecimento das ordens terceiras, instituições
que trouxeram alterações na ordem social, com
suas organizações de caráter religioso e assistencial,
pois promovia o orgulho do pertencimento. Suas
regras e o cerimonial eram muito respeitados e
reconhecidos, funcionando também como um
sistema compensatório (uma vez que concedia
alguns privilégios junto ao Senado da Câmara e
a outros órgãos do governo). A rivalidade entre
essas instituições resultou em várias iniciativas que
identificavam o orgulho da população em defesa
de suas tradições. As festas, a partir desse contexto,
foram comemoradas com grande entusiasmo e
pompa nas cidades e periféricas.
A festa no mundo português
A historiografia da arte portuguesa tem-se
dedicado ao tema da festa e trazido à luz
notícias, documentos, relatos descritivos, com
destaque especial para as festas de Lisboa e do
Porto.5 Também no Brasil, desde o século 17, a
Igreja realizou festas que congregavam todos
em torno de um fato extraordinário e ao mesmo
tempo introduziam hábitos e costumes em
uma população inculta e sedenta de formação
e informação. Nesse sentido, há relatos que se
referem às festas em que o papel da Igreja era
primordial, especialmente na organização das
procissões, que seguiam a tradição espanhola
e portuguesa, nas quais a sociedade se fazia
representar em suas diferentes camadas, como
os religiosos, os homens nobres e de negócios,
os militares, as ordens terceiras e as bandeiras de
ofício, os homens simples, sendo famosos os relatos
referentes à Bahia, a Pernambuco, ao Rio de Janeiro.6
Para compreendermos a festa no mundo por-
tuguês, em toda a sua expressão sociopolítica e
cultural, vamos analisar os elementos de sua es-
trutura, assim como sua importância como mó-
vel de um projeto único e grandioso que, para
se realizar, dependia do envolvimento das mais
diversas camadas da população, do nobre ao tra-
balhador comum, cada um realizando seu papel,
cuja participação em função do brilhantismo da
festa situa-se, pode-se dizer, no mesmo patamar
de importância.
A organização
Todas as ações em favor da festa partiam do
centro para as periferias, procurando unir todas
as partes num todo comum, isto é, trabalhando
no sentido de dar coerência a sua motivação,
enfatizando a figura do governante e de todas
as suas representações. Anunciada a festa, e
previsto o tempo de preparação, convocavam-
se as equipes de trabalho para a execução das
tarefas programadas.7 Os festejos eram descritos
por relatos de pessoas letradas, com licença
oficial para realizar tais narrativas. Esses relatos
funcionavam como “leitura autorizada” e se
detinham na organização das diversas etapas
da festa, conduzindo o leitor a uma verdadeira
viagem no tempo, criando também uma espécie
de receituário, que a tradição consagrou.
A etapa de preparação dava-se logo após o anúncio
da festa, mas nem sempre era cumprida dessa
maneira; houve festas no Brasil, por exemplo, que
ocorreram com grande defasagem em relação
ao motivo que as originou, pois, muitas vezes, o
anúncio da festa chegava ao interior com atraso,
e os preparativos não terminavam no tempo
previsto. Era comum, por exemplo, a dilatação
do tempo de preparação em função da própria
importância da festa, cujo programa, muito
complexo, precisava contar com profissionais
especializados, nem sempre existentes na região.
Entre os pesquisadores que mais contribuíram
com o estudo do tema festas reais realizadas na
cidade do Porto, Joaquim Jaime Ferreira-Alves
conseguiu reunir farta documentação arquivística,
analisada em seu trabalho A festa barroca no
Porto a serviço da família real na segunda metade
do século 18. Subsídio para seu estudo.8 Suas
pesquisas vão ajudar-nos a compreender melhor
a organização dos festejos, seu programa, a
execução de seu projeto, o tempo da festa, cujo
modelo posteriormente orientou as que foram
realizadas no Brasil, até o século 19.
A razão da festa ou motivação, o anúncio,
o bando
A motivação para as festas reais eram nascimentos,
mortes, casamentos, comemorações nacionais
relevantes. O primeiro passo era o anúncio,
feito através de carta régia ao governador das
Armas, ao Senado da Câmara, ao bispo, que
se encarregavam de dar as primeiras notícias.
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011 ARTIGOS | CYBELE VIDAL NETO FERNANDES56 57
Seguia-se depois a divulgação da notícia ao
povo, cuja participação era solicitada. O tríduo,
determinava que a comemoração tivesse pelo
menos iluminação por três dias, nas casas e na
cidade, missas e procissões. O programa da festa
era geralmente elaborado pelos homens cultos
da cidade, que se reuniam em suas instituições
e se colocavam a serviço do evento. Jaime
Ferreira-Alves chama atenção para o fato de que
nem sempre os três dias de programação eram
respeitados, pois o entusiasmo do povo levava ao
prolongamento das manifestações da festa por
muitos dias.
A notícia era divulgada nas ruas pelo “bando”,
grupo de pessoas que incluía o porteiro, o alcaide
da cidade, e homens e oficiais. Seguiam em trajes
de gala, alguns a pé outros a cavalo, todos bem-
vestidos, a tocar tambores e clarins, chamando
a atenção do povo nos dias que antecediam os
festejos anunciando, ao longo do dia, a grata
notícia. O bando tinha, na verdade, duas funções:
levar a notícia e abrir os festejos com os sons, os
trajes coloridos, o desfile, transmitindo a todos
o sentimento da festa, a ser absorvido pelos
habitantes da cidade.
Luz, sons ou ruídos
Elementos imprescindíveis na festa, seu uso era
enfatizado, no sentido de contaminar a cidade
e manter vivo o espírito da celebração. A luz era
um artifício ao alcance de todos, pois poderia ser
utilizada em maior ou menor quantidade, colocada
nas fachadas ou completando os carros e demais
arranjos ou as montagens em arquitetura efêmera,
que se multiplicavam pelas praças e ruas. Segundo
Jaime Ferreira-Alves, a luz transformava o cenário
da cidade “vencendo a escuridão e seus medos”.9
O espaço da cidade se prolongava através da luz,
como diziam os cronistas sobre a cidade do Rio
de Janeiro, no século 19, cujos morros surgiam ao
longe, como um verdadeiro presépio, iluminado
pelas velas de cera e lampiões variados. Nos salões
ou construções efêmeras, os lustres de cristal
iluminavam com suntuosidade o ambiente.
Às vezes, buscavam-se efeitos mais espetaculares
com o uso da luz: é o caso dos “transparentes” ou
painéis em papel com imagens ou textos escritos,
que realçavam com o efeito das sombras contra a
luz. As casas se enfeitavam e, ao mesmo tempo,
faziam saudações aos homenageados com
figuras simbólicas, votos ou versos, utilizando
textos clássicos, escritos por pessoas de formação
erudita, muitas vezes de difícil entendimento
pelo povo comum, mas recebido pela população
como forma correta de comunicação e saudação
ao homenageado.
Como exemplo, lembremos a decoração que o
artista inglês Mr. Bouck realizou, no Rio de Janeiro,
por ocasião da festa de aclamação de dom João VI,
quando foi contratado pelo intendente de polícia
Paulo F. Viana para decorar a fachada de sua
residência, no Campo de Santana. Mr. Bouck
criou um aparatoso conjunto, com efeitos dos
transparentes, com o retrato do rei, ao lado dos
Gênios dos Três Reinos, Portugal, Brasil, Algarves,
arrematado com a frase “A indelével memória da
feliz coroação do Augusto Senhor dom João VI”.
Os sons eram também muito importantes: todos
os sinos tocavam acordando a cidade; os navios
faziam suas descargas nos portos e baías, os
tambores se sucediam nos desfiles, o povo cantava,
e os múltiplos sons se misturavam, mantendo
a animação da festa. Seguindo a tradição, os
relatos sobre as celebrações no Rio de Janeiro
testemunham as salvas de canhões das fortalezas
que protegiam a entrada da Baía de Guanabara
e dos navios ancorados no porto, a acordar a
população e a acompanhar os acontecimentos.10
Os homens ricos e de negócios promoviam bailes
e jantares faustosos em suas residências, em que
a música estava sempre presente.
Ofícios religiosos: missas, Te Deum, procissões
A Igreja tinha participação obrigatória nas festas,
e o fazia com grande pompa, promovendo
cerimônias para as quais eram preparados cenários
e ornamentações que às vezes ultrapassavam
o espaço dos templos, quando havia cortejo
pelas ruas − os moradores emolduravam as
janelas com colchas e toalhas bordadas, jogavam
flores, iluminavam suas casas, saíam às ruas para
participar da celebração.
Nas solenidades da aclamação de dom Pedro I, o
Te Deum, ou missa solene, foi celebrado na capela
imperial, logo após dom Pedro ser aclamado pelo
povo e homenageado com uma salva de 101
tiros, do palacete armado para a celebração, no
Aclamação de D. Pedro I Imperador do Brasil, no campo de St.ª Anna no Rio de Janeiro
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011 ARTIGOS | CYBELE VIDAL NETO FERNANDES58 59
Campo de Santana. As procissões eram também
desfiles de grande significação, contando com a
presença das mais altas representações da Igreja,
do Estado, da sociedade local, além dos grêmios
e demais agrupamentos.11 No Rio de Janeiro, a
mais famosa era a Procissão das Cinzas, que
seguia com grande aparato pelas ruas da cidade
abrindo os festejos da Quaresma. Essas procissões
barrocas, nas regiões interioranas, tinham um
tom ainda mais dramático, sendo o ponto alto da
festa nas comemorações em honra da família real
ou nas festas do calendário litúrgico.
Touradas
Entre as muitas manifestações que ocorriam na
festa, eram observados jogos e outras atividades
de grande gosto popular, como as “touradas”.
Eram espetáculos preparados com muito
aparato, precedidos por desfiles alegóricos, pelo
carro de aguar o chão, por música, dança e fogos
de artifício. Não havendo praças de touros, eram
montadas praças provisórias em algum terreno
propício da cidade para abrigar os espetáculos:
“Sobre os divertimentos o mais célebre e plausível
é o combate de touros, ou seja a pé ou a cavalo:
festa (...) para a qual todos concorrem com
grandes gostos, e se fazem com muito aparato e
magnificência”.12
Simulações de batalhas e lutas
Eram de grande gosto popular as lutas e simulações
de batalhas vitoriosas, revividas através de um
verdadeiro teatro de rua. As batalhas sempre
foram apresentadas como espetáculo popular de
sucesso, desde os tempos dos jogos romanos. Em
Portugal, segundo Ferreira-Alves, tinham muita
aceitação as lutas entre cristãos e mouros, nas
quais homens portando vestes e armas medievais
lutavam em defesa de suas convicções religiosas. Às
vezes esses combates se davam na arena, antes das
touradas, animando o povo para a luta final com os
animais. “Em 1757, João de Almada e Melo, para
comemorar o aniversário de dom José I – em 6 de
junho – realizou na Cordoaria um exercício militar
que consistiu no ataque a uma fortaleza...”13
O teatro, as óperas, a música, o canto
A programação de gala dos teatros era muito
esperada, principalmente as óperas, por serem
espetáculos mais completos, com o canto e a
dança, indumentárias apropriadas, cenários muito
elaborados. Às vezes as companhias de óperas
vinham de longe para promover os espetáculos,
previamente anunciados, e muito aguardados pelo
povo. Era comum as representações ultrapassarem
os dias previstos para a festa, bem como haver
necessidade de improvisar a construção de um
teatro, resultando desses espaços efêmeros,
por exemplo, o Teatro do Corpo da Guarda e
posteriormente o Teatro São João, no Porto. No
Brasil, na aclamação de dom Pedro I, Debret criou
um novo pano de boca, uma alegoria na qual
o governo imperial foi representado como uma
mulher sentada e coroada, usando túnica branca
e o manto ricamente bordado, portando as armas
do imperador e segurando na mão direita a
Constituição do Brasil.14
A arquitetura efêmera, os artistas e artífices
A festa transformava o espaço da cidade, com o
recurso das arquiteturas efêmeras. Para realizá-las
eram chamados os melhores artistas e artífices,
mão de obra especializada, capazes de responder
adequadamente pelos numerosos projetos de
cenários e carros alegóricos, de difícil execução.
Desde o mais simples artesão ao mais bem
formado, como o alfaiate, o ferreiro, o marceneiro,
o arquiteto, o escultor, o pintor, todos eram
requisitados para trabalhar em função da festa,
geralmente em espaço de tempo muito reduzido.
A Igreja, as representações, o Exército, o Senado
da Câmara, todos propunham projetos, cujos
temas eram buscados no vocabulário clássico e
nas gravuras das festas reais, que percorriam toda a
Europa. De modo geral, eram erguidas “varandas”
para as autoridades, muitos arcos de triunfo e
obeliscos, espaços provisórios para celebrações,
teatros, monumentos ao homenageado. Sabe-se
das atividades desses profissionais pelos numerosos
contratos que assinavam para esses empreendimentos
e também pelos frequentes processos referentes à
falta de pagamento aos executantes.15
Por ocasião da aclamação de dom João VI foi
erguida a Varanda da Aclamação, projeto do
Festas do casamento de dom João e dona Carlota Joaquina em Madri. Muzi (a.,d.,1785). Óleo sobre papel, 37 x 54 cm. Dom João VI e seu tempo. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999: p. 175. Lisboa, Coleção Maria Keil Amaral. Foto André Ryoki
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011 ARTIGOS | CYBELE VIDAL NETO FERNANDES60 61
arquiteto português João da Silva Muniz. Fazia face
com a frontaria do antigo Convento do Carmo,
abrindo-se para a praça através de 19 arcos,
sendo o central destacado do plano de fundo,
em formato de tribuna. No interior, ricos lustres
de cristal, paredes revestidas de veludo e seda,
e pinturas alegóricas no teto comemoravam as
virtudes de dom João. Ali o rei, sentado no trono,
de uniforme e segurando o cetro − de acordo
com a tradição e o protocolo − foi aclamado,
mas não coroado. A coroa foi depositada em
uma almofada a seu lado, durante a cerimônia.
A música ficou a cargo da orquestra de músicos
austríacos trazidos pela princesa Leopoldina.
O espaço mágico da festa
A festa se fazia em grandes espaços, fossem os
fechados das residências, edifícios públicos, igrejas e
teatros ou os abertos das ruas e praças. Jaime Ferreira-
Alves lembra que, na maioria desses espaços, havia a
duplicidade do uso, que se alternava entre o sagrado
e o profano. Geralmente determinada atividade
tinha seu percurso demarcado por um mapa oficial,
e esse espaço era então preparado adequadamente
para tal função, como se pode observar em vários
documentos da época.
Em 1810, para comemorar o casamento da
infanta Maria Tereza, em uma armação munida
de fogos e profusamente iluminada, o Gênio da
Concórdia coroava um grande painel oval com os
retratos de dom João e dona Carlota Joaquina e,
mais abaixo, protegidos pelo Himeneu, divindade
grega protetora dos casamentos; outros dois painéis,
colocados nas esquinas, tinham os retratos dos
noivos, dom Carlos e dona Maria Tereza. Seis meses
depois ocorreram mais sete dias de festas, a cargo
do intendente de polícia Paulo Fernandes Viana. No
Campo de Santana, foi montado um imenso jardim,
com anfiteatro quase circular, com 348 camarotes,
em dois andares. Uma ampla varanda com três
janelas dava acesso à chamada Praça do Curro, com
cenário tropical de jardim com palmeiras.
Fogos de artifício e carros alegóricos
Como a luz e os sons, os fogos de artifício
não poderiam faltar nas festas reais, sendo
utilizados de forma cada vez mais complexa.
Recurso de grande efeito, requeria a contratação
de especialista em sua preparação e estava
associado às encomendas oficiais. Os fogos de
artifício eram geralmente utilizados nas touradas
e desfiles de carros alegóricos, e proporcionavam
momentos espetaculares na festa.
Os carros alegóricos também não faltavam e
eram sempre muito esperados. Criações muito
originais, eram, de modo geral, oferecidos pelas
Pano de boca executado para o Teatro da Corte, para a representação da cerimônia por ocasião da coroação do imperador dom Pedro I
Vista exterior da varanda da aclamação de dom João VI (no Rio de Janeiro)
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011 ARTIGOS | CYBELE VIDAL NETO FERNANDES62 63
associações de comércio e homens de negócio,
e baseavam-se nos temas mitológicos, utilizando
representações simbólicas e alegóricas, em
função do homenageado. Eram construções
bastante complexas, com figurantes fantasiados
e recursos de jatos de água, luz, fogo, som. Esses
desfiles buscavam animar o povo e estimular sua
imaginação; assim sendo, adotavam também
temas exóticos, recebidos com entusiasmo, ao
lado do vocabulário clássico, mais comum, sendo
lembradas a áfrica, a China, as Américas com seus
mistérios. No Campo de Santana, comemorando
o casamento da infanta Maria Tereza, desfilaram
vários carros alegóricos ofertados: 1- comerciantes
do varejo e boticários (Carro da América); 2-
ourives de ouro e prata (a dança dos chineses);
3- negociantes de secos e molhados e de louças
(Carro da Imortalidade com a dança dos heróis
portugueses); 4- artesãos latoeiros, ferreiros,
segeiros, caldereiros (a dança dos mouros); 5-
carpinteiros que executaram a obra do curro
(danças militares); 6- um grande barco com
bailarinos. O Carro da América representava
o povo e as terras do Novo Mundo, através de
uma montanha sobre a qual uma índia, de pé,
simbolizando a América, a cabeça coroada com
um cocar de penas coloridas, arco e flecha na
mão, remetia à luxuriante floresta tropical, com
sua rica vegetação, flores e animais. Nesse carro
uma engrenagem fazia jorrar água ao longo do
percurso, refrescando o ambiente.
Esse painel sobre as festas reais no mundo
português revela que a festa é um acontecimento
singular, que desde o passado se manifestou nas
diferentes sociedades como instrumento eficaz
de socialização e perpetuação das tradições.
Muito importante em Portugal, chegou ao Brasil
e, graças às características da sociedade colonial,
foi assimilada de forma enfática, revelando a
complexidade da população, do espaço tropical,
das lutas pela sobrevivência, da forte presença
da Igreja, o verdadeiro poder em ação nas terras
da colônia. A festa, como estrutura organizada,
nunca foi estanque, e sofreu mutações ao longo
do tempo, mantendo porém suas características
mais marcantes, em função da glorificação do rei e
da fé comum. No Brasil, a festa promovia, ainda, o
conhecimento através do vocabulário esclarecido
utilizado, dos mecanismos de perpetuação de
tradições dos povos, das propagandas de ideias
e ideais de amor à terra, ao governante, à ordem,
como elementos estimuladores das ciências e das
artes, como formação da ideia de Brasil.
NOTAS
1 Tedim, José Manuel. Triunfo da festa barroca na
Corte de D. João V. A troca das princesas. Revista
Barroco, n.19. Belo Horizonte, 2001-2004:121-136.
2 Benoist, Luc. Versailles et la monarchie. Paris:
Éditions de Cluny a Paris, 1947, 5 V, V II, pranchas
23-31; Garnot, Nicolas Saint Fare. Le décor des
Tuileries sous le règne de Louis XIV. Paris: Ed. De la
Réunion des Musées Nationaux, 1988.
3 São muito conhecidos os relatos referentes às Procissões das Cinzas, de Corpus Christi, as entradas de bispos e principais da Igreja nas cidades, os festejos especiais das cidades e vilas, como o translado do Santíssimo Sacramento da Igreja do Rosário dos Pretos, em Vila Rica, para a Matriz de Nossa Senhora do Pilar, em 1733, denominado o Triunfo Eucarístico. Essa festa reflete todo o contexto da sociedade setecentista das Minas e foi descrita pelo lisboeta Simão Ferreira Machado, em relato publicado em Lisboa, em 1734. Cf. Fernandes, Luciano Oliveira. Festa barroca e documento-monumento. Disponível em www.ichs.ufop.br\memorial\trab2\1521.
pdf. Acesso em 17.9.2011.
4 Cf. Del Priore, Mary. Festas e utopias no Brasil
colonial. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994; ávila,
Afonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco.
São Paulo: Editora Perspectiva, 1980; Arantes,
Adalgisa. O Triunfo Eucarístico e a universalidade.
Revista Barroco n.15. Belo Horizonte, 1992.
5 O tema das festas reais vem sendo estudado
na Europa e em Portugal, inserido na história
das mentalidades. Interessa-nos mais de perto
a bibliografia ligada à Península Ibérica, pela
aproximação das culturas espanhola e portuguesa, e
seus reflexos nas festas da Corte. Foram contribuições
ao tema: Bonnet Correa, A. Arquitetura efímera.
Ornatos Y máscaras. El lugar y la teatralidade de
la fiesta barroca. In Teatro y fiesta em el Barroco.
España e iberoamérica. Barcelona: Ed. El Serbal,
1986; Tedim, J. M. A festa e a cidade no Portugal
barroco. Disponível em ler.letras.up.pt\uploads\
ficheiros\7544.pdf. Acesso em 12.9.2011; França,
José Augusto. Lisboa pombalina e o Iluminismo.
Lisboa: Livraria Bertrand, 1977.
6 Hansen, João Adolfo. Festas e sociabilidade do
poder real e as festas públicas no Rio de Janeiro
colonial. São Paulo: Edusp, 2001.
7 Gervásio, Flavia Klausing. Festas para El Rei.
Relatos e símbolos das festividades régias na América
portuguesa setecentista. Belo Horizonte, Dissertação
de Mestrado, UFMG, 2008.
8 Ferreira-Alves, J. J. A festa barroca no Porto ao
serviço da família real na segunda metade do
século XVIII. Subsídios para o seu estudo. Revista
da Faculdade de Letras. Porto, s.d. Disponível em
ler.letras.up.pt\uploads\ficheiros\2102. Acesso em
30.8.2011.
9 Ferreira-Alves, op. cit.:18.
10 Para descrição completa da cerimônia, ver Souza,
Octavio Tarquinio de. A vida de D. Pedro I. In História
dos fundadores do Império do Brasil. Belo Horizonte/
São Paulo: Itatiaia/Edusp, 3v, 1988.
11 Segundo Maria Helena O. Flexor, passaram ao
Brasil as Procissões de El Rey ou Procissões Gerais,
como rezavam as Constituções Primeiras ordenadas
pelo Direito canônico, leis e ordenações do Reino e
costume do Arcebispado da Bahia. Flexor, Maria H.
O. Procissões na Bahia: teatro barroco a céu aberto.
Disponível em http-www.ichs.ofop.br-memorial-
trab.2-152. Acesso em 30.8.2011.
12 Ferreira-Alves, op. cit.:24.
13 Ferreira-Alves, op. cit.:26.
14 Debret, J.-B. Viagem pitoresca ao Brasil. São
Paulo: Edusp, 1978:326-329.
15 Para a festa eram convocados artífices e artistas
disponíveis na cidade, obrigados a colaborar
sob pena de multa. Havia trabalho para todos e
seria impossível listá-los aqui. Quando os mestres
franceses chegaram ao Rio de Janeiro no século 19,
Grandjean de Montigny e Debret trabalharam muito
para as festas da corte. Também são citados os
artistas portugueses que estavam no Rio de Janeiro: o
arquiteto João da Silva Muniz, na Aclamação de dom
João VI; o inglês Mr. Bouck, no casamento da infanta
Maria Tereza; Manoel da Costa, decorador português,
pintor e cenógrafo, que chegou ao Rio de Janeiro
em 1811; Luiz Xavier Pereira, maquinista do Teatro
Real, e muitos outros registrados nos contratos de
encomendas ou que ficaram no anonimato. Fernandes,
C.V.N. As construções efêmeras e as transformações
dos cenários para as festas e celebrações na Corte do
Rio de Janeiro. Anais do CBHA: Rio de Janeiro/Belo
Horizonte: Comarte, 2009.
Cybele Vidal Neto Fernandes é doutora em
história social da cultura, pós-doutoranda pela
Universidade do Porto, Portugal, e professora do
Departamento de História e Teoria da Arte do
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da
Escola de Belas Artes da UFRJ.
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201164 65ARTIGOS | CRISTINA PIERRE DE FRANÇA
O século 19 foi intenso no campo da arte, tanto na
Europa quanto no Brasil. Em sua segunda metade,
dois artistas polarizaram a preferência dos críticos
e do público do país, Pedro Américo (1843-1904)
e Victor Meirelles (1832-1903). Formados pela
Academia Imperial de Belas Artes, ambos refletiam
as tensões do meio artístico nacional, de um
lado norteados pelos ensinamentos da Academia
Imperial de Belas Artes, formadora de sua filiação
artística, de outro, pelas novas correntes da arte
europeia com as quais tinham contato, devido ao
Prêmio de Viagem ganho por Meirelles, que o tornou bolsista da Academia Imperial, e à bolsa concedida
pelo imperador a Américo, o que lhes proporcionou longa estada no velho continente.
No caso de Victor Meirelles, essa aproximação das correntes europeias de arte pode ser observada nos
Panoramas, produzidos pelo artista no final do século 19. Essa modalidade artística corresponde a
uma forma específica de representação da paisagem realizada no país, com maior intensidade a partir
da segunda metade do Oitocentos, observada nas representações dos pintores nativos e dos artistas
viajantes que aqui aportavam.
É importante distinguir essa pintura de paisagem, em voga no Brasil do século 19, que representava a
natureza local, do Panorama como invenção. No primeiro caso, as pinturas de panorama podiam ser
A IMERSÃO NO PANORAMA DE VICTOR MEIRELLES
Cristina Pierre de França
imersão panoramailusão século 19
Fruto da tese de doutorado A paisagem imersiva: O Panorama do Rio de Janeiro, de
Victor Meirelles e a videoinstalação Fluxus, de Arthur Omar, defendida no Programa
de Pós-Graduação de Artes Visuais da EBA/UFRJ, orientada pela profa. Ana Cavalcanti,
o artigo discute a questão da imersão e sua constituição no Panorama, um meio que
alia tecnologia e entretenimento no século 19.
Panorama de Mesdag. The Hague. RotundaFonte: Comment, Bernard. The Painted Panorama. New York: Harry N. Abrams,Inc, 2000: p88
IMMERSION IN THE PANORAMA OF VICTOR MEIRELLES | The article discusses the issue of immersion and its constitution in the Panorama, a medium that combines 19th-century technology and entertainment. This paper is the result of my doctoral thesis − Immersive Landscape: The Panorama of Rio de Janeiro by Victor Meirelles and the video-installation Fluxus by Arthur Omar, presented to PPGAV-EBA/ UFRJ, under the guidance of Prof. Ana Cavalcanti. | Immersion, Panorama, Illusion, 19th century.
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201166 67ARTIGOS | CRISTINA PIERRE DE FRANÇA
realizadas sobre superfícies como papel ou tela
e tinham em comum a ênfase ou o predomínio
da horizontalidade, que determinava a visada do
espectador. Essas representações panorâmicas
apresentavam vistas das cidades a partir de um
ponto de vista elevado e tendiam a expandir a
visão a um ângulo mínimo de 180º. Embora
esse tipo de obra apresentasse a vista estendida
horizontalmente de um local, as dimensões da
obra não eram determinantes em sua fruição
e feitura. Podiam-se encontrar pinturas de
panoramas de dimensões tão reduzidas, que
sua visualização exigia o uso de lupas. No
segundo caso do Panorama, entendido como
meio imagético, as dimensões e a forma circular
ganhavam caráter fundamental, aliadas a uma
série de aparatos mecânicos e técnicos para sua
execução, incluindo a construção de edifícios
circulares para abrigar a tela.
Produções artísticas do final do Setecentos, os
panoramas representavam locais ou situações
determinados sob perspectiva ilusionista,
enfatizada pela dimensão ampliada do tema
pintado, configurando a situação categorizada
como imersão.
A imersão é definida como o “ato ou efeito de
imergir(-se), de submersão ou de afundar-se,
adentrar-se”.1 Nas acepções do termo estão
presentes caracteres reflexivos pelos quais a
imersão é fruto de uma ação voluntária do sujeito
de penetrar, de se deixar absorver, e que assinala
como consequência a ocultação, a subsunção do
sujeito no interior daquilo no qual imerge.
Na arte, a imersão seria um estado amplificado,
maximizado da ilusão, que agencia condições
mentais e corporais introdutoras do espectador
mais intensamente na cena e no objeto imagético
ali representado. Distinguimos duas operações: a
primeira seria de fusão das realidades atualizada
e representada, fundindo o espaço imaginário e
o real; a segunda seria do esmaecimento dos
aspectos do mundo contingente e da emergência
das qualidades intrínsecas da representação, que,
artificialmente, criam realidade paralela, a qual
pode ser divisada contemporaneamente nas artes
visuais nas instalações e videoinstalações e, no
século 19, nos panoramas.
Segundo Oliver Grau, a imersão é fato constante
na história da imagem e na história da arte. Nesse
sentido, a presença da virtualidade, observada
na contemporaneidade a partir de tecnologia de
base digital e, ainda, da reconstrução de um local
ou de intervenções em determinados ambientes, é
um aspecto exacerbado da arte que já existia com
o meio de produção manual desde as pinturas
rupestres. Assim, a questão da imersão relaciona-
se à sugestão de ‘presentificação’ da obra, para
tornar a acepção do objeto representado o mais
concreto e real possível para o espectador. Opera-
se, então, uma mudança dos estados mentais
do público, que apresenta sua capacidade crítica
proporcionalmente diminuída à medida que a
obra solicita maior adesão de seus sentidos para
a percepção do ambiente no qual está imerso. Há
uma vedação das instâncias de julgamento do
espectador como consequência de sua adesão à
obra artística na qual está imerso.
O ambiente imersivo necessita cumprir
determinadas exigências; deve constituir-
se em local hermético, que veda o acesso a
sua exterioridade, pois fecha-se nele mesmo,
solapando as instâncias de ingresso ao que se
localiza além do recinto da obra. A interioridade
do local se potencializa por focos de apelo
que atraem a atenção do público, admitindo
a manipulação (em menor ou maior grau) de
alguns artefatos de seu interior, que se agregam à
vivência real do espectador.
A intenção é instalar um mundo artificial
que proporcione ao espaço imagético uma
totalidade (...) que preencha todo o campo
de visão do observador. Ao contrário
(...) de um ciclo de afrescos que retrata
uma sequência temporal de imagens
sucessivas, essas imagens integram o
observador em um espaço de 360º de
Victor Meirelles. Estudo para Panorama do Rio de Janeiro: morro do Castelo, c. 1885, óleo sobre tela, 100cm x 100cm. Acervo Museu Nacional de Belas Artes. VM 003 Doc. 0011Fonte: Coelho, Mário Cesar. in Victor Meirelles – novas leituras. Org. Maria Inez Turazzi. Florianópolis Museu Victor Meirelles: Studio Nobel, 2009: p124
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201168 69ARTIGOS | CRISTINA PIERRE DE FRANÇA
ilusão, ou imersão, com unidade de tempo
e lugar (...) os espaços imersivos podem
ser classificados como variantes extremas
de mídias imagéticas que, por conta de
sua totalidade, oferecem uma realidade
completamente alternativa.2
Em vez de enganar o olho, enganam-se os sentidos
− trompe les sens.3 Estabelece-se, assim, seu
aspecto realístico, uma configuração simuladora
da realidade com graus cada vez mais intensos,
como é o caso das experiências com ferramentas
e ambientes informacionais. A imersão formula
um lugar alternativo que, mesmo por segundos,
suspende a capacidade de discriminação e incute
no público a ideia de estar, de fato, no local
representado. Há um intercâmbio de realidade
em que o que existe além daquele espaço se torna
irrelevante, pois se adensa outra realidade, que
potencializa o aspecto dúbio do real.
Interessa-nos, neste momento, destacar a
questão da bipolaridade, da superposição e da
ambiguidade promovida por essa esfera fictícia,
a qual intercambia informações a partir da
atenção dividida entre o mundo imaginário e o
real promovida pelos ambientes imersivos. É nesse
sentido que aos objetos efetivos e materiais se
agregam outros, da instância imaginária e imaterial,
promovendo uma realidade em que se misturam o
concreto e o sugerido, o matérico e o ideado.
Nessa perspectiva, os panoramas e as
videoinstalações se constituem como lócus
privilegiado dessa intersecção entre os espaços
ilusório e efetivo, como um cenário cujos objetos
habitam simultaneamente um lugar concreto, no
qual se ativa a concomitante instância imaginária.
Um espaço que existe no aqui e agora da visitação.
Com duração de aproximadamente 115 anos,
o panorama teve seu apogeu durante o século
19. Stephan Oettermann, em seu livro The
panorama history of mass medium,4 vislumbra
estreita conexão entre a modalidade artística e o
Oitocentos, período no qual muitas das invenções
tecnológicas envolvendo a visão apresentavam
caráter híbrido, entre a pura visualidade, como no
caso da máquina fotográfica, e o espetáculo de
representação, como no caso das fantasmagorias.
Considerado invenção, o panorama, tal como a
máquina a vapor ou a luz elétrica, foi patenteado
pelo irlandês Robert Barker no final do século 18,
mais precisamente em 9 de junho de 1787. Como
meio de arte, o panorama apresenta algumas
peculiaridades. Podemos assinalar, entre elas,
a montagem circular das telas, seu caráter de
fidedignidade ao tema representado a partir
de uma visada de 360º, sua feição ambiental,
uma vez que constitui espaço específico em que
o espectador é introduzido, além da questão
espetacular que carrega.
Victor Meirelles apresenta-nos esses dois tipos de
panorama. No início de sua carreira, suas produções
paisagísticas da cidade de Desterro são pinturas
panorâmicas e, já no final do Oitocentos, apresenta-
nos os panoramas realizados segundo a concepção
de aparato híbrido entre a pintura de tela e as
execuções mecânicas, e objetos exigidos pelo meio,
entre a contemplação e o espetáculo de lazer.
Obras da maturidade, os panoramas entraram na
vida de Victor Meirelles bem antes de sua efetiva
execução. A vontade de realizá-los provavelmente
foi fruto da intensa impressão que eles lhe
causaram em suas viagens à Europa. Na biografia
do pintor, escrita por Carlos Rubens, cita-se Max
Fleiuss para assinalar que, entre a ideia inicial e a
efetiva execução do Panorama do Rio de Janeiro,
decorreram “mais de 17 anos”.5
Ainda em 1884, o artista fazia publicar no jornal
O Paiz um anúncio visando granjear sócios para
a empresa. Nesse texto, explica que o panorama
seria “a reprodução em vastíssima tela, de um fato
grandioso da história da pátria”;6 assinala também
seu potencial mercantil e o caráter pedagógico
para desenvolver o patriotismo nos cidadãos
brasileiros. Em 1885, Arthur Azevedo saudava
a intenção do artista de constituir empresa
para explorar o Panorama do Rio de Janeiro,
destacando o patriotismo e a feição comercial
do empreendimento.7 Esse empreendimento
mostra uma visão nova no campo da arte, a do
artista como efetivo negociante de seu trabalho,
compreendido também como espetáculo
relacionado ao lazer − visão que também estará
presente em algumas estratégias para ampliar
o público assistente, envolvendo ações que
chamassem atenção sobre a obra, como pequenas
notas e uma espécie de propaganda do evento.
Victor Meirelles realizou três panoramas: o da
cidade do Rio de Janeiro, o das ruínas da Fortaleza
de Villegaignon e o da descoberta do Brasil.
O primeiro trabalho desse gênero realizado por
Meirelles foi o Panorama do Rio de Janeiro, em
colaboração com o pintor e fotógrafo belga Henri
Victor Meirelles. Estudo para Panorama do Rio de Janeiro: entrada da Barra, c. 1885, óleo sobre tela, 56,7cm x 195,4cm. Acervo Museu Nacional de Belas Artes. VM 003 Doc. 0006Fonte: Coelho, Mário Cesar in Victor Meirelles – novas leituras. Org. Maria Inez Turazzi. Florianópolis/Museu Victor Meirelles: Studio Nobel, 2009: p124 e 125
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201170 71ARTIGOS | CRISTINA PIERRE DE FRANÇA
Charles Langerock (1830-1915). Seus estudos
iniciais aconteceram em 1885 e foram realizados
a partir do Morro de Santo Antônio. No início
de 1886,8 ambos partiram para a Europa com o
objetivo de executar a pintura, realizada na cidade
de Ostende, na Bélgica.
O Panorama do Rio de Janeiro teve sua primeira
exposição realizada em Bruxelas, e a abertura
oficial, realizada com grande pompa, aconteceu no
dia 4 de abril de 1887, contando com a presença
dos soberanos belgas. A exibição alcançou grande
sucesso de público, sendo visitada por cerca de 50
mil pessoas. Segundo Carlos Rubens, esse trabalho
serviu como motivação para comentários elogiosos
a respeito do Rio de Janeiro e do Brasil, assinalado,
então, como “nação mais notável da América”.9
Em 1889, Victor Meirelles partia com seu
Panorama para Paris, com o objetivo de mostrá-lo
na Exposição Universal. Assim como na Bélgica, o
trabalho causou boa impressão aos críticos de arte
e ao público, apesar de não ter repetido o sucesso
original, sobretudo por estar fora do circuito
principal do evento, próximo ao Campo de Marte.
Esse fato foi determinante para que o afluxo de
público a sua obra fosse menor do que o esperado
pelo artista, que, assim, não conseguiu manter o
Panorama na capital francesa além do prazo de
duração do grande acontecimento mundial.
Infelizmente, a produção imagética do panorama
só pode ser divisada por meio dos estudos
realizados para sua execução. Tanto esse primeiro
quanto os demais pintados por Victor Meirelles
foram doados pelo artista e sua mulher ao
governo brasileiro em 1902,10 e as gigantescas
telas foram irremediavelmente perdidas nos
galpões do Museu Nacional.11
Os seis estudos que restaram do Panorama do
Rio de Janeiro, de Meirelles, trazem uma cidade
construída em meio a uma floresta, que cede lugar
às construções que galgam morros, povoando
densamente certas áreas geográficas, como a que
ainda hoje é o Centro da cidade, por exemplo,
enquanto outras, com habitações esparsas,
são dominadas espacialmente pela natureza. A
vista da cidade nos apresenta um domínio das
edificações, das ruas que avançam pelas colinas,
sintoma da civilização num lugar longínquo e
exótico, como parte remanescente do ideário
romântico que ainda habitava a mentalidade do
homem europeu do Oitocentos.
A apresentação do Panorama do Rio de Janeiro
na Exposição Universal de Paris, em 1889, fazia
parte de um projeto com intenções diversas, entre
as quais podemos citar a exibição de cidades
distantes, em países exóticos e dominados pela
floresta tropical. Essa temática atendia à ânsia
da burguesia europeia por viagens a terras
longínquas. A obra também era uma tentativa
de conciliação entre arte e entretenimento,
amadorismo e capitalismo, exemplificada
pela companhia aberta para a exploração do
meio, que tinha como última instância sua
exploração econômica.
Esse trabalho estava relacionado ainda à inscrição
do Brasil no circuito das nações com contribuições
para o progresso mundial, pois apresentava o país
como terra em que a natureza inóspita já teria sido
contida e que o homem comum poderia habitar,
objetivando, com isso, incentivar a imigração,12 e
estando, por esse aspecto, em consonância com
o espírito moderno e industrial que a mostra
trazia à baila. Para isso, contribuíam os diferentes
produtos exibidos, entre maquinarias, invenções e
exemplares da flora e da fauna nativa dos países
partícipes, incluindo-se também os novos meios
tecnológicos destinados ao entretenimento das
massas, como os panoramas e os dioramas.
Os eventos podem ser compreendidos como
representação da “expansão capitalista”,13 sob
a forma de construção materialmente visível,
similar à construção museográfica, no sentido de
apresentar visual e sistematicamente os objetos
constitutivos dessa sociedade que se estava
estabelecendo, com objetivos que não descartam
sua função pedagógica. Nessa perspectiva, as
exposições universais seriam “modelos de mundo
materialmente construídos”14 e, ainda, “veículos
para instruir (ou industriar) as massas sobre os
novos padrões da sociedade industrial”.15
Não está ainda devidamente esclarecida a razão pela
qual o Panorama de Meirelles não se encontrava no
pavilhão brasileiro destinado à apresentação das
obras de arte. O pintor teve de custear sua estada
na Exposição Universal, fato determinante para que
a obra ficasse fora do eixo principal das visitações
e, portanto, com menor afluxo de visitantes. Sabe-
se, entretanto, que tentou um patrocínio para a
manutenção de seu trabalho na capital francesa, de
acordo com carta publicada no jornal carioca Gazeta
de Notícias e assinada pelo Barão de Teffé.16 Talvez
um dos motivos tenha sido a pouca aceitação do
meio como atividade artística, devido a seu caráter
de entretenimento, ou a crise instaurada no regime
imperial brasileiro.
Não obstante a participação oficiosa em relação ao pavilhão brasileiro, o Panorama do Rio de Ja-neiro apresentava feição propagandista do Brasil, afirmando a “fórmula país-de-natureza-pródiga/país-aberto-à-imigração/país pragmático”,17 Nes-se sentido, algumas das motivações do artista estariam em consonância com a esfera governa-mental, sendo a mais visível o estímulo à imigra-ção de trabalhadores europeus para o Brasil.18
A opção por pintar panoramas feita por Victor
Meirelles indica que o artista estava sensível às
inovações que as artes plásticas apresentavam,
apesar do descrédito e da desvalorização artística
desse meio no país, que nos mostra, aliás, que,
apesar de pertencer ao círculo acadêmico, o
artista também era interessado nas novas mídias
e na pesquisa da imagem e de sua recepção.
O Panorama do Rio de Janeiro, pintado em conjunto por Meirelles e Langerock, teve cobertura da imprensa bem diversificada. Enquanto alguns jornais, como a Gazeta de Notícias,19 divulgavam com frequência a afluência dos visitantes e artigos com opiniões elogiosas sobre o Panorama, outros, como o Diário de Notícias, ignoraram a exposição, a ponto de inexistir cobertura no ano de sua inauguração e nos meses seguintes. Apesar do valor e do ineditismo da exposição na cidade, ela não teve na imprensa o destaque esperado; jornais importantes nem sequer noticiaram sua abertura ou fizeram comentários a seu respeito. Nesse sentido, como em Paris, o evento não obteve no Rio de Janeiro os resultados esperados de afluência de público, apesar das inúmeras tentativas de Meirelles de ampliar o número de visitantes. Ainda que a afluência do público não tivesse sido a estimada por Meirelles, o Panorama foi um acontecimento na cidade, como atesta artigo de João Ribeiro publicado no jornal O Paiz: “O Panorama é a great attraction do público fluminense. Lá fui, era a primeira vez que via um panorama. Gostei enormemente, imensamente. Belo e admirável como a própria natureza. Creio que consumi duas horas de alegre contemplação (...).”20
Para o espectador, o panorama seria uma antecipação do espaço cinematográfico, com suas grandes telas, causando impacto sensorial na plateia, lugar do espetáculo e do entretenimento. Outro artigo, sem assinatura, faz detalhada descrição do Panorama do Rio de Janeiro, realizado por Victor Meirelles, por ocasião de sua exibição nesta cidade em 1891:
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201172 73ARTIGOS | CRISTINA PIERRE DE FRANÇA
Dedicamos ontem, cerca de uma hora
à contemplação do Panorama da baía e
cidade do Rio de Janeiro, pintados pelos
artistas Victor Meirelles e Langerock e
exposto no antigo largo do Paço. (...)
No panorama de que agora nos
ocupamos, o visitante, assim que chega
ao terraço de observação, que tem
apenas cinco metros de elevação, tem a
sensação da vertigem que nos acomete
na altura de cinquenta metros.
A grande tela circular, que apresenta os
últimos planos a grande distância, funde-
se embaixo sem que lhe perceba solução
de continuidade, nos primeiros planos
reais, sólidos, verdadeiros, cobertos
de palmeiras verdejantes, de arbustos
vivos, de grama verde e viçosa cortada
por veredas e picadas, que despertam
a vontade de descer e observar o que
é realmente verdadeiro e o que é
artisticamente fingido.
O espectador deve destinar os dois ou três
primeiros minutos, para preparar os olhos
e o espírito para a impressão por assim
dizer nova (?) que vai sentir.(...)
Com os segundos e últimos planos
pintados, com os primeiros em relevo e
ornados por árvores, plantas e pedras
verdadeiras com os passarinhos voando
e chilreando por entre as folhas, os dois
artistas apresentam um espetáculo (...)
para ver-se e pelo qual lhes cabem os
maiores elogios.21
Esse impacto, essa confusão dos sentidos
encontram-se registrados nas inúmeras
impressões dos visitantes acerca da obra, um
misto de surpresa, arrebatamento e incredulidade
diante do que está diante de seus olhos. Muitos
descrevem que sua percepção da obra se aproxima
do sonho, provocando uma dúvida entre a
realidade e o apresentado imageticamente.
A compreensão da dimensão de ilusão que o
artista propõe é facilmente percebida na descrição
minuciosa do artigo publicado no jornal carioca
A Gazeta de Notícias e acima transcrito. Victor
Meirelles, com seu Panorama da Cidade do Rio de
Janeiro, participa, embora de forma marginal,
de uma prática da modernidade e aproxima-se
de algumas interlocuções artísticas de caráter
fenomenológico.22 Essa perspectiva de uma arte
fundamentada na questão perceptiva é basilar
nas experiências dos artistas europeus e também
se encontra, ainda que de maneira indireta, no
debate de arte nacional no final do século 19.
As impressões acerca das obras de arte que
estavam em circulação apontam para uma forma
de arte multissensorial. Em artigo publicado no
jornal O Paiz, João Ribeiro assinala esse caráter da
arte quando comenta sua visita a uma exposição
da escola livre, em texto anterior à exibição do
Panorama na cidade, em que afirma:
Todas as vezes que penso sobre as artes
figurativas, lembra-me sempre que elas
se fazem sob a cultura progressiva dos
sentidos. Primeiramente a visão, pela
arquitetura e pela pintura, depois o ouvido,
pela música. E eu imagino que em um
futuro remotíssimo por um refinamento
de artistas blasés haverá uma cultura do
olfato e uma arte do cheiro.23
Nesse texto João Ribeiro, no final do século 19,
alude à questão da multiplicidade de sentidos
envolvidos na recepção da obra de arte, o que
decerto antecipa algumas condições presentes
na arte da contemporaneidade. Pode-se observar
essa tendência principalmente nas constituições
de arte que utilizam as novas tecnologias, como
cinema 3D ou Caves, que procuram simulação
da realidade ou criação de realidade alternativa
e que integram em sua produção não só a
ambiência espacial, mas também uma gama de
proposições sensórias e espetaculares que ativam
a ambiguidade do real.
NOTAS
1 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2001:1.576.
2 Grau, Oliver. Arte virtual: da ilusão à imersão. São Paulo: Unesp/Senac, 2007: 30 e 32.
3 Pignoti, Lamberto. Apud Domingues, Diana. As instalações multimídia como espaços de dados em sinestesia. Relações corpo/arquitetura/memória e tecnologia. http://artecno.ucs.br; consultado em 13.8.2009.
4 Oettermann, Stephan. The panorama history of mass medium. New York: Zone Books, 1997.
5 Rubens, Carlos. Victor Meirelles sua vida e sua obra. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945:133.
6 O Paiz, 2.10.1884:2.
7 Azevedo, Arthur (sob o pseudônimo Eloy o Herói), Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 23.10.1885:1.
8 Rubens, op. cit.:134.
9 Idem.
10 Os três Panoramas realizados − O Panorama do Rio de Janeiro, A Entrada da Esquadra Legal em 23.6.1894, observada da Fortaleza de Villegagnon, e Descobrimento do Brasil − foram doados ao governo brasileiro em 2.7.1902 por Victor Meirelles e sua mulher, Rosalia Fraga Meirelles. Museu Nacional de Belas Artes. Pasta Victor Meirelles.
11 Elza Ramos Peixoto assinala a luta pela preservação dos Panoramas, exposta em correspondência trocada entre a Direção da Escola de Belas Artes e o Ministério da Justiça, ao qual a instituição era subordinada.
Proença, Angelo et al. Victor Meirelles de Lima: 1832-1903. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982:116ss.
12 Idem, ibidem:109.
13 Barbury, Heloísa. O Brasil vai a Paris em 1889: um lugar na Exposição Universal. Anais do Museu Paulista. N. Sér. v.4, São Paulo, jan.-dez. 1996:212. Disponível em www.scielo.br/pdf/anaismp/v4n1/a17v4n1.pdf, consultado em 31.5.2010.
14 Idem, ibidem.
15 Idem, ibidem.
16 A Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, 27.1.1891:1.
17 Barbury. Heloísa. A exposição Universal de 1889 em Paris. São Paulo: Loyola, 1999:216.
18 Além das questões econômicas, estavam em jogo também alguns aspectos de caráter político e cultural.
19 O número de visitantes à exposição do Panorama do Rio de Janeiro era frequentemente exibido na primeira página do jornal A Gazeta de Notícias. Desse modo, pode-se constatar que era maior nos finais de semana, principalmente aos domingos. Pode-se, portanto, deduzir que se tratava de programa de lazer familiar para a população da cidade.
20 Ribeiro, João. O Paiz, Rio de Janeiro 11.1.1891:1.
21 Artigo intitulado O Panorama do Rio de Janeiro, sem assinatura, publicado na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 5.1.1891:1.
22 Estas relações podem ser divisadas principalmente na dimensão auditiva que o artista interpõe em seu trabalho com o uso dos pássaros, os quais adicionam à obra um caráter sensorial fundado na amplificação dos sentidos em prol da intensificação da ilusão de estar na proximidade da natureza.
23 Ribeiro, J. O Paiz. Rio de Janeiro, 14.12.1890:1.
Cristina Pierre de França é doutora em artes
visuais pela EBA-UFRJ, atua como professora de
artes visuais no Colégio Pedro II e na Faetec, e
de história da arte na Unigranrio.
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201174 75ARTIGOS | LUCIANA ALVARENGA
A Vila de Itaúnas1 se localiza no extremo norte do
Espírito Santo, praticamente na divisa com a Bahia.
Um lugarejo bucólico de chão de terra batida, em
que vivem cerca de 2.200 pessoas.2 Nesse lugar,
encontramos grande diversidade de manifestações
culturais tradicionais, como o ticumbi, o jongo, o
alardo, o reis de boi, além de processos produtivos
artesanais como a confecção de cestos, barcos,
farinheiras, entre outros. Nesse contexto, a vila se
apresenta como um dos principais ‘palcos’ de representações das tradições3 da região.
Suas origens, porém, se perdem no tempo e na falta de documentos conclusivos e específicos sobre o
assunto. Até meados do século 20, segundo histórias contadas pelos moradores mais antigos, a vila se
resumia a duas ruas principais paralelas à praia − a de baixo e a de cima –, com castanheiras e gameleiras
frondosas, cerca de 200 casas de estuque, rebocadas e assoalhadas, duas padarias, armazéns, um posto
dos correios, uma escola, uma igreja na parte mais alta da vila e um cemitério. As casas eram geminadas
e possuíam quintal nos fundos com árvores frutíferas, hortas, criação de galinhas e porcos. Contornando
o povoado, o Rio Itaúnas era a principal via de comunicação com o mundo, e em suas margens ficavam
os barcos dos pescadores.
O TICUMBI: imagens e memória da Vila de Itaúnas
Luciana Alvarenga
ticumbi imagemmemória Vila de Itaúnas
O ticumbi se constitui como importante veículo de recriação do passado e de
elaboração do presente. É através dessa expressão que as histórias de uma vila são
construídas e reconstruídas, por meio de cultura que privilegia a oralidade, mas que
se expressa na visualidade, trazendo à tona o imaginário local. O artigo é fruto da tese
de doutorado em Artes Visuais (Imagem e Cultura)/UFRJ A festa e as representações
culturais do ticumbi: imagens e tradições da Vila de Itaúnas, ES, sob orientação do dr.
Rogério Medeiros.
Luciana AlvarengaA roda grande, 2010, arquivo digitalFonte: Alvarenga, 2011
TICUMBI: images and memory of the village of Itaúnas | Ticumbi, an Afro-Brazilian ritual, is an important event for recreating the past and preparing the present. It is through this folk expression that the stories of a village are built and rebuilt through a culture that appreciates the spoken word, but which is expressed in the visuality, bringing to the fore the local imaginary. | Ticumbi, image, memory, village of Itaúnas.
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201176
Há cerca de 70 anos, porém, uma misteriosa e sutil catástrofe paulatinamente se abateu sobre o lugar. Tudo começou com uma areia fina a invadir as ruas, formando pequenos montes junto às paredes externas das casas. Areia que podia ser rapidamente removida com enxada ou pá sem grandes problemas até então. No entanto, ela começou a entrar portas adentro e se refugiar sob os móveis. E, sem que isso fosse percebido, a areia que antes estava restrita à praia, passou a dominar a paisagem. Enquanto se conseguia colocá-la para fora das casas e tirar os pequenos montes das ruas e da praça, a areia foi de certa forma tolerada. Havia dias, contudo, em que o vento ficava mais forte, e a areia chegava com mais volume. Com o passar do tempo, ela modificou completamente a fisionomia da vila, e os montes de areia tornaram-se cada vez maiores. A igreja e o cemitério foram os primeiros a ser soterrados. Com o passar dos anos, a vila inteira foi desaparecendo sob as enormes dunas.
Com esse processo, a população precisou tomar medidas drásticas: alguns foram embora para outras localidades, outros resolveram recriar e refundar a comunidade. A mudança da antiga vila para a nova, iniciada no final da década de 1950, quando os primeiros moradores resolveram abandonar o lugar, só veio a terminar com a saída dos últimos habitantes, em 1974, cerca de 15 anos depois. No processo do soterramento, a vila foi atravessando lentamente o Rio Itaúnas e se instalou na outra margem. Quando a mudança não se consubstanciava de modo literal e físico, utilizava-se a imagem do que havia antes na tentativa de construir algo semelhante ou parecido. Junto com cada pedacinho da vila antiga que passou para a nova vieram as histórias mágicas e ricas do passado local, além de inúmeras tradições culturais. Enquanto carregavam seus móveis e pertences, os moradores levavam sua
história, seus costumes e sua cultura material.
Ininterruptamente durante mais de um século,
todo mês de janeiro acontece a festa em
homenagem a São Benedito e São Sebastião.
Segundo os moradores mais antigos, celebrar os
dois santos é também uma forma de precaução, de
impedir que a nova vila e seus moradores sofram
dos mesmos males e maldições que provocaram
o soterramento da antiga Itaúnas. A festa é
uma tradição desde os tempos do Império e da
escravidão − nem o processo do soterramento
conseguiu interrompê-la. A homenagem aos
dois santos está presente no calendário anual
do Município de Conceição da Barra e do Estado
do Espírito Santo. Mas, São Benedito, ou São
Bino, como o chamam seus devotos, possui
calendário à parte, também anual, que se inicia
com os ensaios dos grupos de ticumbi nas roças,
nos meses de outubro e novembro.
A festa e o ticumbi
A festa de São Benedito e São Sebastião é conside-
rada o principal evento da região. Durante uma se-
mana, ocorrem na vila apresentações, procissões,
missas e diversos tipos de danças e encenações. O
ticumbi é a principal manifestação cultural da fes-
ta, representando seu clímax e seu cerne. São os
membros do ticumbi que desencadearão todos os
processos e todas as ações do evento. Em processo
não linear no qual ocorrem vários acontecimentos
concomitantes, a festa se inicia com o último en-
saio nas imediações da vila. O evento dura a noite
inteira e culmina com procissão ao longo do rio e
das ruas de Itaúnas.
O ticumbi4 é a denominação dada ao baile de
congos do Vale do Cricaré − região que compre-
ende os municípios de Conceição da Barra e São
Mateus −, manifestação cultural que é sobretudo
uma espécie de enciclopédia virtual local, em que
cada verbete se encontra delegado a um morador
da vila. Cada habitante desse lugar, seja idoso ou
criança, tem uma história para contar, um mito ou
uma lenda para lembrar. E o principal veículo lo-
cal para essa transmissão de conhecimento é o ti-
cumbi, que em sua dança, suas letras e sua música
carrega histórias e lendas que atravessam séculos.
Algumas dessas histórias vieram da áfrica, outras
surgiram nas senzalas e nos quilombos que ali já
existiram e dos quais há hoje remanescentes; mui-
tas falam da vila antiga, outras, da nova.
No ticumbi, as tradições locais e ancestrais são
relembradas e recriadas infinitamente, ano a ano.
É um processo familiar que passa de pai para filho,
transpondo gerações. No centro dessa história
está São Benedito, padroeiro dos negros, pobres
e oprimidos, cuja imagem que se encontra hoje
na vila se supõe ser a chave para o mistério do
soterramento.5 De acordo com alguns relatos, o
ticumbi é criação de Silvestre Nagô,6 negro escravo
que, para animar seus pares, inventou os folguedos,
rapidamente transformados em modo de lembrar
e reviver o passado, fortalecer laços e identidades,
manter e reconstruir memórias e de mobilização
da própria comunidade que o produzia. Essas
características se mantêm nos dias atuais.
Personagens e indumentárias
O ticumbi possui estrutura hierárquica − reis, embaixadores e secretários − que conta a batalha mitológica entre o rei de congo, cristão, e o rei de bamba, pagão. Cada rei possui um secretário, e ambos possuem corpo de baile composto por dois guias, dois contraguias e número variável de congos, que representam os guerreiros das duas nações. Acompanha-os ainda um violeiro. Todos se vestem a caráter para a encenação, respeitando um modelo de indumentária. Usam longas batas brancas, rendadas, atravessadas por fitas coloridas. Vestem calças compridas brancas com ou sem frisos vermelhos. Cobrem a cabeça com lenço branco e coroa enfeitada com flores e fitas coloridas. Os reis usam coroas de papelão ornamentadas com papel dourado reluzente (às vezes, usam papel prateado), trazem peitoral espelhado com flores brilhantes e capa comprida, também florida. Para completar o figurino, carregam longa espada. Os dois secretários também usam capa e espada (o que os diferencia dos congos).
Enredo
Composto por danças e cantos, as danças do
ticumbi simulam o volteio dos guerreiros, numa
Luciana AlvarengaA procissão, 2010, arquivo digital Fonte: Alvarenga, 2011
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201178
espécie de combate gingado; os cantos são
alternados com as falas dos reis e dos secretários,
entoados em conjunto pelos congos das duas
nações. Acompanha os cantos o som dos pandeiros
e da viola, que dá o tom da música. O enredo
se constitui na rivalidade dos dois reis negros
(congo e bamba) que pretendem realizar a festa de
São Benedito, o que só um deles poderá fazer. Os
secretários levam os desafios de seus senhores ao rei
rival, em ato denominado embaixada.
Como não há acordo entre as duas nações, a
guerra é iniciada com luta bailada. Essa guerra
inicial é denominada primeira guerra de reis
congo ou guerra ‘sem travá’. Em seguida, com
a participação dos dois reis, realiza-se a guerra
travada, na qual os reis batem espadas junto com
seus secretários no centro de uma roda formada
pelos congos. Ao final da guerra, o rei bamba
é vencido, tendo que, junto com seus vassalos,
submeter-se ao batismo. Terminando a encenação
é realizada festa em honra ao rei de congo,
quando se canta e dança o ticumbi.
Uma das características mais interessantes dessa
manifestação é sua função de jornal narrado e
atualizado da localidade em que está inserido.
Como parte dos versos se modifica a cada ano,
o mestre do ticumbi se utiliza desse trecho da
apresentação para informar à comunidade local
assuntos do passado ou da atualidade que
ele considera relevantes. Podem ser temas de
interesse local ou até mesmo de âmbito nacional
ou internacional. É por intermédio dos reis,
de seus secretários e do corpo de baile que os
principais discursos − de ancestralidade, da vila
antiga e da vila nova, da relação com o lugar, de
identidade e de anseios da comunidade − são
expressos em praça pública. É importante destacar
que o ticumbi é processo vivo e paradoxal, pois
simultaneamente mantém e recria o passado,
trazendo para dentro de seu enredo as histórias
antigas e atuais da vila.
Imagens e memória da Vila de Itaúnas
Dos acontecimentos às visualidades presentes
nos vários dias da festa de São Benedito e São
Sebastião, dos rituais desenvolvidos − do ensaio
geral às dramatizações que ocorrem na vila −,
das indumentárias ao próprio cenário com a igreja
ao fundo, todo acontecimento hoje remete aos
processos, ações, visualidades, características e
eventos da festa na Itaúnas que foi soterrada. Como
observado e relatado pela própria comunidade,
em comparação entre as imagens fotográficas
da primeira igreja da vila antiga e da igreja atual,
pode-se afirmar que se trata de recriação,7 e,
conforme a informação geral dos moradores
mais antigos, essa semelhança não foi casual;
muito pelo contrário, houve deliberadamente um
processo de reconstituição da que foi destruída
pelas dunas no final da década de 1950. Nesse
mesmo parâmetro é possível também observar
que, após cerca de 50 anos do primeiro registro
fotográfico existente, além de mais de um século
de registro histórico oral, o ticumbi parece manter
os padrões ritualísticos e de visualidade. De acordo
com diversos depoimentos, falados e escritos, a
indumentária praticamente não sofreu mudanças
durante esse período. A ordem processual dos
acontecimentos também se manteve intacta − da
chegada das pessoas do entorno da vila, passando
pelos ensaios nas roças, pela procissão fluvial e
terrestre com os santos até a chegada à casa do
festeiro −, entre diversas outras características que
se mantêm praticamente inalteradas por mais de
100 anos até os dias atuais na nova Vila de Itaúnas.
Assim sendo, o ticumbi pode ser considerado
obra estética equiparada a sucessivas cenas
cinematográficas, reprisada ano a ano (como um
filme que é exibido uma vez por ano, todos os
anos), ao mesmo tempo em que é reformulada a
cada vez que é apresentada, por quem a assiste
e por quem a produz. É nesse contexto que
enquanto acontecimento ele se elabora como
forma ‘de estar em lugar de’. E é aí que mais
intensamente se revela o imaginário não só através
do imaginado, mas, sobretudo, do fazer imaginar.
O ticumbi se elabora através de meios essenciais
e existentes de sustentação da sobrevida dos
acontecimentos da vila antiga, pois nos envia ao
cenário da imortalização que há em seus afetos
e em sua memória. A partir dessa constatação,
percebe-se um de seus aspectos fundamentais,
o comunicacional,8 pelo qual são transmitidas
Em cimaLuciana AlvarengaO ticumbi, 2010, arquivo digital Fonte: Alvarenga, 2011
EmbaixoLuciana Alvarenga
A guerra travada, 2010, arquivo digital Fonte: Alvarenga, 2011
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201180 81ARTIGOS | LUCIANA ALVARENGA
as histórias que se consideram importantes,
aquelas que a comunidade pretende mostrar
como parte de seu imaginário e de seu passado
(recente ou remoto), mediante transposições
de narrativas em linguagens multifacetadas,
presentes nos personagens, nos versos, nas
músicas, nos cenários e nas encenações em
praça pública. No momento da encenação,
vestem-se apropriadamente, e esse cuidado
com a apresentação visual, de se fazer entender
pelo público – tanto os conhecedores como
quem nunca assistiu à festa –, de se mostrar
como parte de algo dramatizado, de um rito
tradicional, apresentando um código de decoro
segundo pauta de entendimento daquilo que “se quer
dar a ver”.9 No ato de encenar aquele indivíduo está
se apresentando da maneira como ele gostaria de ser
olhado e identificado pelas outras pessoas, ao mesmo
tempo está criando uma imagem do que deve ser a
vila no entender dele ou do grupo a que ele pertence.
A memória da vila antiga está presente em todas
as etapas da dramatização, nos personagens e
indumentárias, e, de forma pungente, nas letras do
ticumbi, que pode, por esse aspecto, ser caracterizado
como algo que realiza a passagem de um lugar a outro
e reidentifica os dois lugares tornando-os um só. É essa
transformação, essa transposição ou, melhor, essa
síntese que caracteriza e identifica a festa como a de São
Benedito e São Sebastião da Vila de Itaúnas. Assim,
o ticumbi nos possibilita compreender aquilo que
produz vínculos e elos, pois é o (re)ligare10 − na Vila
de Itaúnas essa ligação se constitui no presente,
entre as pessoas envolvidas na festa, ainda que
se trate também de ligação com os ancestrais e
com sua própria história. E é nesse sentido que
o momento também se contextualiza como uma
celebração e, sobretudo, a representação disso,
quando a vila se ‘transforma’ naquela que já não
existe.
Antiga ou nova, para os moradores Itaúnas con-
tinua sendo a mesma, e é nessa festa que po-
demos perceber isso em toda a sua magnitude.
Evidentemente, a vila nova não é a antiga, mas
os moradores, com essa festa anual, querem di-
zer a quem quiser ouvir (na verdade, falam para
eles mesmos) que as duas são uma só, ou melhor,
não existem dois lugares, mas passado e presen-
te. Assim como acontecia na Itaúnas antiga, essa
vila soterrada que emerge simbolicamente a cada
festa, todos os anos, sem nunca ter deixado de
acontecer, nem no período mais crítico da história
do soterramento, São Benedito é louvado e são
contadas histórias consideradas importantes para a comunidade, recados são lançados, discussões são empreendidas a partir da encenação do ti-cumbi que é, simultaneamente, lugar da oração, da fraternidade, da crítica, da comunicação e do
julgamento. É o lugar da família e da comunida-
de – é seu espelho. Quando a própria comuni-
dade acompanha a encenação, ela enxerga sua
imagem, seus valores, seu modo de vida, suas
lembranças e sua história. Vê sua alegria e sua
tristeza. Também ouve sua fala e sua música. Ao
mesmo tempo em que remonta aos tempos ime-
moriais, o ticumbi remete ao futuro, às discussões
sobre os conflitos existentes e sobre as melhorias
que podem ser promovidas. Enquanto o passado
é celebrado em atos dramáticos, no ticumbi se re-
escrevem os fatos históricos da Vila de Itaúnas, ou
seja, o passado é celebrado, mas também reescrito
e atualizado.
O passado, dessa forma, é recriado no próprio
acontecimento do ticumbi. O relato do passado,
por meio dessa ritualização, traz para o presente,
no momento da enunciação, o tempo e o espaço
– a vila antiga surge reinterpretada, corporificando
manifestações de um passado ainda vivo, que
deixa de ser passado e passa a ser presente. E é
nesse contexto que ocorre a mediação entre o
espaço, o tempo e o mundo dramatizado da vila
soterrada. As cenas presentes são refletidas no
conjunto das imagens acionadas do passado, um
passado revisitado e revivido durante o ticumbi. Os
discursos sobre o passado celebram as tradições
que são revivenciadas e reatualizadas no novo
espaço, no tempo de convivência do agora.11
NOTAS
1 A Vila de Itaúnas é a sede do distrito homônimo,
na zona rural do município de Conceição da Barra,
na microrregião do litoral norte do Espírito Santo.
O distrito faz divisa com os distritos de Conceição
da Barra e Braço do Rio, no mesmo município já
citado e, ao norte, faz divisa com o Estado da Bahia.
A vila atual está localizada a cerca de 700 metros
da antiga, na margem direita do Rio Itaúnas. Dista
cerca de 27km da sede do município de Conceição
da Barra, 53km de São Mateus e 260km da capital
do estado, Vitória.
2 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Contagem da população 2007: agregado por
distritos. Rio de Janeiro: IBGE, 2008.
3 A noção de tradição pressupõe permanências que
podem ser auditivas (faladas, cantadas, narradas)
e visuais (expressões corporais, gestos, paisagens,
etc.), referências a elementos que transportam ao
passado. As tradições, porém, estão em permanente
mudança, de acordo com o contexto e a situação
vivida; por meio de processos de ressignificações, as
tradições são utilizadas como estratégias discursivas
de continuidade do “passado histórico adequado”.
Hobsbawn, E.; Ranger, T. (Org). A invenção das
tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
4 O ticumbi é encenação que acontece na
modalidade de congos ou congada no Espírito Santo,
município de Conceição da Barra, tendo bailado final
que denomina o auto. Os reis de Congo e Bamba,
seus secretários e corpo de baile representam os
guerreiros de duas nações que lutam pelo direito de
festejar o São Benedito. Cascudo, L. C. Dicionário do
folclore brasileiro. São Paulo: Editora da USP, 2001.
5 A história oral local conta que a antiga vila foi
amaldiçoada depois que retiraram a imagem de São
Benedito da antiga igreja, fato promovido pela elite
branca que ali não queria um santo negro.
6 Líder revolucionário dos tempos da escravidão
presente na memória local até os dias de hoje.
7 Alvarenga, L. A festa e as representações culturais
do ticumbi: imagens e tradições da Vila de Itaúnas
(ES). Tese de Doutorado. Escola de Belas Artes/UFRJ,
Rio de Janeiro:UFRJ, 2011.
8 Geertz, C. A arte como sistema cultural.
In_________. O saber local: novos ensaios em
antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes,
1997:142-181.
9 Martins, J. de S. Sociologia da fotografia e da
imagem. São Paulo: Contexto, 2009:14-15
10 Duvignaud, J. Festas e civilizações. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1983.
11 Esse contexto foi apresentado em pesquisa que
trata das representações do passado no culto aos
mártires de Cunhaú realizada por Oliveira, L. A. O
teatro da memória e da história: Alguns problemas de
alteridade nas representações do passado presentes
no culto aos mártires de Cunhaú, RN. Mneme –
Revista de Humanidades. v.4, n.8, abr./set. 2003.
Luciana Alvarenga é professora-assistente
da Universidade do Estado de Santa Catarina.
Doutora em Artes Visuais (Imagem e Cultura) pelo
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da
Escola de Belas Artes da Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201182 83ARTIGOS | BETE ESTEVES
“O que há por toda parte são máquinas, e sem
qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com
as suas ligações e conexões.”1
A expresão quimera maquínica ou máquina
quimérica reúne os termos máquina, quimera e
maquínico.
Quimera, substantivo feminino, designa um
produto da imaginação, sem consistência ou
fundamento real; ficção, fantasia, sonho ou
projeto geralmente irrealizável. Combinação, real
ou fantástica, de elementos diversos num todo
heterogêneo ou incongruente, algo a que falta
unidade, coesão ou coerência. Em alquimia ou na mitologia, quimera é um ser artificial, criado a partir
da fusão de animais: cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente.
DE QUANTAS PARTES SE FAZ UMA QUIMERA MAQUÍNICA?
Bete Esteves
arte quimeramáquina maquínico
A partir da investigação transversal e transdisciplinar dos conceitos de Deleuze e
Guattari (esquizoanálise, inconsciente maquínico, máquinas desejantes) e de outras
abordagens críticas, como de Richard Sennett, Vilém Flusser e George Bataille, a
autora disserta sobre as relações entre máquinas e arte apresentando alguns conceitos
que pairam sobre a contemporaneidade maquínica. O artigo é fruto da dissertação
de mestrado Quimeras maquínicas, defendida na UFRJ em agosto de 2011, sob a
orientação do professor doutor Milton Machado.
HOW MANY PIECES MAKE UP A MACHINISTIC CHIMERA? | Based on cross transdisciplinary research on the concepts of Deleuze and Guattari (schizoanalysis, machinistic unconsciousness, desiring machines) and on other critical approaches by namely Richard Sennett, Vilém Flusser and George Bataille, the author writes about the relationship between machines and art, addressing several concepts which hover over machinistic contemporaneity. This article is the result of her Master’s thesis “Machinistic Chimeras”, defended at UFRJ, under the guidance of Prof. Dr. Milton Machado in August 2011. | Art, chimera, machine, machinistic.
Uroboros. 2009-2010. Painel de MDF, caixa de descarga plástica, tubo de PVC 40mm, tubo de PVC ½ “, perfis de alumínio, polia plástica de 2”, garrafa PET, molas, peso de chumbo, cordão de náilon, parafusos diversos, microbomba d’água 127Vac, microinterruptor, cabo AC tipo paralelo, torneira plástica, acionador de descarga, fio de cobre. 82.5x275X66mm. Coleção da artista
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201184 85ARTIGOS | BETE ESTEVES
Quando me referir a quimeras é preciso entendê-
las como criaturas mistas, pelo aspecto fantástico
e no sentido de sonho, da fantasia que conjuga
também o lúdico, o mágico e o movimento
da imaginação. Nesse caso, porém, não mais
personagens ficcionais e imaginários, mas
criações a partir de organismos reais, “células” de
duas ou mais máquinas que saltam da lenda para
inaugurar territórios. Combinações improváveis,
invenções que brotam da tentativa de semear
poesia, de lançar pequenas faíscas ao relento,
lumen de vaga-lume.
Maquínico é conceito de Deleuze e Guattari −
que aparece em O antiÉdipo, de 1972 − ligado
diretamente ao inconsciente que o concebe
envolvido com produtividades múltiplas.
Inconsciente maquínico é conceito segundo o
qual o inconsciente, diferentemente da concepção
de Freud, é produtivo − e o que ele produz,
acima de tudo, é o real em sua multiplicidade.
O inconsciente é, ele próprio, “máquina de
máquinas”. Reúne qualidades heterogêneas2 em
dinâmica e apresenta um infinito número de
possibilidades de forças. Variações de relações que
dizem respeito ao interior dos corpos, técnicos ou
sociais, microcosmos com seus ritmos, pulsações,
vibrações, “esquizes”, fluxos de cor, peso, forma,
movimento, força, sentido.
O conceito de Deleuze e Guattari de máquina
desejante, vinculado à ideia de que tudo
é máquina, entende máquina como uma
combinação de corpos e forças, conjunto das
partes que constituem um todo.
Se, para algo ser considerado máquina, é preciso
que se esteja em meio a uma relação de forças que
derivam e são derivadas de ações; se a energia
trocada entre as partes de uma máquina e as
relações estabelecidas entre elas são elementos
constitutivos de uma máquina – o que abrange
muitas processualidades –, pode-se afirmar, a
seguir, que tudo é máquina.
O maquínico, ligado ao desejo por sua vez ligado
ao inconsciente envolvido com produtividades
múltiplas e não com a falta. O inconsciente como
fábrica e não uma cena de teatro. A noção de
maquínico convoca à cena o sentido molecular e
não mecânico. Implica pensar a vida a partir de
seu caráter processual, de alterações contínuas.
Para além do fato de que as “quimeras
maquínicas” se encontram no âmbito artístico
e que abrem horizontes de emparelhamento
com as quimeras na biologia e na mitologia,
elas operam de forma semelhante. Na qualidade
de desejantes, o fazem maquinicamente e por
contágios, não mecanicamente, no sentido
trivial. Isso significa que não obedecem a um
sistema de relações progressivas, de causalidades
necessárias, automáticas e previsíveis entre
termos dependentes, mas funcionam por meio
de um “conjunto de ‘vizinhanças’ entre termos
heterogêneos independentes”,3 dos quais fazem
parte o homem, ferramentas, coisas e os animais.
Essas máquinas têm por peça tudo que as
atravessa − o homem, o meio social no qual está
inserido e os variados “tipos de fluxo que entram
em conjunção”.
Criadas para funcionar a partir de determinações
que geram indeterminações de movimento, essas
máquinas lúdicas produzem repetição. Não aquela
da máquina que reproduz peças homogêneas
ou funciona destinada à obtenção de resultados
previsíveis, mas repetições de diferenças. É
como se essas máquinas “esquecessem” quase
instantaneamente o produzido e se lançassem a
novas produções subsequentes, uma vez que seu
objetivo é o próprio produzir.
Resumindo, temos, então, “quimera maquínica”,
o objeto, a coisa; é quimera adjetivada como
maquínica, ou “máquina quimérica”, a máquina
adjetivada como quimérica, como híbrida, fusão
de vários. Os termos trabalham aqui em sentido
biunívoco; complementam-se.
Adoto a expressão “quimeras maquínicas”
para referir-me a um tipo de trabalho artístico
específico, máquinas ou partes de “máquinas
desejantes”, que encontram também na arte sua
residência, operam de forma mecânica e também
abstrata, e cujo funcionamento é maquínico,
como o do desejo.
Compostos de máquinas técnicas e artísticas
que trabalham se utilizando de partes mecânicas
− lidam com operações concretas −, partes
eletrônicas − lidam com impulsos elétricos,
que, destituídos de velocidade, formato ou
força, são apenas virtualidades, sensores que
captam informações e as repassam para as partes
mecânicas capazes de fornecer produtos, sistemas
e processos poéticos − e partes orgânicas –
interações manuais, perceptivas e sensoriais
Não são gadgets, aproximam-se mais de
“torções” mecânicas, junção de coisas deixadas
de lado. Versam sobre o brincar de tangenciar
micromundos distintos e gerar miniaturas ou
ampliações brincantes e extraterrestres.
Não são produtos do acaso ou da inspiração de ordem
divina, mas do deliberadamente escolhido para
formar uma combinação improvável “numa ação
dirigida e estratégica” que funda DNAs imprevisíveis.
Montam-se e se desmontam no encontro de funções
e rearranjos disfuncionais, da física quântica, da
engenharia reversa,4 da biologia, da eletrônica.
Máquinas que cometem impropérios, metonímias
e não metáforas. Nem identificação subjetiva, nem
cosmologia metafísica. Sistemas especificamente
desenvolvidos para se comunicar com seu
entorno. Formais, posto que precisam materializar-
se, mas não objetos puramente estéticos ou
contemplativos. Máquinas que se fazem, na
sutileza de sua condição desejante, abstratas.
Máquinas que espreguiçam poeminhas, encontros.
Capaz de dialogar, essa máquina, faz uso dos
próprios aparelhos existentes, cyber-científicos,
telemáticos, tecnológicos, e pode subverter sua
ordem ao romper sua camada mais superficial.
Não como forma de vingança ou contestação. Ao
fazer micropolítica na urdidura dos mecanismos
mais sofisticados pode penetrar, aí, um germe
de outra origem, brincar de jogador de dados
que combina novas e armazenadas informações.
Promover desencontros de desiguais, criar rodas
de novas articulações, inventar mundos que
prometam novas formas de pensar, fora da
programação dos canais e das redes.
A máquina quimérica que descrevo é também
autorreferencial, minha própria produção. Nasce
da vontade de desaprisionar as coisas do mundo
dos conceitos, dar um jeito de desaprender o
objeto, “desvê-lo”, enlouquecer seu sentido, tirá-
lo dos lugares-comuns em que se encontra no
mundo. Um pouco como diz Manoel de Barros ao
“desacostumar as coisas” ou fazer “inutensílios”,
fazê-lo “pegar delírio”, inverter, brincar com a
lógica tradicional dos objetos e das coisas.
Nasce de tentativas de união de mundos
divergentes, de desajustes, de combinações entre
os muitos possíveis, das circularidades, do último
suspiro, do sopro de vida, da existência material
e incorporal, de todos os objetos encontrados no
fundo de meu quintal, em meu mato maquinal
e orgânico, eletric circus celibatarium dos
movimentos. São exemplos a máquina de abrir
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201186 87ARTIGOS | BETE ESTEVES
Conjugam o saber teórico com a execução prática
e a experiência. Trata-se do dado processual,
lúdico e efêmero de uma entidade complexa em
constante tensão de experimentação e trânsito de
conhecimentos, que pega o produto de partes e
joga dentro de outras, gerando território propício
para o desenvolvimento e surgimento de novas
ideias e práticas, novas maquinações.
Podem constituir-se de diversidades de materiais,
que variam, por exemplo, do aço carbono das
bicicletas de Simon Starling, como Carbon
(Pedersen), 2003, e em Tabernas Desert Run, 2004,
a pedaços de objetos precários encontrados nas
diversas peças da montagem de The way things
go (Der Lauf der Dinge), 1987, dos artistas suíços
Fischil and Weiss, que incrementa e combina muitos
aspectos, como a movimentação, a montagem, o
precário e o caráter mágico do truque.
Como maquínicas funcionam em meio a quaisquer
episódios, banais ou sofisticados, mas sempre
em conexão com o meio no qual foram criadas
e funcionam e com quem as produz, caso das
Rotozazas, 1967, em que Jean Tinguely apresenta
uma instalação maquínica composta de uma série de
engrenagens que inclui o público como participante.
Trabalham com o dinamismo, a ironia, o lúdico que
fazem espreguiçar os sentidos e os estados afetivos.
Podem lidar também com o truque, a maquinação
que não quer ser desvendada por ninguém.
São igualmente “marginais”, no sentido de que
muitas vezes dissociam ação do entendimento
ou pensamento, numa espécie de esquizofrenia
produzida pela quantidade e qualidade de forças,
e alucinações que perpassam suas partes. Como
acontece na filosofia Patafísica,6 criada por Alfred
Jarry, inventor de máquinas na literatura com base
na superação da metafísica e em nova compreensão
do ser, que abole o princípio da não contradição.7
Allstars, 2010-2011, instalação; trilho, carrinho, motor, bandejas de plástico, palitos de dente, gotejador, câmara de segurança, monitor e Programmable Interface Controller – PIC; Bete Esteves, 300x30x20cm, coleção da artista
Podem estar sujeitas, como as máquinas
celibatárias, à autodestruição, como a máquina
La mariée mise à nu par ses célibataires, même, a
pintura mais complexa e ambiciosa de Duchamp,8
a principal responsável pela disseminação do
termo célibataires aplicado às máquinas e à arte.
Célibataire significa aquele que se mantém
solteiro, preservando-se casto, improdutivo.
Os celibatários, encerrados em si mesmos,
colapsam, dado que só podem lidar com seus
componentes internos, seus funcionamentos,
sempre impossíveis, objetos partidos, sonhos
incompreensíveis e mirabolantes.
As máquinas celibatárias9 são mecanismos que
nada produzem além da movimentação de
fluxos e projeção de intensidades; são abstratas10
como La Mariée, operam por movimentos e
conexões imaginárias com o uso da linguagem
criptografada, interrompida, de difícil captura;
como as da literatura, no romance de Bioy Casares
Invenção de Morel ou em Colônia Penal, de Kafka,
ou ainda os trabalhos de Francis Picabia (1879-
1953), como Fille née sans mère (1916-1917)
,pinturas e desenhos com morfologias de peças
de máquinas nada funcionais.
Para o conjunto que chamo de quimeras
maquínicas, esse tipo de máquina proveniente da
literatura tem valor por estar conectado ao estado
de produção ininterrupta, “esquizofrênica”
que sucede à máquina paranoica e à máquina
miraculante, e com isso estabelece uma nova
relação de produção de quantidades intensivas.
Essas máquinas podem provocar nascimentos
quiméricos surpreendentes a partir de trilhas
transdisciplinares. Contam com o fazer do artista,
como o de um inventor de trajetórias que passeia
além e através dos campos disciplinares, em
busca de conexões mais completas, sem que haja
Cabe avaliar alguns dos aspectos que incidem
sobre essas quimeras maquínicas e regimes sob
os quais trabalham – nem sempre todos em uma
só máquina.
Como quimeras, sempre maquinação de vários
que podem ser orgânicos, humanos, mecânicos,
elétricos e eletrônicos. Lidam com a montagem,
edição de seres distintos, que pode dar-se sob forma
literária ou fílmica, embora mais frequentemente
sejam encontradas em materialidade física. Estão
implicadas com experimentalismo, empirismo,
transversalidade e fusão da técnica com a arte.
estrelas de palito Allstars e a caixa de fumaça
Fumus boni5 que desenvolvi entre 2009 e 2011.
Mais do que lúdico, há algo de ambíguo nesses
dois trabalhos, o que é comum em minhas
quimeras maquínicas. Elas se expressam na
lógica invertida do less is more. São conjuntos
que contrastam peças, traquitanas eletrônicas,
elétricas e mecânicas para realizar tarefas
cotidianas, muito simples. Talvez façam muito
barulho por nada, muita parafernália para
realizar tão pouco quanto o sopro de vida ou o
burburinho dos insetos.
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201188 89ARTIGOS | BETE ESTEVES
domínio único, e, sim, plural, de cooperação entre
vários saberes, em entendimento que organiza e
ultrapassa as próprias disciplinas.
Ao incorporar em suas criações o pesquisador,
o tecnólogo, o hacker, o cientista e o inventor,
tanto o artista ajuda a ativar e promover a arte
rumo a novas perspectivas como a própria
pesquisa artística esbarra em respostas, variações
ou mesmo soluções científicas e tecnológicas que
ampliam o processo de pesquisa para além dos
recônditos dos laboratórios.11
Acredito na fertilidade e contaminação positiva
que pode haver na assimilação da pesquisa pelos
diversos campos de atuação no trabalho artístico e
que a ideia de invenção, seja ela plástica, mecânica
ou industrial, esteja no cerne de toda criação.
Concordo com Guy Brett quando afirma que artistas
e cientistas criam modelos do universo, mesmo que
intuitivamente, mas “nem por isso menos válidos
ou menos formas de conhecimento”.
Arte não tem origem no acúmulo de conhecimentos
sobre ciência e tecnologia, e também ciência não
tem ligação estreita com estética ou poética.
Podem acrescentar-se mutuamente e estabelecer
relação multidirecional ao romper os rígidos
paredões que as separam; irrigar-se mutuamente
através de fluxos intercambiáveis, sem que haja
impedimentos ou perdas de desenvolvimentos em
ambos os campos.
Nesse âmbito é importante lembrar o trabalho
seminal de Jean Tinguely Homage to New York que
teve como peça o engenheiro Billy Klüver (1927-
2004) responsável pela montagem e partidário da
ideia de que o diálogo entre engenheiros e artistas
traria um agente de transformação social e cultural
significativo, dados os fatos de a arte se aproximar
cada vez mais da vida e a tecnologia dela se tornar
inseparável. Assim também, Abraham Palatnik
(1928) como artista liga seu trabalho à categoria
do projeto, às investigações no campo científico
e, por conta disso, criou Aparelhos cinecromáticos
(1965-2000) que traduz o desejo de acionar
algo para além do estático, que implica tempo
e espaço. Enfim, algo inclassificável naquele
momento da história da arte (1949-1951). Sobre
Palatnik, escreve Luiz Camillo Osorio:
Opera na produção de Palatnik a tensão entre o devir poético e devir tecnológico, não há nostalgia humanista nem recusa do futuro tecnológico, o que há é uma vontade de inserir alguma potência de invenção, de delírio e de graça nos usos e hibridações com a tecnologia e nesse sentido a intimidade com o interior das máquinas e seus processos de funcionamento é fundamental.12
A inquietação experimental de inventor, o rigor
na pesquisa de novos materiais, o conhecimento
adquirido no meio artístico e o contato fácil com
as tecnologias transformaram não só o ateliê
de Palatnik em oficina artística experimental de
ponta para a época, mas também inseriram novo
formato de fazer e pensar arte adaptada à nova
era, aos novos equipamentos e às novas mídias.
Relaciono as máquinas quiméricas − de certa
forma também são seres que se autorregulam −
a seres autopoiéticos (do grego auto = próprio;
poiesis = criação, produção). Um organismo vivo,
autopoiético, opera de forma autônoma a partir
e não além de suas próprias estruturas; como
sistemas fechados, referem-se às operações
criadas entre as partes do sistema que
constituem o limite do próprio sistema, o que
não significa que eles não estejam estabelecidos
no meio em que operam e a ele sensíveis. Para
manter seu funcionamento algumas máquinas
quiméricas estão sujeitas a disfunções, remissões,
reversões e atravessamentos, lidam com ordem e
Máquinas de fumaça, 2010-2011; duas caixas acrílicas de 65x50cm, membrana plástica, reservatório de líquido, máquinas de fumaça, disparador, solenoide e Programmable Interface Controller − PIC, coleção da artista
desordem e acabam se resolvendo internamente,
mas não deixam de se relacionar com o observador,
com o sistema vivo e com o mundo – relações não
deterministas e não apenas reativas, mas muitas
vezes paradoxais, múltiplas, aleatórias ou incertas.
Apresenta esse tipo de caracterísicas a máquina
do artista Ólafur Eliasson Ventilator: Different
Energies, 1997-2005, máquina-acrobática, que
funciona pendurada no teto de uma galeria.
Composta de uma parte que é pêndulo e outra
que é vento e meio no qual se desloca, dela
também são partes o pé-direito e o teto da
instituição em que a obra se apresenta instalada,
e o público que a visita.
As máquinas quiméricas podem operar com
forças de criação e destruição, utilidade e
inutilidade. No pós-guerra a arte incorpora o
mecanismo autodestrutivo como técnica, como
procedimento artístico que faz parte das decisões
do próprio trabalho. O artista que, de modo geral,
é responsável pela criação e manutenção de todo
um sistema de arte – curador, comprador, museus,
galerias –, preocupado com a conservação, o
mercado, a exposição, participa da destruição
desse território e instituição.
A inserção de algo que se repudia até os
estertores, máquina complexa, concebida para
alcançar a autodestruição ao operar apenas uma
vez em uma só noite, caso de Homage to New
York, aponta uma questão existencial e parece
invocar o exercício da antiga tradição pictórica do
Memento Mori; a destruição convoca a lembrança
da efemeridade humana, instaura um desarranjo
que destitui o status sagrado da arte e critica a
conduta da criação.
Bataille foi um dos pensadores que alavancou a
reflexão sobre os riscos de uma sociedade limitada
à atividade útil. Em sua opinião, o fundamental,
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201190 91ARTIGOS | BETE ESTEVES
na existência de uma sociedade, é o espaço
reservado ao gasto e ao consumo, o que chama
de “dispêndio improdutivo”,13 sejam eles excessos
produzidos pelo campo social, psicológico ou
cultural. Em vez da discussão falseada a respeito
da utilidade, Bataille provoca uma inversão do
modo tradicional de entendimento a respeito dos
constituintes das primeiras motivações da sociedade
humana, em que o que passa a ser mais investigado
é o consumir, e não o produzir; o despender, e não o
conservar; o destruir no lugar do construir.
A máquina artística faz parte da categoria de
dispêndio improdutivo. Está vinculada às forças
que rompem com a condição humana do circuito
produtivo do trabalho e da subordinação temporal.
A atividade artística assume o caráter nobre da
noção de despesa, na contramão das concepções
racionalistas e econômicas do século 17. Introduz
a descontinuidade, a inutilidade, momentos em
que o trabalho é suspenso, gerando indiferença
em relação à função que os objetos ou atividades
poderiam desempenhar na cadeia da utilidade. Se
a razão da funcionalidade ou utilidade é retirada
da relação de trabalho, pode-se fazer emergirem
dados que ela escamoteia como, por exemplo,
a indesejável e incompreensível inutilidade ou
efemeridade da vida, as atividades excrementícias,
a doença e a morte.
Com as obras Homage to New York e
Break Down, Tinguely e Michael Landy,
respectivamente, fizeram dois dos exames
mais enérgicos do consumismo, do
desperdício, da destruição e criatividade
da sociedade pré e pós-industrial. Ambos
os trabalhos, vivendo apenas na memória,
na documentação, no rumor e no mito,
tornaram-se o máximo em esculturas
desmaterializadas de seus tempos. Utilizando
os resíduos de suas épocas, eles revelaram
que o prazer do consumo, ao que parece,
pode estar também em sua destruição.14
Break Down não é apenas de um objeto instalativo e escultórico pensado para o aniquilamento de todos os pertences do artista, mas um conjunto de relações que, implicado com todo o sistema de mercado de consumo, de arte, máquinas técnicas, estéticas, econômicas, sociais, a que se está subjugado, traça direções de fuga que implicam novos direcionamentos e lembram também a noção de dispêndio improdutivo de Bataille.
Segundo esse autor, há no mundo, na raiz da vida, uma tendência inevitável para a perda, para a dissipação do excesso em termos biológicos, que se estende à ordem social. O que, no entanto, é abafado pela tendência da aquisição e do acúmulo de excessos, responsável, de modo geral, pela produção de meios danosos que podem transformar-se em guerra de destruição em massa e certamente fazem parte do tédio da vida burguesa.
O ineditismo do paradigma da dádiva estaria no fato de propor um “antiutilitarismo positivo”, que pode ser aplicado às atividades artísticas. As máquinas quiméricas trazem, em sua origem, em sua natureza, a inutilidade fundamental, mas que muitas vezes remete o homem à dimensão do cosmo, ao pertencimento da condição humana, à liberação do mundo dos objetos, à experiência do desapego através da qual o homem se dá conta de seu destino – entendimento da ambiguidade que traz à tona o útil e inútil.
Richard Sennett, no capítulo Ferramentas estimulantes15 do livro O Artífice, sugere o “despertar” para que se lide com as ferramentas de maneira a tirar proveito delas. Afirma que através de saltos intuitivos se encontrariam maneiras de rever a função inicial das ferramentas. De certa maneira, o que Vilém Flusser propõe, a reprogramação do aparelho como saída para
a imagem técnica, Sennett aponta como novo método de abordagem frente às ferramentas.
Sugere, para isso, atitudes como:
1 Disposição de verificar se uma ferramenta ou prática pode ser mudada no uso, ou seja, defende a importância de deixar que o limite das finalidades das ferramentas esteja aberto à criação de novas derivas, em que a quebra do molde e de sua função possa ser bem-vinda.
2 Aproximação de domínios improváveis. Aqui se trata de aproximações de universos que inicialmente estão distantes. O autor cita o exemplo da tecnologia do telefone conjugada com a do rádio que origina a telefonia móvel, universos que, em princípio, não seriam pensados juntos e que, uma vez aproximados, fazem nascer novas composições, novas máquinas.
3 Preparar o terreno para o assombro, a surpresa. Esclarecer procedimentos, nomeá-los, muitas vezes revela compreensões inesperadas e de complexidade maior do que se supunha. É preciso deixar que a perplexidade penetre.
4 Um salto não desafia a gravidade. Não é o fato de haver transferências de habilidade ou prática de uma área para outra, ou de uma ferramenta para outra que vai fazer com que o problema seja resolvido. Sempre quando se insere o estrangeiro, isto é, uma nova forma de lidar com o problema, há que lidar com o que trouxe esse novo dispositivo, essa importação técnica que também trará seus
próprios procedimentos e problemas.
Penso nos caminhos apontados por Sennett e por
Vilém Flusser não como silogismos, mas como
possibilidades de criação, de rompimento com
verdades, de entrada nos códigos dos aparelhos.
Penso que tais noções geram possibilidades
de criação das máquinas quiméricas. Dão
chance de pensar o fazer artístico, em meio ao
aprimoramento tecnológico, e a ele também se
conformar, revoltar, formatar e reformatar com
possibilidades de novas configurações formais,
estéticas, conceituais e filosóficas.
Para além do entretenimento, a figura de
um autômato carrega consigo um grande
interrogante. Pensa-se também a respeito da
ação programada e repetida, daquela que faz de
nós reféns, utensílios ou instrumentos. As figuras
dos autômatos, aprisionados nas engrenagens
das repetições e ritmos não humanos impingem
movimentos rumo à força do hábito.
Assemelhar-se a operários padronizados, maquina-
dos, adormecidos certamente pode ser também re-
duzir-se à qualidade de máquina, regra do regime
fordista, capitalista. Tornar-se peça com a máquina,
na multiplicidade de sua produção, do movimento
que estabelece rotas de mutações que se alteram
na composição entre partes, pode ser promover o
solavanco que rompe com o esquema-padrão com
o qual já se acostumaram os corpos.
Para tanto há que promover enguiços, solavancos,
rodopios, invenções, apropriações, movimentos
celibatários que não obedecem a outra regra
senão a do desejo e que têm a chance de retirar
do grau zero as engrenagens, polias e alavancas,
sem outra ordem senão a da repetição.
É preciso promover o giro do pião ou da bailarina
que, de tantas voltas na caixinha de música,
executa finalmente um tal grau de volta desejante,
criativa e reflexiva que acaba por flutuar sobre o
linóleo do palco ampliado.
Regras para reconhecer uma quimera maquínica
I Para reconhecer quimeras é preciso saber-se
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201192 93ARTIGOS | BETE ESTEVES
máquina, no sentido mais amplo, saber que tudo
é máquina.
II É preciso saber-se máquina e saber-se quimera,
sonho, fusão mítica de muitas fontes. Para
reconhecer máquina quimérica é preciso infinita
capacidade de sonho.
III Sonhador de final de semana não adquire
certificado de reconhecedor: é preciso não temer
pesadelo. Quem teme pesadelo não sabe como
destarrachar a torneira do sonho bom. Sonho
bom é devorar coelhos na orientação dos gatos,
o que só se aprende lendo Cortázar no original.
IV Para reconhecer uma quimera maquínica
é preciso tomar chá com o coelho de Alice
servido no bule de Keaton preparado com a
graxa do desejo.
V Máquina quimérica se reconhece na sobrie-
dade da ontogenia da Diferença, na falta de
sentido, na vertigem do delírio, na inútil e precária
e movediça e intersticial e formidável existência.
Toda beberragem alucinógena libera o contorno
nítido de uma quimera maquínica, mas é preciso
estar despedaçado.
VI É preciso apagar o Inferno e queimar o Céu,
recitar de trás para diante os Cantos de Maldoror,
reconhecer toda a humana (ou divina) possibilidade
como sendo parte-peça-engrenagem combustível
de si e com esse Todo sentir-se Um; assim se
reconhece uma máquina quimérica:
VII Nos inutensílios da poesia, nas teorias-ficções
de todos os campos, na falível concepção dos
conceitos inventados para produzir uma história
que nos contam na hora de dormir, em volta da
fogueira que projeta sombras no fundo da caverna.
VIII Para reconhecer máquina quimérica ou qui-
mera maquínica é preciso prescindir de todo
manual ou roteiro de modo a descasar para
sempre o que jamais haveria de ter par. Tudo que
pulsa, mesmo no pulso lento de milhões de anos,
como o ciclo do sol, das galáxias e do universo
inteiro, é máquina e quimera na imaginação de
toda criatura-criadora.
IX Para reconhecer uma tal coisa é preciso dar
descargas em sequência, conversar e casar
com anéis de fumaça, derreter o desejo um
minuto antes da meia-noite, voltar e tornar
a voltar eternamente para o lugar que é teu
e seguir para sempre exilado e transformar
grades de ferro em asas na ausência de louça,
como o amor que partiu numa fatia fina
de fala reconstruída com cola feita de luz e
água mineral capaz de espreguiçar estrelas
arquivadas em neon por 40 anos em caixinhas
de isopor e de sonho de menina.
X Para reconhecer uma tal coisa é preciso desistir
de buscá-la, pois está em toda (p)arte.
NOTAS
1 Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. O antiÉdipo. Capitalismo e esquizofrenia. Trad. Joana Moraes Varela e Manuel Carrilho. Lisboa: Assírio & Alvim, 1996:53.
2 Guattari, Félix. O inconsciente maquínico − ensa-ios de esquizoanális. Campinas: Papirus, 1988.
3 Deleuze, Gilles; Parnet, Claire. Diálogos. Lisboa: Relógio D’ água, 1996:127.
4 É o processo de análise de um artefato (um aparelho, um componente elétrico, um programa de computador; etc.) e dos detalhes de seu funcionamento, geralmente com a intenção de construir um novo aparelho ou programa que faça a mesma coisa sem realmente copiar algo do original. Objetivamente a engenharia reversa consiste em, por
exemplo, desmontar uma máquina para descobrir
como funciona. Disponível em http://vai.la/21VC
5 Fumus boni vem de Fumus boni iuris, expressão
latina que significa fumaça ou sinal de bom direito,
aparência ou indício de bom direito. O fumus boni
iuris é a presença aparente de uma situação que não
foi inteiramente comprovada, mas em que existe a
possibilidade de que o direito pleiteado exista no
caso concreto.
6 A ‘Patafísica diz respeito a uma concepção
do mundo alternativa, que revê a compreensão
do ser, da ciência ou da técnica, do tempo e do
tratamento da linguagem. Estuda os epifenômenos
a própria observação da aleatoriedade da “dança”,
da espiral, do caos e da ordem. Epifenômenos são
porções de fenômenos que existem para além das
leis da não contradição. Abordam a equivalência
universal contingente em que tem lugar o acaso ou
o acidental. “É, sobretudo, a ciência do particular,
embora se diga que só existem ciências do geral.
Estuda as leis que regem as exceções e explica
um universo suplementar a este; ou, menos
ambiciosamente, descreve um universo que pode
– e talvez deva – ocupar o lugar do tradicional, já
que as leis do universo tradicional são derivadas
de correlações de exceções, ou, em todo caso, de
correlações de ações acidentais que, reduzindo-se
a exceções pouco excepcionais, deixam de possuir
o atrativo da singularidade” Jarry, Alfred. Gestas y
opiniones del Doctor Faustroll. Trad. Teresa Fernández
Echeverría. Zaragoza: Libros del Innombrable, 2003.
7 O princípio da não contradição, formulado por
Aristóteles em seus estudos sobre a lógica, afirma
que uma proposição não pode ser verdadeira e falsa
ao mesmo tempo.
8 Sylvester, David. Sobre arte moderna. São Paulo:
Cosac & Naify, 2006:472.
9 Michel Carrouges elaborou interessante estudo
que compara artistas que teriam encenado em
suas produções o mito da máquina celibatária.
Em leitura atenta dos elementos constitutivos das
obras, o autor aproxima as máquinas de Locus
Solus, de Roussel, às de la Mariée mise à nu par ses
célibataires, même... de Duchamp. As analogias,
feitas ainda entre livros de outros escritores como
Kafka e Lautréamont, são traçadas com convicção
por Carrouges. Carrouges, Michel. Les machines
célibataires. Paris: Arcanes, 1954.
10 O conceito de “máquinas desejantes” de Deleuze
e Guattari, que aparece expresso em O antiÉdipo,
mais tarde revisto, irá ceder lugar aos conceitos de
“agenciamento” e “máquinas abstratas” presentes
em Mil platôs. As expressões se equivalem, se
explicam e se adicionam. No âmbito que importa a
este texto, o emprego desse e de outros conceitos
deleuzianos serviru para balizar uma reflexão
sobre o que faz do desejo-máquina uma quimera
maquínica, uma quimera que é desejo e que se
torna “máquina abstrata”.
11 Brett, G. Force Fields; phases of the kinetic.
London: Hayward Gallery, 2000:9.
12 Osorio, Luiz Camillo (org.). Abraham Palatnik.
São Paulo: Cosac Naif, 2004.
13 Bataille, G. A parte maldita: precedido de A noção
de despesa. Lisboa: Fim de Século Edições, 2005.
14 Sillars, L. Joyous machines: Michael Landy and
Jean Tinguely. Liverpool: Tate, 2009. p.27
15 Sennett, Richard. O Artífice. Rio de Janeiro:
Record, 2009:234.
Bete Esteves é artista, mestre em artes visuais pela Linha de Pesquisa em Linguagens Visuais (PPGAV-EBA/UFRJ). Trabalha na criação de dispositivos poéticos que unem experiências artísticas, científicas e técnicas com aparatos mecânicos, digitais e tecnológicos que, muitas vezes, destituídos de sua função original, são matéria-prima estrutural dos
dispositivos escultóricos.
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201194 95ARTIGOS | MANO VIANNA
As manifestações artísticas contemporâneas com
uso da tecnologia digital têm sido denominadas
artemídia por diversos autores1. Fazem parte de
uma nova cultura que se estabelece em contexto
no qual arte, ciência e tecnologia interagem e se
influenciam. Diversas disciplinas, como a filosofia, a
arte, a comunicação, a antropologia e a sociologia,
se inter-relacionam para explicar o atual contexto
social. Noções e conceitos estão sendo criados ou
revistos em todas as áreas do saber em função dos
recursos tecnológicos digitais que nos permitem
representar coisas que não podíamos descrever. As relações dos indivíduos em sociedade transformam-
se para aceitar um conhecimento plural, aberto às múltiplas entradas de informações culturais de um
mundo conectado em rede. Na arte, da mesma forma, o caminhar das experimentações estéticas tem
permitido a incorporação de uma imagética que expande os horizontes artísticos às mídias. Pensa-se
agora em novo estatuto para o espectador, o artista e a obra.
SOB PALAVRAS E IMAGENS: proposição poética e contextualização cultural de um dispositivo digital de artemídia
Mano Vianna
arte e tecnologia artemídiaarte virtual arte interativa
Considerada uma produção variável, inconstante ou efêmera, a artemídia, ou a arte que
faz uso da tecnologia, é contextualizada pela proposição poética Sob palavras e imagens,
possibilitada pela criação de um software gráfico desenvolvido para gerar imagens através
das mensagens de texto enviadas por usuários da web. Esta é a apresentação parcial da
dissertação de mestrado Sob palavras e imagens: proposição poética e contextualização
cultural de um dispositivo digital de artemídia (PPGAV/EBA/UFRJ), orientada pelo Prof. Dr.
Celso Pereira Guimarães e defendida em fevereiro de 2011.
Sob palavras e imagens, 2011. Arte digital (jpg), 20 x 25cm, 300 dpi
IN WORDS AND IMAGES: poetic project and cultural contextualization of a digital media-art device | Media Art, considered as a variable, inconstant or ephemeral production, or art that uses technology, is contextualized by the poetic proposition Underneath words and images, made possible by the creation of graphic software to generate images from text messages sent by web users. This is a partial presentation of the Visual Arts Master’s Thesis (MA). Supervised by Prof. Dr. Celso Pereira Guimarães | Art and technology, art media, virtual art, interactive art.
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201196 97ARTIGOS | MANO VIANNA
Para investigar esse contexto no qual as
tecnologias digitais estão alterando os processos
de construção, prática e pesquisa nas artes e nas
ciências, renovando muitos conceitos tradicionais,
foi criado um dispositivo digital, denominado
Fontes, acessado no website <fontes.bitspoéticos.
com>, que pode ser definido como máquina de
escrever virtual desajustada, pois torna os textos
digitados pelos usuários ilegíveis: na imagem
as letras que compõem o texto tornam-se
emaranhadas quando configuradas numa área
comum, em que todas as mensagens se combinam.
Entretanto, para ampliar as possibilidades de seu
uso, uma frase foi inserida como detonadora do
processo de libertação imagética do participante,
estabelecendo marcação temporal a partir da qual
se podem fazer diversos tipos de especulação
poética. Assim, para que fosse oferecida ao
participante a chance de ‘viajar’ através de uma
avenida de novos significados, foi escolhida a
expressão Sob palavras e imagens, também usada
para denominar o projeto.
Arte fora da redoma
Virtualidade e instantaneidade. Discorrer sobre
a proposição Sob palavras e imagens como
uma experimentação da arte contemporânea
significa considerar a entrada da arte em um
novo campo de discussão, no qual as imagens
técnicas deslocam os debates para os temas da
comunicação, fato que Lyotard acredita ser a
chave para se compreender a questão cultural
do pós-moderno.2 O pensamento estético,
ao considerar a importância da mediação no
processo de recepção da obra de arte, desdobra-
se para responder às novas questões. Podemos
definir estética como a área de significação
que se desenvolve em torno da arte, como
explica a filósofa Anne Cauquelin,3 e que pode
ser empregada como adjetivo, qualificando
alguma coisa que possua atributos conferidos
à atividade artística, ou como substantivo,
remetendo ao conjunto de teorias que analisam
e avaliam as obras. Assim, à medida que ocorrem
desdobramentos significativos no campo estético,
a esfera de considerações poéticas é ampliada,
mobilizando a atenção de diversos intérpretes. O
filósofo Benedito Nunes4 aponta uma mudança
da posição tradicional do artista e do destinatário
em relação à “coisidade” da obra, abrindo um
espaço de exploração que valoriza a relação entre
quem produz e quem recebe, tirando do objeto
artístico seu poder autônomo de transmissão de
ideais de beleza, da mesma forma como retira
do artista seu poder de gênio, do iluminado que
revela a obra ao mundo5− questão denominada
por diversos autores “superação” ou “explosão”
da estética.
O momento atual em que discutimos a arte
interativa – ligada mais aos processos criativos do
que à realização de obras acabadas – corresponde
a uma etapa da aproximação entre a arte e o
observador, que vem ocorrendo desde o início
do século 20. Essa parece ser uma reação ao
distanciamento realizado pela arte modernista
que, impulsionada pela experimentação de
diversas novas linguagens, acaba por criar seus
próprios cânones e princípios, afastando-se cada
vez mais dos espectadores. Para ‘entender’ (e
poder gostar de) uma obra de arte, as audiências
necessitavam ser informadas sobre o significado
da produção, ou seja, elas eram incorporadas ao
conteúdo cultural do produto.6 A radicalização
desse processo, porém, acaba por criar novos
territórios, descartando as determinações de
representar o objeto, ou por buscar uma expressão
do sujeito. Assim sendo, muitas dessas atitudes
Sem formato. Arte digital (jpg), 20 x 25cm, 300 dpi
foram dirigidas à participação do espectador
na obra. O pesquisador Júlio Plaza7 identifica,
somados à atual etapa em que predomina a
arte interativa, dois outros momentos distintos
e anteriores: a obra inacabada – relacionada à
polissemia, à ambiguidade, à multiplicidade de
leituras e à riqueza de sentido; e a arte participativa
– que contribuiu para o desaparecimento e
desmaterialização da obra. É importante notar,
portanto, que houve um processo de aproximação
entre a arte e o observador bem antes do
aparecimento da tecnologia digital.
A ecologia da rede de bits
Ao fazer uso das tecnologias digitais, o artista traz ao debate temas que envolvem uma nova maneira de informar e comunicar. Mais do que apenas mudança de suporte material, o fenômeno artístico ocorre sob critérios nos quais
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201198 99ARTIGOS | MANO VIANNA
Vilém Flusser.11 Segundo esse filósofo, a natureza
matemática da mídia digital também evidencia
mais do que o aparecimento de nova forma de
transmissão de informação. Estamos diante
de uma nova forma de comunicação. Partindo
da observação de que a comunicação humana
é processo artificial criado para armazenar
informações, em que símbolos são organizados
em códigos, Flusser verifica que a entrada num
regime digital altera profundamente a maneira de
codificar a realidade: “passamos de um universo
imagético que interpretava um ‘mundo’ para um
sistema que interpreta as teorias referentes ao
mundo”.12 Isso significa que estamos passando a
representar o mundo através de códigos criados
a partir de outros códigos e não de nosso contato
direto com a realidade. Estamos passando a
“interpretar em vez de explicar”, resume Flusser.13
O homem e a máquina
O potencial comunicativo do computador para
experimentação poética, capaz de estimular
diversos sentidos corporais, revela-se através
de sua capacidade de se conectar a diferentes
interfaces. Embora no presente trabalho a opção
de suporte de transmissão tenha sido a rede
mundial de computadores, diversos tipos de
equipamentos digitais poderiam ter sido utilizados
para fazer a interação com o participante.
Sensores de luz, térmicos e de movimento,
acionadores de máquinas, equipamentos sonoros
e diferentes tipos de softwares, como os de
realidade aumentada, por exemplo, poderiam
responder aos impulsos gerados pelos dados
digitados pelos participantes. Se considerarmos
apenas a internet, como rede em que se
interligam pessoas, computadores e uma série de
dispositivos periféricos, podemos perceber que
foi criado um novo espaço de relações em que
nossos corpos respondem a novos paradigmas de
espaço e tempo.
Cognição, percepção e ação. Tudo é diferente nesse cenário, em que podemos realizar ações a distância, de forma até ubíqua (em vários lugares ao mesmo tempo) e em tempo real. De fato, uma das principais características do mundo virtual é a de nos fornecer o sentido de imersão, que pode ser realçado com a exploração sensório-motora das interfaces computacionais. O pesquisador Oliver Grau14 esclarece que o termo imersão diz respeito ao encurtamento da distância entre o que é exibido e o nosso envolvimento emocional com o que está acontecendo, o que, em nosso uso cotidiano do computador, corresponde à sensação física de pertencer a uma “realidade virtual”, como nos é dada pelo teclado e o mouse. A arte contemporânea é rica em exemplos que envolvem o uso de vários tipos de mídias digitais em diversos tipos de instalações. Explorações que procuram reorganizar e reestruturar nossa percepção e cognição em busca de novos horizontes estéticos. Esses projetos colocam o corpo na função ativa de interferência; é ele que informa as mídias utilizadas para reagir a um determinado estímulo.15 Por isso, o dado corporal na mídia digital tem atraído a atenção de tantos pesquisadores. Houve aumento da complexidade da informação com a utilização do meio digital, que tem estimulado pesquisas em diversas áreas do conhecimento. Os estudos das neurociências, por exemplo, que atualmente utilizam modernas tecnologias de ressonância magnética, têm feito a revisão de conceitos atualmente considerados reducionistas a respeito do cérebro.16 Estamos deixando de considerar o cérebro mecanismo de entrada e saída de dados, de estímulo e resposta, para considerar todo o corpo um sistema sensível, capaz de novo olhar suscetível a englobar um incrível jogo de relações físicas e culturais.
a tecnologia é fonte de diversas considerações
sobre o processo de criação.
Dados podem ser organizados matematicamente
de maneiras infinitas. Impulso elétrico e pausa –
um e zero; é simples a configuração de um bit
(binary digit), menor unidade de informação
digital. A combinação desses bits serve para a
codificação de dados para diversos fins, como
a configuração de imagens através dos pixels
na tela de um computador. O pixel é a menor
unidade visual de geração de imagens; essa
codificação torna fácil armazenar e manipular
as imagens. De fato, a facilidade de criação e
alteração das imagens digitais tem sido possível
pelas interfaces gráficas, que tornam o uso
do computador mais intuitivo, mais fácil de ser
manipulado. O significado da palavra interface
envolve não só a maneira de representar zeros e uns,
mas também toda uma cultura que se desenvolve
através das formas criadas para a interação com
o ciberespaço. Talvez por isso não seja apropriado
referir-se às interfaces apenas como ferramentas
digitais. O termo ferramenta, quando aplicado à
informática, remete a um elemento do programa
de computador (como uma aplicação gráfica) que
ativa e controla uma determinada função. Porém,
mais do que facilitar uma tarefa, a interface se
relaciona à tecnologia, envolve técnica (artefatos
eficazes), cultura (a dinâmica das representações)
e sociedade (as pessoas, seus laços, suas trocas,
suas relações de força).8 Um logos específico se
estabelece para favorecer o aparecimento de
novas formas culturais: permite que realizemos
outras maneiras de pensar o mundo.
O mundo está conectado em rede, e suas interfaces
relacionam um complexo intrincado de relações,
passam a se assemelhar a um ambiente que
possui ecologia própria, na qual tempo e espaço –
instantaneidade e virtualidade – permitem muitas
possibilidades de conhecimento. O espaço físico
é substituído por ininterrupto fluxo de dados.
O tempo, instantâneo, permite não apenas a
emissão de mensagens, mas a troca de conteúdos,
possibilitando atuação e intervenção.
Dados circulam sem perda de conteúdo e
podem ser reconstituídos ou manipulados de
várias maneiras. Essa afirmação traz ao debate
importantes considerações que indicam que
está ocorrendo mudança em nossa maneira de
representar o mundo. “Agora a imagem digital
pode ter mais aura do que o original”, afirma
W.J.T. Mitchell,9 aludindo à mudança de percepção
da obra de arte quando o original é multiplicado
pelas tecnologias de reprodução, observada em
1936 por Walter Benjamin:10 a cópia do original
perde sua “aura”, a sensação quase mágica que a
obra transmite de exclusividade, de ter sido feita
por um artista em determinado momento. W.J.T.
Mitchell adverte que, no modo de reprodução
biocibernética (computação de alta velocidade,
imagem digital, realidade virtual, internet,
engenharia genética), novas considerações devem
ser feitas, como, por exemplo, o fato de a cópia
digital não ser mais inferior ou imperfeita em
relação ao original.
O debate sobre a natureza da circulação e
reconstituição de dados tem possibilidade de ser
ampliado quando observamos que as interfaces
gráficas podem ser acrescidas de acoplamentos
de diferentes recursos às entradas (inputs)
e saídas (ouputs) de dados do computador,
proporcionando enorme expansão das
possibilidades de exploração sensorial. A natureza
do código binário, porém, não se restringe às
considerações que envolvem a transmissão e
a circulação dos dados. O próprio modo de
representação da realidade digital favorece campo
ainda maior de discussão teórica, como apresenta
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011100 101ARTIGOS | MANO VIANNA
externos para ser percebida e ganhar significação. De acordo com Ron Burnett,17 o conceito da imagem como portadora de significado único e estável foi deslocado para o de mediação: “Um campo intermediário entre espectadores e criadores para intervenção e interpretação”. Burnett observa que, no ambiente digital estabelecido pela web, o conceito de imagem tem deixado de significar apenas o enquadramento de um assunto, pois não há a representação do real através de uma imagem, como um signo para a comunicação.
A Era Analógica sentia-se confortável com a representação, com a habilidade em relacionar o real às marcações e aos signos que os homens poderiam converter de uma experiência à próxima. Na Era Virtual temos poucos desses interesses, pois muitas das imagens criadas são produtos da interação entre os homens e complexos dispositivos.19
A imagem configurada pelas novas mídias de comunicação está relacionada a complexo contexto no qual são costurados e rearranjados diferentes discursos. Televisão, jornais, rádio e as novas formas dentro da web produzem um conjunto de discursos visuais, orais e textuais diferentes que se interligam de diferentes maneiras, ou seja, uma mesma imagem pode ter diferentes conotações de acordo com a página da web em que está sendo vista. Dentro desse continuum de informações, as imagens se tornam um ‘ambiente’ que nos influencia temporariamente e nos conduz, remete ou dirige a outros espaços e lugares. Essa noção, que difere da visão de uma imagem responsável direta pelo significado, explora o aspecto do entendimento das múltiplas entradas de informação numa rede virtual e o modo como somos afetados por essa convergência das mídias que permite a combinação de diferentes modos de comunicação, através de estímulos visuais, sonoros, textuais e discursivos.
As discussões teóricas sobre as novas formas semióticas na web trazem à luz, entretanto, outras importantes questões. A relação imagem e texto é uma delas. A proposição poética Sob palavras e imagens, ao combinar texto e imagem, faz alusão a um campo de pesquisa que tem provocado amplo debate: existe uma nova relação de predominância na leitura e na cultura visual entre imagem e texto? A pesquisadora Yvonne Hansen19 observa que, entre as diversas abordagens existentes, muitas relatam um “retorno ao visual” (pictorial turn), seja ele ocasionado pela convergência de mídias realizada pelo computador, que esvazia o sentido da existência de mídias puras, como pretendia o modernismo,20 ou pelo fato de que na web as imagens estão no topo de uma estrutura de linguagem que reúne diversos elementos.
Propostas em artemídia: desafios de recriação e armazenamento
Fato observado no desenvolvimento do trabalho aponta as manifestações artísticas que utilizam tecnologia digital se realizando através de parâmetros não contemplados pela classificação tradicional da arte. O que se torna um problema quando se pensa na conservação, no armazenamento, na remontagem e até mesmo na recuperação de dados de eventos realizados na web. Trabalhos em artemídia podem fazer uso de diversas mídias dentro de diferentes contextos de comunicação. O processo peculiar de criação dessas obras tem possibilidade de envolver características comuns a essas manifestações, como serem baseadas em algoritmo, dirigidas por processos ou baseadas em tempo; ou serem participativas, colaborativas e performativas; tanto quanto podem ser modulares, gerativas ou customizáveis21 – características, porém, encontráveis em diferentes combinações nesses trabalhos. O que torna ainda mais crítica essa situação é o fato de que, embora
Spi 2011. Arte digital (jpg), 8,99 x 18,3cm, 300 dpi
se encontrem dois trabalhos com as mesmas características de produção, seus resultados estéticos podem ser bastante diferentes, pois experiências interativas realizam processos entre artista e observador, tornando-se dependentes dos contextos em que foram criadas. Em vista disso, um trabalho em artemídia pode variar substancialmente de resultado apenas com a mudança de público, dependendo, naturalmente, do grau de abertura estabelecido pelo artista, visto que é sua a prerrogativa de aumentar ou diminuir a qualidade da contribuição do participante. Devemos adicionar ainda, às dificuldades apresentadas, a questão do suporte material e técnico da construção de muitos projetos, fato tantas vezes decisivo para a remontagem de uma obra. Afinal, como concretizar uma exposição na qual a experimentação artística foi realizada por equipamento há mais de dez anos fora do mercado ou utilizava um programa específico de um sistema operacional já obsoleto? Recuperar essas obras exige também que os equipamentos em que elas foram realizadas estejam disponíveis na ocasião de sua remontagem − sem dúvida um grande desafio quando se observa que grandes instituições de arquivamento de obras, como os grandes museus, ainda estão desenvolvendo projetos que permitam criar uma taxonomia22 para esses trabalhos.
Os problemas para a criação de uma taxonomia, entretanto, não impedem que divisões dentro da artemídia já se estejam configurando naturalmente, de acordo com a similaridade das aplicações. Sendo assim, podemos identificar área que se constitua como um grupo bastante definido – a generative art – em que a proposição Sob palavras e imagens possa ser incluída. Essa nomenclatura, cada vez mais utilizada para se referir à arte realizada por programas de computador que desenvolve processos com algum grau de autonomia, pode ser encontrada como palavra-chave (tag) para localização de trabalhos
Imagem na web: corrente de signos
Uma imagem gerada por um programa de computador, como na proposição poética Sob palavras e imagens, relaciona-se a uma rede de conexões de informação, necessitando, por isso, de um conjunto de critérios diferentes da imagem analógica, dependente de referenciais materiais
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011102 103ARTIGOS | MANO VIANNA
em websites de grandes instituições voltadas para a pesquisa de arte e tecnologia. Como campo ainda em processo de estabelecimento, a própria definição para esse conjunto de obras é encontrada de diferentes maneiras, sempre procurando ampliar sua abrangência para desenvolver uma noção que possa conter um grande número de manifestações artísticas.
A experimentação poética
Sob palavras e imagens é projeto aberto à participação pública desde sua publicação na web em outubro de 2010. Desde então, diversos tipos de mensagens foram recebidos, configurando um mesmo número de diferentes imagens. A página inicial do website hospedeiro contém painel em que estão expostas diversas imagens já produzidas, revelando a individualidade de cada manifestação: única e pessoal. Mas, devo confessar, minha primeira expectativa quando pensei nesse projeto estava relacionada à geração de imagens. Pensava num futuro em que as imagens técnicas poderiam ser geradas por programas independentes, soltos na grande nuvem de dados que está sendo formada pela computação. Teriam a capacidade de emocionar da mesma forma que o pôr de sol cheio de nuvens e cores, sem nosso controle, um novo processo ‘natural’. Porém, no decorrer dessa pesquisa, o projeto tomou outro rumo, voltando-se para um caminho que agora me parece bastante evidente. Enquanto focava as possíveis conformações da imagem, estabelecia comandos e diretrizes que permitiriam uma futura grande composição – massas de cor e ritmo – como na arte tradicional. Ao participante caberia a função de realizar uma proposta pronta, sem muita possibilidade de real interação na construção de um sentido poético. Em determinado momento, porém, ficou evidente um desvio, mais tarde corrigido. Como o objetivo desse trabalho era investigar a chamada
artemídia, não bastaria apenas criar um software gerador de imagens e disponibilizá-lo na web para investigar as peculiaridades do ambiente digital. Era preciso estabelecer um ponto de vista que relacionasse tempo e contexto – seus principais paradigmas – para servir de estímulo poético, para divagação, para favorecer novas percepções. A expressão escolhida, sob palavras e imagens, que serviu como título desse trabalho, foi amplamente debatida e corresponde à expectativa de se imaginar quais mensagens foram ‘soterradas’ pelos outros apelos através do tempo. “Estou aqui!”. Talvez seja o que todos queiram dizer de diversas formas e movidos por diferentes motivos.
Os usos, porém, que podem ser feitos com a tecnologia digital são muitos, e, mesmo num projeto que estabelece limites técnicos de utilização, são as atitudes inesperadas as que mais chamam a atenção. Como no caso do participante que tentou estabelecer contato com outro usuário através das mensagens em tempo real, ou de outro que tentou ‘dominar’ o programa compondo uma imagem através da repetição de sinais de pontuação e acentuação. São resíduos bem-vindos numa experimentação poética, pois há a intenção de escapar do programado, ir além do estabelecido. Dessa forma, essa produção artística, adjetivada como variável, inconstante ou efêmera por diferentes autores, diferentemente da arte tradicional direcionada à criação de objetos, resultou num evento no qual considerações como
sucessão, comparação, expectativa e resposta
tiveram peso decisivo.
NOTAS
1 Media Art, como em Grau, Oliver. MediaArtHistories, Cambridge: The MIT Press, 2007.
2 Para o autor, vivemos “numa sociedade em que a componente comunicacional torna-se cada dia mais evidente, simultaneamente como realidade e
problema”. Lyotard, Jean-François. O pós-moderno. Rio de Janeiro: J.Olympio, 1988:29.
3 Cauquelin, Anne. Teorias da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2005b:13.
4 Nunes, Benedito. Hermenêutica e poesia. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999:107.
5 Kant (na Terceira crítica) estabelece como fundamento a ideia de gênio ou daquele que é “capaz de produzir artisticamente, ou seja, produzir de tal modo que a obra resultante parecesse, afetando a espontaneidade da natureza, inventar a sua regra de gosto e transmitir uma intuição superior, suprassensível, da realidade, que chamamos ‘ideia estética’”. Apud Nunes, op. cit.:108.
6 “The practice of making viewers aware of the means of production by incorporating them into the content of the cultural product was often a feature of modernism”. Ken, Marita; Cartwright, Lisa. Practices of Looking. New York: Oxford University Press Inc., 2001:254.
7 Plaza, Júlio. Arte e interatividade: autor-obra-recepção. Concinnitas, n. 4, março de 2003. Disponível em: <http://www.concinnitas.uerj.br/resumos4/plaza.htm>. Acessado em setembro de 2011.
8 Lévy, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999:22.
9 “Now we have to say that the copy has, if anything, even more aura than the original.” Mitchell, W. J. T. What do pictures want? The lives and loves of images. Chicago: University of Chicago Press, 2005:320.
10 Benjamin, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Walter Benjamin. São Paulo: Ed. Abril, 1975:9-35. Coleção Os pensadores XLVIII.
11 Flusser, Vilém. O mundo codificado. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.
12 Idem, ibidem:130.
13 Idem, ibidem:94.
14 Grau, Oliver. Arte visual: da ilusão à imersão. Cambridge: MIT Press, 2007.
15 Hansen, Mark B. N. New Philosophy for New Media. Cambridge: MIT Press, 2004.
16 Burnett, Ron. How Images Think. Cambridge: MIT Press, 2005:118.
17 Idem, ibidem:40.
18 “The analogue era felt comfortable with representation, with the ability to relate the real to markers and signs that humans could translate from one experience to the next. The virtual era will have few of those concerns because so many of the images that will be created will be the products of human interaction with complex digital devices”. Idem, ibidem:72.
19 Hansen, Yvonne M. Writing with images. Universidade de Washington. Disponível em: <http : / / courses .wash ington.edu/hyper tx t /cgi-bin/12.228.185.206/html/wordsimages/wordsimages.html#digilog>. Acessado em setembro de 2011.
20 “...cada arte deveria tornar-se ‘pura’, e em sua ‘pureza’ encontrar a garantia de seus padrões de qualidade, bem como de sua independência”. Greenberg, Clement. A pintura moderna. In: Battcock, Gregory (Org.). A nova arte. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1986:97.
21 Paul, Christiane. The myth of immateriality: presenting and preserving new media. In: Grau, Oliver (Org.). Media Art Histories. Cambridge: MIT Press, 2007:251.
22 Várias estratégias de preservação estão sendo elaboradas por diferentes instituições internacionais como: Rhizome.org, Capturing Unstable Media e o Variable Media Network.
Mano Vianna, como é conhecido Marcelo D.
M. Viana, é artista (manovianna.com), mestre
em poéticas interdisciplinares pelo PPGAV/UFRJ,
graduado em gravura pela EBA/UFRJ e designer
gráfico da Fundação Oswaldo Cruz.
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011104 105COLABORAÇÕES | KIM PAICE
Em 1968, quando Robert Smithson discutia
o “fim do estúdio”, destacou “os métodos e
procedimentos irrestritos” de Robert Morris em um
“mundo de não contenção”.1 Convenientemente
referindo-se à amplidão do trabalho do amigo,
Smithson convocava os artistas a livrar-se das
amarras dos ateliês.2 Em vez disso, explicava, era
hora de se interessar por coisas “enfadonhas”,
falar com admiração de buracos, valas, montes,
pilhas, caminhos, fossos e estradas − que ofereciam aos artistas nova linguagem poética desconstrutiva
contra a arquitetura e a pintura, até o ponto em que, observava Smithson, “em vez de pincel para fazer arte,
Robert Morris gostaria de usar uma escavadeira”.3 Embora frequentemente considerado um dos pioneiros do
“pós-estúdio”, o próprio Morris nunca escreveu sobre a prática no estúdio em si e muito menos a abandonou.
Já ocupou diversos espaços convencionais, incluindo ateliês nas ruas Great Jones, Grand, Mulberry e Greene,
em um loft no qual havia morado. Não obstante, criou numerosas obras que lidam com as noções de
deslocamento e destruição do estúdio. Assim como seus prolixos tratados sobre esculturas, as chamadas
obras de “estúdio” trazem publicidade às maneiras como Morris conceitua seu trabalho.
Neodadaísmo
Durante seus primeiros anos na cidade de Nova York, Morris realizou uma série de obras neodadaístas
lidando com noções de expropriação do estúdio e estendendo a ideia de performance a objetos
ROBERT MORRIS E O ESTÚDIO DO ARTISTA*
Kim Paice
Robert Morris minimalismoestúdio de artista
A problematização sobre a morte do estúdio é central na museologia, na arte
contemporânea e na crítica. Assim, na era pós-estúdio o lugar institucionalizado da
obra persiste com base na informação. Abordando/lendo de perto trabalhos e escritos
de Robert Morris, a autora explora os índices das performances em seu estúdio e
preocupações com a construção no neodadaísmo, no minimalismo e na performance.
I-Box, 1962 (foto) Dorothy Zeidman
Robert Morris e o estúdio do artista| Speculation about the death of the studio is central in museology, contemporary art, and criticism. Thus, the institutionalized workplace persists in the information-based ‘post-studio’ era. Closely reading Robert Morris’ works and writings, the author explores indices of his studio performances and concern with built spaces in Neo-Dada, Minimal art, and performance.| Robert Morris, Minimal art, performance, artist’s studio.
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011106 107COLABORAÇÕES | KIM PAICE
híbridos, que podem ser usados, manipulados
por interruptores, escutados, fechados e abertos.
Transferindo simbolicamente a propriedade
tradicionalmente privada (do estúdio do artista)
para o domínio público e deixando à mostra tanto
o estúdio como o fazer artístico, Morris abriu
espaço para encontros sociais com essas obras.
Seu aparente interesse em turvar as fronteiras
entre os gêneros e os lugares tinha relação
com sua prática de escultor e dançarino, e a
partilha do estúdio com outros dançarinos, cujas
práticas se caracterizam como multidisciplinares
e altamente criativas. Sem dúvida inspirou-se
em Simone Forti e Yvonne Rainer, colegas com
quem dividiu o espaço no último andar de um
prédio na Rua Great Jones. O estúdio em questão,
lembra Rainer, “era completamente aberto,” e
“Morris fez pequenas esculturas em um canto,
como a Box with the Sound of its Own Making.
Simone ensaiava See Saw conosco de um lado. Eu
ensaiava meu primeiro solo, Three Satie Spoons”.4
O ambiente devia ser excitante!
Uma análise superficial das fotografias de Morris
fazendo sua performance com, em e sobre as
obras desse período revela como as performances
em estúdio caracterizam muitas das obras
neodadaístas.5 A constatação mais famosa a esse
respeito ocorre em Box with the Sound of its Own
Making (1961).6 Uma homenagem direta às fitas
magnéticas de John Cage, a caixa de madeira
guarda uma gravação “de seu próprio fazer”, que
está contida nela mesma e é tocada quando a
obra é exposta; uma composição auditiva que traz
o espaço do estúdio e o trabalho nele realizado
para o âmbito do público e da exibição. A obra
consegue arrastar o estúdio, metaforicamente,
a um dado espaço de exposição, e de maneira
nenhuma declara sua obsolescência. Em cartas,
Morris pediu a aprovação de Cage para a caixa,
entre outras obras, escrevendo ao compositor que
ele estava tentando criar condições para a “morte
do processo (...) uma espécie de extensão da
ideia somente”.7 Embora se possa concluir que a
atitude dadaísta do artista valorize a inércia, essa
mesma ideia de dreno de energia foi frutífera para
Morris, fazendo trocadilhos com a impotência e
a importância de si, mais obviamente na risível
I-Box (1962). É digno de nota como dessa porta
cor-de-rosa de um pequeno armário em forma
de I se revela um retrato fotográfico do jovem
artista em seu estúdio, sorrindo maliciosamente,
incontritamente nu e com seu pênis parcialmente
ereto completamente exposto.
Antecipando sintomas relacionados com a
desmaterialização da arte, como a substituição
do estúdio tradicional, Morris usou a principal
sala de leitura da Biblioteca Pública de Nova York
como local de produção de Card File (1963).8
Essa obra inexpressiva também parece exibir o
selo de aprovação de Cage. Consistindo em fichas
de arquivo organizadas em ordem alfabética
e marcadas com a data e a hora de diversos
eventos, as fichas de arquivo documentam
ações aleatórias referentes à criação de Card File;
sua “composição” abrange cabeçalhos como
“Interrupções” (“18.7.62, 14h45 No caminho
para o arquivo encontrei Ad Reinhardt na esquina
da Rua 8 com a Broadway. Falei com ele até as
17h30 quando então ficou tarde para continuar
o percurso”), “Períodos de Trabalho” (“Contam-se
17”) e “Concepção” (“11.7.62, 15h15 enquanto
tomava um café na Biblioteca Pública de Nova
York”). O arquivo nos tira do tempo em que
o objeto foi feito para um presente no qual o
encontramos e o manipulamos, o tempo todo,
possibilitando que Morris conte histórias banais
sobre o processo. Embora “ostente sua própria
suposta autocontenção”, exibindo a história de
sua produção em fichas de arquivo, Card File
também transforma “a presumida privacidade
do pensamento no meio partilhado que é o
discurso e na lógica das proposições”, como
registrou Rosalind E. Krauss em 1994.9 Podemos
extrapolar afirmando que, ao dar atenção a essas
trivialidades, Morris também expõe a categoria
da publicidade e o desejo de exibir a qualidade
“trabalhada” da obra. O relato de encontros
casuais é feito com detalhes absurdos, ainda
que burocráticos; simplesmente dar de cara
com Ad Reinhardt foi costurado no tecido da
obra mediante a menção na ficha.10 Tanto o Box with the Sound of its Own Making
I-Box, 1962 (foto) Dorothy Zeidman
Card file, 1962 (ficha) (foto) Philippe Migeat
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011108 109COLABORAÇÕES | KIM PAICE
arquivo como a caixa demonstram a fluidez com
a qual Morris concebia o que está dentro e fora
da criação – e do estúdio. Além de insistir na
recepção do trabalho – com aparente indiferença
em relação a quem ou o que o público possa ser,
acima do prestígio de Cage ou Reinhardt –, essas
obras neodadaístas nos contam que para Morris o
estúdio é lugar que pode ser redefinido e no qual
a criação artística pode ser encenada.
Arte minimalista
A arte minimalista levou Morris a concentrar-se nos
significados da percepção enquanto performance
em si e a reconsiderar os propósitos do ambiente
arquitetônico e do estúdio. Espaços delimitados
e ambientes construídos, nem explicitamente
estúdios, nem espaços para exposição, eram
física e conceitualmente esqueletos para os
objetos, poliedros cinza e obras de metal e fibra
de vidro realizadas pelo artista. A importância da
intimidade foi parcialmente perdida à medida
que fabricantes industriais, tal como a Aegis,
produziam algumas de suas obras, enquanto ele
próprio atuava como projetista. Ao mesmo tempo
em que a temática desenfatizando a biografia do
artista poluía seus escritos, as práticas de fabricação
ajudavam a entender que sua contribuição física
mal era relevante em alguns trabalhos feitos dessa
maneira.11 Ainda assim, essa obra tridimensional
fala intensamente ao mundo de espaços fechados
construídos, incluindo o estúdio e os locais de
exposição. Embora o curador Martin Friedman
tenha achado a obra de Morris “puritana” e
“atópica”, em 1966 ele apreciou o “ambiente
como fator crítico” da obra, “pois essas formas
densas consomem espaço de maneira vigorosa e
se relacionam fortemente com as paredes, pisos
e tetos”. Em cartas a Friedman, Morris afirmou
que “o contato físico com uma superfície pode
tanto ser um uso da superfície como maneira de
reconhecer que ali há um limite, coexistindo com
a obra”.12
Não é difícil perceber a ambiguidade com que a
obra reconhece os lugares físicos, mas nega sua
especificidade. Conforme explica o historiador da
arte James Meyer, a situação na arte minimalista
foi um momento crítico na concepção da
escultura como instalação.13 A transição dos
tijolos minimalistas, colunas, pilares e portais para
contextos arquitetônicos e sociais e lugares reais,
incluído o estúdio do artista, foi modesto salto
conceitual que, para artistas como Michael Asher,
se demonstrou imensamente rico. Foi a percepção
de uma relação assíntota dessa arte com artigos
do dia a dia e com lugares − não o estúdio do
artista,mas supostamente outros − que contribuiu
para posicionar Clement Greenberg na oposição à
arte minimalista: “Independentemente de quão
simples é o objeto, permanecem as relações e as
inter-relações da superfície, contorno e intervalo
espacial”; e, por esses motivos, Greenberg
continua, “obras minimalistas são lidas como
arte, assim como quase tudo hoje em dia,
incluindo uma porta, uma mesa, ou uma folha
de papel em branco”.14
“Suprimida” foi como a historiadora Barbara Rose
descreveu a “impessoalidade mecânica” da arte
minimalista em 1965.15 “A frequente afinidade
com o mundo das coisas” (e com o dadaísmo)
dessa escultura a fez compará-la às unidades
básicas de linguagem ou informação, mas nunca
à mão do artista ou a seus espaços pessoais.
Como Annette Michelson, que perspicazmente
chamou a obra minimalista de Morris de
“apodíctica”, Rose considerou sua escultura uma
série de afirmações simples e factuais envolvendo
a permutabilidade.16
Sem dizer literalmente “estúdio”, Morris acaba
depreciando o minimalismo e a “total separação
de meios e fins na produção de objetos, bem
como a preocupação de tornar manifestas imagens
mentais idealizadas”, que ele afirmava “lançar
dúvida na alegação de que uma atitude pragmática
permeia a arte minimalista nos anos 60”.17 É como
se ele lamentasse que as imagens mentais do
artista nunca tivessem tido um lugar próprio e que
tal lugar teria que ser o estúdio do artista.
Performance
Este ensaio culmina com breve discussão sobre as
danças e performances de Morris, relacionadas
com as práticas de estúdio. Na obra-performance
Site (1964-67) e na exposição performática
Continuous Project Altered Daily (1969, dora-
vante Continuous Project), Morris realizou de
maneira criativa a possibilidade de desempenhar
o deslocamento do estúdio e de suas práticas.
Essas obras têm o efeito peculiar de criar um
espetáculo ou melhor seria dizer uma celebração
do fim do estúdio. Elas sugerem distinções entre
o uso que o artista faz do estúdio como habitat
versus um espaço do qual se apropria para sua
própria utilização. Dando-nos acesso a esses
espaços operacionais sincronicamente, ele viola
a economia dualista do estúdio e do espaço de
exposição e coloca à mostra o valor de troca que
é produzido no trânsito do estúdio para a galeria.
A conhecida coreografia Site, realizada pela
primeira vez no Stage 73, em Nova York,
entremeava a presença visível de um ambiente
arquitetônico abstrato, um ambiente implícito
na escultura minimalista, e planos abstratos de
tinta branca da pintura moderna de Edouard
Manet, Olympia (1863). Vestido inteiramente
de branco, mas ainda identificado como artista-Untitled (box for standing), 1961 (foto) Robert Morris Archives
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011110 111COLABORAÇÕES | KIM PAICE
operário pelas luvas de trabalho e pela trilha
sonora de construção, audível no decorrer
da performance, Morris usava uma estranha
máscara feita com base em seu próprio rosto
– contribuição de Jasper Johns – que escondia
suas expressões faciais. Como autômato,
ele carregava retângulos de compensado de
madeira pintados de branco como se estivesse
mudando seu estúdio, parede por parede. Como
complemento, Carolee Schneeman posava como
Olympia em uma pequena cama branca, nua e
coberta de talco, enquanto, de dentro de um
cubo branco, ecoava uma gravação, feita da
janela do estúdio de Morris, de uma britadeira
dolorosamente barulhenta.
Em 1969, Morris já havia emplacado a noção
de que até mesmo a matéria-prima poderia ser
considerada informação a ser percebida, como
em fotografias e outros tipos de linguagem,
especialmente itens organizados em listas e
conjuntos. O convite para o show Continuous
Project era, correspondentemente, apenas
informativo: bastante reduzido, fonte preta em
fundo branco, só indicando o nome do artista,
dois locais, a galeria de Leo Castelli na Rua 77 e
o número 103 na Rua 108 West, bem como uma
lista avulsa de materiais: alumínio, asfalto, argila,
cobre, feltro, vidro, grafite, níquel, borracha, aço
inoxidável, linha e zinco.
Morris escrevera no ano anterior em seu
ensaio divisor de águas Anti Form, que o lócus
do estúdio do artista e de seu fazer artístico
havia sido historicamente crucial para a
dubiedade na nomenclatura da matéria-prima
e na transformação, por qualquer que fosse o
processo, de “materiais” em objetos de consumo.
A arte contemporânea (a dele incluída), insistia,
deveria depender da materialidade que seria
capaz de evocar novos modos perceptivos e em
contrapartida solapar restrições linguísticas e
imagísticas ao fazer artístico.18 Na derradeira
e quarta parte da série de ensaios Notes on
Sculpture, ele declara que objetos minimalistas
haviam “fornecido a base imagística a partir da
qual a arte dos anos 60 se materializou”.19 A arte
minimalista se havia aproximado perigosamente
da nomenclatura, isto é, havia tornado “imagens
mentais idealizadas visíveis e afirmado as formas
antes das substâncias”.20
Para lidar com esses elementos, negações e
inversões, e por curto período, Morris fez da
percepção, do processamento da informação
e da transformação do material suas prioridades e
deixou de lado a produção de objetos. Canteiros
de obra o atraíam de imediato pela crueza e
dessemelhante relação com o ambiente urbano
manufaturado em que dominava o princípio da
gestalt.21 Chamando-os de “pequenas arenas
teatrais”, Morris dizia que esses locais eram
o oposto de um refúgio. Nem seguros nem
protegidos como abrigos, essas arenas eram “os
únicos lugares em que as substâncias brutas e
seus processos de transformação eram visíveis,
e a distribuição ao acaso, tolerada”.22 Esses
locais proporcionavam os tipos de experiências
sensoriais que ele desejava que estimulassem
o aparato perceptivo atrofiado dos habitantes
(e espectadores) urbanos, constantemente
entorpecido pela cidade construída e
compartimentalizada.
O Continuous Project de Morris foi ação de trabalho
artístico em situação de estúdio completamente
transitório, em que a obra performativa do
artista ao vivo entrecruzava um depósito da
Castelli Gallery e um efêmero canteiro de obras.
Continuos project altered every day, 1969 (foto) Leo Castelli Gallery, NY
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011112 113COLABORAÇÕES | KIM PAICE
Com mais de uma tonelada de materiais a sua
disposição, o esforçado artista intencionalmente
se despojou dos resultados tradicionais, como
objetos ou estruturas, ou seja, categorias ou itens
relacionados a sistemas ou nomeáveis, e registrou
esse procedimento deliberado, criando uma teoria
idiossincrática de alienação no que diz respeito
aos produtos da obra.
Continuous Project não era o pão de cada dia de
uma galeria ou de um espaço de performance,
ainda que os parâmetros que distinguiam as obras
de portas fechadas e aquelas ao ar livre estivessem
sendo destruídos na época. De fato, Morris
conseguiu incorporar ao Continuous Project o
solo de obra recém-exibida na Dwan Gallery.
Intimamente, Morris guardava cadernos sobre
o trabalho contínuo em Continuous Project,
de 28 de fevereiro a 22 de março de 1969,
descrevendo processos em que misturava água
e graxa com argila, pendurava e arrancava
pedaços de tecido de algodão e musselina,
empilhava e escavava amianto e terra,
rasgava tiras de feltro, martelava madeira e
construía plataformas, tão somente para fazê-
las desintegrarem sob o peso da terra. Esses
cadernos que registram o processo sugerem que
Yvonne Rainer foi responsável por lembrar Morris de
que brincar deveria ser parte do processo, embora
ela não o associe a esse tipo de envolvimento.23
Morris remói: o processo o deixou frio, frustrado,
desgostoso e “entediado”.24 Foi-lhe difícil resistir
às preconcepções da obra que surgiam a cada dia:
“Eu não tinha ideia do que eu faria ou colocaria
lá, eu só sabia que trabalharia todo dia”. Talvez
suas prioridades anticomposicionais universais
fossem mais composicionais do que ele entendia.
Portanto, envolveu-se em uma atividade nebulosa
que começou com a manipulação de materiais
convencionais enquanto tentava encontrar
combinações despropositadas ou inesperadas.
Esses esforços eram direcionados ao formalmente
interessante e ao temporalmente persistente:
“Comecei com uma tonelada de argila. Eu tinha
uns restos de linha da peça Thread. Barris, não
lembro o que havia neles. Comecei a tirar o
plástico. Eu tinha 400 libras de graxa. Comecei a
construir mesas e trouxe o feltro, a argila endureceu.
Estiquei o feltro, criando camadas ou coisas.
No final de cada dia eu tirava uma foto, que era
revelada à noite. No dia seguinte eu a pendurava.
Então começa a formar-se um registro do passado.
No último dia eu limpei tudo e fiz uma gravação,
a escavação, essa coisa toda. Então o que sobrou
foi a gravação da limpeza e as fotografias. Essa é a
natureza dessa peça, sempre em processo.”25
Deixar o gravador emitindo esse som no galpão
vazio da Castelli no final do mês concretiza
a importância de Continuous Project nos
deslocamentos de estúdio que estão tão
silenciosamente entranhados em suas obras,
que podem passar despercebidos ou ser mal
interpretados, como um conjunto de obras
temáticas. Nessa ação de utilizar o som e as fitas
magnéticas, percebemos o desejo contínuo de
Morris de proporcionar informações e de usar
meios como linguagens. No entanto, vale a pena
considerar por que ele ainda contava com tal
aparato em uma obra antiformal. O paradoxo foi
nunca parar de trabalhar para criar e exibir o valor
de troca. A repulsa que descreveu em seu diário
não era em relação ao processo físico de fazer ou
manipular os materiais, mas à própria ideia de criar
algo a partir dos materiais e de seu trabalho. Vale
ressaltar que de maneira nenhuma ele se opôs à
criação desse projeto como obra para a venda.
Chegou até a transformar as fotografias do projeto
em um múltiplo – uma dobradura de papel em
estilo acordeom com os estágios e os detalhes do
projeto – que foi publicado pela Multiples, Inc. de
Marian Goodman, em 1970. De certa maneira, o
sentido da abordagem era oposto ao daquela que
Rainer buscou através da linguagem no trabalho
de título semelhante, Continuous Project-Altered
Daily (1969) (doravante CP-AD).
Na época em que eu estava trabalhando
em CP-AD [ela observa], a fala estava
relacionada com o comportamento
espontâneo dos dançarinos e a leitura
entre os não dançarinos. Antes disso, a
fala aparecia na forma de declamações
em movimento. Nos primórdios do CP-
AD, tentei encontrar equilíbrio entre
configurações de dança “refinadas” e
“comportamento”. Nem sempre era fácil.26
Diretamente inspirado pela leitura dos escritos
de Anton Ehrenzweig, Morris reconheceu haver
Continuos project altered every day, 1969 (foto) Leo Castelli Gallery, NY
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011114 115COLABORAÇÕES | KIM PAICE
sido Continuous Project a primeira ocasião em
que ele quis usar os processos de criação artística
para trabalhar níveis e aspectos de sua própria
personalidade. Essa posição aparentemente nova
no que diz respeito ao papel do “eu”, em torno
de 1967-1971, estava relacionada a seu interesse
por materiais que resistiam à unificação formal.27
Morris descreveu a importância de se fazer uma
varredura visual e mental em materiais variáveis,
como Ehrenzweig o fez, em vez de concentrar-se
e fixar-se em coisas familiares, nomes próprios ou
formas reconhecidas. Morris esperava transmitir
a sensação de indeterminação aos espectadores,
para que eles se tornassem mais unificados em
face das sensações oceânicas do poder opressivo
do mundo a nossa volta; conforme Ehrenzweig,
sugeriu, esse poderia ser um dos resultados desses
encontros com a ecceidade do mundo material.28
Entretanto, era primeiramente a fim de unificar
a si próprio que Morris continuava seu diário.
Publicamente ele escreveu que queria romper com
orientações habituais e valer-se da “concretude
física da matéria” na arte, orientada para o
processo a fim de criar “uma mudança no perfil
da arte tridimensional como um todo”, indo de
“formas particulares a maneiras de organização,
métodos de produção e finalmente, à relevância
perceptiva”.29 Para desenvolver maneiras de fazer
arte que pudessem assegurar sua relevância para
as pessoas que a experimentam, Morris contava
com a noção de que “a percepção tem história”.30
Adotando esse entendimento ou maneira de
organização, ele esperava afastar-se ainda mais
do que chamava de “arte mercadoria produzida
por estúdios e fábricas”.31 Em 1971 ele teorizou
sobre as vias de escape possíveis para o beco sem
saída potencialmente tóxico criado pela troca na
materialidade orientada para processos. Além
disso, Morris expressou seu interesse por materiais
manualmente manipulados que permaneciam
sendo não mercadorias, porém não brutos, e
que poderiam ser usados em obras de escala
ambiental que exploram “o mais ou menos ‘não
feito’”, “suprimem o incidente visual”, e localizam
o processo “naquele que participa” dessa
arte.32 Portanto, Morris deixou os anos 60 com
o estúdio e o eu a tiracolo. Não mais um lugar
para produção, o estúdio era para ele redefinível,
encenável, portável, vazio e excessivamente
pleno de informações sobre o ser, muito mais do
que o fazer.
Uma primeira versão deste artigo foi publicada
com o título Continuous Project Altered Daily:
Robert Morris. In Davidts, Wouter; Paice, Kim
(eds.). The Fall of the Studio: The Artist at Work.
Amsterdam: Valiz Press, 2009:43-61.
NOTAS
* Constam da pesquisa para este artigo entrevistas
pessoais e um estudo pormenorizado do Arquivo
Robert Morris, no Museu Solomon R. Guggenheim,
em Nova York, que abriga muitos documentos não
publicados, arquivos, correspondência e parte da
biblioteca de Morris.
1 Robert Smithson. A Sedimentation of the Mind:
Earth Projects. In Jack Flam (ed.). Robert Smithson:
The Collected Writings, Berkeley: University of
California Press, 1996:100-113.
2 Idem, ibidem:102.
3 De fato, o ruído da demolição do prédio e das
escavadeiras desempenhou mais tarde importante
papel no final de uma seção do They, de Morris,
que era parte da instalação de som e escultura Voice
(1974). Robert Smithson. Towards the Development
of an Air Terminal Site. In Flam (ed.), op. cit.:56.
4 Yvonne Rainer, correspondência com o autor, 16
de outubro de 2007.
5 Paice, Kimberly. Catalogue. In Robert Morris: The
Mind/Body Problem (exh. cat.), New York: Solomon
R. Guggenheim Museum, 1994.
6 Partituras orientadas por regras foram usadas em
trabalhos de Morris ainda em 1974, com a junção
de textos – The Four, We, They, Cold/Oracle, He/She,
Scar/Records e Monologue – na obra auditiva Voice
(1974). Ver Paice, Kimberly. Voice (1974). In Paice,
1994:256-261.
7 Ver, de Branden W. Joseph, a apresentação de Bob
Morris Letters to John Cage, October 8, Summer
1997:70-79 (71, 74). Em carta datada de 27 de
fevereiro de 1961, Morris se refere a Box with the
Sound of its own Making e afirma ter mencionado
a obra a Cage.
8 Lucy R. Lippard e John Chandler inter-relacionam
a “desmaterialização da arte” com a nova ênfase
conceitual em arte americana. Mais do que isso,
entretanto, estou interessada em como eles identificam
o duplo colapso da feitura e do estúdio particular. Ver
Lucy R. Lippard e John Chandler, The Dematerialization
of Art. Art International, 12, 2, February 1968:31-36.
9 Rosalind E. Krauss in Paice, 1994:4.
10 Morris, ‘Letters to John Cage’ (78), a carta de
Morris a Cage, datada de 12 de janeiro de 1963,
revela que Cage ainda não havia visto Card File,
exposta na Green Gallery, na Rua 57, de 15 de
outubro a 2 de novembro de 1963.
11 Pesquisadores buscaram recuperar a biografia
relacionada à obra. Ver a entrevista a Pepe Karmel,
Robert Morris: Formal Disclosures, Art in America,
83, 6, June 1995:88-95, 117-19; Anna C. Chave,
Minimalism and Biography, Art Bulletin, 82, 1, March
2000:149-163.
12 Martin Friedman, Robert Morris: Polemics and Cubes, Art International, 10, 10, December 1966:23-7 (23); Robert Morris, carta a Martin Friedman, 24 de agosto de 1966. Daqui, a distância conceitual parece pequena para o decalque de livros e de tomadas, entre outros itens, que Morris fez em estúdio na Rua Mulberry em 1972. Ver Kimberly Paice, Rubbings (1972), in Paice, 1994:240-243. Eugene C. Goossen também foi tocado pelas formas como a arte minimalista se integrava à arquitetura e dela se desvencilhava. Não é difícil acompanhar seu pensamento no tocante à decisão de incluir pinturas como Lake George Window (1929), de Georgia O’Keeffe, e Window: Museum of Modern Art, Paris (1949), de Ellsworth Kelly, ao lado de esculturas minimalistas em The Art of the Real: USA 1948-1968. Examinando essa exposição, Gregory Battcock criticou Goossen por “academizar” o minimalismo e limitar o potencial da obra de contestar instituições e lugares reais (museus e universidades). Gregory Battcock, The Art of the Real: The Development of a Style: 1948-68, Arts Magazine, 42, 8, Summer 1968:44-47.
13 James Meyer. Minimalism: Art and Polemics
in the Sixties. New Haven/London: Yale University
Press, 2001:166.
Portrait, 1963 (foto) Diane Nilsen
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011116 117COLABORAÇÕES | KIM PAICE
14 Clement Greenberg, Recentness of Sculpture.
In American Sculpture of the Sixties (exh. cat.),
Los Angeles: Los Angeles County Museum of Art,
1967:25.
15 Barbara Rose, ‘A B C Art’, Art in America, 53, 5,
October/November 1965:57-69; também publicado
em Battcock, Minimal Art: A Critical Anthology, New
York: E.P. Dutton & Co., Inc., 1968:274-297 (274).
16 Annette Michelson, Robert Morris: An Aesthetics
of Transgression, in Robert Morris (exh. cat.),
Washington D.C.: Corcoran Gallery of Art, 1969:13.
Rose vincula ABC Art a Lectures in America (1935)
de Gertrude Stein, obras do poeta-pintor Kasimir
Malevich e Marcel Duchamp, e Understanding
Media: The Extensions of Man (1964), de Marshall
McLuhan. O poeta David Antin enfatiza as técnicas
de isolamento na obra de Morris, que, em sua
opinião, torna alienígena o contexto para as obras.
Ver ‘Art & Information, 1 Grey Paint, Robert Morris’,
Art News, 65, 2, April 1966:23-24, 56-58. Com
raciocínio semelhante, Hal Foster registrou que as
obras minimalistas eram feitas, em conformidade
com o modo de produção do capitalismo tardio,
para “significar do mesmo modo que objetos em
sua qualidade cotidiana, ou seja, em sua sistemática
latente”. Hal Foster, The Crux of Minimalism, in
Individuals: A Selected History of Contemporary Art
(exh. cat.), Los Angeles: Museum of Contemporary
Art, 1986:162-183 (179). Ver também Jean
Baudrillard, For A Critique of the Political Economy
of the Sign, Charles Levin (trans.), St. Louis: Telos
Press, 1981:104. A composição a priori e o uso de
elementos prontos estavam implícitos no foco do
design da arte minimalista e se abriam logicamente,
para Morris, à fabricação industrial. Esse fator tornou
o minimalismo vulnerável às críticas dos marcuseanos,
como Ursula Meyer nos anos 60, que diziam que
essas obras não resistiam ao racionalismo nem se
afastavam da lógica das mercadorias. Ursula Meyer,
De-Objectification of the Object, Arts Magazine, 43,
5, Summer 1969:20-22. Mais tarde historiadores
tentaram ressuscitar a dança e a arte minimalista de
Morris pela explicação freudo-marxista de trabalho
dessublimado de Herbert Marcuse.
17 Aqui Morris se refere a um artigo recente
de Barbara Rose, Problems of Criticism VI, The
Politics of Art, Part III, Artforum, 7, 9, May
1969:46-51. Ver Morris, Notes on Sculpture,
Part 4: Beyond Objects, Artforum, 7, 8, April
1969:50-54; republicado em Continuous Project
Altered Daily; The Writings of Robert Morris,
Cambridge/London/New York: MIT Press/Solomon
R. Guggenheim Museum, 1993:51-70 (67).
18 Robert Morris, Anti Form, Artforum, 6, 8, April
1968:33-35; republicado em Continuous Project
Altered Daily: The Writings of Robert Morris:41-49.
19 Morris, Notes on Sculpture, Part 4:64.
20 Morris, Notes on Sculpture, Part 4:67.
21 Quando Morris se mudou para Nova York com
sua parceira de dança Simone Forti, eles se chocaram
com as características excessivamente construídas
do ambiente urbano. Essa experiência tornou-
se relevante para a apresentação que Morris fez
do estúdio do artista em Site. Forti escreveu: “Na
primavera de 1959, Bob Morris e eu nos mudamos
para Nova York. Eu não podia acreditar nesse
lugar. O que mais me chocou foi estar imersa em
um ambiente que parecia ter sido completamente
desenvolvido e criado por pessoas (...). Eu me lembro
de como era alentador e consolador saber que a
gravidade ainda era gravidade. Eu me sintonizei com
meu próprio peso e volume como uma forma de
oração”. Simone Forti, Handbook in Motion, Halifax/
New York: Press of the Nova Scotia College of Art and
Design/New York University Press, 1974:34.
22 Morris, Notes on Sculpture, Part 4:69.
23 Os cadernos não publicados de Morris registram
que “Yvonne [Rainer], Ted e Joanne” estavam
envolvidos com o fazer dessa obra e que membros
do Pulsa passaram no depósito um dia. Rainer
salienta, no entanto, que não havia colaboração
entre ela e Morris e que seu trabalho de mesmo
título, que foi realizado em seu próprio estúdio, era
independente do projeto de Morris. Yvonne Rainer,
correspondência com o autor, 27 de agosto de 2007.
24 Deixando a mente fluir, ele escreveu sem
escamotear seus sentimentos em relação a
compromissos profissionais futuros e planos de
obras que poderia vir a criar, incluído um filme sobre
levantamento de peso que nunca se concretizou.
25 Entrevista gravada em 1977 com Thomas Krens,
Fita 4.2, no Arquivo Robert Morris do Museu
Solomon R. Guggenheim, em Nova York.
26 Yvonne Rainer, correspondência com o autor,
16 de outubro de 2007. O título igual dos projetos
de Rainer e de Morris, segundo ela, devia-se apenas
ao fato de que “ambos estavam envolvidos com
estruturas indeterminadas” na época. A preferência
de Rainer pelo jogo e empatia em seu trabalho não
eram metas que tinha em comum com Morris. Para
o papel desses termos na obra de Rainer, ver Carrie
Lambert, On being Moved: Rainer and the Aesthetics
of Empathy, in Yvonne Rainer: Radical Juxtapositions
1961-2002 (exh. cat.), Philadelphia: Rosenwald-Wolf
Gallery, 2002.
27 Morris informou Thomas R. Krens que
Continuous Project era diretamente relacionado ao
permutado Untitled (1967), em forma de estádio,
que faz atualmente parte da Panza Collection,
adquirida pelo Museu Solomon R. Guggenheim,
em Nova York. Entrevista gravada em 1977 com
Thomas Krens, Fita 4.2, no Arquivo Robert Morris
do Museu Solomon R. Guggenheim em Nova
York. O próprio Morris se refere à obra como “em
forma de estádio” A maioria das obras sem título
de Morris recebem essa nomenclatura casual, cuja
fonte é ele mesmo. Essa obra é a de número 67.172
no Arquivo Robert Morris.
28 O nome de Ehrenzweig não aparece em Anti
Form, mas figura em Notes on Sculpture, Part 4:
Beyond Objects. Anton Ehrenzweig, The Hidden
Order of Art, A Study in the Psychology of Artistic
Imagination, Berkeley: University of California Press,
1967. O método desse autor advinha da escola de
psicologia profunda, conforme desenvolvida na
Inglaterra, e Ehrenzweig reconhecia a influência
crucial em sua obra do livro de Marion Milner,
An Experiment in Leisure, London: Chatto and
Windus, 1937, publicado pela primeira vez
sob o pseudônimo ‘Joanna Field’. As ideias de
Milner sobre o jogo não parecem ter encontrado
repercussão na obra de Morris, que continuamente
se orienta em torno de tratados, declarações e traduções
consagradas de obras para novos trabalhos.
29 Morris, Notes on Sculpture, Part 4:67-68.
30 Morris, Notes on Sculpture, Part 4:61.
31 Robert Morris, The Art of Existence. Three Extra-
Visual Artists: Works in Process, Artforum, 9, 5,
January 1971:28-33; republicado em Continuous
Project Altered Daily: The Writings of Robert
Morris:95-117 (95).
32 Morris, The Art of Existence:95, 97.
Kim Paice é doutora em história da arte pela Cuny,
NY, professora de história da arte na Universidade
de Cincinnati, EUA.
Tradução Mirna Soares Andrade
Revisão da tradução André Alves
Revisão técnica Martha Telles
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011118 119COLABORAÇÕES | GABRIELA LÍRIO GURGEL MONTEIRO
Refletir sobre o uso de imagens na cena
contemporânea significa repensar o estatuto da
imagem em seus modos de criação, interlocução
e apreensão da realidade. Não é de hoje que
assistimos a um crescente interesse em utilizar o
material audiovisual como potente dispositivo
de engendramentos de sensações e percepções,
ora estabelecendo diálogo direto com a obra em
questão, ora se desviando dos sujeitos e temas em
curso para desconstruir o lócus da encenação. A invasão das novas mídias acelera o processo de recepção
de imagens; se, na modernidade, tais imagens estavam ligadas à percepção lógica da narrativa, tornam-
se na contemporaneidade cada vez mais fragmentadas e desconectadas ao negar-se como espelho
prefigurado do que as antecede. As imagens teatrais, alicerçadas em poética baseada na liberdade
de escolha, contaminadas pelas artes performáticas, pelo cinema e pelas novas mídias, constroem um
terreno fértil e híbrido de articulação entre as artes, intensificado pela especificidade teatral, através do
jogo entre a presença do ator, da materialidade de seu corpo e sua voz, e a virtualidade produzida.
“Teatro high-tech”,1 “teatro de imagens”,2 “teatro narrativo-performático,3 “teatro performativo”4
são alguns dos nomes desse novo teatro, fundamentado em cenas que refletem campos de pesquisa
interdisciplinar, “(...) um campo de mediações intertextuais, intertemporais, intersemióticas, interartísticas
e/ou intermídias, que a vertente teatral abordada parece priorizar como seu território preferencial, um
TEATRO DE IMAGENS E AUTOBIOGRAFIA: espetáculo?
Gabriela Lírio Gurgel Monteiro
teatro cinemaimagem autobiografia
O artigo investiga o uso de imagens em espetáculos contemporâneos e sua relação
com dramaturgias criadas a partir de relatos autobiográficos. “Teatro high-tech”,
“teatro de imagens”, “teatro narrativo-performático, “teatro performativo” são alguns
dos nomes desse novo teatro, fundamentado em cenas que refletem campos de
pesquisa interdisciplinar.
Teatro de imagens e autobiografia: espetáculo?| The article investigates the use of images in contemporary entertainment and its relation to a play created from autobiographical reports. “High-tech theater,” “theater of images”, “narrative theater performing,” performative theater” are some of the names of the new theater that is based on scenes that reflect interdisciplinary research fields. |Theatre, cinema, image, autobiography.
I - Box, 1962. (foto) Dorothy Zeidman
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011120 121COLABORAÇÕES | GABRIELA LÍRIO GURGEL MONTEIRO
território limítrofe e intersticial”.5 As fronteiras
artísticas tornam-se tênues e colocam em foco a
questão que me parece primordial na discussão
sobre as relações da cena contemporânea e o
uso do audiovisual: o teatro, arte da presença,
estaria reinaugurando outros modos de interação
à medida que se deixa contaminar pelas imagens
não apenas produzidas na cena, mas sobretudo
existentes para além dela? Quais os limites entre
imagens da corporalidade do ator que compõem
partituras cênicas e as imagens captadas e
projetadas desse mesmo corpo ou de outros
corpos, paisagens e objetos presentificados na
cena ou não? As imagens audiovisuais recriam o
espaço, inauguram uma espécie de duplo lugar,
um desdobramento da cena que pode variar de
acordo com os dispositivos e suportes utilizados.
Lehmann cita Barthes e Muller na tentativa de
definir a especificidade do teatro e sua diferença
com relação às novas mídias. “O que é o teatro?
Uma espécie de máquina cibernética”,6 diria
Barthes prevendo a relação que o teatro iria
estabelecer com as novas mídias. Lehmann, porém,
chama a atenção para o contexto no qual Barthes
estava inserido e sua perspectiva semiológica que
compreendia o processo cognitivo do espectador
ao decifrar as informações. Citando Muller, para
quem o teatro “é o moribundo em potencial”, e
observando que a informação está para além da
morte, Lehmann discorre sobre o espaço-tempo
teatral constituído pela experiência presencial,
direta, entre espectadores e atores, transformada
e vivenciada no presente da encenação. E, por
esse motivo, não mais passível de ser reproduzida.
Em contrapartida, as imagens audiovisuais podem
ser reproduzidas e, no encontro com teatro,
permitem ao espectador experimentar duas
realidades espaçotemporais: o espaço-tempo da
interação, “comum da mortalidade”, e o espaço-
tempo das imagens audiovisuais que acenam
para um encontro que existe a priori. Isso porque
tais imagens foram captadas e realizadas antes de
ser projetadas, ou seja, sua existência antecede à
cena, ainda que sejam manipuladas e editadas,
como em alguns casos, in loco, no momento de
sua projeção. Nesse sentido, o espectador vivencia
a duplicidade espaçotemporal, dois tempos e dois
espaços que, juntos, em sua interseção, criam uma
terceira relação espaçotemporal, experimentada
através do cruzamento de elementos da cena e da
virtualidade produzida.
Abre-se vasto campo de pesquisa na análise desta
terceira relação espaçoteatral que recria o espaço-
tempo do teatro, espaço de signos por natureza.
O espaço teatral, ao receber o espaço virtual,
abre-se a novas perspectivas que redimensionam
a cena. Josette Féral afirma que, no teatro
performativo, o real desperta no espectador a
vontade de reagir de forma inteligente, e isso
se torna possível por um olhar duplo que vai
do real à ficção ou do espaço cotidiano ao da
cena. Há, portanto, no espaço cênico, uma
divisão: o real material e o que é criado na cena.
No teatro contemporâneo, a desconstrução do
real torna os signos instáveis, faz com que o
espectador passe de uma representação à outra,
de um sentido ao outro, buscando articulação em
um espaço fragmentário e plural. A inserção de
imagens evoca também a duplicidade do tempo
– o tempo da cena e o da imagem. O tempo
da presença do ator e a imagem que traz em si
mesma a referência do tempo de sua captação.
Nesse sentido, o espectador é lançado em um
espaço-tempo híbrido, fruto do que vê e do que
é visto, uma vez que sua leitura depende desse
movimento duplo a que se refere Féral.
Encontramos as noções de desconstrução,
disseminação e deslocamento, de Derrida.
A escrita cênica não é aí mais hierárquica
e ordenada; ela é desconstruída e caótica,
ela introduz o evento, reconhece o risco.
Mais que o teatro dramático, e como a arte
da performance, é o processo, ainda mais
que produto, que o teatro performativo
coloca em cena.7
Phillippe Dubois define como “efeito cinema” a
presença cada vez mais intensa das imagens no
universo da arte contemporânea. Analisando a
questão do dispositivo e do espectador, aponta
para uma mudança na própria ideia de cinema
e de arte, uma vez que ambos se encontram
relativizados pelo terreno híbrido de suas
apreensões. Quando o cinema entra em um
museu, que imagem é vista? “O que sentimos
quando se troca a duração standart imposta pelo
desenrolar único e contínuo das imagens do filme
por modos de visão mais aleatórios e muitas vezes
fragmentados e repetitivos (em loop) de imagens
que estão sempre aí, podendo ser abandonadas
ou retomadas da maneira que se quer?”.8 É fato
que o “efeito cinema”, ao qual se refere Dubois,
não se restringe apenas à arte contemporânea,
mas inaugura espaços importantes de enunciação,
como o teatro contemporâneo, a dança, a
performance, a música.
Imagens autobiográficas: documentos
cênicos na dramaturgia contemporânea
Analisar a produção teatral contemporânea pelo
viés da autobiografia nos remete a uma rede
de tangenciamentos e reflexões oriunda das
experiências do sujeito diante da imersão em
novas formas de representação, atravessadas
pelo relato virtual ou pelo que nomeio aqui
“documento cênico”. Atualmente, assistimos
ao que Arfuch aponta como “exercícios de
ego-história”:9 autoficções, testemunhos on-
line ou o diário em blogs, filmes realizados a
partir e/ou com “personagens reais”, reality
paintings, reality shows e todo documento que
possa ser considerado um fragmento da vida
real são incorporados a processos artísticos. A
autobiografia, antes circunscrita aos cânones
literários e presente em importantes estudos de
Arendt, Lejeune, Ricoeur, entre outros, é hoje
exaustivamente investigada como fenômeno do
mundo globalizado, alicerçada pelas novas formas
midiáticas e pelos novos horizontes tecnológicos.
O efeito de real traduz-se no sujeito
contemporâneo pelo desejo de consumo de
imagens que possam conceder-lhe uma espécie
de garantia de sobrevivência. Seu relato, balizado
pela transmissão midiática, o faz imagem de
um Outro, enquanto o consumo de sua vida
e de sua imagem projetada realimenta as
expectativas de pertencimento a uma rede virtual
complexa. Desse modo, não ter acesso às novas
tecnologias de informação elimina a sensação
de pertencimento ao real a que nos referimos; o
real que se caracteriza não somente pela inscrição
do sujeito na vida cotidiana e nas relações que
ele estabelece, mas pela percepção de ser parte
de uma rede complexa de informações, da qual
só se enxerga parte, nunca o todo. O sentido
do global é percebido tão somente através do
local. Assim, as noções de público e privado
confundem-se posto que toda e qualquer pessoa
pode barganhar seu espaço no que chamo de
“rede”.10 O novo estatuto de visibilidade do
sujeito redimensiona o status de persona pública
versus homem comum, invertendo a proposição
dos espaços: o espaço da intimidade é partilhado
e objeto de interesse público, enquanto o que
antes por seu caráter impessoal (de preservação
do privado) tinha sua divulgação socialmente
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011122 123COLABORAÇÕES | GABRIELA LÍRIO GURGEL MONTEIRO
aceita perde continuamente interesse se não
estiver conectado a impressões, apontamentos,
detalhes que humanizam o biografado,
expondo suas fragilidades e idiossincrasias na
tentativa de provocar identificação com os
consumidores/espectadores.
“Se a morte preside na casa da autobiografia”,11 o
teatro, arte que mais se aproxima da morte, uma
vez que é apresentado ao vivo para o público,
quando se utiliza de material autobiográfico
duplica o efeito do real, esvaziando o sentido
da representação, e potencializando a presença
física do ator ao lidar com o material de sua vida
privada como dramaturgia cênica. Diante da
exposição, o espectador percebe o movimento
de desnudamento, o tom confessional, e passa a
se questionar sobre a veracidade dos fatos, sobre
o que é da ordem do real e o que é da ordem
do ficcional, como se fosse possível separá-los
na encenação. “O que poderia ser chamado
de crise da ficção ou estética da realidade
consistiria não no abandono da primeira em
detrimento da segunda, mas em um processo
(...) de hibridização”.12
A dramaturgia contemporânea baseada em
relatos autobiográficos promove assim a
identificação direta da plateia movida pela
curiosidade e pelo desejo de desvendar o
enigma da verdade da presença do ator, não
se interessando apenas pelo que é dito, ou pelo
modo como é dito, mas pelo desdobramento da
palavra-testemunho que deflagra a crise da imagem
do sujeito. “O que fazer com as ruínas”13 – questão
levantada por Nestor García Canclini – é o que
interessa a essa discussão porque inaugura uma linha
de fuga, um percurso possível para o “sujeito fora de
si”,14 focado na exterioridade e no autocentramento.
O uso de novos dispositivos de captação do real
através do depoimento/relato contribui para
aguçar a crise da imagem do sujeito, reverberando
suas fraturas ao evocar memórias suas e de outros
que compõem sua biografia. Ao utilizar imagens
projetadas, fotos, vídeos, slides, imagens de
computadores, trechos de filmes, reprodução
de espaços de intimidade, entrevistas, a vida
como produto da narração vê-se transformada
em espetáculo imagético, em “efeito cinema”.15
Um efeito presente não só nas artes cênicas, mas
nas artes de modo geral, e que no espaço do
teatro, foco da discussão, modifica a percepção
do espectador, ampliando as possibilidades de
interação à obra apresentada. O espetáculo
mediatizado/atravessado pelas imagens passa
a apresentar dois espaços complementares e
dialógicos: o espaço do ator e sua interação
direta com o público e o espaço da imagem,
aberto a deslocamentos, porque introduz por si
só outros espaços, em uma lógica de acumulação
e, em alguns casos, de excesso. Palavra e imagem
conjugam-se em uma sintaxe confluente no corpo
do ator, ora mediatizado por novos dispositivos,
ora agente da ação.
Otro, do grupo Coletivo Improviso, dirigido por
Enrique Diaz e Cristina Moura, é, segundo Diaz,
uma investigação sobre alteridade, em que o Outro
aparece como objeto e, especialmente, como
relação”.16 O olhar transforma-se em “material do
espetáculo, assim como a suposta objetividade da
imagem do outro”.17 Nesse sentido, o relato e a
entrevista foram ferramentas para a construção
dramatúrgica no desejo não de buscar a verdade
dos fatos e das sensações vividas, mas de partilhar
e conhecer fragmentos da história de vida dos
outros. Partindo da ideia do documentário,
ampliando a percepção dos espaços, o espaço
da cidade/o espaço do corpo, Diaz buscou o
documentarista Felipe Ribeiro para juntos criarem
imagens na tentativa de ampliar a percepção
visual do espectador para a proposta. “O que I - Box, 1962. (foto) Dorothy Zeidman
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011124 125COLABORAÇÕES | GABRIELA LÍRIO GURGEL MONTEIRO
acontece é uma espécie de poetização da imagem
dentro do espetáculo, que é um processamento
do que foi visto/vivido para a formatação final, a
dramaturgia das imagens…”.18
Parte do processo de criação do espetáculo deve-se ao uso de dispositivos de interação e de convivência. Os dispositivos são enquadramentos e levam ao acaso. “O dispositivo nunca é garantia, ele só ajuda a estar aberto para o mundo”;19 ele deflagra trajetos. O material autobiográfico surge desses trajetos dos atores pela cidade. No bairro da Taquara, no Rio de Janeiro, o grupo encontra um personagem cuja história desperta piedade: havia sido abandonado pela namorada, estava triste. Ao conhecê-lo melhor, a impressão se modifica: tratava-se de “um baita colonialista, queria falar inglês, superdestacado do lugar onde mora”.20 O dispositivo leva a uma composição complexa e ao aprofundamento dos personagens não apenas por possibilitar encontros reais, no sentido de que as histórias presentes na encenação surgem do relato de um sujeito inserido em determinado contexto. O encontro se dá ao acaso, não precede alguma decisão ou característica determinante. A escolha deve-se, por exemplo, à coloração de uma camisa. Os atores saem de ônibus, descem no terceiro ponto e precisam interagir com alguém de camisa vermelha. Dessa forma, tais relatos foram sendo incorporados à dramaturgia e articulados às imagens documentais projetadas na cena. Imagens reveladoras do processo de criação e do próprio dispositivo, e que trazem uma impressão de realidade ao espectador, potencializando o material autobiográfico em sua relação híbrida com as ações provenientes da interação/jogo dos atores e público na cena.
Percebe-se, portanto, duplo estatuto da imagem:
por um lado, imagens provenientes de relatos
de outros sujeitos, encontrados na cidade e
que fizeram parte do processo de criação do
espetáculo; sujeitos revelados através do uso
do vídeo como documento da criação e como
documento da interação dos atores com a cidade;
por outro lado, imagens dos atores diante de
situações já vivenciadas e que são ficcionalizadas
nos espaços da cidade (barca Rio-Niterói). A
performatização de tais imagens constrói um
terreno híbrido para a vivência da cena: o ator
relata o que viveu, as imagens ora tornam
explícitos lugares e impressões, ora desconstroem
o imaginário do relato do ator ao se fixar em
detalhes ou trazer elementos que buscam ativar
um estado de contemplação do espectador.
O espaço teatral despojado de objetos cênicos,
apenas algumas cadeiras e mesas, é transformado
ora por imagens realistas, da barca Rio-Niterói ou
do restaurante árabe do Largo do Machado, ora
por imagens poéticas, como as imagens do céu,
das nuvens, de um pássaro que passa; imagens que
buscavam, segundo Felipe Ribeiro, aproximação
com o espectador através da contemplação.
Coloco a imagem do céu, nuvem, deixo
a imagem em movimento, é a nuvem se
movendo levemente, é um pássaro que
passa… ficava meio tonto, se eu focasse
o olhar na nuvem, me dava uma certa
tonteira, a nuvem parece que não está se
movendo e está. Estava interessado em
brincar com essa sutileza. A contemplação
faz ir para outro lugar, um trampolim para
criar outra coisa.21
Foram três processos de captação de imagens:
cenas da pesquisa refilmadas; imagens originais
assimiladas ao trabalho e, por último, imagens
produzidas pelo documentarista a partir da
observação do material de ensaio. O jogo entre
real e ficção/memória e invenção percorre todo
o processo de criação do Otro. Há imagens de
I - Box, 1962. (foto) Dorothy Zeidman
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011126 127COLABORAÇÕES | GABRIELA LÍRIO GURGEL MONTEIRO
cenas da cidade, originárias da pesquisa, que Diaz
sugeriu a Ribeiro incorporar às demais existentes
pela percepção de que o espectador se desligava
da narrativa, da história contada, fixando-se na
experiência trazida pelas imagens.
Festa de separação, espetáculo dirigido por Luiz
Fernando Marques e criado e encenado por
Janaína Leite e Felipe Teixeira Pinto, o Fepa –
ela atriz, ele músico –, é classificado pela dupla
como “documentário cênico” da experiência
de separação dos atores. Em determinado
momento, após uma viagem que não ocorreu
(o casal terminou o relacionamento via skype,
Janaína estava em turnê na Inglaterra, e Fepa iria
ao seu encontro), e ambos decidiram transformar
a separação em processo de criação, “em um
espetáculo”.22 Na impossibilidade de lidar com
a perda da relação e do outro, inicialmente
promoveram festas para a família e para os amigos
para, além de anunciar a separação, elaborar o
luto. As festas foram filmadas, assim como os
depoimentos de pessoas que conviviam com o
casal e serviram de material para o espetáculo
que pretendeu ser uma reflexão sobre o amor
na contemporaneidade, ultrapassando apenas a
exposição/discussão de sua história.
Assisti a Festa de separação, no Teatro Sesc-
Copacabana, quando esteve em cartaz no Rio
de Janeiro. O espaço, dividido em dois, o dela
e o dele, apresentava como pano de fundo um
telão. Objetos familiares criavam identidade,
referenciais pertinentes ao universo individual
de cada um, revelavam a história pregressa do
casal: livros, cds, caixas, garrafas, cadernos,
dicionário, instrumentos musicais, câmera, bichos
de pelúcia. A ideia foi transferir para o palco os
vestígios do que restou para cada um da relação,
reconfigurando um espaço-casa ambíguo porque
visivelmente transitório, um espaço fronteiriço
porque suspenso, não reconstruído, em ruínas,
híbrido por se configurar como espaço do
presente, mas náufrago de um passado em
elaboração, espaço que não é senão o lugar do
luto proveniente da ruptura.
Ao escolher um lugar na plateia, o espectador percebe que tal escolha interferirá na recepção do espetáculo, porque ele assiste a dois discursos em forma de depoimento, ocorrendo simultaneamente, salvo em alguns momentos em que um silencia para dar voz ao outro e quando se está diante de material audiovisual e iconográfico projetado no telão. Na impossibilidade de ouvir dois discursos ao mesmo tempo, o espectador percebe que se encontra em situação monológica, ainda que dupla, interativa. Na perda da palavra do outro, tem-se a dimensão de que se opera um corte não apenas espacial, mas transversal, um corte na narrativa, reflexo da divisão que se estabeleceu na vida do casal. As imagens projetadas – “efeito cinema” – têm como
objetivo reconstruir a vivência do passado, incluindo
o momento em que o casal decide transformar a
separação em obra artística. Assistir no telão às
imagens de intimidade, de um tempo passado e
feliz, aos depoimentos emocionados dos familiares
e amigos nas festas de separação, promovidas e
documentadas pelo casal, reitera o lugar da falta/
da dor. A imagem é documento do que a palavra-
testemunho não consegue representar; a imagem
é dialógica, une os discursos e o espaço cindido
da representação. Em determinado momento o
espectador é convidado a dar seu depoimento
contando uma história pessoal que também é
filmada, evidenciando-se23 que pode ser projetada
em outra apresentação. Na possibilidade de vir-a-
ser imagem, o espectador inaugura ele mesmo um
luto de outra natureza: a morte de sua “presença”
é enigma da representação porque se transforma
em registro que pode ou não ser utilizado.
NOTAS
1 Lehmann, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São
Paulo: Cosac Naify, 2007:368.
2 Picon-Vallin, Béatrice. Deux arts en un? Le film du
théâtre. Arts du spectacle. Coleção organizada por
Élie Konigson. Paris: CNRS Éditions, 2001:17.
3 Da Costa, José. Teatro contemporâneo no Brasil.
Rio de Janeiro: 7Letras/Faperj, 2009:29.
4 Féral, Josette. Por uma poética da performatividade:
o teatro performativo. Sala Preta, revista do Programa
de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Eca/USP, São
Paulo, n. 8, 2008.
5 Da Costa, op. cit.:33.
6 Barthes, Roland. Essais critiques. Littérature et
signification. Paris: Point Seuil, 1981 (1963), p.258.
7 Féral, op. cit..
8 Dubois, Philippe. Um “efeito cinema” na arte
contemporânea. In Dispositivos de registro na arte
contemporânea. Rio de Janeiro: Contra Capa/Faperj,
2009:184.
9 Arfuch, Leonor. O espaço biográfico. Dilemas da
subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: Eduerj,
2010:60.
10 Refiro-me à rede pensando em duas conotações:
a rede de sentidos barthesiana e a rede tal como nos
referimos hoje quando nos dispomos a falar sobre
internet e seus agenciamentos.
11 Arfuch, op. cit.:67.
12 Cardoso, Bruno de Vasconcelos. Voyeurismo
digital: representação e (re)produção imagética
do outro no ciberespaço. In Devires imagéticos. A
etnografia, o outro e suas imagens. Rio de Janeiro:
7Letras, 2009:154.
13 Canclini, Nestor García. Diferentes, desiguais e
desconectados. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2009:192.
14 Birman, Joel. Mal-estar na atualidade. A
psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005:171.
15 Dubois, op. cit.:179.
16 Entrevista, por e-mail, à autora em 8.10.2010.
17 Idem.
18 Idem.
19 Entrevista à autora e à bolsista Pibic-UFRJ Isadora
Malta Rezende, na Escola de Comunicação da UFRJ,
em junho de 2011.
20 Idem.
21 Idem.
22 Palestra de Janaína Leite e Fepa no Fórum de
Ciência e Cultura em junho de 2010.
23 Isso não é dito, mas compreendido por
associação, uma vez que depoimentos de
espectadores são exibidos.
Gabriela Lírio Gurgel Monteiro é professora
adjunta de direção teatral na Escola de
Comunicação da UFRJ. Possui graduação em
comunicação social (jornalismo), mestrado
em letras, doutorado em letras pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (Teatro
e cinema na obra de Peter Brook, co-orientada
por Georges Banu, no prelo) e doutorado
sanduíche na Université Paris III Sorbonne-
Nouvelle. Publicações: A procura da palavra no
escuro (7Letras, 2001) e Interseções: Cinema e
Literatura (7Letras, 2010). Pesquisadora do CNPq,
desenvolve atualmente a pesquisa A teatralidade
cinematográfica e o uso de novos dispositivos na
produção de imagens (bolsas Pibic/Piabic/Faperj).
Acaba de iniciar nova pesquisa: Autobiografia na
cena contemporânea: entre a ficção e a realidade.
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011128 129COLABORAÇÕES | LETICIA SQUEFF
Uma história das Exposições Gerais − Egbas já foi traçada, em suas linhas gerais, por alguns autores. Apesar disso, pode-se afirmar que se conhece pouco a respeito desses eventos, o que chama atenção, tendo em vista, em primeiro lugar, sua longevidade. Entre 1840 e 1884 a Academia Imperial de Belas Artes − Aiba promoveu 26 Exposições Gerais, apresentando 3.315 obras de 516 artistas,1 em média, portanto, mais de uma exposição por ano. Talvez se possa aventar que aconteceu aqui o que se passou na historiografia europeia: durante muito tempo os Salões e exposições organizadas no âmbito acadêmico foram desprezados pelos pesquisadores, mais interessados em reconstituir a trajetória dos refusés e dos que construíram as bases para o surgimento das vanguardas.2 Também no Brasil a arte oitocentista foi durante longo tempo pouco estudada, e as Egbas foram objeto de algumas enumerações e crônicas, mas raramente atraíram análises mais profundas.3
Vale lembrar que o interesse pelas exposições ganha sentido quando iluminado por perspectiva historiográfica que ultrapassa o objetivo de discutir apenas o “conteúdo” das obras. Alguns historiadores vêm mostrando como os critérios artísticos, bem como o maior ou menor valor atribuído a um ou outro
artista, são afetados por contextos mais amplos: o mercado, o museu, padrões de gosto que funcionam
AS EXPOSIçõES GERAIS DA ACADEMIA DE BELAS ARTES: teatro de corte e formação de um mercado de artes no Rio de Janeiro
Leticia Squeff
Exposições Gerais da Academia de Belas Artes ColecionismoMercado de artes no Rio de Janeiro do século 19
A intenção deste artigo é discutir o lugar das Exposições Gerais da Academia de Belas
Artes na vida cultural do II Reinado. Trata-se de mostrar como se articulavam essas
exposições ao teatro de corte de dom Pedro II e, por outro lado, de destacar seu papel
no incipiente mercado de artes do Rio de Janeiro.
As exposições gerais da academia de belas artes: Teatro de corte e formação de um mercado de artes no Rio de janeiro| The aim of this article is to discuss the place of the General Exhibitions of the Academy of Fine Arts in the cultural life of 19th century Rio de Janeiro. I intend to show their relationship with the “teatro de corte” around d. Pedro II and also to point the role of these Exhibitions in the incipient art market of Rio de Janeiro. | Exposições gerais da academia de belas artes colecionismo mercado das artes no rio de janeiro do sec XIX
Ilustração para Salão caricatural de 1884Fonte: Revista Ilustrada, 1884, ano 9, n. 396. Arquivo Edgard Leuenroth – IFCH/ Unicamp.
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011130 131COLABORAÇÕES | LETICIA SQUEFF
muitas vezes de maneira independente daqueles que
regem a apreciação das artes visuais. Desse ponto
de vista, interessa entender também a trajetória
das obras, o contexto em que foram expostas, suas
relações com imagens e modos de ver próprios a
determinada época, entre outros aspectos.4
Meu objetivo é apontar como as Egbas
articulavam-se ao que já foi chamado por mais
de um pesquisador de “teatro de corte” de dom
Pedro II,5 bem como a importância desse evento
para o surgimento de um incipiente mercado de
artes no Rio de Janeiro.
As exposições e o teatro de corte
Praticamente desde sua fundação a Academia
promovia exposições − indício de que havia
interesse, já por parte dos mestres franceses,
em fazer da instituição criada no Rio de Janeiro
mais do que simples escola de artes. Já em
1829, apenas três anos após a inauguração
da Academia Imperial de Belas Artes, Debret
promoveu sua primeira exposição de alunos. Em
1840 o diretor Felix-Émile Taunay conseguiria
emplacar uma ideia sobre a qual vinha falando em
discursos e artigos de jornal: ampliar a exposição
da Academia, tornando-a acessível a todos os
interessados. As Exposições Gerais de Belas Artes
teriam, a partir de então, papel fundamental
tanto no funcionamento da Academia quanto na
vida cultural do Império. Algumas das principais
obras de arte do período monárquico foram
apresentadas, justamente, durante essas mostras.6
A primeira, em 1840, contava com dez expositores,
sendo seis professores da Academia. A exposição
de 1843 já incluía 28 participantes. O número de
pessoas que expunham obras, entre artistas locais
e estrangeiros, cresce de modo impressionante a
partir de então. Em 1849, na décima edição do
evento, seriam 23 expositores. Dez anos depois,
94, sendo três mulheres e 68 estrangeiros. Outra
prova do sucesso da iniciativa é que na década
de 1860 começam a ser publicados os catálogos
independentes de cada Exposição Geral.7 Não
por acaso, em 1868 o secretário João Maximiano
Mafra escrevia ao diretor Tomás Gomes dos Santos
que era preciso exigir a apresentação dos convites
na abertura da exposição, para evitar a entrada de
penetras.8 De tal forma esses eventos entraram no
calendário da corte, que já em 1839 um cronista
observava: “A visita à Academia das Belas Artes
entrou este ano a ser da moda.”9
As Exposições Gerais entraram rapidamente
no calendário de eventos dos mais influentes
personagens da corte de dom Pedro II:
políticos, funcionários, ricos comerciantes
e visitantes estrangeiros: “Presentemente a
corte e a cidade afluem com ativa curiosidade
às salas do palácio das artes, e o belo sexo
afronta os raios de um sol perpendicular em
romaria ao templo do gosto.”10
No dia 10 de dezembro de 1843, às 10 horas da
manhã, o casal imperial foi recebido na Academia
pelo ministro do Império, o diretor da instituição
e a congregação de professores. “Estavam já
reunidos vários convidados da corte e corpo
diplomático.” O cronista descreve a visita dos
monarcas e faz questão de mencionar diante de
quais obras o imperador ficou mais tempo. O final
do pequeno texto dá uma ideia da importância
que as exposições estavam ganhando: os
monarcas se demoraram por duas horas na
Academia. Antes de ir, dom Pedro teria garantido
ao diretor o quanto estava “(...) satisfeito com a
exposição deste ano.”11 As visitas do imperador à
Academia acabariam tornando-se um hábito.
A ideia de que visitar as Exposições Gerais era
passatempo de um grupo seleto e refinado de
pessoas se manteria nas décadas seguintes:
“Visitamos a academia das Belas Artes, que abriu
ontem as portas à turba dos amadores, que
esperavam ansiosos por esta época do ano, em
que podem ir maravilhar-se das criações do gênio
dos apóstolos da arte divina.”12
Na edição de 1859, o diretor expediu ofício
solicitando que a Guarda de Honra, vestida
em grande gala, estivesse presente no dia da
inauguração. Também requisitou da polícia do
Rio de Janeiro guardas para cuidar das salas e
evitar “danos às obras”. Finalmente, expediu
solicitação para “mandar pelo Jardim Botânico
de Lagoa Rodrigo de Freitas [riscado] fornecer
flores e folhas de canela e mangueira para ornar o
edifício desta Academia no dia 15 de março, em
que S.M. o Imperador se digne honrar a abertura
da Exposição Geral.”13
No romance Mocidade morta (1899), escrito pelo
crítico Gozaga Duque, já caracterizado como
roman à clef por mais de um pesquisador, o
sistema composto por artistas, público e críticos
que viviam ao redor da Academia em finais do
século 19 seria descrito com grande minúcia.14
É esse texto poético que fornece uma pista de
como eram utilizadas essas folhas de mangueira
e canela:
Um cheiro acre de folhagem esparzida,
desgalhada de fresco, infiltrava-se no ar,
saturando-o, como se boiasse em torno do
bojo, suspenso na claridade, turibulando
à sua grandeza os aromas capitosos
dos antigos festivais de triunfo, cheios
de pandorga épica de campânulas e
trombetas ao escaldar hosânico das
recepções aos bravos, sob a agitação
farfalhenta de palmas e florear de tirsos
(...)15
Com notável argúcia, o romancista detecta os
efeitos simbólicos da decoração sobre os visitantes
da Academia. Folhas, palmas e tirsos não apenas
perfumavam e decoravam os ambientes, como
também evocavam as festas da Antiguidade. A
referência ao universo clássico aliava-se à pompa que
cercava o imperador, dotando de ‘tradição’ instituição,
monarca e nação, que eram ainda bastantes novos se
comparados aos do contexto europeu.
Ao sediar as exposições, a Academia tornava-se
local de encenação de ritual em que se afirmavam
os valores monárquicos. Dom Pedro era recebido
com pompa, o que atraía também as principais
figuras da corte carioca. A esse ‘teatro de corte’
Ilustração para Salão caricatural de 1884Fonte: Revista Ilustrada, 1884, ano 9, n. 396. Arquivo Edgard Leuenroth – IFCH/ Unicamp.
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011132 133COLABORAÇÕES | LETICIA SQUEFF
responsável pela “(...) colocação de todas as obras
expostas; trabalhos de armador, e aluguel das
respectivas fazendas”17
A rápida descrição dá ideia de como devia parecer-
se a Exposição Geral aos visitantes. A Academia
carioca seguia o exemplo dos Salões europeus de
decorar as paredes com fazendas e tecidos finos
e, sobre eles, pendurar o quadros. Nesse aspecto,
os douradores eram mais do que necessários, pois
cabia-lhes preparar as molduras dos quadros.
Em contraste com os tecidos de cores fortes, o
dourado das molduras sobressaía, delimitando os
espaços entre os quadros. A Revista Ilustrada traz
representação notável da aparência desses eventos.
Na imagem de Ângelo Agostini, veem-se embaixo
os quadros menores – aparentemente, paisagens
– e, em cima, obras maiores, em meio às quais
é possível reconhecer telas de Pedro Américo,
como A Carioca, A Noite com os gênios do
estudo e do amor, Judite rende graças a Jeová
por ter conseguido livrar sua pátria dos furores
de Holofernes, entre outros. Os bancos no centro
da sala também evocam a estrutura dos Salões
franceses, cujos espaços para repouso serviam a
um tipo de fruição artística muito característico:
permitiam a contemplação lenta e meticulosa
das obras, a comparação entre os diversos
quadros expostos, bem como a troca de opiniões
entre os espectadores.
As obras eram dispostas bem próximas umas das
outras, muitas vezes cobrindo toda a extensão
da parede, do teto ao nível do olhar. Ocupando
todos os centímetros disponíveis, os quadros
ficavam quase colados uns aos outros, o que só
era possível porque cada obra era vista como
entidade independente, fechada em seu próprio
esquema perspético, isolada de sua vizinha pelas
pesadas molduras.18
Nos salões franceses, esse padrão expositivo
herdado dos antigos gabinetes de curiosidades
cedo começa a se revestir de hierarquias.19 Em
primeiro lugar, tratava-se de solucionar um
problema de espaço. Além disso, a organização
das obras obedecia àquela dos gêneros de pintura.
No alto, ficavam os quadros maiores, geralmente
as cenas bíblicas ou mitológicas, ou de grandes
feitos históricos. Esses quadros dificilmente
eram compreendidos, pois só uma parte do
público possuía cultura suficiente para entender
as refinadas alusões históricas e mitológicas
que continham, motivo pelo qual, aliado a suas
grandes dimensões, geralmente ocupavam a
região mais alta da parede. A seguir, vinham os
retratos e os quadros considerados “melhores”.
E por último, a pintura de gênero, a natureza-
morta, as paisagens.20 A imagem de Agostini
revela que a Academia carioca organizava sua
exposição segundo os princípios expográficos e os
valores artísticos dos salões franceses.
As exposições gerais e o surgimento de um
mercado de artes no Rio de Janeiro
Nem tudo na Academia carioca, porém, seguiu
o caminho trilhado pelo modelo francês. Na
verdade, uma análise comparativa indica que,
pelo menos no que se refere às exposições
gerais, a experiência acadêmica no Rio de Janeiro
teve desdobramentos peculiares. Para examinar
a questão, vale retomar a história dos Salões
franceses até finais do século 19.
A Academia francesa começou em 1699 a pro-
mover os chamados Salões, que passaram a
acontecer de forma sistemática a partir de 1737,
tendo papel fundamental na história da arte
europeia. Até então, o público só entrava em
contato com arte de alto padrão secundariamente, Ilustração para Salão caricatural de 1884Fonte: Revista Ilustrada, 1884, ano 9, n. 396. Arquivo Edgard Leuenroth – IFCH/ Unicamp
vinham associados, porém, valores próprios à
nação independente: o hino nacional sempre
abria o cerimonial. Finalmente, o evento era
reverberado pelos jornais da corte, criando o que
Benedict Anderson já chamou de “comunidade
imaginada” que, nesse caso, associava as artes
à vida cortesã e essas às práticas próprias a uma
“nação” independente.16
Organização dos quadros e formas de
apreciação
A inauguração de uma Exposição Geral era objeto
de longos preparativos e muitos gastos. Para
organizar a de 1879 foram chamados pintores,
douradores, carpinteiros, ferreiros, lustradores,
servidores que cuidassem da lavagem da casa e
da arrumação de ferragens e esculturas. A relação
menciona Luiz de Castro Teixeira, que teria ficado
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011134 135COLABORAÇÕES | LETICIA SQUEFF
em festas religiosas ou cívicas, quando aristocratas
e burgueses abastados expunham suas posses
em pátios de igrejas e praças públicas.21 Com
o advento do Salão, o homem comum podia
ter acesso aos quadros, experimentando prazer
antes reservado apenas a uma exclusiva elite de
mecenas e seus amigos íntimos. O Salão é, assim,
a primeira experiência de arte totalmente pública
da Europa.22
Tradicionalmente a pintura histórica era gênero de
grande prestígio, mas, assim como a estatuária,
dependia das encomendas estatais para ser
realizada. Os custos envolvidos na preparação
e realização de grandes telas, assim como dos
monumentos, eram elevados. O objetivo inicial
dos Salões era, por isso, mostrar ao público as
grandes obras de história comissionadas pelo
Estado aos membros da Academia.
O destino e os objetivos do Salão mudam para
sempre com a Revolução Francesa. Em 1791, a
Commune des Arts propõe que o Salão passe a ser
aberto, expondo não apenas as obras dos membros
da Academia, mas de todos os artistas julgados
aptos para tal. Alguns anos mais tarde, Vivant
Denon convence Napoleão de que era mais rentável
para o Estado comprar quadros que já estavam em
exibição.23 Como resultado, por volta de 1870 o
dinheiro oferecido pelo governo para quadros de
história tornara-se tão pouco, que só os iniciantes
se dedicavam aos assuntos históricos. A maioria,
incluindo artistas acadêmicos, sobrevivia da venda
de quadros menores para colecionadores privados.
Lentamente o mercado de artes passa a funcionar
fora do Salão. E pinturas de paisagem e retratos –
mais acessíveis ao grande público, nem sempre culto
ou abastado o suficiente para consumir a pintura de
história – passam a ocupar cada vez mais espaço nas
paredes do Salão. E a Academia, que antigamente
detinha o monopólio não apenas sobre a formação
artística, através da École, mas também sobre o que
deveria e podia ser mostrado, através dos Salões,
começa a perder importância.
Todo o processo gerou diversos movimentos de
revolta não apenas entre artistas que rompiam, em
alguma medida, com os valores tradicionais, mas
também entre os acadêmicos, descontentes com
a perda de privilégios e clientes – consequência da
ampliação do número de artistas e de gêneros de
pintura. Tornando-se pouco atrativos tanto para
os que desde meados do século, com Courbet,
começam a procurar espaços alternativos para
expor suas obras quanto para os demais artistas,
os Salões acabaram suprimidos no final do século.
Pode-se dizer, assim, que o desenvolvimento e
ampliação desses espaços resultaram, na França, no
enfraquecimento da Academia e seus dispositivos.
Já no caso do Rio de Janeiro a história reveste-
se paulatinamente de contornos próprios. Como
sede da corte e principal porto do Império, a cidade
concentraria crescente comércio de luxo. Quadros
e livros misturavam-se a objetos de decoração e
móveis em leilões e lojas.24 Sabe-se de alguns lei-
lões promovidos por comerciantes, geralmente
estrangeiros, que incluíam a venda de obras de
arte, caso do que foi realizado, em 1840, por Luiz
A. Boulanger, incluindo a venda de “Riquíssima
coleção de painéis a óleo, pertencentes às
escolas italianas, flamenga, alemã e francesa”.
O leiloeiro acrescentava que os amantes das
belas pinturas encontrariam diferentes “gêneros
reunidos: paisagens, combates, tableaux de genre
et mythologiques, retratos, panoramas, muitos
quadros da história sagrada, o nascimento de
Nosso Senhor Jesus Cristo, descida da cruz (...)”,
além de aquarelas, objetos e vestimentas de
luxo.25 Na década de 1850, o comércio de luxo
receberia impulso ainda maior graças à liberação
de capitais antes comprometidos com o tráfico de
escravos. A cidade foi invadida por novos hábitos
de consumo: cavalos árabes, jóias, relógios,
‘roupas feitas’, produtos manufaturados com as
mais diferentes funções foram introduzidos no
dia a dia da ‘boa sociedade’.26 Nesse contexto,
também objetos de arte passam a ser cada vez
mais comercializados.
Araújo Porto-Alegre faz referência a pelo menos
dois colecionadores ativos no período: “Na galeria
de quadros do Sr. Manoel José Pereira Maia, um
dos homens mais curiosos e que tem maiores
preciosidades em todo o gênero de Belas Artes,
existe um painel de Manoel Dias representando a
caridade romana.”27
Menciona também José de Oliveira Barbosa, que
teria, em sua coleção, alguns camafeus feitos por
Mestre Valentim.28 O representante do Brasil na
Rússia, José Ribeiro da Silva, ofereceu à Academia
quatro quadros de Jean-Baptiste Debret.29 Em
1877 Henrique Diniz da Silva Faria vendeu dois
retratos a óleo feitos por Henrique José da Silva
para a Academia.30 Outras referências encontradas
no Museu dom João VI indicam que a prática de
colecionar ou, pelo menos, de comprar obras
de arte não era tão incomum no Rio de Janeiro
oitocentista como em geral se pensa.
Em diversas exposições gerais não apenas dom
Pedro II, mas também colecionadores particulares
aproveitavam para apresentar obras de suas
coleções.31 A de 1859 exibia obras de nada
menos do que seis colecionadores privados,
além do imperador. A Noticia do Palacio da
Academia daquele ano traz, a respeito disso,
algumas informações interessantes. Havia três
homens como o título de comendador entre os
colecionadores, e pelo menos um estrangeiro.32
O catálogo também é significativo do lugar
que esses homens ocupavam no âmbito da
exposição geral: “N.B.: as descrições dos quadros
e a designação de seus autores e escolas foram
ministradas pelos seus possuidores, e exaradas no
catálogo sem alteração; excetuam-se os quadros
de S. Majestade o Imperador.”33
O texto sugere que já circulavam em determinados
meios diversos termos e conceitos próprios
à atribuição de valor na tradição da história
e da apreciação artística. Os apreciadores
e proprietários de obras de arte da corte já
possuíam, em alguma medida, noções próprias
ao mercado de arte no Ocidente, tais como
autoria, título, escola, entre outros. Esses valores
eram informações importantes, pois situavam o
lugar das obras na história da arte, destacando
os artistas considerados “mestres” dos simples
membros de uma ou outra “escola artística”.
Além disso, como o autor do catálogo faz questão
de enfatizar, eram os próprios colecionadores que
informavam a Academia a respeito da atribuição
de suas obras. Afinal, o nome do artista, a
“escola” à qual se filiava, o nome da obra, eram
fundamentais para lhe atribuir valor. Desse
modo, os catálogos de exposições das Egbas
informam sobre a existência não propriamente
de um mercado de artes, mas de um ambiente
em que obras de arte eram encomendadas e/
ou compradas.
As Exposições Gerais funcionaram não apenas
para os artistas da Academia. Nem simplesmente
eram momento em que se desenrolava mais uma
cena do teatro de corte, tão importante para a
manutenção da monarquia em terras tropicais.
Funcionavam também a serviço de particulares
que as usavam para negociar: expor e, quem
sabe, vender, trocar, ou comprar obras de outros
colecionadores. Desse ponto de vista, a experiência
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011136 137COLABORAÇÕES | LETICIA SQUEFF
carioca transcorreu em sentido radicalmente
oposto ao que ocorreria nos Salões franceses. As
Exposições Gerais foram importante instrumento
para o funcionamento da corte e também para a
estruturação de um incipiente mercado de artes
no Rio de Janeiro do Império.
NOTAS
1 Levy, Carlos Roberto Maciel. Exposições Gerais da
Academia de Belas Artes. Catálogo de artistas e obras
entre 1840 e 1884. Rio de Janeiro: Pinakotheke,
1990:13.
2 Para uma discussão dessa questão no contexto
francês, ver Mainardi, Patricia. The end of the
Salon: art and the State in the early Third Republic.
Cambridge: Cambridge University Press, 1994.
3 Dos autores que reconstituíram as Exposições
Gerais podem-se citar Rios Filho, O ensino artístico:
subsídios para sua história. In: Anais do Terceiro
Congresso de História Nacional, IHGB, 1938. Rio de
Janeiro, Imprensa Nacional, 1942. Mello Jr, Donato.
As Exposições Gerais na Academia Imperial das Belas
Artes no Segundo Reinado, Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro/Anais do Congresso
de História do Segundo Reinado (Comissão de
História Artística), v.1, Brasília/Rio de Janeiro: IHGB.,
1984:204-352; e Levy, op. cit.
4 Dos que trataram desses ou de assuntos correlatos,
podem-se mencionar Haskell, Francis (La norme et le
caprice. Paris: Flammarion, 1986; Mecenas e pintores
na Itália Barroca. Arte e sociedade na Itália Barroca. São
Paulo: Edusp, 1997; Passado y presente en el arte y en
el gusto. Madrid: Alianza Editorial, 1989); Gaethgens,
Thomas W. Versailles – de la résidence royale au musée
historique. Antwerpen: Mercatorfonds, 1984; Crow,
Thomas. Painters and public life in Eighteenth-century
Paris. Yale: Yale University Press, 1991; Mainardi, op.
cit., entre outros.
5 O termo é utilizado por pesquisadores como
Carvalho, J. M. de. A construção da ordem; teatro de
sombras. 3. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2003; e Schwarcz, L.M. As barbas do imperador: dom
Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998, entre outros, para descrever as festas,
cerimônias e rituais do governo imperial.
6 Os artistas costumavam preparar obras
especialmente para apresentar nas exposições
coletivas, fossem promovidas pela Academia ou,
mais tarde, na República, pela Escola Nacional de
Belas Artes. Ver Cavalcanti, Ana Maria Tavares. A
relação entre o público e a arte nas Exposições
Gerais da Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro
na segunda metade do século X. Anais do XXII
Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte.
Rio de Janeiro: Comitê Brasileiro de História da Arte,
2004:49-58.
7 Fato também observado por Fernandes, Cybele
Vidal Neto. Os caminhos da arte. O ensino artístico
na Academia Imperial das Belas Artes. 1850-1890,
tese de doutorado, UFRJ, 2001.
8 “Cartas de João Maximiano Mafra a Tomás Gomes
dos Santos, sugerindo medidas a serem tomadas
na solenidade e premiação de artistas. Acompanha
carta aprovando as sugestões.” 1868, Arquivo do
Museu D. João VI:1275.
9 Correio das Modas, 1839, apud Marques dos
Santos, Francisco. “Subsídios para a história das
belas artes no Segundo Reinado – as belas artes na
Regência”, Estudos Brasileiros, v. 9, ano V, Rio de
Janeiro, 1942:16-149 (101).
10 “Comunicado. Academia das Belas Artes,
exposição pública de 1842”, Jornal do Commercio,
18 de dezembro de 1842.
11 “Visita de SS.MM. Imperiais à Exposição Geral da
Academia das Belas Artes”, Jornal do Commercio, 10
de dezembro de 1845.
12 M. A. “Academia das Belas artes”, Jornal do
Commercio, 18 de dezembro de 1852.
13 “Minutas de ofícios da AIBA, solicitando
designação de uma guarda de honra em virtude da
presença do imperador na abertura da Exposição
Geral, como também flores e folhas de canela e
mangueira do Jardim Botânico, que era Lagoa
Rodrigo de Freitas, para ornar, e uma guarda
de 12 homens do corpo policial da corte para
vigilÂncia da exposição” (11.3.1859) Arquivo do
Museu D. João VI:1575.
14 Eulálio, Alexandre. Sobre Mocidade Morta. In
Sobre o pré-modernismo. Rio de Janeiro: Fundação
Casa de Rui Barbosa, 1988:183-89.
15 Gonzaga Duque, A arte brasileira, São Paulo/
Campinas, Mercado de Letras, 1995, p.:16.
16 Anderson, B. Comunidades imaginadas: relexiones
sobre el origen y la difusión del nacionalismo. México:
Fondo de Cultura Económica, 1993.
17 “Relações das contas das despesas efetuadas
com a Exposição Geral de Belas Artes, inaugurada
em 15.3.1879” Arquivo do Museu D. João VI: 3019.
18 “A pintura de cavalete é como uma janela portátil
que, colocada na parede, cria nela a profundidade
do espaço”, O´Doherty, Brian. No interior do cubo
branco: a ideologia do espaço da arte. Rio de Janeiro:
Martins Fontes, 2002:8.
19 Schaer, Roland. L´Invention des Musées. Paris:
Gallimard/Réunion des Musées Nationaux, 1993.
20 Crow, op. cit.
21 Há excelente descrição em Haskell, 1997, op. cit.
22 “But the Salon was the first regularly repeated,
open, and free display of contemporary art in Europe
to be offered in a completely secular setting and for
the purpose of encouraging a primarily aesthetic
response in large number of people”, Crow, op. cit:3.
23 “In this gesture, the Salon became a store,
and artists became free-market small producers”,
Mainardi, op. cit:14.
24 Sobre o assunto ver, por exemplo, Marques dos
Santos, op. cit.
25 Marques dos Santos, op. cit:119. Sobre o assunto
ver também Cavalcanti, op. cit.
26 Alencastro, L.F. Vida privada e ordem privada no
império. In Alencastro, L.F. (org.)., História da vida
privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia
das Letras, 1997.
27 Porto-Alegre. Manoel Dias, o Romano. Revista
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1848,
suplemento.
28 Porto-Alegre. Iconografia brasileira. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,1856:371.
29 Apud Levy, op.cit.:131.
30 “Minuta de ofício da AIBA ao ministro do Império
remetendo a conta da aquisição de dois retratos
a óleo de Henrique José da Silva e vendidos por
Joaquim Diniz da Silva”. Arquivo do Museu D. João VI:
1329.
31 Sobre o assunto ver Rios Filho, op. cit.
32 Noticia do palacio da Academia Imperial das
Bellas Artes do Rio De Janeiro e da exposicao de
1859. Rio de Janeiro, Typographia Imparcial J.M.N.
Garcia, 1859.
33 Idem, ibidem.
Leticia Squeff é professora de arte ocidental
do séculos 18 e 19 no Departamento de História
da Arte da Unifesp (Guarulhos, São Paulo). Vem
desenvolvendo pesquisas sobre arte no Brasil e na
América Latina nos séculos 18 e 19.
139REEDIÇÃO | THEON SPANUDIS
Theon Spanudis (Esmirna, Turquia, 1913 – São
Paulo, 1986) desempenhou funções bastante
definidas no ambiente cultural paulistano, desde
sua chegada em 1950.
Depois da independência da Turquia, sua família
retornou a Atenas, em 1922. Lá Theon Spanudis
cursou o ensino fundamental e entrou em
contato com o ambiente de cultura frequentado
por seus pais, que encaminharam sua atenção
para a literatura e as artes. Médico formado na
Universidade de Viena em 1940, especializou-se
em psicanálise no Instituto de Psicanálise de Viena.
Chegou a São Paulo em resposta ao convite da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo,
ARTE DAS FORMAS E ARTE DAS FORMAçõES
Theon Spanudis
arte não figurativa crítica de arte neoconcretismo participação ativo-criativa
Martin KippenbergerCandidature à une rétrospective (Candidatura a uma retrospectiva), 1993Primeira versão, foto de grupo, Martin Kippenberger 40º aniversário - Litografia offset27 16/09 x 19 11/16 polegadas (70 cm x 50 cm)© Propriedade de Martin Kippenberger, Galerie Gisela Capitain, Colônia
“Arte das Formas e Arte das Formações” foi escrito por Theon Spanudis (1915-1986),
médico psicanalista, de origem grega, que se mudou para o Brasil em 1950. Era
também poeta e crítico de arte, e foi um dos primeiros a valorizar obras de artistas
como Volpi e Mira Schendel, formando uma importante coleção que foi doada ao
MAC-USP em 1979. Esse texto, trata-se de uma reflexão, e para o pesquisador um
documento de grande interesse por ser um testemunho de época assinado por alguém
com envolvimento pessoal nos acontecimentos em curso, com preferências estéticas
definidas e posicionamentos teóricos assumidos, porém disposto a transpor barreiras
e colocar em debate tendências artísticas.
| “Arte das Formas e Arte das Formações” foi escrito por Theon Spanudis (1915-1986), médico psicanalista, de origem grega, que mudou-se para o Brasil em 1950. Era também poeta e crítico de arte, e foi um dos primeiros a valorizar obras de artistas como Volpi e Mira Schendel, formando uma importante coleção que foi doada ao MAC-USP em 1979. Esse texto, trata-se de uma reflexão, e para o pesquisador um documento de grande interesse por ser um testemunho de época assinado por alguém com envolvimento pessoal nos acontecimentos em curso, com preferências estéticas definidas e posicionamentos teó arte não figurativa crítica de arte neoconcretismo participação ativo-criativa |
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011140 141REEDIÇÃO | THEON SPANUDIS
como analista didata. Logo se aproximou de
artistas e escritores, começou a colecionar obras
de arte, a reunir vasta biblioteca e a escrever seus
primeiros textos sobre arte. Até 1957 clinicou e
lecionou, sendo indiscutível sua contribuição para
o percurso da psicanálise no Brasil. A partir de
então fechou o consultório definitivamente, para
se dedicar ao que considerava sua verdadeira
vocação: a literatura e as artes.
O gosto por escrever, principalmente pela poesia
concreta, a partir do final dos anos 50, aproximou
Spanudis das ideias do suíço Eugen Gomriger, a
quem creditava os caminhos abertos em relação
ao uso mais limpo e econômico da palavra e ao
emprego do som mais próximo à música e da
imagem ao desenho, sem contudo excluir as
possibilidades sensíveis do radicalismo racionalista.
Abraçou conceitos da fenomenologia, relacionados
ao entendimento do tempo e das relações artista/
público/processo criativo, que o afastaram das
posições tomadas pelos artistas concretistas de
São Paulo e o aproximaram dos integrantes do
Grupo Frente, do Rio de Janeiro. O ano de 1959
foi marcado por aspectos significativos em seu
percurso: a assinatura do Manifesto Neoconcreto,
colaboração em eventos do grupo, participação
no Congresso Internacional Extraordinário de
Críticos de Arte da Aica (Brasília, São Paulo e Rio de
Janeiro) em que defendeu a ação dos artistas como
criadores e agentes incentivadores do público
como co-criadores, entendendo a experiência
estética como educação.
Poeta concreto, amante de estruturas, autor de
hinos, tradutor de autores gregos, Spanudis
era frequentador assíduo de ateliês, galerias e
exposições. Apreciava a convivência com artistas
e obras de arte, descrevia-se como colecionador
apaixonado, e em seus escritos transparecem o
gosto pelo papel do crítico introdutor do artista e
da arte a seu público. Deixou um grande número
de apresentações em catálogos de exposições e
artigos em periódicos. São textos sobre os grandes
temas da arte, sua história, os acontecimentos
do momento. Autodidata, detentor de vasto
conhecimento, Spanudis tinha visão bastante
particular das questões da arte, empregava
terminologia própria para a discussão de tópicos
que lhe eram caros e, se considerado diletante por
alguns, era bastante respeitado por outros.
Seu pensamento sobre arte está disperso. Suas
preferências em arte, de maneira mais eloquente
do que em palavras, estão manifestas nas 453 obras
de arte doadas ao Museu de Arte Contemporânea
da USP. Além dos muitos artigos publicados, seu
arquivo legado ao IEB-USP reúne quantidade
ainda maior de originais: alguns esboços para
futuros livros, outros artigos completos, algumas
ideias a desenvolver, conferências proferidas e
cursos já ministrados ou planejados.
“A arte das formas e a arte das formações”
é um desses originais, provavelmente de
princípios dos anos 60. Não há indicações de
suas intenções quanto a ter sido escrito para
publicação em catálogo de artista, em coleção
de ensaios, como esboço para um futuro livro,
como texto de palestra. Para o pesquisador
é documento de grande interesse por ser
testemunho de época assinado por alguém
com envolvimento pessoal nos acontecimentos
em curso, com preferências estéticas definidas
e posicionamentos teóricos assumidos, porém
disposto a transpor barreiras e colocar em
debate tendências artísticas, em muitos
momentos convertidas em arenas de combate.
Trata-se de reflexão de época, sobre duas das
muitas tendências de arte de seu tempo, que, no
primeiro parágrafo, apresenta como sendo então
foco de debate apaixonado.
Com habilidade, denomina as correntes analisadas
arte das formas e arte das formações. Por arte
das formas abrange as tendências que operam
“com ideias e elementos formais de antemão
controláveis, ou seja, ideias e formas matemáticas
e geométricas”. Por arte das formações, descreve
a intenção “de atingir na obra de arte a suposta
naturalidade do acaso, evitando sistematicamente
qualquer manifestação que demonstre controle
ou a vontade de um controle consciente” em sua
elaboração. Evidencia existirem diversos ramos de
uma e outra tendência, localizando nos extremos
os radicalismos dos debates.
Seu tom é conciliador, uma vez que se propõe a
verificar se as duas tendências seriam realmente
tão antagônicas como postulado por “seus
representantes e não menos pelos seus críticos
partidários”. Propunha-se a avaliar a existência
de “pontos de interferência, aproximação e
convergência” que não justificassem, “em última
análise, toda essa turbulência polêmica”.
É peculiaridade do texto o modo a que se refere
às duas tendências abordadas, discutindo
contribuições e associações, sem estabelecer
polaridades. Cumpre também observar sua análise
do embate de tais manifestações como fruto do
presente e, citando a alusão feita por Herbert Read,
das ideias de Wörriger, por considerar anacrônicas
quaisquer tentativas de interpretação do confronto.
Na verdade, Spanudis propõe reflexão bastante
pessoal sobre questões relacionadas à formação das
estruturas, suas superações e a participação de artistas
e público no processo de constituição das obras de
arte, ou seja, os caminhos do Neoconcretismo.
Maria Izabel Branco Ribeiro é doutora e mestre
em história da arte pela ECA-USP, tendo defendido
a tese Construtivismo fabulador: uma proposta
de análise da coleção Spanudis, e graduada em
educação artística pela FAAP-SP, onde leciona
história da arte; diretora do Museu de Arte
Brasileira – FAAP- SP; curadora de exposições de
arte e pesquisadora em história da arte.
Arte das formas e arte das formações
Theon Spanudis
Dentro das inúmeras manifestações da arte
contemporânea, duas são as tendências principais
que tomam posições de extremo antagonismo. Essas
demarcam as fronteiras entre as quais se desenrola
o panorama da arte contemporânea com as suas
múltiplas orientações, às vezes intermediárias entre as
duas correntes opostas. E em volta dessas tendências
de extrema oposição é que se desenvolve o debate da
crítica contemporânea. Frequentemente tão violento
e apaixonado como há anos atrás quando dos
debates em torno da arte figurativa e não figurativa.
O objetivo deste artigo é examinar de fato se essas
duas tendências são assim tão antagônicas como
apresentadas pelos seus representantes e não menos
pelos seus críticos partidários. Ou, ainda, se existem
pontos de interferência, aproximação e convergência
que não justificam, em última análise, toda essa
turbulência polêmica.
As duas correntes em exame, ora apresentadas, são
as seguintes:
1ª) aquela que parte de e opera com
ideias e elementos formais de antemão
controláveis, ou seja, ideias e formas
matemáticas e geométricas. Característica
desta tendência é o exercício do controle
consciente, ou a vontade de controlar
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011142 143REEDIÇÃO | THEON SPANUDIS
conscientemente a produção artística
excluindo ao máximo possível (ou ao
quanto for possível) o fator acaso.
2ª) aquela que tem como objetivo atingir
na obra de arte a suposta naturalidade
do acaso, evitando sistematicamente
qualquer manifestação que demonstre
controle ou a vontade de um controle
consciente na elaboração da obra. Neste
segundo caso, poderíamos dizer que todo
controle consciente (que naturalmente
existe e opera tanto quanto no caso da
primeira corrente) gasta-se durante a
preparação da obra para então atingir a
sua própria extinção. O objetivo ideal da
primeira corrente seria a autodeterminação
e a demonstração do poder da
vontade humana em autocontrolar-se e
autodeterminar-se; uma manifestação
ativa, diríamos. O objetivo ideal da
segunda corrente seria a demonstração do
oposto; de que o homem não difere dos
processos da natureza. Esses processos,
embora regidos por leis, sugerem em nós
a vontade própria e consciente que os cria
e controla. Ainda esta segunda corrente
proclamaria a passividade do homem
(como a suposta passividade da natureza)
como o seu ideal de naturalidade. São
duas atitudes psicológicas opostas –
e aqui gasta toda a sua atividade de
controle consciente para atingir a ilusão
do acaso, e, na primeira corrente (quando
de fato criativa), toda a elaboração
ativa e consciente da obra pressupõe
os estados passivos da inspiração. São
dois temperamentos diferentes, com
distribuições e acentuações nas escalas de
valores bem diferentes, se não opostas.
Assim, em vez de chamarmos arte concreta
ou neoconcreta, proporíamos chamá-las de
arte das formas; em vez de tachismo, arte
informal, action painting, etc., proporíamos
chamá-las de arte das formações. Mas
quando falamos de arte das formas, seria
bom frisar, temos em mente somente
aquele tipo de arte em que é feito uso dos
elementos formais geométricos vivenciando-
os apenas como elementos formais, e não
como símbolos. Pois é bem conhecido o
fato de que várias manifestações da arte
contemporânea utilizam-se das formas
geométricas principalmente pelas suas
possibilidades simbólicas.
Apesar de todas estas diferenças de objetivos e
também de temperamentos, achamos que ambas
essas correntes têm muita coisa em comum. Eis
porque propomos, em seguida, tentando um
primeiro levantamento, fixar os pontos de contato
entre elas.
Ao contrário do surrealismo que opera em geral
principalmente pela exploração de assuntos
literários e conteudísticos, ambas as correntes
em questão operam só e unicamente por meios
formais, excluindo toda e qualquer alusão ao
assunto. Elas trabalham com meios estritamente
formais, que são os seus únicos conteúdos Ambas
se restringem em fixar acontecimentos internos
na sua realização formal, evitando qualquer
exploração secundária de alusão conteudística
(imagens, signos, símbolos, etc.). Por assim dizer,
ambas são antiliterárias e antisentimentais e
tendem a uma objetivação formal que é, ao mesmo
tempo, sua única expressão, seu único conteúdo.
As alusões à visão do mundo exterior, do mundo
dos objetos, tornam-se inexistentes na obra,
dado o seu caráter de criação interna, da fixação
e realização objetiva de dados e acontecimentos
internos. Então, as semelhanças com a realidade
exterior são meramente ocasionais (isso, quando
as obras de ambas as correntes forem realmente
criativas), e de nenhum modo propositais.
Os pontos em comum acima enumerados já
poderiam claramente recomendar mais cautela aos
críticos nas suas aventuras polêmicas. Naturalmente,
cada crítico, como todo ser humano, deve ter
suas preferências temperamentais, mas em casos
extremos (de estrutura psicológica marcadamente
unilateral) podem elas transformar-se em graves
empecilhos aos seus possíveis leitores, a ponto
de impedir mesmo o vivenciar das produções de
corrente contrária à sua. Neste caso seria preferível o
crítico se limitar ao campo com o qual ele consegue
ter contato vivencial e evitar opiniões sobre outras
correntes alheias, nisso demonstrando, sempre e
somente, as suas próprias limitações. Acusar a arte
das formações de uma suposta facilidade na sua
produção é um típico exemplo de política partidária,
que carece de qualquer objetividade e conteúdo
crítico. Não resta dúvida que a mesma acusação
poderia ser levantada contra a arte das formas.
Assim, ao artista dessa corrente que fosse fraco,
imitador e não bastante criativo, qualquer livro, por
exemplo, de geometria plana forneceria “ideias”
para a fabricação em série de obras desse tipo.
Não menos paradoxais são também os
argumentos de defesa dos críticos de ambas
as correntes. Assim, por exemplo, favorecer
a arte das formas por motivos alheios à arte, –
digamos – por motivos político-sociais (a arte que
ponha em “ordem”, que cultive a “ordem”, que
consequentemente favoreça o “pôr em ordem”
dos males político-sociais). Tais pontos de vista
significam um abuso da arte para com outras
finalidades (uma exorbitância da arte dentro de
outros terrenos), criativa, como no caso das artes
politicamente dirigidas que são mais propaganda
ou “engenhos” de influenciar e manobrar a
opinião pública.
Não menos estranhos são os argumentos
interpretativos em favor da arte das formações.
Uns veem nela a continuação do expressionismo;
outros, manifestações e proclamações de
desespero existencial e atitudes suicidas, e assim
por diante, explorando várias vezes expressões
abstratas e, à maioria das vezes, gratuitas dos
próprios artistas.
Assim vemos que todas estas tentativas de
interpretação pecam pelo seu anacronismo.
São escritos de críticos fixados no antigo que se
projetam no novo. Nem a arte das formas nem
a das formações têm relação alguma tão estreita
com a arte do passado para permitir este tipo
de interpretações. Dado o caráter estritamente
pragmático de sua realização por meios formais,
apenas de dados e acontecimentos internos da
obra, excluem-se de antemão as interpretações
somente válidas para as formas antigas de arte.
No seu livro History of Modern Art, (I959),
Herbert Read utiliza-se das ideias de Worringer,
numa tentativa interpretativa, para caracterizar
a diferença das duas correntes em exame.
Expandindo a hipótese da angústia metafísica que
Worringer levantou para uma angústia existencial
generalizada, típica do homem contemporâneo,
Read acha que a arte das formas representa uma
tentativa de sublimação, e a arte das formações,
a aceitação crua e realística desta angústia
existencial, daí o caráter dramático dos seus
produtos. Read parece esquecer que as ideias de
Worringer não passam de mera hipótese útil, sem
dúvida para facilitar a aceitação, naquele tempo,
de uma arte não figurativa. Típico produto da
mentalidade ocidental que, enraizada nos ideais
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011144 145REEDIÇÃO | THEON SPANUDIS
naturalísticos de séculos de arte, precisava levantar
hipóteses psicológicas para explicar as possibilidades
de uma arte não-naturalística. Não resta dúvida
de que as hipóteses de Worringer não resistiriam,
hoje em dia, ao menor exame sério e objetivo. Pode
ser que Read se utilize dessas ideias com o mesmo
objetivo de Worringer: para facilitar a aceitação
da arte não-figurativa. Por outro lado, ele facilita
também toda essa avalanche. de interpretações à
base de psicologismos gratuitos e anacrônicos de
uma crítica que ora vê na arte das formas expressões
monumentais, ora vê na arte das formações dramas
de desintegração, suicídios e sabe-se lá o que mais.
Na verdade ambas as correntes, nos seus momentos
de boa criatividade, apresentam as características
da criatividade em geral: o vivo, com toda a
complexidade e dinâmica do mesmo.
Existem, entretanto, em ambos os campos
algumas demonstrações, ao nosso ver, possuidoras
de uma tal convergência, pelo menos nos seus
efeitos finais, que merecem uma atenção toda
especial. Temos em mente aquele ramo da arte
das formações que, desinteressado no resultado
formal final e numa exploração secundária do
mesmo (seja no sentido decorativo, simbólico,
literário, etc.), limita-se ao ato da formação,
apenas ganhando com isso aspectos dinâmicos de
uma ação perpétua (que tende a uma finalização
mas que nunca se finaliza).
Como exemplo típico desta tendência,
consideraríamos o japonês Shiryû Morita que,
embora vindo da tradição caligráfica, na maioria
dos seus trabalhos expostos na V Bienal de São
Paulo, não demonstrava mais o ideograma
como ponto de partida. Mas, mesmo que o
demonstrasse (como no caso de Nankoku Hidai),
não teria a menor importância, uma vez que o
ideograma não é mais vivido e preservado como
tal (ou seja: com toda a sua carga de significações)
mas apenas utilizado como mero ponto de partida
formal e, às vezes, até ocasional. O essencial neste
tipo de arte é o próprio ato formativo e o seu
tempo perpétuo, dado que a formação não chega
a um resultado formal final.
E algo semelhante parece-nos acontecer no
campo da arte das formas, a saber: aquele ramo
que, partindo do concretismo, superou a noção
racionalística de estrutura e que corresponderia
ao resultado formal último da arte das formações.
Trata-se da arte neoconcreta. O movimento
neoconcreto surgiu em fins de 1958, principalmente
pela iniciativa e insistência da artista Lygia Clark.
O movimento, em seu manifesto, tomou posição
somente contra o ramo racionalista da arte
concreta e a favor daquele ramo da arte concreta
que, embora não menos sistemático e controlável,
conseguiu produções com a expressividade
do vivo. Por isto o movimento incluiu também
artistas essencialmente concretos que sempre
alcançaram em sua obra a expressividade do vivo.
Naturalmente, essa tomada de posição somente
não justificaria chamar o movimento de neo-
concreto, uma vez que sempre existiu uma arte
concreta expressiva ao lado de uma arte concreta
inexpressiva, que se limitava em concretizar
realidades matemáticas, muitas vezes até de
origem externa à obra. Quando nas reuniões
neoconcretas, tínhamos em mente justamente
o “novo” que esses artistas trouxeram na sua
obra (por exemplo: a superação da racionalística
de estrutura em arte) e esperávamos que, mais
cedo ou mais tarde, esse “novo” fosse se definir
teoricamente, mesmo para justificar o nome de
“neo”. Infelizmente isso não se deu.
Em todas as obras plásticas e literárias
neoconcretas encontramos, como denominador
comum, a superação da noção de estrutura
(como racionalisticamente definida) e, com isso,
Luiz SacilottoSem título,1956 esmalte sintético sobre madeira 29,7 x 50,1cmDoação Theon Spanudis Foto: Romuo FialdiniColeção Museu de Arte Cintemporânea da Universidade de São Paulo
Luiz Sacilotto“Retângulo Eventual”, 1954
esmalte sintético sobre madeira 22,3x 50,3Doação Theon Spanudis
Foto: Sérgio Guerini Coleção Museu de Arte Cintemporânea da Universidade de São Paulo
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011146 147REEDIÇÃO | THEON SPANUDIS
a libertação e manifestação plena do tempo
orgânico, interior, vivencial, que é, ao mesmo
tempo, criativo e que se tornou, por assim dizer, o
conteúdo principal da arte neoconcreta.
É neste ponto que vemos a sua convergência
com aquele ramo da arte das formações, de que
falávamos anteriormente. Em ambos os casos,
o que acontece é a captação e realização do
tempo interior, do tempo de um acontecimento
interior, do tempo de um acontecimento interior-
vivencial, do tempo orgânico-criativo. Daí o
caráter dinâmico destas obras, que supera o
momento estático das estruturas e dos resultados
formais finais, o dinamismo tempórico perpétuo
que nunca se finaliza e que obriga o espectador
a uma participação ativo-criativa no processo de
tentar finalizar a ação que nunca se finaliza. A
finalização seria a estrutura acabada e, por isto,
estática; seria o resultado formal final.
A única diferença, em ambos os casos, é o ponto
de partida. O neoconcretismo parte dos elementos
formais controláveis, e o ramo da arte das formações
em questão parte dos elementos formais ocasionais.
O momento da convergência ou até identidade
é o caráter tempórico-dinâmico da captação e
realização do tempo de formação, do tempo
orgânico-vivencial-criativo. Idêntica é, também, a
exigência absoluta da participação ativo-criativa do
espectador na sua tentativa perpétua de finalizar o
ato permanentemente em ação.
Achamos justo terminar estas constatações
examinando o novo desenvolvimento da artista
Lygia Clark, que a nosso entender conseguiu
fundir estas duas tendências convergentes em algo
novo e inédito até agora. Da fase das superfícies
moduladas (que era ainda pintura), passou à fase
das superfícies sobrepostas (relevos) em que os
problemas plásticos da fase anterior entraram em
plena e real tridimensionalidade, desvirtuando-se
em parte com esta medida (a obra então realiza
na realidade aquilo que nas obras da fase anterior
o espectador tinha de realizar mentalmente)
e enriquecendo-se em parte com novos tipos
de participação ativo-criativa do espectador.
Participações não mais do tipo visual-mental
como anteriormente, mas mesmo do tipo tátil. Da
fase das superfícies sobrepostas a obra de Lygia
Clark chegou à fase atual de esculturas polifásicas
e politempóricas. Tais peças requerem novas
formulações teóricas devido ao seu caráter inédito
até agora. A nossa formulação do neoconcretismo
como superação da estrutura não bastaria para
explicar teoricamente estas suas novas realizações.
A participação ativo-criativa do espectador passou
do plano visual-mental para o plano manual
também. Mas, considerando a multiplicidade
das fases e dos possíveis desenvolvimentos
tempóricos que cada obra contém (isto dentro
de certos limites, naturalmente), como também
a reversibilidade desses processos (a participação
ativo-criativa do espectador fica desnorteada por
ela não ser mais condicionada, como numa obra
neoconcreta, para agir somente numa direção
determinada) é que entra realmente em jogo o
fator acaso em meio a essa participação ativo-
criativa do espectador. Mas, neste caso a obra
de arte ganha uma independência em relação
ao espectador que a transforma num ser vivo,
independente de nós. Se a característica de uma
obra neoconcreta é a exigência absoluta de uma
participação ativo-criativa do espectador para que
a obra fosse criada nas novas obras de Lygia Clark
a participação é necessária somente para revelar
as várias possibilidades de desenvolvimentos
formais e tempóricos (mesmo assim pelo fator
acaso), mas não é mais a conditio sine qua
non da criação da obra. A obra como tal, com
toda esta riqueza de possibilidades virtuais e
reais, existe como um ser independente de
nós, como um ser vivo e misterioso diante do
espectador. Somente nessas modernas máquinas
computadoras eletrônicas, que funcionam quase
que independentes de nós e do nosso controle,
é que veríamos um paralelo com as novas obras
de Lygia Clark. Tais obras deixaram nesta última
fase, a nosso ver, a fundir as duas correntes
convergentes. As suas esculturas são ao mesmo
tempo arte das formas e arte das formações, além
do fato (inédito até agora na arte contemporânea)
de uma independência, quase que completa da
obra de arte para com o espectador e que não
se baseia na atemporalidade estática, típica
das artes plásticas tradicionais, porém numa
atemporalidade dinâmica que provém da soma
de tantas possibilidades “tempóricas” contidas
dentro da obra de arte.
Sem título,1953 óleo sobre tela 53,5 x 64,6cm Doação Theon SpanudisFoto: ???????Coleção Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo
Sem título, 1953óleo sobre tela 50 x 60,2cmDoação Theon Spanudis Foto: Romulo FialdiniColeção Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo
149TEMÁTICAS | ISABELLE GRAW
Introdução
A própria decisão de colocar um conceito como
“crítica institucional” na pauta de discussão
do segundo SoCCAS (Simpósio do Los Angeles
County Museum of Art) em junho de 2005 já
defronta tanto o apresentador quanto o público
com inumeráveis problemas. Isso não se deve
apenas ao fato de os termos, conceitos e territórios
da crítica institucional serem historicamente
carregados e calorosamente disputados, mas
também porque eles funcionam como designação
para um tipo de arte que em geral se supõe ter
função epistemológica. A crítica institucional
supostamente “critica” (sinônimos relacionados
na literatura, nesse sentido, incluem “analisa”,
“revela” e “expõe”) tanto um lugar institucional,
literalmente (um museu ou espaço de galeria,
ALÉM DA CRÍTICA INSTITUCIONAL
Isabelle Graw
Isabelle Graw instituiçãocrítica cânone
Neste texto, Isabelle Graw pontua separadamente os problemas das terminologias
“crítica” e “instituição” e como ambas compõem uma expressão engessada e mal
compreendida historicamente. Interroga-se, então, como essa junção leva a uma
diluição de sentido na contemporaneidade – sobretudo a crítica prefere canonizar o
termo, bem como os artistas que foram por ele rotulados, como Daniel Buren, Hans
Haacke, Michael Asher e Marcel Broodthaers. Tal atitude afasta novas possibilidades
de questionar o âmbito institucional e de permitir que essas mesmas instituições
atuem criticamente.
Martin KippenbergerCandidature à une rétrospective (Candidatura a uma retrospectiva), 1993Primeira versão, foto de grupo, Martin Kippenberger 40º aniversário - Litografia offset27 16/09 x 19 11/16 polegadas (70 cm x 50 cm)© Propriedade de Martin Kippenberger, Galerie Gisela Capitain, Colônia
etc.) quanto algum outro aspecto mais amplo de confinamento institucional. Poderíamos colocar de outra forma. O conceito de crítica institucional tal como aplicado à arte é baseado na suposição
BEYOND INSTITUTIONAL CRITICS | In this text, Isabelle Graw points out separately the problems of the terms “critics” and “institution” and how both comprise a historically misunderstood and hidebound expression. So she asks how this combination leads to a diluted meaning in contemporaneity – especially the critics prefer to canonize the term, and the artists that were labeled by it, namely Daniel Buren, Hans Haacke, Michael Asher and Marcel Broodthaers. This atitutde distances new possibilities of questioning the institutional sphare and permitting these same institutions to act critically. | Isabelle Graw, institution, critics, canon.
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011150 151TEMÁTICAS | ISABELLE GRAW
de que a arte é capaz de fazer alguma coisa. A dificuldade desse termo reside, portanto, em ser descritivo e normativo ao mesmo tempo. Enquanto nos permite pensar sobre o potencial da arte, ele tende, também, a confinar a arte à função supostamente crítica. Quero sugerir que um resultado da dupla ação dos pressupostos e contextos da crítica institucional seja ficar a arte sobrecarregada e, em certa medida, esgotada.
Até mesmo as origens da expressão crítica institucional são controversas. Terá aparecido pela primeira vez num texto de Andrea Fraser sobre
Louise Lawer escrito em 1985, no qual ela sugeriu
que as abordagens de artistas como Marcel
Broodthaers, Daniel Buren ou Hans Haacke, ainda
que diferentes em estilos e materiais, estavam
todas em débito com a “crítica institucional”?1
Ou foram os escritos de Benjamin Buchloh os
principais responsáveis pelo estabelecimento dos
parâmetros dessa expressão, que ele usou no título
− e como tema − de um importante ensaio sobre
a arte conceitual, “Da estética da administração
à crítica institucional”? Buchloh certamente
contribuiu para a construção das figuras canônicas
associadas ao movimento ou, melhor, ele ajudou
a garantir que a crítica institucional estivesse
associada a seus suspeitos usuais − Daniel Buren,
Hans Haacke, Michel Asher e Marcel Broodthaers.2
Testemunhas oculares questionadas a respeito de
quais artistas tiveram seus trabalhos arrolados sob
esse rótulo em sua maior parte não se lembrariam
de quando exatamente ouviram a expressão pela
primeira vez, ou quem em particular a colocou
em circulação. Talvez Christopher Williams esteja
certo. Entrevistado num filme recente de Renée
Green, ele deu a seguinte explicação, levemente
temperada com teoria da conspiração: a expressão
foi propagada primeiro pelo Whitney Independent
Studies Program e começou a conquistar o
mundo desde então – a partir de Nova York
(…) e daí em diante. Embora essa teoria tenha
méritos como especulação histórica, a expressão
foi reapropriada no início da década de 1990 por
uma geração mais jovem de artistas, cujo trabalho
pode ser lido como uma série de diferentes
tentativas no sentido de continuar a rever algumas
das premissas da crítica institucional.3
A questão será tratada em três partes.
Primeiramente, considerarei as dificuldades
terminológicas contidas na expressão crítica
institucional, apontando para os limites desse
conceito/prática, insistindo simultaneamente nas
ideias e realizações históricas que ele mediou.
Em segundo lugar, discutirei a institucionalização
da crítica institucional, abordando a violência
estrutural do rígido, e naturalmente excludente,
cânone que ela gerou. Opto, sempre, pela
necessidade de considerações situacionais, porque
certamente há momentos e locais, como na esfera
comercial do mundo da arte, em que se torna
absolutamente necessário insistir nas ideias mais
fundamentais da crítica institucional. Devo ressaltar
algumas delas: a de que o valor não é intrínseco
à obra de arte, sendo-lhe antes atribuído através
de operações financeiras; a de que a produção
e outros contextos de uma obra de arte são
necessariamente interiorizados e expressados como
parte de sua significação ou, mais simplesmente,
que faz diferença o fato de museus públicos serem
geridos por administradores.
É claro que existem outros tempos e circunstâncias
− digamos, nos circuitos internacionais com
base em projetos das Manifestas e Bienais −
em que as coisas ficam mais complicadas. Aqui
muitos curadores, instituições, teóricos e artistas,
implicitamente ou não, se identificaram com as
várias premissas da crítica institucional. Basta
pensar no modo como as investigações “críticas”
são aceitas por certos curadores − ou por
todas as publicações em que a “criticalidade” é
apresentada de forma esquemática e atribuída,
como se fosse quase autoevidente, a este ou
aquele trabalho de arte.4 Como, porém, essa
criticalidade é geralmente afirmada, em vez de
ser definida, e assumida, em vez de ser criado um
modo operacional específico, o resultado costuma
ser a neutralização das próprias possibilidades
de prática artística realmente crítica – crítica no
sentido de levantar objeções e gerar questões em
uma situação particular.
Ao confrontar tal neutralização, parece necessário
analisar como as competências artísticas
geralmente associadas à crítica institucional
(pesquisa, trabalho de equipe, assunção pessoal
dos riscos, e assim por diante) alimentam, às vezes
bastante perfeitamente, aquilo que os sociólogos
Luc Boltanski e Ève Chiapello descreveram como
“o novo espírito do capitalismo”.5 Por outro
lado, simplesmente insistir no potencial da crítica
institucional ou apontar seus limites não é o
suficiente. Sob a luz do novo poder de definição
do mercado de arte e as atuais mudanças
estruturais no que antes era chamado de “mundo
da arte”, proponho deixar ambas as dificuldades
terminológicas e o cânone para trás a fim de
− na última seção, adiante − tentar formular
uma redefinição do que “instituição” e “crítica”
poderiam e podem significar hoje.
Dificuldades terminológicas
No Dicionário Dumont de Termos da Arte
Contemporânea,6 crítica institucional é descrita
por Johannes Meinhardt como atitude a favor
da arte. De acordo com Meinhardt, essa atitude
pode ser encontrada em “trabalhos de arte
e procedimentos estéticos que investigam
analiticamente as condições de enquadramento
institucionais e sociais”.7 Tal definição lança luz
sobre os problemas inerentes ao conceito e suas
realizações. Ao assumir a capacidade de investigar
ativamente algo, quando definida dessa maneira,
a crítica institucional implica a funcionalização
da arte. É certo que as funções epistemológicas
têm sido frequentemente projetadas, de forma
bastante estereotipada, sobre as práticas artísticas
classificadas sob a rubrica crítica institucional.
“Arte” ou “obra de arte” são rotineiramente
substituídas por “intervenção” ou “proposição”,
descrições que pressupõem orientação funcional.
Essa renomeação, entretanto, é faca de dois
gumes. Há, por um lado, a vantagem inegável
de permitir que nos livremos de uma noção de
arte idealista, substancialista e restritiva por
insistir numa legibilidade inscritível da arte − na
relação atual da arte com as condições sociais e
na possibilidade concomitante de renegociá-las.
Essa é uma visão à qual sou bastante ligada e que
considero necessidade histórica e política que não
se pode abandonar.
Por outro lado, há certo reducionismo
operando quando as funções críticas, tais como
“investigação” ou “análise” são reivindicadas para
as obras mediante generalizações infundadas
e sem o exame de como e quando a suposta
“investigação” ou “análise” ou “negociação”
tomam o lugar do trabalho. Seguir essa questão
sugere que mesmo o readymade, essa vaca
sagrada, se torna inconsistente, entendido, como
geralmente é, como a cena primária da crítica
institucional e por consequência interpretada,
nos termos de Meinhardt, como um “exame das
condições de enquadramento institucional ou
discursivo”8. Olhando melhor, se o readymade
é um mecanismo de delimitação de tipos, ele
também manifesta aspectos específicos da
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011152 153TEMÁTICAS | ISABELLE GRAW
sensibilidade artística de Duchamp, apresentando-
se como o resultado de uma escolha que é pessoal
e específica – e não simplesmente arbitrária, como
muitas vezes se alega. Elementos do processo do
readymade até mesmo se aproximam da ideia de
uma assinatura artística. Da mesma forma, não
poderia o trabalho Measurement room (1967), de
Mel Bochner, ser considerado não apenas análise
da “realidade material das paredes da galeria
como dispositivo de enquadramento”, como
Miwon Kwon argumentou, mas também literal
intensificação de seus parâmetros, uma espécie
de “homenagem” às condições materiais e às
proporções do espaço da galeria?9
Contudo, talvez certa dose de reducionismo seja o
preço necessário a pagar quando se quer romper
com um sistema dominante de crenças que ainda
insiste em que só as qualidades supostamente
intrínsecas da arte justificam seu valor. Um
trabalho como Manet Projekt (1974), de Hans
Haacke, é mais atual do que nunca quando
demonstra o processo de construção de valor
como uma sucessão de operações financeiras
entre uma sequência de proprietários. Tão
importante quanto isso é insistir sobre a relevância
de fatores externos que se anexam às obras e
através delas são negociados, essa necessidade
estratégica que passou por transformação e agora
serve com frequência como licença para reduzir
proposições artísticas complexas a uma função
epistemológica ou significado aparentemente
inequívocos. A arte supostamente deveria
“negociar” questões, “investigar” ou “intervir”
− e essas funções epistemológicas são sobre ela
projetadas de maneira esquemática como assunto
de fato abordável. Mais uma vez, é só dar uma
olhada em alguns dos inúmeros exemplos de
publicações distribuídas por galerias, museus e
outras instituições para aprender a lição de que,
quanto mais as funções da crítica atribuídas ao
trabalho de arte parecem autoevidentes, melhor
será seu valor promocional.
Há trabalhos que facilitam tais rotulagens críticas
– basta pensar na atual popularidade de Santiago
Sierra. Esse problema está longe de ser novo – tem
sido amplamente discutido desde o final dos anos
90, por artistas e por críticos. Os críticos reagiram
levando mais em conta o vocabulário estético-
formal. Argumentaram a favor de significados
móveis, o que causou novos problemas, dados o
alto nível de abstração dessa escolha e a sintonia
com o interesse geral do mercado por uma segunda
ordem, um quase sublime neoformalismo. Os
artistas reagiram tornando suas proposições mais
poéticas, multifacetadas ou obscuras, o que traz a
desvantagem de às vezes deixar o trabalho quase
fora de contexto e sem conteúdo.
A instituição dentro de nós
A expressão crítica institucional é, em si, uma
construção paradoxal já que sugere a crítica de
uma instituição que é em si institucional – uma
crítica não apenas dirigida às instituições e seus
críticos, mas também uma crítica da natureza
institucional, por assim dizer. O duplo panorama
dessa crítica nos faz lembrar duas coisas – o
entrelaçamento profundo entre artistas e
instituições, e o grau em que as instituições têm
determinado a forma ou o sentido das obras
feitas especialmente para ou sobre elas. Pode-se
até chegar a dizer que as instituições apresentam
o caminho aos artistas.
A institucionalização progressiva de obras
identificadas com a crítica institucional é
questão que com frequência tem preocupado
os artistas. Buren apresentou incisiva reflexão
em 1980, em que o problema não consistia no
fato de a instituição impedir o acontecimento de
experimentações, mas, antes, incentivar os artistas
a produzir obras que com ela se assemelhassem
ou se conformassem, sendo assim facilmente
aceitas.10 Quando o curador Yves Aupetitallot
pediu a alguns artistas que produzissem obras
para um local específico, o Firminy Project na
“Unité d’habitation” de Le Corbusier, em Firminy,
na França (1993), lembro-me de várias discussões
entre artistas e críticos sobre o que significava ser
bem acolhido pela instituição e educadamente
convidado (e pago) para examinar criticamente
um local e interagir socialmente com ele. Uma das
perspectivas pressupunha abrangente cooptação,
uma totalização que levaria à paralisia total.
(Uma observação: o termo “cooptação” é em si
problemático, pois implica a existência de um
estado puro ou inocente “antes” da cooptação –
o que é, naturalmente, ficção.) Em outra parte,
as tentativas mais produtivas caminharam no
sentido de renegociar as novas restrições e novas
liberdades que resultaram do avarento mercado
por conhecimento e informação – um mercado
que, às vezes coexiste, às vezes se sobrepõe, e
quase sempre não tem nada a ver com o que
acontece na esfera comercial.
Na década de 1990 surgiu um novo tipo de
instituição de arte, incluindo Depot em Viena ou
Kunstraum Lüneburg – claramente identificadas
com alguns dos princípios associados à
crítica institucional. Ao optar por “pesquisa”,
“documentação”, “trabalho em equipe”,
“ausência de hierarquia”, “transparência” ou
“discussão”, seus métodos de trabalho foram,
ao mesmo tempo, completamente coniventes
com os valores neoliberais. Esse foi especialmente
o caso, com essa ênfase na comunicação, que
correspondeu à tendência da indústria cultural de
transformar a “capacidade comunicativa humana
em mercadoria”, como observa Paolo Virno.11
Recordo meu crescente ceticismo sobre o potencial
crítico da chamada “prática pós-ateliê”. Comecei
a olhar para modelos artísticos mais tradicionais,
aparentemente conservadores, como o pintor
obcecado no ateliê, que recusa explicações, não
se relaciona, nunca viaja, raramente aparece
em público e, portanto, recusa o espetáculo do
acesso direto a suas competências cognitivas e
emocionais. Diante da tendência do capitalismo
de englobar todas as pessoas e ao mesmo tempo
incentivar a investigação crítica, parecia-me uma
estratégia valiosa novamente produzir obras
altamente mediadas pelo ateliê, que, pelo menos
teoricamente, não admite acesso direto.
Embora seja verdade que algumas instituições de
arte adotaram a crítica institucional, eu certamente
não chegaria a ponto de sugerir que isso seja
completamente inútil para qualquer “exercício
crítico” dentro delas, como Olafur Eliasson
colocou de forma bastante condescendente em
recente conversa com Daniel Buren.12 Destaco
que simplesmente não é esse o caso em que “não
há um ‘lá fora’” ou que até mesmo a proposição
mais ultrajante, inevitavelmente, será absorvida
pelas instituições, conforme Buren e Eliasson
parecem acreditar. Pelo contrário, há algumas
proposições que permanecem “fora”. A fim de
construir uma instituição (o termo “instituição”
deriva etimologicamente de “instalação”, o que
significa montar ou colocar em) um exterior
constitutivo não é apenas necessário, mas
inevitável. Algumas coisas vão ser sempre deixadas
de fora, muitas vezes, de modo deliberado:
estruturalmente falando, cada centro produz sua
periferia. Além disso, se levarmos em conta que as
instituições de arte têm praticamente transmitido
a autoridade para o novo mercado de arte e que
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011154
é raro artistas associados à crítica institucional
alcançarem posições importantes na esfera
comercial, chegamos à conclusão de que não há
nenhuma razão para despejar o bebê junto com
a água da banheira. Eu optaria pela seguinte
abordagem: insistir no potencial investigativo da
crítica institucional, especialmente em face da
nova entidade empresarial do museu, enquanto
se trabalha em novas e mais adequadas definições
de “instituição” e “crítica”.
Outro cânone
A história e as realizações da crítica institucional
devem ser consideradas neste momento
canonizadas de forma bem-sucedida. Ela possui
uma lista de nomes-chave − os suspeitos de
costume que mencionei − que constam como
seus principais representantes: Daniel Buren,
Michael Asher, Marcel Broodthaers, e Hans
Haacke. Mesmo que eu entenda perfeitamente
a necessidade estratégica de se estabelecer esse
cânone, me parece um tanto surpreendente que a
lista seja quase inconscientemente reproduzida e
raramente modificada pelos jovens historiadores
da arte. Na verdade, esse rol de protagonistas
tem sido iterado e petrificado em detrimento
de muitos artistas cujos métodos de trabalho −
independente da forma que suas investigações
possam tomar − também poderiam ser descritos
como métodos de questionamento ou mesmo
de ataque à instituição de arte, especialmente
se contêm todo um sistema de crenças. Por
exemplo, parece ser uma regra não definida no
cerne da narrativa histórica da arte dominante,
pelo menos, que a crítica institucional não possa
se manifestar na pintura.
Gostaria de propor, ao contrário, que os
primeiros trabalhos de Jörg Immendorff sejam
bons candidatos para inclusão no cânone, já
que expõem a falência da tradição da “arte” ou
do “artista”. Sua própria ambição desesperada
para ser ao mesmo tempo bem-sucedido e
politicamente responsável foi impiedosamente
tematizada em seu livro de artista Hier und Jetzt:
Das tun, was zu tun ist.13 Ele estava tão envolvido
com a luta política quanto irremediavelmente
comprometido com o sistema de galerias.
Podemos também considerar algumas das
proposições de Martin Kippenberger, atualmente
o sujeito de quase santificada canonização
como o pai da pintura figurativa no mundo
inteiro. Quando convidado para expor no Centre
Pompidou, em 1993, ele intitulou sua exposição
Candidature à une retrospective, desafiando
diretamente e zombando da instituição de arte
e sua política de reconhecimento. Em vez de
esperar até ser considerado suficientemente
importante para uma retrospectiva de grande
porte, optou por uma estratégia mais agressiva e
discreta. Sua ousada iniciativa questionou o papel
regulador da instituição de arte, sua ambição de
recompensar “bons” artistas que “mereceram”
e “trabalharam arduamente”, e em simultâneo
atacou a grande illusio do mundo da arte − termo
de Pierre Bourdieu para o investimento coletivo e
crença em todo um sistema de valores de uma
estrutura.14 Kippenberger propôs que algo mais,
de modo geral, poderia estar em jogo, uma vez
que ele insistiu em um conjunto de outros − não
menos duvidosos − critérios de valorização, que
costumam permanecer ocultos. O convite trazia
a imagem de seu círculo de amigos íntimos e
admiradores reunidos por ocasião de seu 40º
aniversário. Embora ele se apresente como uma
espécie de “artista dos artistas” que não precisa
de reconhecimento institucional, esse convite
exibe as redes informais e leis de proteção que Capa do livro:Jörg Immendorff, Hier und Jetzt: Das tun, was zu tun ist (Materialien zurDiskussion: Kunst im politischen Kampf. Auf welcher Seite stehst Du,Kunstschaffender?), Colônia/Nova York: König, 1973228 páginas 21 x 30cmFonte: http://www.flickr.com/photos/desingel/4203026541/
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011156 157TEMÁTICAS | ISABELLE GRAW
definem a vida como um “mundo de conexões”.15
Tais acordos informais são raramente expostos,
embora muitas vezes legitimem a política
cultural oficial. (Outra observação: o próprio
Kippenberger foi profundamente influenciado
por artistas como Louise Lawler e Andrea
Fraser, cujos trabalhos podem ser considerados
lembrete constante do fato de que não são
apenas as supostas qualidades intrínsecas da arte
que levam a seu reconhecimento institucional,
mas uma interação de atividades promocionais,
sociais e institucionais).
Quando o antigo mundo da arte se transfor-
ma em indústria visual
As dificuldades certamente não param por aqui.
A expressão crítica institucional coloca novos
problemas, pois os dois conceitos que se fundem
têm, um e outro, sua própria carga histórica:
“instituição”, por um lado, e “crítica”, por outro.
Consideremos o breve histórico das inflexões do
termo “instituição” em apenas um segmento
social, o mundo da arte. Correndo o risco de
simplificar demais, gostaria de esboçar o que
se segue. Dois entendimentos convergentes de
“instituição” atravessaram os anos formadores
da crítica institucional na década de 1970:
primeiro, uma designação bastante limitada de
instituição como instituição de arte (museus,
galerias) exemplificada nas abordagens de Buren
e Asher. Lendo os textos de Buren, por exemplo,
percebe-se que para ele “instituição” sempre
foi sinônimo de “museu”. Essa noção restritiva
implica compreensão topográfica, que tem a
inegável vantagem de permitir intervenções muito
concretas e precisamente circunscritas. Quando
Buren refletiu sobre a “função do museu”, como
denominou, ele analisou a forma como o museu
define, valida, enquadra, isola, exclui e naturaliza.
Útil com esse sentido, tal noção limitada facilitou
a fixação sobre o mecanismo da arte, ignorando
o fato de que não só se mudou a natureza do
termo, mas também que ele perdeu muito
de sua antiga autoridade. Essa fixação sobre
o mecanismo da arte parece estranhamente
nostálgica hoje, de modo especial em relação ao
novo poder de definição do mercado de arte, que
tomou o comando dos museus como principais
gestores de valor em rede cujas transações globais
nos mercados primário e secundário são quase
sempre invisíveis.16
Por outro lado, de forma não tanto topográfica,
noções mais expansivas de instituição estão em
circulação desde os anos 70, como evidenciado
pelo trabalho Journal Series (1976), de John
Knight, por exemplo. Nesse projeto, o artista
enviou assinaturas gratuitas não solicitadas para
membros da comunidade artística, antecipando a
maneira pela qual a lei da cultura de celebridades
e as regras da indústria de entretenimento
se alojam no mundo da arte atualmente No
momento, somos confrontados com uma situação
em que o modelo do sistema de galerias com sua
estrutura de comércio varejista foi substituído
por fusões globais de grande porte, como a
“Houses & Wirth & Zwirner” ou a “Gagosian”. O
antigo mundo da arte tornou-se o que podemos
denominar “indústria visual” vagamente similar a
outras indústrias culturais, como a de Hollywood
ou o mundo da moda, que parece cada vez
mais imitar. O programa da indústria visual
implica a visualidade e seus significados já não
serem produzidos por protagonistas singulares
(artistas, galeristas, curadores). Em vez disso, a
responsabilidade pela produção e distribuição de
imagens e seu conteúdo está nas mãos de entidades
maiores, incluindo franquias internacionais
e conglomerados multinacionais. Estruturas
corporativas não podem mais ser localizadas, já
que atuam no espaço transnacional. Da mesma
forma, as transações no mercado secundário −
decisivas para o valor comercial de uma obra de
arte, ao menos − são pouco compreensíveis. O
novo poder do mercado de arte se manifesta,
então, na substituição de critérios artísticos por
imperativos econômicos. Um artista que se mostre
economicamente bem-sucedido será quase
automaticamente considerado “importante” ou
“interessante” − por galerias, curadores e muitos
críticos. Em contraste com a situação em 1960,
quando o papel das instituições de arte podia ser
decisivo no processo de validação, estamos vivendo
o paradoxo de uma proliferação de instituições
de arte que continuam a organizar e acolher a
experiência da arte, caracterizada, segundo Buren,
pela “incrível fraqueza”. Museus são dirigidos por
curadores que tendem a reproduzir o consenso
reinante no mercado de arte − como é constatado
pela coleção de arte contemporânea no Museu de
Arte Moderna de Nova York. Talvez devêssemos
parar de chamá-los de “museus”, já que essa
palavra conota, etimologicamente, sua atribuição
a alguma forma de produção de conhecimento, e
encontrar novo termo.
A palavra “crítica” sofreu mudanças semânticas
semelhantes e reconceituações orientadas para
a prática. Aos olhos de uma geração anterior,
como Hans Haacke, o conceito de crítica parecia
depender de um ideal de distanciamento crítico.
Artistas mais jovens, incluindo Andrea Fraser,
Christian Phillip Müller, Renée Green e Fareed
Armaly (eu mesma estou reproduzindo um
cânone, agora), basearam seu trabalho, em parte,
na consciência de que essa suposição de distância
ou separação entre o agente de entrega da crítica
e seu suposto objeto sempre foi ficção que não
pode e não deve ser reproduzida nas atuais
circunstâncias. Sua obra propõe uma noção
de crítica renegociada com base na admissão
de que a “distância crítica” é comprometida a
priori. Além disso, o que a princípio parece ser
“crítico” pode ser gesto totalmente inofensivo
em circunstâncias diferentes. Se refletir sobre
os parâmetros institucionais já foi algo que a
instituição considerou preocupante, hoje é algo
aceito, bem-vindo e mesmo apoiado por muitas
instituições, que ativamente convidam artistas
para os investigar. Crítica, em suma, pode tornar-
se uma prática reificada que alimenta o apetite
voraz do capitalismo.
Fareed Armaly(re)Orient exhibition, 1989Galerie Lorenz, Paris
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011158 159TEMÁTICAS | ISABELLE GRAW
Novas formas de convergência entre crítica e
capitalismo foram analisadas pelos sociólogos
Ève Chiapello e Luc Boltanski em seu poderoso e
ambicioso estudo The New Spirit of Capitalism.17
Sua narrativa, porém, postula novamente uma
visão bastante pessimista e totalizante de um
capitalismo abrangente capaz de absorver
qualquer tentativa de questioná-lo. Correndo o
risco de soar ainda mais prescritiva ao final de
minha discussão, eu gostaria de contrariar essa
visão fatalista, com um apelo para considerações
situacionais. Em determinados momentos e
contextos, se perguntarmos ao cânone dominante,
ou atacarmos o consenso atual, ou insistirmos em
critérios outros que não os interesses econômicos,
ou recusarmos noções subdesenvolvidas de
criticalidade, ou mostrarmos como a crítica se
pode tornar instrumentalizada, ou afastarmo-nos
do que Pierre Bourdieu chamou de “espaço de
possibilidades”(...) podemos expandir e deslocar o
horizonte de constituição daquilo que é possível.
Certamente, tais intervenções não impedirão
o funcionamento da máquina capitalista, mas,
insisto, podemos romper com um sistema de
crenças, enquanto participantes – se isso implica
a crença na economia, ou uma crença não menos
duvidosa, mas enfática, na arte. Ambas tendem
a desviar-nos do fato de que algo realmente
está em jogo em certas obras de arte em um
determinado momento. Dessa forma, ao insistir
em “outros critérios”, parece-nos mais adequado
observar a arte da maneira como circula nesse
meio − seja no mercado secundário ou no
mercado do conhecimento − “sem ilusões” (como
Walter Benjamin expôs às vésperas da Segunda
Guerra Mundial, enquanto se empenhava para
compreender a obra de Charles Baudelaire).18 Ao
mesmo tempo, no entanto, parece ser necessário
manter uma noção de arte que seja crítica no
sentido de que levanta questionamentos ou
coloca problemas.
Não tenho certeza se crítica institucional é a
expressão correta para tal esforço, já que sua
canonização é tão profunda até agora, que é
difícil imaginar como seus preceitos podem ser
regenerados, e suas formas e seus significados,
reformulados. Talvez o legado da crítica
institucional se encontre em sua exigência de que
levemos em consideração suas lições, a fim de
deixá-las para trás.
Tradução Ana Luísa Flores e Isabel Carneiro
Revisão técnica Dalila Santos
NOTAS
Texto publicado originalmente em:
Isabelle Graw (org.), Institutional Critique
and After (SoCCAS Symposia vol. 2), Zurique:
JRP|Ringier, 2006: 137-151.
1 Andrea Fraser. “In and out of Place”, in Reesa
Greenberg, Bruce W. Ferguson e Sandy Nairne (eds.),
Thinking about Exhibitions, Nova York: Routledge,
1996:437-449; publicado originalmente em Art in
America, junho de 1985:122-129.
2 Benjamin H.D. Buchloh. “From the Aesthetics
of Administration to Institutional Critique”, L’art
conceptuel, une perspective, Muses d’Art moderne
de la Ville de Paris, 1990.
3 “Jugend forscht (Armaly, Dion, Fraser, Müller)”, in
Texte zur Kunst, v. 1, n.1, outono 1990:163-175.
4 Daniel Buren identificou esse desdobramento em
1980: “O problema hoje não é identificar em que
medida a instituição funciona como amortecedor
[literalmente, “pastilha de freio”] sobre as
experiências e trabalhos mas, sim, como conduz
a produção de obras com que tem afinidade,
e que, compreensivelmente, aceita”, in “Rund
um‘Punktesetzen’”, Achtung! Texte 1967-1991,
Dresden/Basileia: Verlag der Kunst, 1995:340.
5 Ver Luc Boltanski e Ève Chiapello. The New Spirit
of Capitalism, trad. Gregory Elliott, Nova York: Verso,
2005, publicado originalmente como Le Nouvel
Esprit du Capitalisme, Paris: Gallimard, 1999. [O
Novo Espírito do Capitalismo, São Paulo: Martins
Fontes, 2009.]
6 Hubertus Butin (ed.), DuMonts Begriffslexikon
zur zeitgenössischen Kunst, Colônia: Dumont,
2002. [N.T.]
7 Ver o verbete de Johannes Meinhardt
“Institutionskritik” [crítica institucional] in
Hubertus Butin (ed.), DuMonts Begriffslexikon
zur zeitgenössischen Kunst, Colônia: Dumont,
2002:126-130.
8 Ver também Frazer Ward, que caracteriza o
readymade como um “gesto epistemológico” em
“The Haunted Museum: Institutional Critique and
Publicity”, October, v. 73, verão 1995:71-89.
9 Miwon Kwon, “Genealogy of Site Specificity”, One
Place After Another: Site-Specific Art And Locational
Identity, Cambridge: MIT Press, 2004:14.
10 Ver Daniel Buren. “On Institutions in the art
system” in Isabelle Graw (org.), Institutional Critique
and After (SoCCAS Symposia vol. 2), Zurique:
JRP|Ringier, 2006: 340-341.
11 Ver Paolo Virno. A Grammar of the Multitude,
Nova York: Semiotext(e), 2004:61.
12 Daniel Buren, Olafur Eliasson. “Conversation: Daniel
Buren & Olafur Eliasson”, ArtForum, v. XLIII, n. 9, maio
2005: 208-214. [N.T.]
13 Jörg Immendorff. Hier und Jetzt: Das tun, was zu
tun ist (Materialien zur Diskussion: Kunst im politischen
Kampf. Auf welcher Seite stehst Du, Kunstschaffender?),
Colônia/Nova York: König, 1973. [N.T.]
14 Ver Pierre Bourdieu. “The Illusio and the Work of
Art as Fetish”, in Rules of Art: Genesis and Structure
of the Literary Field, Stanford: Stanford University
Press, 1999:227-230. [As Regras da Arte: Gênese e
estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia
das Letras, 1996.]
15 Ver nota 5. [N.T.]
16 Em sua contribuição para “O Novo MoMA”,
discussão de quatro críticos sobre o novo edifício
para o Museu de Arte Moderna de Nova York
(Artforum, v. 43, n. 6, fevereiro 2005), Benjamin
H.D. Buchloh expressa apenas pena para as obras
de arte contemporânea que “refletem a confiança
ingênua de seus criadores em um mecanismo do
mundo da arte e do museu que aparentemente
pretendem habitar, como se os tempos não tivessem
mudado e como se seu estatuto privilegiado de
criadores de ‘arte moderna’, continuasse a ser
incondicionalmente garantido”.
17 Ver nota 5.
18 Walter Benjamin observou “o reconhecimento
precoce do mercado, sem ilusões” de Baudelaire,
em “The Paris of the Second Empire in Baudelaire”,
Charles Baudelaire, A Lyric poet In the Era of High
Capitalism, trad. Harry Zohn, Nova York: Verso,
1989. [Obras Escolhidas III – Charles Baudelaire:
Um Lírico no Auge do Capitalismo. São Paulo: Ed.
Brasiliense, 2004.]
Isabelle Graw é crítica de artes visuais e
cofundadora da revista Text zur Kunst, professora
de teoria e história da arte na Universidade de Belas
Artes (Städelschule), em Frankfurt, Alemanha,
onde também criou o Instituto de Crítica de Arte.
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011160 161TEMÁTICAS | CRAIG OWENS
Este ensaio apresenta duas abordagens bastante
diferentes da questão da representação – que vem
sendo proposta como de interesse pela arte da
última década, apesar de mal compreendida pela
crítica. Tudo o que tem sido celebrado (e com
rara frequência denunciado) como um retorno à
representação, após a longa noite da abstração
modernista, acaba por ser, em muitas instâncias,
crítica à representação, uma tentativa de usar a
representação contra ela mesma, a fim de desafiar
sua própria autoridade, seu desejo de alcançar
alguma verdade ou valor epistemológico.
A crítica, contudo, tem tributado esse impulso
à ambígua bandeira de um revival das práticas
figurativas de expressão; assim, para uma discussão teórica sobre as questões apontadas pela arte
contemporânea a esse respeito, precisamos perscrutar outras paragens – por exemplo, o campo europeu
da crítica conhecido como pós-estruturalista, cuja produção também vem sendo identificada como
crítica à representação.
REPRESENTAçÃO, APROPRIAçÃO E PODER
Craig Owens
Representação pós-estruturalismocontemporaneidade Craig Owens
Reflexões críticas sobre duas abordagens a respeito da representação: a revisionista,
que coloca em questão a figuração, e a tradicional, que a resgata. Propõe
encaminhamento pós-estruturalista da questão, com base em Foucault, Marin e
Derrida. Esses pensadores desautorizariam as duas abordagens mencionadas, por
entendê-las circunscritas à busca da verdade e ao historicismo, valores epistemológicos
considerados ultrapassados pela crítica pós-estruturalista, pois reforçam o poder e a
propriedade no modo característico de a sociedade ocidental representar o mundo.
Diego Velázquez, As meninas, detalhe, reflexão no espelho, 1656, óleo sobre tela, Prado, fonte MITlibrary
REPRESENTATION, APPROPRIATION AND POWER | Critical reflections on two approaches to representation: the revisionist, which questions figuration, and the traditional, which redeems it. He proposes a post-structuralist focus on the issue, based on Foucault, Marin and Derrida. These scholars would discredit the two aforementioned approaches since they understand them as circumscribing the search for truth and historicism, epistemological values considered obsolete by post-structuralist critics, since they reinforce power and property in the way characteristics of how Western society represents the world. | Representation, post-structuralism, contemporaneity, Craig Owens.
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011162 163TEMÁTICAS | CRAIG OWENS
A objeção pós-estruturalista à representação está
em desacordo com ambos os tratamentos dados
ao problema no âmbito da história da arte: o da
tradição e o do revisionismo. Nas páginas que se
seguem, discutirei essas duas abordagens a fim de
exemplificar a diferença entre a disciplina (história
da arte) que toma a representação como atividade
desinteressada e, portanto, politicamente neutra;
e um corpo crítico (pós-estruturalista) que
demonstra ser a representação parte inextricável
do processo social de dominação e controle. Em
nenhum momento quero mediar ou reconciliar
essas duas posições; na verdade, espero antes
demonstrar sua incompatibilidade. Portanto,
minha hipótese de trabalho propõe que a crítica
pós-estruturalista não pode ser absorvida pela
história da arte sem uma sensível redução de seu
vigor polêmico, ou sem uma total transformação
na própria história da arte.
Historiadores da arte e pós-estruturalistas
A devoção à verdade e o método de precisão
científica nascem da paixão de estudiosos,
da recíproca aversão que têm entre si, de
suas fanáticas e intermináveis discussões,
bem como do espírito de competição
existente entre eles – do conflito pessoal que
gradativamente apaga as armas da razão.
Michel Foucault. Nietzsche, genealogy, history
Meu objeto será uma rede específica de imagens
e textos, pinturas e os comentários que lhes dão
coesão, por articular o vínculo entre representação
e poder em nossa cultura, tanto quanto o
problema que essa vinculação apresenta para a
pesquisa da história da arte. Essa rede não foi
proposição minha; emergiu durante o painel “A
aplicabilidade da metodologia da crítica literária
à análise da pintura”, que ocorreu, em dezembro
de 1981, na reunião da Modern Language
Association [MLA] (organização profissional de
pesquisadores e professores de estudos literários
de certo modo equivalente à College Association).
Esse evento proporciona pretexto para minhas
reflexões, embora a ele eu não vá limitar-me.
Dois dos comentários que levarei em consideração
não foram feitos por historiadores da arte, mas
por críticos que explicitamente rejeitavam a ideia
de haver separação entre diferentes disciplinas,
no que concerne ao trabalho intelectual: a
famosa análise de Michel Foucault sobre As
meninas, no capítulo de abertura de As palavras
e as coisas e a análise complementar de The
Arcadian Shepherds, proposta por Louis Marin
no artigo Towards a theory a of reading in visual
arts.1 Esses comentários se relacionam não apenas
devido à contemporaneidade das pinturas que
discutem – Velázquez pintou As meninas em
1656; e Poussin produziu duas versões de The
Archadian Shepherds, tendo a que nos concerne
sido datada por Anthony Blunt como posterior
a 1655 – mas também devido a seu método e
intenção. Foucault e Marin interpretaram esses
trabalhos como “representações de representação
[clássica, isto é, do século 17],” e isto eles fazem
para demonstrar não apenas a singularidade das
obras mas também a conformidade delas com
as regras anônimas e impessoais que regulam o
sistema clássico de representação.
Foucault e Marin não estiveram na MLA: seu
argumento, no entanto, foi defendido lá por
dois historiadores da arte, Svetlana Alpers e
Michel Fried, que observaram seu valor para
estudos de história da arte. Embora Alpers e
Fried orientem sua produção inicialmente para
público afeito a estudos literários – seus estudos
recentes aparecem em periódicos como Critical
inquiry e New literary history – e não objetem,
pelo menos não em princípio, a transferência de
análises textuais para o campo das artes visuais,
ambos mencionam os perigos decorrentes desse
deslocamento, citando como exemplos as análises
de Foucault sobre Velázquez e de Marin sobre
Poussin. Alpers critica Foucault por negligenciar
a tradição pictórica, da qual, segundo ela
entende, As meninas teria sido constituída; e
Fried descarta como a-histórico e reducionista o
uso que Marin faz da distinção linguística para
definir a estrutura da pintura histórica. A despeito
Jean-Baptiste Greuze, Fils ingrate, 1777, óleo sobre tela, 130 x 1.162cm, Louvre, fonte MITlibrary
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011164 165TEMÁTICAS | CRAIG OWENS
do fato de que nem Alpers nem Fried professam
afeição particular pela disciplina em que atuam,
ambos introduzem suas reflexões declarando-se
distanciados da história da arte – o julgamento
de valor negativo que eles conferem a Foucault e
Marin, em última análise pronunciado em nome
do teor de verdade da história da arte, confirma
as premissas de Freud, em seu escrito de 1925 a
respeito da negação na origem da psicologia do
julgamento intelectual:
Negar alguma coisa em favor do próprio
julgamento é o mesmo que dizer: ‘Isto
é algo que eu preferiria reprimir’. Um
julgamento negativo é o substituto
intelectual para a repressão; o ‘não’ com o
qual ele se expressa é a marca registrada da
repressão, um certificado de origem, como
algo teria sido, como ‘made in Germany’.2
O trabalho de Foucault e Marin é certamente
algo que a história da arte (uma disciplina como
se sabe ‘made in Germany’) preferiria reprimir.
Pois, apesar de a análise de Alpers de As meninas
parecer, como veremos, defender mais do que
refutar a leitura que Foucault faz da pintura, e a
discussão de Fried sobre o papel do espectador
em finais do século 18 e início do 19 relativa à
pintura francesa apresentar dialética de afirmação
e negação igual à empregada por Marin no
tratamento do mesmo problema no século 17,
a questão de ambos, Foucault e Marin, relativa
à convenção em obras de arte, a sua tendência
de sempre se conformarem a certa especificidade
institucional, permanece em conflito direto com
o interesse de Alpers e Fried (e da maioria de
seus colegas) a respeito da individualidade ou da
singularidade de obras e períodos da arte. Assim,
os argumentos de Foucault e Marin em última
instância desacreditam a iniciativa de Alpers
de tributar a Velázquez um desempenho de
originalidade, bem como a reinvindicação de Fried
do reconhecimento da especificidade histórica em
seu próprio argumento.
A questão com a qual nos deparamos, então,
não é, como Alpers propõe, se Foucault terá
interpretado corretamente As meninas (a resposta
dela é que “ele interpretou bem a pintura, mas
não verdadeiramente”), mas se Alpers e Fried
interpretaram adequadamente Foucault e Marin. E
a resposta é que eles não o fizeram; de fato Foucault
e Marin foram mal compreendidos naquela ocasião
ao menos em dois diferentes aspectos.
Apesar de o trabalho deles ter sido aceito
na academia americana inicialmente como
“crítica literária” e permanecido restrito ao
departamento de literatura inglesa comparada,
nem a obra de Foucault nem a de Marin referem-
se principalmente ao texto literário; como seus
colegas Jacques Derrida e Roland Barthes,
ambos têm escrito (Marin o faz extensivamente)
a respeito de artefatos da cultura visual. O
método que usam, além do mais, é híbrido,
combinando na prática análise filosófica, literária,
científica e histórica. Apresentar seus trabalhos
num painel dedicado à aplicabilidade da crítica
‘literária’ à pintura sem reconhecer seu caráter
multidisciplinar seria desconsiderar a vitalidade
polêmica de suas observações. Pois a crítica pós-
estruturalista é adversária da crítica estabelecida,
concebida em oposição à ordem dominante que
isola o conhecimento em vários campos, cada
qual dotado de seu próprio objeto de estudo
e instrumentos metodológicos3 (tanto é que
Foucault fazia palestras sobre ‘história e sistemas
de pensamento’ enquanto Marin lecionava no
campo multidisciplinar da semiótica.)
Mais ainda, nem Alpers nem Fried alcançaram
compreender o mais importante – e mais radical –
Nicolas Poussin, The arcadian shepherds, c. 1638, óleo sobre tela, 87 x 120cm, Louvre, fonte MITlibrary
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011166 167TEMÁTICAS | CRAIG OWENS
aspecto do trabalho de Foucault e de Marin sobre
a representação: seu esforço, nas palavras de
Marin, “em explorar os sistemas de representação
como aparatos do poder”. Ambos trabalham
para desmascarar os interesses particulares com
os quais todas as representações compactuam,
suas afiliações a classes, ofícios, instituições. Por
exemplo, em Fantasia of the library, Foucault
discute a arte de Manet como uma “pintura
de museu” – pintura como “manifestação da
existência de museus e da realidade particular
e interdependência que pinturas adquirem em
museus”.4 E em seu mais recente trabalho,
Le portrait du roi, Marin trata a produção
artística da corte de Luís XIV, da arquitetura ao
entretenimento, como manifestações do poder
absoluto e ilimitado do rei.
Investigar sistemas de representação como
aparatos de poder não é estudar sua apropriação
por aqueles que estão no poder, com propósitos
políticos ou de propaganda – apesar do fato de as
histórias da arte e da arquitetura serem compostas
basicamente por tais monumentos à autoridade.
Também não é decifrar as mensagens ideológicas
que ali estão codificadas; Foucault e Marin devem
ser distinguidos daquela crítica ideológica marxista
ou assemelhada – que se dedica a interpretar as
características implícitas de uma obra. Foucault e
Marin não interpretam obras de arte se interpretar
significa atribuir-lhes um significado. Estão menos
interessados no que as obras de arte dizem
e mais naquilo que elas fazem; eles possuem
visada performativa da produção cultural. Assim,
Foucault e Marin investigam a representação não
simplesmente como manifestação ou expressão
de poder, mas como parte do problema social de
diferenciação, exclusão, incorporação e regulação.
Ambos trabalham para expor os modos pelos
quais a dominação e a sujeição estão inscritas
nos sistemas de representação do Ocidente.
Representação, então, não é – nem poderia ser –
neutra; ela é um ato – na verdade, o ato fundante
– do poder em nossa cultura.
A segunda parte deste ensaio será dedicada à crítica da representação pós-estruturalista e sua relevância para a produção artística contemporânea. Por ora, entretanto, quero considerar as implicações da resistência da história da arte ao pós-estruturalismo. Historiadores da arte deveriam dispor-se a aceitar Foucault e Marin, uma vez que eles contribuíram imensamente para nossa compreensão dos modos pelos quais a produção artística participa dos grandes processos sociais e históricos. Nos últimos anos tem havido crescente interesse na história da arte não apenas devido ao problema da representação visual per se, mas também à análise contextual ou circunstancial de obras de arte, em tópicos como iconografia Médici ou mecenato real, nos quais a arte está explicitamente vinculada ao poder. Por que, então, Foucault e Marin têm sido ignorados? Por que o trabalho deles é considerado “denso”, “difícil”, “irrelevante”? Seria, talvez, porque a história da arte – tomada, na perspectiva da frase de Panofsky, como disciplina humanística – está implicada na crítica pós-estruturalista?
Embora toda tentativa de caracterizar movimentos intelectuais esteja condenada de início a uma desoladora superficialidade, algumas palavras a respeito do impulso que motiva a crítica pós-estruturalista podem auxiliar a elucidar o grande divisor que a separa da história da arte. O pós-estruturalismo emergiu em clima social e político – a França após 68 – de grande recusa aos termos e condições do discurso humanista. A noção humanista de “homem universal” está calcada na imagem do homem europeu ocidental e sua civilização. No Ocidente toda diferença,
não conformidade, divergência da norma foi confinada ou expelida, todas as demais raças e culturas ficam marginalizadas.
A atual crise política e econômica do Ocidente – a emergência das nações do Terceiro Mundo, o movimento feminista, as crescentes restrições na vida socioeconômica, a catástrofe ecológica geral... – começou a expor o caráter excludente do discurso humanista; os críticos pós-estruturalistas trabalham para articular seu pressuposto básico e, ao mesmo tempo, para desarticulá-lo, para desmascarar suas contradições internas e sua cumplicidade com a ordem cultural e social dominante.
Assim, todos os pós-estruturalistas examinaram em vários graus sua própria implicação no sistema acadêmico que submete, e desse modo confina, o intelectual a uma disciplina. Se eles negam o valor de se manter vinculados aos limites de uma só área de competência, é porque veem as “humanidades” como produto de uma atividade sistemática de restrição engenhosamente criada para controlar a produção de conhecimento em nossa sociedade. Apesar de alegarem ser desinteressadas, as humanidades na verdade trabalham para legitimar e perpetuar a hegemonia da cultura ocidental europeia: a história da arte, por exemplo, é a história da arte da Europa ocidental, de sua origem na antiguidade a sua culminância nesse continente. Essa não é, como poderemos ver, a única maneira de a história da arte colaborar com o poder; na verdade, ela sinaliza a necessidade de reavaliação completa dos princípios humanistas sobre os quais a história repousa.
História da arte como disciplina humanista
As humanidades (...) não se confrontam com a tarefa de resgatar aquilo que de
outra feita foi embora, mas de reviver
aquilo que de outro modo estaria morto.
Erwin Panofsky, História da arte como
disciplina humanística
A história da arte é disciplina altamente
controversa, caracterizada por destrutivo debate,
competição e conflito pessoal; a veemência com
a qual historiadores da arte se digladiam só é
sobrepujada pelo entusiasmo com que eles se
unem para defender seus direitos de propriedade.
Assim, apesar das diferenças no que se refere
a sua produção (centrada principalmente no
debate a respeito da história), Alpers e Fried se
apresentam no MLA como uma frente unida. O ar
de congratulação mútua que impregnou o painel
não era, entretanto, primariamente questão de
decoro acadêmico, mas função do propósito que
tinham em comum naquela ocasião: apoiar os
fundamentos da história da arte contra a invasão
do pós-estruturalismo.
Essa reação é característica da recepção da
história da arte a escritos a respeito da arte, e não
apenas àqueles dos pós-estruturalistas, mas ao
de todos os não especialistas. Para citar apenas
um exemplo: no começo de seu trabalho crítico
[Art in America, mar.-abr. 1979] sobre a coletânea
de Schapiro a respeito da arte moderna, Linda
Nochlin apresentou, como prova da precedência
de ambos (do autor e da própria história da arte)
o debate de Schapiro com o filósofo existencialista
Martin Heidegger tendo como foco a pintura de
Van Gogh realizada por volta de 1886 ou 1887
(geralmente referida como Old Shoes [sapatos
usados]). A pintura em questão apresenta duas
botas bem surradas, senão descartadas, com
cadarços desfeitos e solas furadas. Em A origem
da obra de arte (1935-36) – que pode ser
considerada no mesmo patamar que A crítica do
juízo, de Kant, e Estética, de Hegel, como uma
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011168 169TEMÁTICAS | CRAIG OWENS
das três grandes reflexões sobre a arte na história
da filosofia moderna – Heidegger identifica essas
botas como um par de sapatos de camponesa,
propondo, em certa medida sentimentalmente,
que “na escura abertura do interior gasto dos
sapatos, fita-nos a dificuldade e o cansaço
dos passos do trabalhador”.5 Numa réplica a
Heidegger, publicada em 1968, Schapiro rejeita
essa interpretação considerando-a “fantasiosa”
e sugere que a pintura não representa de modo
algum um par de sapatos de uma camponesa, mas
os sapatos do próprio artista, e deve, portanto,
ser interpretada como (deslocado e metonímico)
autorretrato (o texto de Schapiro, On the still life
as self portrait as personal object é, desse modo,
nova proposição à teoria da natureza-morta
como autorretratismo, desenvolvida a partir de
seus escritos sobre Cèzanne).6
Em sua crítica, Nochlin crê ver no texto polêmico
de Schapiro não apenas a evidência de sua rara
coragem intelectual – qual outro historiador da arte
poderia desafiar o maior filósofo de nosso século? –,
mas também uma vitória da história da arte sobre
a filosofia. Descartando o que considera ser jargão
metafísico, ele registra que, “em empreendimento
para dotar a arte de poder metafísico, Heidegger
perdeu contato com aquilo que torna a arte
importante mais do que com o objeto que ela
representa (grifos meus). O grande serviço de
Schapiro a seu campo, então, terá sido advogar
em favor de dar a arte para a história da arte e ao
mesmo tempo afastá-la das mãos do filósofo.
Existe aqui, entretanto, uma ironia, pois Nochlin
supõe que Schapiro possui a última palavra
nesse debate, ignorando o fato de que o caso
Heidegger-Schapiro fora reaberto dois anos
antes, por outro crítico pós-estruturalista, Jacques
Derrida, em conferência proferida em Columbia
e publicada no ano seguinte em seu livro de
ensaios sobre a pintura.7 No texto intitulado
Restitutions/De la vérite en peinture, grosso modo
Restituições/Sobre a verdade na pintura, Derrida
não toma o partido de Heidegger contra o ataque
de Schapiro; nem propõe um julgamento com
relação às vozes conflitantes. Por outro viés, ele
demonstra não existir, na verdade, contestação
alguma. Dado o fato de Heidegger e Schapiro
estarem de comum acordo, confrontados com a
pintura, ambos questionam: “De quem são esses
sapatos?” “A quem eles fazem referência?” “Quem
eles representam?” Ambos supõem que, se for
para interpretar a pintura, eles devem atribuir as
botas a um ser humano específico, ao qual elas
devem pertencer. Assim, as duas interpretações
incorrem em substituição inicial: de uma pessoa
por uma coisa, do animado pelo inanimado, do
orgânico pelo inorgânico. Essa substituição não é,
entretanto, preliminar à interpretação da pintura –
ela é a interpretação da pintura. Uma vez que a
identidade do dono dos sapatos ficou estabelecida,
tudo o mais, forçosamente, volta para o lugar.
Por essa via Heidegger e Schapiro atingiram o
objetivo humanista definido por Panofsky para a
história da arte: ambos avivaram aquilo que de
outra forma teria permanecido morto, inerte, sem
sentido – apesar (ou talvez mesmo por essa razão)
do fato de que é precisamente essa inércia, essa
ausência de sentido que a pintura parece retratar.
Ambos procedem não apenas de acordo com o
princípio do humanismo, mas do historicismo
humanista, que deseja não só reconstruir o
passado, mas reanimá-lo e, em última instância,
revivê-lo.8 Tratando a obra de arte como algo
inerte, até que o historiador lhe dê um sopro
de vida – sentido –, Heidegger e Schapiro
exemplificam o que Derrida identifica como a
relação compensatória fundamental da história
da arte com seu objeto, sua tendência de sempre
Vincent van Gogh, A Pair of Shoes [ou Old Shoes] 1886, óleo sobre tela, 37,5 x 45cm, Museu Van Gogh, fonte Museu Van Gogh
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responder àquilo que se acredita ser a deficiência básica ou ausência existente na obra, que deve, portanto, ser suplementada pela interpretação.
Mais ainda, ambos os casos desta restituição – da “verdade” da pintura – efetuam-se de acordo com igual processo de atribuição (dos sapatos a seu dono). Um atributo é sempre uma propriedade. Na pintura e na escultura, atributos são objetos (usualmente inanimados) que pertencem a um sujeito específico e nos permitem estabelecer sua identidade; por essa via, nos permitem alcançar o papel do atributo na análise iconográfica (Panofsky: “se a faca que nos permite identificar São Bartolomeu não é uma faca, mas um saca-rolhas, a figura não é São Bartolomeu”). A análise estilística ou formal, porém, refere-se também à atribuição: não é apenas endereçada àquilo que se acredita serem as propriedades intrínsecas das obras; os peritos tratam as próprias obras de arte como atributo que nos permite identificar o artista (ou, menos frequentemente, o período histórico ao qual a obra pertence). No princípio, a história da arte foi concebida como a ciência da atribuição cuja função era resgatar as obras de arte medievais tardias e da renascença vinculando-as a seus autores. Apesar de as obras de arte em sua maioria já terem, até o momento, sido vinculadas aos respectivos autores, a resposta de Schapiro a Heidegger indica que o debate a respeito da atribuição – seja ele de pinturas a seus autores ou de objetos representados a seus supostos donos, mas em ambos os casos a uma pessoa específica – permanece ainda sendo o ponto central da especulação no campo da história da arte.
Em outro momento, Schapiro formula os princípios sobre os quais repousa sua atribuição dos sapatos de Van Gogh, e toda sua teoria de natureza-morta como autorretrato; seu vocabulário nos alerta para o que está em jogo
aqui (grifei as frases relevantes):
Natureza-morta (...) consiste em objetos
que (...) sejam artificiais ou naturais, estão
subordinados ao homem como objetos de
uso, manipulação e deleite; esses objetos
são menores do que nós, ficam ao alcance
da mão, devem sua presença e lugar a uma
ação humana ou propósito. Eles exprimem
o sentido humano de exercer poder sobre
as coisas ao lidar com elas ou utilizá-las.9
Nessa passagem, representação se comunica
com o poder por meio da posse. Assim,
podemos identificar os motivos da história
da arte, pelo menos enquanto ela é praticada
como disciplina humanística: um desejo pela
propriedade, que exprime o sentido do homem
de possuir ‘poder sobre as coisas’; um desejo de
probiedade, um compromisso com o respeito às
relações de propriedade; um desejo do “nome
próprio”, designando uma pessoa específica
que invariavelmente é identificada como objeto
da obra de arte: definitivamente um desejo de
apropriação. Pois o debate Heidegger-Schapiro é
basicamente uma contestação sobre a propriedade
da imagem. Como Derrida observa, ao atribuir as
botas a uma camponesa ou ao artista, Heidegger e
Schapiro estão na verdade propondo interpretá-las
segundo a perspectiva de cada um, pela própria
identificação de um deles com o camponês e do
outro com o homem cosmopolita.
Dizer “Esta (esta pintura ou estas botas) refere-se
a X” é dizer “isto se refere a mim” pela retomada
de “isto se refere a um self [mim mesmo]”. Não
só isto é propriedade de alguém, mas também
“isto é minha propriedade”. Pois entre as muitas
identificações de obras de arte aqui mencionadas,
não podemos deixar de atentar para a identificação
de Heidegger com a camponesa e de Schapiro com o
cidadão urbano, o primeiro com o nativo enraizado,
o último com o desenraizado imigrante”.10
Representação
Toda arte é “produção de imagem” e
toda produção de imagem é criação de
substitutos. E. H. Gombrich, Meditações
sobre um cavalinho de pau.
O que a apropriação da pintura em Heidegger
e Schapiro sanciona é uma perspectiva da
representação como substituição: a imagem é
tratada como dublê ou substituto de alguém que
por alguma razão não aparece. Os historiadores
da arte sempre tenderam a definir representação
desse modo, apesar da asserção de Alpers
relativa à falta de um conceito operativo de
representação, sendo, assim, incapazes de lidar
com obras como As meninas – obras que ela crê
serem “autoconscientes e ricas no que se refere
a aspectos representacionais para os quais os
estudos literários têm estado mais afinados”. Ela
atribui essa deficiência – que propõe suprir – ao
projeto de história da arte iconológico como
formulado por Panofsky na introdução ao Estudos
de iconologia, especialmente, à distinção que ele
faz entre conteúdo pictórico ou significado de um
lado e forma de outro:
Quando um conhecido me encontra
na rua e tira o chapéu, o que eu vejo
de um ponto de vista formal nada mais
é do que a troca de certos detalhes no
interior de uma configuração formal que
faz parte de um padrão geral de cor, linhas
e volumes que constitui o meu campo de
visão (...) No entanto, minha compreensão
de que tirar o chapéu tem relação com um
cumprimento está relacionado a um campo
de interpretação de outra natureza11
Alpers discorda quando Panofsky transfere o
resultado desse encontro para a pintura: “O que
Panofsky escolhe para ignorar é que o homem
não está presente, mas representado na pintura.”
Mesmo se nessa passagem Panofsky falha em
tratar o problema da representação, não se pode
concluir por essa razão, que ele não possua
uma teoria da representação. Como seu ensaio
Perspectiva como forma simbólica evidencia,
Panofsky define representação como atividade
simbólica, em oposição à cópia da experiência
visual (representação como imitação ou ilusão).
Alpers atribui essa segunda perspectiva a
Gombrich, alegando que sua famosa frase
“Fazer vem antes de combinar” indica que ele
compreende representação como ilusão e, por
essa razão, sobretudo como questão de destreza
imitativa. No entanto, a citação no início deste
texto indica que ele também compreende a
representação como atividade simbólica, a criação
de substitutos (é isso o que na verdade “fazer antes
de combinar” significa). Em Meditações sobre um
cavalinho de pau, Gombrich opõe sua própria
visão de representação àquilo que ele identifica
como a “visão tradicional”: representação como
imitação. Ilusão, segundo Gombrich, é algo
apenas secundário, que deve ser acrescido ou
ultrapassado pela representação, não llhe sendo,
porém, de forma alguma essencial.
Pode-se demonstrar que a história da arte sempre
definiu representação em relação a estas duas
atividades – substituição ou imitação – e que
elas correspondem perfeitamente ao que em
idioma alemão se designa como Vorstellung –
representação no sentido de atividade simbólica
– e Darstellung – apresentação no sentido de uma
apresentação teatral. (Assim, a distinção poderia
ser primariamente linguística.) A primeira, ou a
relativa ao modo simbólico, é a que se refere à
substituição; a imagem é concebida como algo
que ali está em lugar de outro, ou de algo que
foi ali colocado e por essa razão ali permanece
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011172 173TEMÁTICAS | CRAIG OWENS
como compensação da ausência. A segunda, ou
aquela da modalidade teatral, é a que se refere
à repetição; a imagem é definida como réplica
da experiência visual, nela o artista trabalha para
promover a ilusão do tangível, presença física dos
objetos que ele representa. Assim, os historiadores
da arte sempre situaram a representação em
termos de polos de ausência e presença, os quais,
como Derrida demonstrou, constituem a oposição
fundamental sobre a qual a metafísica ocidental
está baseada.12 Necessita-se, então, não de um
conceito de representação (pois já possuímos
dois), mas de uma crítica a ele.
Como Gombrich testemunha, esses dois modos de
representação estão longe de chegar a conciliar-
se; os historiadores da arte só têm introduzido
o conceito de imitação para rejeitá-lo como não
essencial, suplementar, ou até mesmo errôneo.
Desse modo, Wolfflin prefacia sua discussão em
The Most General Representational forms com
a indicação: “Constitui erro para a história da
arte trabalhar com a tosca noção de imitação
da natureza, como se isso fosse meramente um
processo de obter mais perfeição.”13 A imagem
ilusionista é suspeita de fraude, de tentar passar
por algo que não é (a experiência visual direta);
motivados por platônica desconfiança, os
historiadores da arte tendem a deixar em suspenso
ou colocar sob questão o referente; eles trabalham
para distinguir as imagens dos objetos que elas
representam, de modo a restringi-las àquilo que
lhes é específico, próprio da representação em si.
(Desse modo, Schapiro declara: “Eu não encontro
nada na ingênua descrição de Heidegger sobre os
sapatos que Van Gogh representa que pudesse
ser imaginado a partir de um verdadeiro par de
sapatos camponês.”)
Estamos tão habituados a essa formulação do
problema da representação – através de obras
de arte que chamam nossa atenção para suas
propriedades materiais e através de uma história
da arte que nos ensina a enxergá-las como
combinações mais ou menos harmônicas ou
dissonantes de linhas e cores –, que podemos ter
dificuldade em apreciar o que Foucault e Marin
identificam como a condição absolutamente
fundamental da representação, pelo menos como
foi concebida no século 17: sua transparência
(que não é o mesmo que ilusionismo). No sistema
clássico de representação como foi formulado
pelos lógicos de Port-Royal, o signo é inteiramente
orientado e dependente daquilo que ele significa.
“Ele é característico”, observa Foucault, “tanto
que o primeiro exemplo de signo oferecido pela
Lógica de Port-Royal não é a palavra ou o grito, ou
o símbolo, mas a representação gráfica e espacial
– o desenho como mapa ou imagem. Isso porque
a imagem não possui nenhum conteúdo além
daquele que ela realmente representa.”14
Alegar que a representação é transparente para
com seu objeto não é defini-la como mimética ou
ilusionista – mapas, por exemplo, não estimulam
a experiência visual. Antes, isso significa que
cada elemento da obra de arte é significante,
isto é, refere-se a alguma coisa que existe,
independentemente da representação. Assim,
“transparência” designa perfeita equivalência
entre a realidade e sua representação; significante
e significado espelham-se um no outro, um
simplesmente é o duplo do outro. No entanto,
essa transparência só pode ser alcançada através
da estratégia da ocultação: por exemplo, a
lendária transparência do plano pictórico tal
como prescrito em Da pintura, de Alberti, era
alcançada pelo apagamento do suporte material
da imagem. Assim, Marin escreve a respeito de
uma tradição pictórica específica, que vigora
da Renascença pelo menos até o século 17,
expressa na instituição da perspectiva monocular
(a perspectiva é, literalmente, ver através, per-
specere, ‘trans-parência’): “Os elementos
materiais da representação – e precisamente os
traços deixados pelo trabalho do pintor, devido a
sua atividade transformadora na pintura – devem
ser apagados ou ocultados por aquilo que o pintor
representa, por sua ‘realidade objetiva’”. Assim,
quando Foucault e Marin cuidam do problema da
representação visual, eles trabalham para articular
– tornar visível – aquelas estratégias implícitas,
invisíveis e táticas pelas quais a representação
alcança sua putativa transparência; nenhum dos
dois está interessado no que a representação
revela, mas naquilo que ela oculta.
O lugar do observador
Um texto é feito por muitos escritos,
desenhado por muitas culturas e lançado
por mútuas relações de diálogo, paródia,
contestação, mas existe um lugar no qual
essa multiplicidade está focada e esse lugar é
o leitor, e não, como até aqui foi dito, o autor.
Roland Barthes, A morte do autor
O homem de Panofsky na rua de fato nos alerta
para aquilo que a representação clássica ocultaria,
aquilo pelo que alcança a transparência essencial:
o fato de pinturas serem mensagens endereçadas
ao espectador com a intenção de influenciar suas
crenças ou modificar seu comportamento de
um modo ou de outro. Elas possuem o que em
linguística se denomina um polo de emissão e um
polo de recepção; esses dois polos constituem o
“aparato representacional” da pintura. Embora
esse modelo representacional da prática pictórica
não deixe de ter problemas (em parte porque
parece ressuscitar a desacreditada categoria da
intencionalidade), nos sensibiliza para o fato
de que a relação do observador com a obra de
arte é prescrita, apontada antecipadamente pelo
sistema representacional.
Em razão de as obras de arte tenderem,
frequentemente, a apagar esses dois polos em
favor da mensagem que apresentam, a pesquisa
em história da arte os tem frequentemente
negligenciado; Alpers e Fried, entretanto, devem
ser incluídos entre os poucos historiadores da arte
que recentemente começaram a prestar atenção
não aos problemas de estilo ou iconografia, mas
ao lugar do espectador diante da obra de arte,
movendo-se dessa forma para o território do
desconhecido, seja ele no terreno dos estudos
literários ou da estética da recepção.
Existe, entretanto, pelo menos um precedente
no campo da história da arte em razão de sua
atenção ao papel do espectador, que é o trabalho
de Leo Steinberg. A sensibilidade de Steinberg em
relação ao espectador transparece em toda a sua
produção. Em The philosofical brothel, no qual ele
traça a evolução da obra Demoiselles d’Avignon,
de Picasso, o tratamento dado à relação que a
pintura causa no espectador repousa no que é,
em última instância, uma metáfora linguística: o
modo de endereçamento do pintor. Os esquetes
iniciais da obra mostram um homem jovem
entrando num bordel pela direita; na pintura
final, Steinberg comprova, o papel dessa figura,
que aparece comandando a cena, foi transferido
para o espectador. Assim, o momento decisivo da
criação de Demoiselles, o ponto no qual sua mise
en scène se arranja, é resultado de uma mudança
da narrativa, ou de um modo de endereçamento
na terceira pessoa para outro na segunda pessoa,
no qual a pintura ela mesma confronta, na
verdade, proposições ao espectador.
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011174 175TEMÁTICAS | CRAIG OWENS
“Nenhuma outra pintura”, Steinberg registra,
“(excetuando As meninas) trata o espectador
com comparável intensidade”.15 E, retomando
a discussão de Alpers a respeito de As meninas,
descobrimos que ela apresenta a mesma
metáfora linguística, ainda que tenha procurado
demonstrar, contra Foucault, que elas foram
planejadas a partir de tradições pictóricas
específicas. Em sua visão, As meninas engaja dois
tipos de representação visual, “cada um deles
estabelece um modo diferente de relação entre o
espectador e a visão de mundo ali expressa”. A
caracterização inicial de Alpers desses dois modos
é tributária das polaridade há muito existentes
na história da arte. O primeiro modo está no Sul,
exemplificado pelas convenções de perspectiva
de Alberti: “O artista se presume no lugar do
espectador na frente do mundo pintado” – isto
é, tanto fora quanto antes dele. O segundo modo
está no Norte, é descritivo; o mundo oferece
imagens dele mesmo (como num espelho ou
câmera escura) “sem a intervenção da mão
humana”, e assim “é concebido como se existisse
antes do artista-espectador”.
Quando, porém, Alpers reitera a diferença entre
esses dois modos numa só frase, a metáfora
linguística vem à superfície: “O artista diante
do primeiro tipo de pintura declara ‘eu vejo o
mundo’; diante do segundo, antes de tudo,
mostra que ‘é visto’.” A distinção de Alpers
corresponde perfeitamente à distinção que Émile
Benveniste faz entre enunciado discursivo e
histórico (ou narrativo) (discours/histoire) em sua
obra Problems of General Linguistics [Problemas
de linguística geral]. Benveniste divide a linguagem
em dois “sistemas enunciativos”. O primeiro, da
ordem do discurso, é caracterizado pelo uso de
pronomes na primeira e segunda pessoas, além
de formas adverbiais como ‘aqui’, ‘lá’, ‘agora’, e
‘então’, que se referem a situações espaciais e
temporais em que os atos discursivos ocorrem.
Enunciados discursivos então pressupõem
um falante e um ouvinte, além de apresentar
situações nas quais “o primeiro busca de algum
modo influenciar o último”.16
Enunciados históricos (ou narrativos), por outro
lado, são caracterizados pela supressão de toda
referência a ambos, falante e ouvinte, como também
a situações de elocução espacial e temporal.
Para que haja narração [Benveniste
escreve], é necessário e suficiente que o
autor permaneça fiel a sua intenção como
historiador e abandone o que é exterior à
narração dos eventos (discurso, reflexões
pessoais, comparações)... Os fatos são
descritos do modo que ocorreram,
da maneira como vão gradualmente
aparecendo no andamento da história.
Ninguém está falando aqui. Os eventos
parecem narrar a si mesmos.
Embora Alpers não reconheça essa correspondên-
cia, ela prossegue lendo As meninas como combi-
nação – “de uma forma encantadora, porém fun-
damentalmente instável e insolúvel” – desses dois
modos de representação-enunciação. Assim ela
propõe que a relação do observador com a cena
representada é profundamente paradoxal.
O mundo observado que é anterior a
nós é precisamente o que, ao olhar para
fora (e aqui o artista se junta à princesa
e a parte de seu séquito) nos confirma
ou reconhece. Mas se nós não chegamos
a nos posicionar diante desse mundo e
perscrutá-lo, a antecedência do mundo
visto não terá sido definida em primeiro
lugar. Na verdade, para fechar-se, o mundo
visto está diante de nós porque nós (da
mesma maneira que o rei e a rainha estão
refletidos no espelho distante) somos
aqueles que comandam sua presença.
Essa circularidade, conclui Alpers, consiste no que
torna tão “extraordinário” As meninas.
Posto isso, onde a interpretação repousa? Será
essa circularidade entre observador e observado
o que verdadeiramente define a originalidade que
Velázquez alcança em sua pintura? Isso dá conta
adequadamente da especificidade de As meninas?
E se se pudesse demonstrar que essa combinação
de dois modos antitéticos de representação-
enunciação não fosse peculiar a As meninas ou
ainda a Velázquez, mas existisse também em
outras pinturas do século 17? E se isso não fosse
peculiar só à pintura, mas também compartilhada
pela literatura? (De fato, Marin demonstra
que as regras da gramática e da lógica, como
formuladas no século 17, atribuem a coexistência
desses dois modos aparentemente incompatíveis
em qualquer elocução.) E se, finalmente, essa
circularidade que Alpers encontra em As meninas
definisse em última instância o que Foucault
chama de episteme clássica – o horizonte no
qual todo o conhecimento está encerrado, o
limite que circunscreve aquilo que foi possível
dizer, representar, e mesmo pensar no século 17?
Então a conquista de Velázquez não poderia mais
ser descrita como combinação original de dois
modos distintos de representação, mas como
o desdobramento, na superfície de sua tela, do
próprio sistema clássico de representação – que é
o que Foucault lhe tem atribuído todo o tempo.
Representação e propriedade
Tomando o povo como sua propriedade
privada, o rei está apenas declarando que
o dono da propriedade privada é o rei.
Marx, A contribution to the Critique of
Hegel’s Philosophy right17
Em Outros critérios, Steinberg descreve As
meninas como um “inventário das três possíveis
funções que se pode distinguir em relação ao
plano pictórico” – janela, espelho e superfície
pintada –, exibidas em sequência na parede de
fundo do estúdio de Velázquez no palácio. Esses
três elementos – o primeiro e o último deles
reiterados na janela implícita e tela invertida que
figuram na cena teatral – representam as múltiplas
funções apresentadas na própria superfície de As
meninas: uma janela através da qual percebemos
a cena e o espelho através do qual ela é percebida
(pelo pintor representado dentro dela). Steinberg
nos lembra, entretanto, que “os interiores do
séulo 17 em geral justapõem o vão de uma porta
aberta ou visada de uma janela com a moldura
de uma pintura e, próximo a elas, um espelho
preenchido por algo que está ali refletido.”18 Essa
caracterização da pintura como “inventário”,
desse modo, contradiz a qualificação que
Alpers atribui a Velázquez “encantadora porém
fundamentalmente instável e insolúvel”. O que
Alpers identifica como específico dessa pintura
Steinberg toma como aquilo que em geral é típico
da pintura do século 17.
Segundo Marin, a coincidência numa única obra
de arte dos mesmos dois modos aparentemente
incompatíveis – pintura como janela e como
espelho – não é apenas típico, mas o próprio
fundamento sobre o qual o sistema clássico de
representação foi erigido. Assim, ele define seus
“axiomas contraditórios”:
(1) A superfície representacional é uma janela
transparente através da qual o espectador,
homem, contempla a cena representada na tela
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011176 177TEMÁTICAS | CRAIG OWENS
como se visse uma cena real representada no
mundo; (2) mas, ao mesmo tempo, a superfície –
na realidade uma superfície e um suporte material
– é também um aparato refletor no qual objetos
reais são pintados.
O primeiro axioma, pintura-como-janela
(equivalente ao que Benveniste denomina nível
discursivo), atribui a imagem a um tema humano
específico – o “olho/eu” que ocupa o ponto
de vista privilegiado no sistema de perspectiva
monocular – que tem sido substituído por coisas;
sua representação desse sujeito pode então
tomar a representação como sua, como um
dos modos de sua visão, de seu pensamento.
Entretanto, no segundo axioma, pintura-como-
espelho (equivalente ao nível histórico) esse
sujeito observador desaparece, e o mundo,
por essa razão parece representar a si próprio
sem a intervenção de um artista. O segundo
axioma, então, postula perfeita equivalência
entre realidade e representação, de modo que
as representações “possam ontologicamente
aparecer de modo semelhante às coisas que elas
representam, ordenadas num discurso racional e
universal, o discurso da realidade em si”. É através
da supressão de toda evidência do aparato
de representação, então, que é assegurada a
reivindicação do clássico status autoritário da
representação, de possuir alguma verdade ou
valor epistemológico.
(O papel do espelho em estabelecer valor de
verdade da representação pictórica é também
discutido por Steinberg numa conferência sobre
As meninas, escrita em 1965 e apresentada
muitas vezes, porém só recentemente publicada:
“Descobrimos que o plano de visão cumulativo de
Velázquez configura duas coisas distintas como
uma única: o que o rei e a rainha enxergam do
lugar em que se encontram e o que nós vemos
do nosso – a coisa real e a sua pintura – o espelho
revela como idênticas, como se fosse patente o
fato de que a obra de arte na tela espelhasse a
verdade que a capacidade de reflexão de nenhum
espelho pode ultrapassar. Nesse sentido, As
meninas pode ser considerada responsável por
celebrar a verdade da arte do pintor”).19
A fim de exemplificar como esses axiomas
contraditórios podem coexistir numa única
pintura, Marin sintetiza a observação de Benveniste
de que elocuções históricas são caracterizadas
pela supressão de todos os indícios de emissão
e de recepção com a hipótese de Freud de que
toda negação na verdade constitui uma (forma
mascarada de) afirmação. Quando um paciente
diz “você me perguntou quem poderia ter sido
essa pessoa no sonho. Não era minha mãe”,
Freud comenta, “nós emendamos: ‘Então ela era
sua mãe’”.20
Assim, Marin deduz aquilo que ele chama de
“estrutura-negação” da representação clássica:
A tela como suporte e como superfície não
existe. Pois pela primeira vez na pintura
[Marin está discutindo a construção da
perspectiva em Brunelleschi] o homem
encontra o mundo real. Mas a tela
como suporte e sua superfície existem
para operar a duplicação da realidade:
a tela como tal é simultaneamente
pressuposta e neutralizada, ela tem de ser
técnica e ideologicamente aceita como
transparente. Invisível e ao mesmo tempo
a condição necessária da visibilidade;
refletir a transparência em teoria define o
plano de representação.
Essa simultânea afirmação e negação do aparato
representacional assegura a transparência da
representação clássica e, ao mesmo tempo, define
o status (ontológico e epistemológico) do objeto
de representação. Pois se, no primeiro axioma, a
representação é atribuída a uma pessoa específica
que “se apropria de coisas, da realidade como algo
seu, sua realidade”, o segundo axioma demonstra
que “essa pessoa não está situada no tempo e
no espaço com toda as suas determinações, mas
atua como um espírito universal e abstrato cuja
única função é fazer juízo das coisas e afirmá-las.”
(Na teoria política clássica, é claro, essa função era
atribuída somente ao rei, o juiz imparcial e universal.)
No sistema clássico de representação, então,
o objeto da representação é suposto como
absolutamente soberano. Em outras palavras, a
pessoa que representa o mundo foi transformada,
pelo ato da representação, de um ser subjetivo
enredado no espaço e no tempo – pelos quais é de
certo modo possuído – em Mente transcendente
e objetiva que se apropria da realidade para si
mesma e, por apropriar-se dela, a domina. Assim
Marin descreve essa operação:
Podemos compreender esse processo como aquele no qual um sujeito inscreve-se a si mesmo como o centro do mundo e transforma-se em coisas pela transformação de coisas em sua própria representação. Tal pessoa tem o direito de possuir as coisas legitimamente porque substituiu por coisas os seus signos, que a representam adequadamente – portanto, dessa maneira, a realidade equivale exatamente a seu discurso.
A representação é, então, definida como
apropriação e, desse modo, se constitui como
aparato de poder. A análise de Marin acaba
aqui; o tratamento que ele dá à representação
clássica pode, entretanto, estar delimitado à
vida social e econômica do século 17, a fim de
evidenciar a função essencialmente política à
qual a representação serve. Não devemos supor que apropriação equivale automaticamente à propriedade apesar da famosa definição de Locke de 1960: “Qualquer um que retire do Estado algo que a natureza proveu e tome para si acrescentando-lhe algo que seja seu, por meio disso, torna-o sua propriedade.”21 Antes de Locke, entretanto, os conceitos de apropriação (Labor) e propriedade eram mutuamente exclusivos: propriedade era adquirida através de herança, conquista ou divisão legal, mas nunca através de trabalho (associado não à propriedade, mas à pobreza).22 A ideia de Locke de que o homem tem direito natural à propriedade criada por seu trabalho foi assim uma formulação radical e certamente não corresponde à realidade econômica e política do século 17.
No modo feudal de produção, o trabalhador não tinha nenhum direito legal de usufruir de seu próprio trabalho, o que cabia ao dono da terra. Ter a propriedade da terra equivalia a ter poder político; a economia e a política eram inextricavelmente entrelaçadas.23 Entretanto, nas monarquias absolutas que emergiram do modo feudal de produção para dominar a Europa do século 18 – e eram por isso contemporâneas ao sistema clássico de representação – os interesses políticos e econômicos eram, pelo menos teoricamente, distintos.24 A principal característica do estado absolutista foi ter restabelecido a lei romana, que rigorosamente distinguia os direitos econômicos determinados pela propriedade privada da autoridade absoluta investida pelo Estado. A lei civil romana (jus) que regulava as transações econômicas entre os homens, era baseada no caráter absoluto e incondicional da propriedade privada; a lei pública romana (lex), entretanto, que regia as relações políticas entre o Estado e seus súditos, contrabalançava o caráter incondicional da propriedade privada com a natureza formalmente absoluta da soberania imperial.
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011178 179TEMÁTICAS | CRAIG OWENS
Ao reviver a lei romana, os Estados absolutistas
do início da Europa moderna reintroduziram a
separação entre as esferas econômica e política:
o poder foi consolidado numa monarquia central,
cuja soberania era absoluta; ao mesmo tempo,
títulos de propriedade da aristocracia feudal
ganharam força. O mesmo processo histórico
que reduziu o poder político da aristocracia
então, compensou essa perda garantindo-
lhe ganhos em propriedade sem precedente.
Essa foi a contradição principal sobre a qual a
estrutura social do Estado absolutista se assentou
– contradição que em última instância o levou
à queda. A soberania absoluta do rei deu-lhe
o poder de anular os privilégios medievais e
ignorar os direitos de propriedade tradicionais;
paradoxalmente, foram esses privilégios e direi-
tos que ganharam força com a ascensão do
absolutismo. Como consequência, a história do
Estado absolutista é acima de tudo a história
do conflito entre a monarquia e a aristocracia
pelo poder político.
Em Tristes trópicos Claude Lévi-Strauss propõe
que as obras de arte possam ser interpretadas
como soluções imaginárias de contradições
sociais reais;25 o sistema clássico de representação
é de fato constituído dessa forma, de modo a
precisamente facilitar essa solução. Contraditórios
entre si, seus dois axiomas reproduzem os dois
polos antitéticos – propriedade/soberania – o que
define as contradições sociais que atravessam o
Estado absolutista. Na representação clássica,
essa autonomia é resolvida através da dialética da
afirmação e negação, pela qual as reinvindicações
conflitantes por propriedade e soberania são
forçadas a coincidir. Pois o axioma que define
representação como propriedade de um indivíduo
específico depende, para sua legitimação, daquilo
que qualifica representação como a expressão do
abstrato, verdade universal. E não existia verdade
mais universal do que o fato, indiscutível na
ideologia da regra absolutista, de que a supremacia
absoluta do soberano é conferida por Deus.
É importante mencionar que os princípios feudais
de domínio territorial e, com eles, o poder político
investido na propriedade da terra persistiram
mais fortemente durante a época do absolutismo
na Espanha, onde, em última instância, eles
contribuíram para o colapso da dinastia dos
Habsburgo.26 E, agora, talvez possamos começar
a compreender as implicações das colocações
de Foucault a respeito de As meninas bem no
início de sua análise da episteme clássica, tanto
quanto de sua enigmática asserção de que a
pintura de Velázquez representa a ausência de
um sujeito na representação – “da pessoa com a
qual a imagem se assemelha e da pessoa em cujos
olhos a imagem é apenas uma semelhança”. Em
As meninas esses dois objetos tornam-se invisíveis
para coincidir.
A pintura, claro, está focada num ponto central
– definido pela arquitetura dos gestos e dos
olhares que atravessam e tornam implícita a
construção perspectivada do espaço –, que é
claramente ocupado pela pessoa para a qual a
cena existe, que pode tomar essa representação
como sua (essa pessoa é também o modelo cuja
imagem Velásquez presumivelmente traçou na
tela antes de pintar). Esse ponto focal da pintura,
no entanto, não está propriamente inserido na
pintura, mas lhe é externo – como deve ser se as
observações de Marin sobre a posição do objeto
de representação clássica estiverem corretas.
Pois se, através da representação, o objeto é
transformado em algo abstrato, uma mente
transcendente “cuja única função é julgar as coisas
e afirmá-las”, então ele nunca pode aparecer
em sua própria representação (essa ausência do
sujeito da cena de representação é reconhecido,
Foucault supõe, dentro da própria pintura pelo
fato de que só pelo lado reverso da tela, no qual
seu retrato presumivelmente aparece, é visível
pelo espectador de As meninas”.
Além disso, seguindo a hipótese de negação-
estrutura de representação clássica, a elisão do
objeto de representação deve também significar
sua afirmação. Pois apesar de a pessoa em razão
da qual a representação existe nunca poder ser
encontrada na própria representação, Foucault
acredita que ela de qualquer modo ali se reconhece
de modo deslocado, na forma de uma imagem ou
reflexo”.27 E de fato, em As meninas a figura que
ocupa a posição de observador privilegiado – e
cujo olhar portanto precede o do pintor – está
refletida na própria pintura pelo espelho que
rompe a continuidade da parede do fundo da
pintura de Velázquez do estúdio no Palácio. O
espelho não apenas estabelece a identidade da
pessoa que ali está; ele também define o ponto
que ele ocupa como soberano absoluto. Pois ali
está, como indica o subtítulo de um dos capítulos
seguintes de Foucault, “O lugar do rei”.
Embora esse ponto central do quadro também
pudesse ser ocupado pelo pintor, posicionado
na frente de As meninas para pintá-la, e pelo
espectador que contempla a imagem, nem o
artista e nem o espectador poderiam usurpar
o privilégio e o poder que pertencia somente
ao soberano. Pois a pintura não representa a
visão do pintor e sim a do rei; Velázquez parece
ter abdicado de seu próprio papel de autor da
imagem, em favor da autoridade superior que o
sustenta e sua arte. Na realidade, não precisamos
identificar Filipe IV como derradeiro “autor” de
As meninas, tanto quanto Marin, no caso de The
Arcadian Shepherds, conferiu não a Poussin, mas
ao cardeal Rospigliosi, que comissionou a pintura e
criou seu programa junto à frase “Et in Arcadia ego”
(a autoria de Rospigloisi é reconhecida, argumenta
Marin, dentro da própria pintura pelo fato de o dedo
indicador do pastor que tenta decifrar a inscrição da
tumba apontar para a letra “r” na palavra Arcadia”
que é também a letra central da inscrição e está
localizada no exato centro geométrico da pintura.)
Tampouco o espectador de As meninas usurpou o
lugar do rei; para isso nós teremos que esperar até
o final do século 18, quando as regras absolutistas
serão dissolvidas e o homem, como nos fala
Foucault na mais audaciosa hipótese apresentada
em A ordem das coisas, fará sua primeira aparição
no palco da história. O que nos é oferecido a
contemplar em As meninas está delimitado,
circunscrito pela visão do rei; nós vemos nem mais
nem menos do que ele vê (é isso, eu acredito,
que Foucault quer dizer quando declara que As
meninas descreve os limites da representação
clássica.) De fato, a pintura atua como armadilha
para o olhar do espectador, o qual é convocado
pelos olhares do pintor e da princesa, apenas para
ser sujeitado, através deles, ao olhar do rei.
Modernidade lamuriante
O princípio de realidade, ao demonstrar
que o objeto do desejo não existe mais,
requer que doravante toda a libido seja
afastada de sua ligação com esse objeto.
Contra essa pretensão um conflito ocorre
observa-se de modo universal que o
homem nunca abandona voluntariamente
a posição-libido, nem mesmo quando um
substituto já o convida.
Freud, Mourning melancolia
A discussão de Marin sobre a estrutura-negação
da representação clássica não foi introduzida
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011180 181TEMÁTICAS | CRAIG OWENS
no MLA por Alpers, mas por Michael Fried, cujo
trabalho recente também foi dedicado às relações
pintura/espectador – mas em ciscunstâncias
históricas radicalmente diferentes. Em seu livro
Absortion and theatricality Fried investiga o
papel do espectador no final do século 18, isto é,
precisamente no momento em que a transparência
da representação clássica e, com ela, sua pretensão
à verdade foram perdidas. Como observa Jean
Clay em seu livro recente Romanticism, no
final do século 18 a “transparência [do plano
pictórico] começou a tornar-se opaca, a superfície
[representacional] se consolidou, o véu [de Durer]
contraiu sua malha.28 Como observa Foucault, “O
limiar entre o classicismo e a modernidade (...)
foi definitivamente cruzado quando as palavras
deixaram de se remeter às representações e
proporcionar um quadro espontâneo para o
conhecimento das coisas”.29
Entretanto o tratamento que Fried oferece ao
problema do espectador no limiar da modernidade
é bastante similar à discussão de Marin sobre esse
problema no século 17:
O reconhecimento de que as pinturas são
feitas para ser vistas [escreve Fried] e por
essa razão pressupõem a existência de um
observador leva a buscar a atualização de
sua presença (...) Ao mesmo tempo (...)
será sempre pela negação da presença do
observador que isso poderá ser alcançado:
só quando se estabelece a ficção de sua
ausência ou não existência é que o lugar
dele diante da pintura e de encantamento
com relação a ela pode ser assegurado.30
Fried argumenta, entretanto, que foi apenas “por
volta do final do século 18’’ e só na França que “a
existência do observador − a principal condição
de as pinturas terem sido feitas para ser vistas −
emergiu como problemática para a pintura como
nunca tinha ocorrido antes”. Não surpreende,
então, que ele pudesse acusar de “a-histórica”
a hipótese de Marin, alegando que seu uso
da distinção estruturalista história/discurso de
Benveniste seria indicativo de busca de um
operador trans-histórico [transhistorical operator]
que viria a definir a “essência” da pintura histórica.
(Aqui, Fried apenas reitera a agora tão familiar
acusação de que o estruturalismo é a-histórico;
entretanto, a análise da estrutura social do Estado
absolutista demonstra o caráter histórico da
análise de Marin.)
Fried questiona a suposição de Marin de que,
quando uma figura ou grupo de figuras numa
pintura olha para o observador, como se percebesse
sua presença diante da tela (como em As meninas),
é o aparato representacional que está sendo
reconhecido. Esse reconhecimento, argumenta
Fried, também é historicamente determinado;
cita como evidência a análise da recepção da obra
Fils ingrat (1777), de Greuze, como realizada pela
crítica contemporânea, na qual a presença de um
menino, que parece olhar para fora da tela em
direção ao espectador, não foi interpretada como
algo que interrompe a continuidade narrativa da
pintura. Mas quando Marin observa que, em The
Arcadian Shepherds, de Poussin, ninguém parece
se dirigir diretamente ao espectador – “exceto pela
existência da pintura e o fato de estarmos olhando
para ela, nada na mensagem icônica adverte sobre
sua emissão ou recepção; ou seja, nenhuma figura
está nos olhando como espectadores, ninguém se
remete a nós como representante do emissor da
mensagem” – Fried objeta que Marin não dá atenção
ao que Marin enxerga como “a condição primordial
de que pinturas são feitas para ser contempladas”.
Como, porém, essa “condição principal”
difere do operador trans-histórico que Fried
categoricamente rejeita? A resposta de Fried sem
dúvida seria que mesmo essa condição só se
torna “primordial” quando concebida no final
do século 18 (a reflexão de Benjamin a respeito
do valor de culto das obras de arte primitivas, que
não eram destinadas à exibição, em seu trabalho
A obra de arte na época da reprodutibilidade
técnica, poderia embasar esse argumento.) Mas
como pode uma convenção ser ao mesmo tempo
primordial e histórica, e por que o tratamento
que Fried confere às convenções representativas
do século 18 seria mais histórico do que a
discussão dessas mesmas convenções como eram
concebidas no século 17?
O ceticismo de Fried com relação à existência de
todas essas constantes pode ser remetido àqui-
lo que ele esboçou em suas críticas do final dos
anos 60, especificamente às notas de rodapé
que complementam o texto “Arte e objetidade”,
um ataque à escultura minimalista recorrente-
mente citado.
Nessas notas de rodapé, Fried emenda a asserção
de Clement Greenbereg de que “a essência
irredutível da arte pictórica consiste em apenas
duas convenções constitutivas ou normas: a
planaridade e a delimitação da planaridade”.
Admitindo que “em termos gerais isso é
indubitavelmente correto”, Fried continua:
(...) a planaridade e a delimitação da
planaridade não devem ser pensados como
‘essência irredutível da arte pictórica’ mas
antes como algo semelhante a condições
mínimas para que algo possa ser visto
como pintura (...) a questão crucial não é
o que essas condições mínimas e, pode-
se dizer, atemporais são, mas o que, em
determinado momento, é capaz causar
convicção, de triunfar como pintura.
Isso não significa dizer que a pintura
não tenha essência; é propor que essa
essência, isto é, aquilo que compele à
convicção, é de modo geral determinado,
e as mudanças estão aí sempre para
comprová-lo, pelas principais obras do
passado recente. A essência da pintura
não é algo irredutível.31
A busca de Fried de um historicismo radical
parece, pelo menos inicialmente, coincidir com
a percepção de Nietzsche – que tem sido crucial
para o trabalho de Foucault desde 1970 – de
que aquilo que permanece por trás das coisas
“não é uma linha do tempo ou essência secreta,
mas o segredo de que as coisas não possuem
essência ou a essência delas foi fabricada
como colcha de retalhos a partir de formas
exteriores”.32 Enquanto ambos, Nietzsche
e Foucault, apresentam a essência como
“invenção das classes dominantes”, ou seja,
como instrumento de poder, Fried os neutraliza
quando alega que ela só se transforma em
“relação às obras importantes do passado”.
Embora os três autores, ao que parece, partam
da mesma hipótese, então, a tentativa de Fried
de preservar a categoria de essência tentando
historicizá-la é o antípoda do esforço de
Foucault em destruí-la.
Na verdade, o recente projeto histórico de Fried
tem caráter de restauração, preocupada em
traçar a genealogia de sua posição crítica
dos anos 60 – desenvolvida para embasar a
obra de pintores como Frank Stella e Morris
Louis (e escultores como Anthony Caro) e
para repudiar como teatral o trabalho dos
escultores minimalistas, os quais Fried via como
representativos de um abandono, na verdade,
uma perda dos ideais modernistas de pureza e
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011182 183TEMÁTICAS | CRAIG OWENS
presentificação. Alienado dos desenvolvimentos
subsequentes no campo da arte, Fried abrigou-se
na história; e uma das principais características de
seu trabalho recente é a tentativa de proclamar
Diderot – que também condenava como teatral
muitas das obras de seu tempo – moderno.
Em A ordem das coisas, entretanto, Foucault de
modo convincente encerra Diderot na ordem
clássica, oferecendo como evidência disso
seu projeto de uma Enciclopédia de todo o
conhecimento existente. Assim, a pretensão
de Diderot, nesses escritos críticos e teóricos
sobre arte, em virtude da simultânea afirmação
e negação da presença do observador diante da
obra de arte, permanece como talvez o último
grande argumento da teoria da representação
clássica. Surgindo no crepúsculo da ordem clás-
sica, essa pretensão aparece como tentativa
conservadora de tornar a contemplação, nas
palavras de Fried, “uma vez mais, uma forma de
alcançar a convicção e a verdade”.
A própria posição de Fried no crepúsculo da
modernidade é equivalente à de Diderot relativa
ao fim da ordem clássica; assim, não é de
surpreender que o conservadorismo de Diderot
fosse algo que Fried preferiria reprimir. Pois
conforme seu próprio trabalho prossegue – Fried
passou de Diderot e David a Courbet – mais e
mais se assemelha ao trabalho do luto tal como
descrito por Freud:
A tarefa é levada à frente passo a passo, com
grande empenho de tempo e concentração
de energia, enquanto durante todo o tempo
a existência do objeto perdido continua
na mente. Cada uma das memórias e
esperanças que vinculam a libido ao objeto
afloram e são fortalecidas, e o afastamento
de sua libido é consumado.33
Post script: Pós-modernismo
O que o trabalho de Fried lamenta, na verdade,
é a morte do modernismo. O pós-modernismo
– como o pós-estruturalismo – é uma crítica
à representação, especialmente porque foi
concebido a partir do modernismo. “A formulação
modernista ao problema da representação”,
pondera Frederic Jameson, “[foi] emprestada da
terminologia religiosa que define representação
como ‘figuração’, uma dialética da letra e do
espírito, uma ‘linguagem pictórica’ (Vorstellung)
que encarna, expressa e transmite verdades de
outro modo inexpressáveis”. O pós-modernismo,
por outro lado, é caracterizado por sua “decisão
de usar a representação contra ela própria, de
modo a destruir o vínculo ou o status absoluto
de qualquer representação.” Assim, Jameson
distingue obras modernistas das não modernistas
precisamente tendo em conta “a relação delas
para com aquilo que ele chama de ‘verdade-
contenciosa’ da arte, sua alegação de possuir
alguma verdade ou valor epistemológico”.34
Jameson está distinguindo os filmes
(modernistas) de Syberberg dos filmes (pós-
modernistas de Godard. Nas artes visuais,
a crítica pós-modernista da representação
trabalha usando procedimento similar para
minar o status referencial do imaginário
visual e, desse modo, sua alegação de que
representa a realidade como de fato é, quer
seja a face aparente das coisas (realismo)
ou alguma ordem ideal existente escondida
sob ou além da aparência (abstração). Os
artistas pós-modernistas demonstram que essa
“realidade”, concreta ou abstrata, é ficção,
produzida e sustentada exclusivamente por sua
representação cultural.35
A maioria das obras de arte lida com imagens,
transmitidas pela mídia, que exploram o status
documental dos modos de representação
fotográfico ou cinemático. A fotografia e o filme,
baseados como o são na perspectiva com único
ponto de vista, são meios transparentes; sua
derivação do sistema clássico de representação
é óbvia, e ainda estão por ser investigados
criticamente. Os artistas que lidam com essas
imagens trabalham para desmascará-las como
instrumentos de poder; investigam as mensagens
ideológicas ali codificadas, mas também, o que
é ainda mais importante, as estratégias e táticas
pelas quais essas imagens asseguram seu status
autoritário em nossa cultura. Pois, se essas imagens
se apresentam como instrumentos efetivos de
persuasão cultural, então sua materialidade e
suporte devem ser apagados para que, nelas, a
própria realidade pareça tomar a palavra. Por meio
da apropriação, da manipulação e da paródia,
esses artistas trabalham para tornar visíveis os
mecanismos invisíveis pelos quais essas imagens
asseguram sua suposta transparência – uma
transparência que deriva, como na representação
clássica, da aparente ausência de um autor.
Portanto, quando Fried – e Alpers – tentam
repudiar a obra de escritores como Marin e
Foucault, eles também atestam a distância
existente entre a história da arte e a prática
artística contemporânea. Isolados não apenas do
mais significativo corpo da crítica presente, mas
em grande medida também de sua arte, a história
da arte tem negado a si mesma qualquer conexão
com os dias de hoje – o que constitui, como
Walter Benjamin entendia, pré-requisito absoluto
para qualquer investigação histórica. Perdendo
essa conexão, a história da arte cai no estudo da
antiguidade – o que pode ser, enfim, o destino da
história da arte na pós-modernidade.
Tradução Cíntia Moreira
Revisão técnica Cezar Bartholomeu
NOTAS
1 Marin, Louis. Towards a Theory of Reading in the
Visual Arts: Poussin’s The Arcadian Shepherds, in
The Reader in the Text, org. Suleiman and Crosman.
Princeton: Princeton University Press, 1980:293-324.
Todas as demais citações de Marin foram retiradas
dessa fonte.
(Outro tabalho de Marin foi publicado em português:
Sublime Poussin. trad Mary Amazonas Leite de
Barros. São Paulo: Edusp, 2000. Clássicos 20[N.T])
2 Freud, Sigmund. Negation. Trad. Joan Riviere, in
General Psychological Theory. New York: Collier,
1963:214. Primeira edição 1925.
(Em português: Freud, Sigmund. A negativa, 1926.
v. XIX. In Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1996 [N.T.]).
3 A informação mais esclarecedora das implicações
políticas da crítica de Derrida e Foucault pertence
a Said, Edward. The Problem of textuality: two
examplary positions, Critical Inquiry n.4 (Verão
1978), reimpresso in Aesthetics Today, org. Philipson
and Gudel. New York: NAL, 1980:89.
4 In Foucault, Michel. Language, Counter-memory,
Practice, org. Donald F. Bouchard. Ithaca: Cornell
University Press, 1977:92.
5 Heidegger, Martin, The origin of the Work of Art, in
Poetry, Language, Thought, trad. A. Hofstadter. New
York: Harper & Row, 1971:33-34.
(Em português: Heidegger, Martin. A origem da obra
de arte. Lisboa: Edições 70, 1990:25-7. Coleção:
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011184 185TEMÁTICAS | CRAIG OWENS
Biblioteca de Filosofia Contemporânea [N.T.])
6 Schapiro, Meyer. The still life as personal object : a
note on Heidegger and Van Gogh. In: The reach of
mind: essays on memory of Kurt Goldstein. org. M.L.
Simmel. New York: Springer, 1968:206-208.
7 Derrida, Jacques. La vérité en peinture. Paris:
Flamarion, 1978:291-436.
8 Apesar de Walter Benjamin, em seu trabalho Teses
sobre filosofia da história, caracterizar o método
com o qual o materialismo histórico rompeu, “A
historiadores que desejavam reviver uma época,
Fustel de Coulanges recomenda que apaguem
tudo o que sabem sobre a fase da história que lhes
precede.” Illuminations. Trad. Harry Zohn. New York:
Schocken, 1969:256.
9 Schapiro, Meyer. The apples of Cézanne. In Modern
Art: Selected Papers. New York: Braziller, 1978:19.
10 Derrida, op. cit.:297.
11 Panofsky, Erwin. Studies in Iconology. New
York:Harper & Row, 1962. (Em português: Panofsky,
Erwin. Estudos de iconologia: Temas humanísticos na
arte do renascimento. Lisboa: Estampa, 1995 [N.T.])
12 Derrida não só apresenta essa oposição; ele
propõe sua dissolução. Ver Derrida, Jacques.
Grammatology, Trad G.G. Spivak. Baltimore: Johns
Hopkins University Press, 1976. Pasim.
(Em português: Derrida, Jacques. Gramatologia, São
Paulo: Perspectiva, 1973 (1. ed. 1967) [N.T]).
13 Wölfflin, Heinrich. Principles of Art History.
Reimpresso em Spencer, org., Readings in Art History.
New York: Scribners, 1969, v.II:157.
(Em português: Conceitos fundamentais da história
da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2006 [N.T.])
14 Foucault, Michel. The order of things. New York:
Pantheon, 1971:64. (Em português: A ordem das
coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2000 [N.T.])
15 Steinberg, Leo. The philosophical brothel.
Artnews, set. 1972:20
16 Benveniste, Émile. Problèmes de linguistique
générale. Paris: Gallimard, 1966:242.
(Em português: Problemas de linguística geral II.
Tradução de Eduardo Guimarães et al. Campinas:
Editora Pontes, 1989 [N.T.])
17 Crítica da Filosofia do Direito, de Hegel, introdução
disponível em português em http://www.marxists.
org/portugues/marx/1844/criticafilosofiadireito/
index.htm [N.T.].
18 Steinberg, Leo. Other criteria. In Other criteria.
New York: Oxford University Press, 1972:73-74.
(Em português: Outros critérios. Tradução Célia
Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2008 [N.T.])
19 Steinberg, Leo. Velazquez’s Las Meninas. October,
v. 19, Cambridge: The MIT Press, Winter 1981:52.
20 Freud, Sigmund. Negation. Trad. Joan Riviere,
in General Psychological Theory. New York: Collier,
1963:213. Primeira edição 1925.
(Em português: Freud, Sigmund. A negativa, 1926.
v. XIX. In Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1996 [N.T.]).
21 Locke, John. Two treatises of Government. New
York: NAL, 1963:329 (1a. ed. 1689).
22 Ver Hannah Arendt. The Human condition.
Chicago: University of Chicago, 1958:109ss.
23 Ver Karl Marx. Economic and Philosophical
Manuscripts. In Early Writings Trad. Livinsgstone and
Benton, New York: Vintage, 1975:279-400.
(Em português: Manuscritos economico-filosóficos
de 1844. Trad. Maria Antônia Pacheco. Lisboa:
Avante, 1993 [N.T.]).
24 Esse parágrafo e o seguinte são baseados em
Perry Russell. Lineages of the absolutism state.
Londres: NLB, 1974.
25 Lévi-Strauss, Claude. Tristes tropiques. Trad.
John Russell. New York: Atheneum, 1971:176-180.
Recentemente, Frederic Jameson propôs aplicar o
esquema de Lévi-Strauss à produção cultural em
geral; ver The political unconscious. Ithaca: Cornell
University Press, 1981:77ss. (Em português: Tristes
trópicos, trad. Rosa Freire de Aguiar, São Paulo:
Companhia das Letras, 1996 [N.T.]).
26 Anderson, Perry. Lineages of absolutist state. N.J.
London: Atlantic Highlands, Humanities Press, Fall
1974:60-84.
27 Foucault, Michel. The order of things: 308.
A citação completa: “No pensamento clássico, o
personagem para o qual a representação existe, e
que se representa lá, reconhecendo-se como imagem
ou reflexo, aquele que amarra tudo com o laço da
representação na forma de uma imagem ou mesa,
nunca será encontrado na própria mesa.
28 Clay, Jean. Romanticism. Trad. Owens e Wheller.
New York: Vendome, 1981:25.
29 Foucault, Michel. The order of things:304.
30 Fried, Michael. Absorption and Theatricality.
Berkeley: University of California Press, 1980:103.
31 Fried, Michael. Art and objecthood. Artforum, New
York, 1967. Reedição in Philipson e Gudel, orgs., Aesthetics
today. New York: New American Library, 1980:235. (Em
português: Arte e objetidade, Arte&Ensaios, n.9, Rio de
Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Artes visuais /
Escola de Belas Artes, UFRJ, 2002 [N.T.]).
32 Foucault, Michel. Nietzsche, Genealogy, History.
In Language, Counter-memory, Practice, op. cit.:142.
33 Freud, Sigmund. Mourning and melancholia. In
General psychological theory, op. cit.:166.
(Em português: O luto e a melancholia. In Obras
Completas. Rio de Janeiro: Imago, v. XIV [N.T.]).
34 Jameson, Frederic. In the destructive element
immerse: Hans-Jürgen Syberberg and Cultural
Revolution. October, v.17, Cambridge, Summer,
1981:99-118.
35 A respeito da realidade como efeito de
significação, ver Jean Baudrillard, For a critique of the
political economy of the sign Trad. Rosen. St Louis:
Telos, 1981.
Craig Owens foi teórico no campo da
cultura contemporânea, editor de periódicos
especializados em arte, professor e historiador da
arte nas universidades de Yale e Bernard. Esteve
ligado ao movimento pós-modernista nas décadas
de 1970 e 1980, período em que publicou artigos
sobre fotografia, alegoria, feminismo, política
homossexual, mercado de arte e psicanálise.
Depois de falecer de Aids aos 39 anos, em 1990,
alguns de seus escritos foram publicados em forma
de coletânea. O texto é capítulo do livro Beyond
recognition: representation, power and culture.
Org Scott Bryson et al. California: University of
California Press, 1994.
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011186 187TEMÁTICAS | DANIEL BUREN
De todos os enquadramentos, embalagens e
limites – em geral não percebidos e certamente
nunca questionados – que compartimentam e
“fazem” a obra de arte (o quadro, a moldura, o
pedestal, o castelo, a igreja, a galeria, o museu,
o poder, a história da arte, a economia de mercado
etc.), um nunca é mencionado, menos ainda
questionado, embora, de todos que circundam e
condicionam a arte, seja o primeiro, o que precede
todos os demais: o ateliê do artista.
Na maioria dos casos, o ateliê é mais importante
para o artista do que a galeria ou o museu.
Incontestavelmente, ele preexiste a ambos. Além disso, como veremos, ateliê e galeria estão inteiramente
vinculados. Constituem os dois pilares de um só edifício e de um só sistema. Pôr em questão um (o museu
ou a galeria, por exemplo), sem se referir ao outro (o ateliê) é, de fato, não questionar absolutamente
nada do todo. Desse modo, todo questionamento do sistema de arte terá inevitavelmente que passar por
uma reavaliação do ateliê como lugar único em que o trabalho se faz, assim como do museu como lugar
único em que o trabalho se mostra. Ambos devem ser questionados também em termos de hábitos,
hábitos de arte hoje esclerosados.
A FUNçÃO DO ATELIÊ*
Daniel Buren
Daniel Buren ateliê Brancusimuseu espaço público
Conhecido por seus trabalhos feitos especialmente para espaços públicos, Daniel
Buren desenvolve análise histórica, geográfica e simbólica do ateliê e reflete sobre
sua importância como local exclusivo de produção. As adaptações operadas na obra
quando de seu deslocamento para o espaço público (museus e galerias) levam o
artista a interrogar as condições de aparecimento da arte frente à necessidade de
aproximação de arte e vida, e à consequente desmaterialização do ateliê.
Edward SteichenAteliê de Constantin Brancusi, 1920fotografia 24,4 x 19,4cm; Met Museum, NY Fonte: Wikimedia Commons in http://atelierdespassages.blogspot.com/
THE FUNCTION OF THE STUDIO | Daniel Buren is well known for his work done especially for public spaces. He develops a geographic, historical and symbolic analysis of the studio and reflects upon its importance as an exclusive production place. The adaptations to the work when moving to the public space (museums and galleries) cause the artist to question the conditions of appearance of art with regard to the need to bring art and life closer and the consequent “extinction” of the studio. | Daniel Buren, studio, Brancusi, museum, public space
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011188 189TEMÁTICAS | DANIEL BUREN
Mas, afinal, qual é a função do ateliê?
1. É o lugar de origem do trabalho.
2. É um lugar privado (na maioria dos casos);
pode ser uma torre de marfim.
3. É um lugar fixo de criação de objetos
obrigatoriamente transportáveis.
Um lugar extremamente importante, como já se
pode ver. Primeira moldura, primeiro limite, do
qual todos os outros irão depender.
Em primeiro lugar, como um ateliê se apresenta
física, arquitetonicamente? Na verdade, o ateliê do
artista não é qualquer compartimento, qualquer
cômodo1. Distinguiremos aqui dois tipos:
1. O do tipo europeu, exemplificado pelo ateliê
parisiense do final do século passado2, costuma
ser local bem amplo e caracterizado sobretudo
por elevado pé-direito (4m, no mínimo), às
vezes com mezanino para aumentar a distância
de visualização da obra. Os acessos permitem
a entrada e a saída de trabalhos de grandes
dimensões. Ateliês para escultores ficam no
térreo, para pintores nos últimos andares.
Por fim, a iluminação é natural e geralmente
distribuída por vidraças orientadas na direção
norte a fim de receber luz mais suave e ao
mesmo tempo homogênea.3
2. O ateliê do artista americano4 tem origem
mais recente. Em geral não é especialmente
construído para essa finalidade, nem obedece
a determinadas normas mas, na maioria das
vezes, é bem maior do que o ateliê europeu:
não necessariamente mais alto, mas muito
mais longo e mais largo, e situado em antigos
lofts recuperados. A luz natural tem aqui papel
bem menor (quase nulo) do que a superfície
e o volume. A eletricidade clareia o ambiente
dia e noite, se necessário. Disso, aliás, decorre
certa adequação entre os produtos originários
desses lofts e seu “posicionamento” em paredes
e pisos dos museus modernos, também eles
artificialmente iluminados dia e noite.
Acrescentaria ainda que esse tipo de ateliê
influencia igualmente os lugares que servem de
ateliês hoje na Europa e que podem ser, para
quem os encontra, um antigo celeiro no campo,
uma velha garagem ou outros estabelecimentos
comerciais na cidade. Em ambos os casos, já
podemos perceber as relações arquitetônicas
que atuam entre ateliê e museu, um inspirando
o outro e vice-versa, assim como ocorre entre
um tipo de ateliê e outro.5 Não falaremos, no
entanto, a respeito dos que transformam parte
de seu ateliê em galeria, nem de curadores que
sonham com museus como ateliês permanentes!
Depois de termos visto algumas das características
arquitetônicas do ateliê, vejamos agora o que em
geral nele se passa.
Como local privado, o ateliê é espaço para
experiências que só o artista-residente poderá julgar,
já que nada dali sairá sem que ele assim decida.
Esse lugar privado permite também outras mani-
pulações indispensáveis ao bom funcionamento
de galerias e museus. Por exemplo, é o espaço no
qual a crítica de arte, o organizador de exposi-
ções, o diretor ou o curador do museu poderão
tranquilamente escolher das obras presentes (e
apresentadas pelo artista) aquelas que participa-
rão de determinada exposição, coleção, galeria
ou contexto. O ateliê é, portanto, uma comodida-
de para qualquer organizador, que, assim, pode
“compor” uma exposição a seu modo (e não ao
modo do artista – que está muito contente em
expor e, em geral, se deixa gentilmente manipu-
lar nessas situações) com o mínimo de risco, pois
não só já selecionou o artista participante como
seleciona, em seu próprio ateliê, as obras que
deseja. Nesse sentido, o ateliê é também uma
butique, e é nela que se encontra o prêt-à-por-
ter para uma exposição.
O ateliê é ainda o espaço para o qual, antes que
a obra seja publicamente exposta (museu ou
galeria), o artista pode convidar críticos e outros
especialistas na esperança de que suas visitas
favoreçam a “saída” de algumas obras desse local
privado – um tipo de purgatório – para frequentar
alguma parede pública (museu/galeria) ou privada
(coleção) – espécies de paraísos das obras!
Desse modo, o ateliê cumpre o papel de lugar
de produção de um lado e de sala de espera do
outro, e finalmente, se tudo correr bem, de local
de difusão. É, portanto, um centro de triagem.
O ateliê, primeira moldura da obra, é na
verdade um filtro que irá servir a (uma) dupla
seleção, a primeira, feita pelo artista longe de
olhares estranhos, e aquela feita por galeristas
e organizadores de exposições justamente
para a visualização de outros olhares. O que é
imediatamente evidente é que, para existir, a
obra produzida passa de um abrigo a outro.
Portanto, ela deve ser minimamente transportável
e, se possível, manipulável sem muitas restrições
por quem (além do próprio artista) ganha o
direito de “removê-la” de seu local original para
acomodá-la no espaço promocional. Desse modo,
como é produzida em ateliê, a obra só pode ser
concebida como objeto manipulável ao infinito
e por qualquer um. Para se fazer, e desde o
momento em que é produzida no ateliê, a obra
se encontra isolada do mundo real. Entretanto, é
naquele momento, e somente naquele momento,
que está mais próxima de sua própria realidade,
da qual, em seguida, ela se irá afastar cada vez
mais. Ela também poderá tomar emprestada
Anton LefterovAteliê de Constantin Brancusi no Musée National d’Art Moderne, Centre George Pompidou, 2010Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Atelier-brancusi-2
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011190 191TEMÁTICAS | DANIEL BUREN
outra realidade, que ninguém, nem quem a
criou, poderia imaginar e que poderá ser-lhe
completamente contraditória – geralmente para
grande lucro dos comerciantes e da ideologia
dominante. É, portanto, no ateliê – e só então –
que a obra está em seu lugar. Isso é (uma) mortal
contradição para a obra de arte, da qual jamais
se irá recuperar, dado que sua finalização implica
o desvitalizante deslocamento em relação a sua
própria realidade, a sua origem.
Se, por outro lado, a obra de arte permanece
nessa realidade – o ateliê –, é o artista que corre o
risco de morrer… de fome! A obra que podemos
ver é, portanto, totalmente estranha ao lugar que
a acolhe (museu, galeria, coleção…), daí o fosso
cada vez maior entre as obras e seus lugares (e não
seu posicionamento): um abismo aberto que, se o
víssemos (e o veremos mais cedo ou mais tarde),
jogaria a arte e suas pompas (ou seja, a arte como
a conhecemos hoje e como é feita em 99% dos
casos) na lata de lixo da história. Esse abismo, no
entanto, é parcialmente preenchido pelo sistema,
que faz com que nós, público, criador, historiador,
crítico, entre outros, aceitemos a convenção do
museu (e da galeria) como inevitáveis molduras
neutras, lugares únicos e definitivos da arte.
Lugares eternos em função da eternidade da arte!
Desse modo, a obra é feita em lugar muito
específico, do qual, entretanto, ela não se dá
conta, posto que, por vários aspectos, esse
espaço não só a orienta e forja, como é o único
em que a arte tem lugar. Chegamos, assim, à
seguinte contradição: é impossível por um lado
– e por definição – ver uma obra em seu lugar e,
por outro, é o lugar que lhe serve de abrigo e onde
poderá ser vista, que a irá marcar e influenciar
bem mais do que o lugar no qual foi feita e de
onde foi excluída.
Podemos então afirmar que estamos diante da
seguinte inadequação: ou a obra está em seu
próprio espaço, o ateliê, e não tem lugar (para
o público), ou se acha em espaço que não é seu, o
museu, quando então tem lugar (para o público).
Excluída da torre de marfim em que é produzida,
a obra vai parar em outro lugar que, ainda que
lhe seja estranho, só vem reforçar essa impressão
de conforto que ela já tinha adquirido ao se
abrigar num reduto fortificado, o museu, a fim
de sobreviver a tal deslocamento. Desse modo, a
obra passa (e só assim pode existir, uma vez que
a isso foi predestinada pela marca de seu local de
origem) de um lugar/quadro fechado – o mundo
do artista – para outro lugar paradoxalmente
ainda mais fechado – o mundo da arte. Daí talvez
a impressão de cemitério que o alinhamento das
obras nos museus produz. Independentemente
do que digam, de onde venham e do que
quiseram significar, é no museu que acabam, e
é lá também que se perdem. A perda, aliás, é
parcial, em comparação à perda total das obras
que nunca deixam seus ateliês. Daí a indescritível
vulnerabilidade das obras manipuláveis.
A obra que chega ao museu tanto está em “seu
lugar”6 quanto em “um lugar” que nunca é o
seu. Em “seu lugar” porque lá pretendia estar no
momento em que foi concebida, mas que nunca
é o “seu”, pois assim como esse lugar não foi
definido pela obra que lá se encontra, tampouco
a obra foi feita precisamente em função de um
lugar lhe é, forçosamente e a priori, concreta e
praticamente desconhecido.
Para que a obra esteja em seu lugar sem ter sido
especificamente posicionada7, é necessário que
seja idêntica a todas as outras existentes, todas
indênticas entre si. Nesse caso, circularia (e se
posicionaria) por toda parte e em qualquer lugar
(como todas as outras obras idênticas). Ou, então,
seria necessário que a moldura que acolhe a obra
original, e todas as outras obras originais – e
portanto fundamentalmente diferentes umas das
outras –, fosse removível, ou seja, que o museu (e
a galeria) fosse um passe-partout que se adaptasse
perfeita e milimetricamente a cada obra.
Se, entretanto, estudamos separadamente esses
dois casos extremos, deles só podemos deduzir
formulações extremas e idealizantes, mas ainda
assim interessantes; por exemplo:
a) todas as obras de arte são rigorosamente
idênticas entre si, independentemente de sua
época, seu autor, seu país e assim por diante,
o que explica seu idêntico posicionamento em
milhares de museus pelo mundo, de acordo
com a moda e os curadores;
b) ou então, todas as obras são absolutamente
diferentes umas das outras e têm suas
diferenças respeitadas – portanto ao mesmo
tempo implícita e explícitamente legíveis
–, de modo que cada museu, cada sala em
cada museu, cada parede em cada sala, cada
metro quadrado de cada parede se adapte
Daniel Buren Les deux plateaux (conhecido como Colunas de Buren), 1985-1986 Trabalho in situ Palais-Royal, Paris Fontes: http://www.photos-galeries.com/colonnes-de-buren-palais-royal e http://www.artfacts.net/en/institution/lisson-gallery-190/news/daniel-buren-les-deux-plateaux-palais-royal-5201.html
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011192 193TEMÁTICAS | DANIEL BUREN
perfeitamente, a cada obra, a cada lugar e a
cada momento.
O que podemos observar nas duas formulações é
sua assimetria sob a aparente simetria. Na verdade,
ainda que não possamos aceitar logicamente que
todas as obras de arte, quaisquer que sejam, são
idênticas entre si, somos forçados a constatar que,
quaisquer que sejam as obras, elas são (de acordo
com a época), instaladas do mesmo modo.
Se, por outro lado, podemos aceitar que cada
obra tem sua singularidade, somos também
forçados a observar que nenhum museu se adapta
exatamente a isso e age – paradoxalmente, já que
pretende defender a singularidade da obra – como
se essa afirmação da obra, sua singularidade, não
existisse, e a manipula à vontade.
Para reforçar o raciocínio, dois exemplos entre
milhares: os responsáveis pelo Jeu de Paume,
em Paris, apresentam as obras impressionistas
sobre paredes pintadas de determinada cor que
as emolduram diretamente. Simultaneamente, a
8 mil quilômetros de distância, no Art Institute
of Chicago, outras obras da mesma época e dos
mesmos artistas são apresentadas enfileiradas e
em enormes molduras esculpidas.
Será que isso significa, para retornar aos
dois exemplos, que as obras em questão são
absolutamente idênticas e que finalmente
adquirem sua expressão própria e diferenciada
graças à inteligência daqueles que as apresentam?
E isso ocorreria justamente para fazê-las dizerem de
outro modo aquilo que, por definição, escondiam
sob um mesmo aspecto – a neutralidade absoluta
de obras idênticas umas às outras –, à espera de
uma moldura que lhes desse expressão?
Ou significa, de acordo com o segundo exemplo, que cada museu se adapta o máximo possível ao
caráter das obras em questão? Mas quem, agora, poderá nos explicar onde estava explícito na obra de Monet que, 70 anos após sua criação, algumas telas deveriam ser penduradas e envolvidas por uma suave cor salmão em Paris, e outras cercadas por enormes molduras e justapostas a outras obras impressionistas, em Chicago?
Se excluirmos os dois casos extremos (a) e (b)
mencionados, nos encontraremos frente a um
terceiro, que é, obviamente, mais comum e que
implica relação sine qua non entre ateliê e museu
tal como a conhecemos hoje.
De fato, como é pouco provável que a obra
criada no ateliê lá permaneça – e ela sabe
que acabará em outro lugar (museu, galeria,
coleção) –, é necessário não apenas que seja
feita, mas também que possa ser vista em
outro lugar e, consequentemente, em qualquer
lugar. Para que essa transferência ocorra, duas
condições são necessárias:
1. O lugar definitivo da obra é a própria obra. Essa é uma crença ou filosofia largamente difundida nos meios artísticos, posto que permite escapar de qualquer questão sobre o lugar físico de sua visibilidade e, por conseguinte, sobre o sistema – e, portanto, sobre a ideologia dominante que a governa, assim como sobre a ideologia específica da arte. Teoria reacionária (se realmente for), pois, sob pretexto de escapar, ou melhor, de não estar a ele vinculada, permite a todo o sistema fortalecer-se sem sequer se justificar, já que, por definição (definição dada pelos defensores dessa teoria), o lugar do museu não tem relação com o lugar da obra.
2. O criador “imagina” onde sua obra vai acabar, o que o leva a tentar imaginar todas as situações possíveis para cada obra (o que é
simplesmente impossível), ou (como é o caso) imaginar um possível local-padrão. Nesse caso, teremos o banal espaço cúbico, neutro ao extremo, com a luz suave e uniforme que já conhecemos: isto é, o espaço de museus e galerias atuais. Isso obriga o artista no ateliê, conscientemente ou não, a produzir para um lugar banalizado e, consequentemente, a banalizar seu próprio trabalho a fim de melhor o adaptar a esse lugar.
Ao produzir para um estereótipo, acabamos
evidentemente por fabricar um estereótipo; daí
o surpreendente academicismo das obras hoje,
ainda que dissimuladas sob formas aparentemente
as mais diversas.
Para encerrar, gostaria de dar sustentação a
minhas “suspeitas” sobre o ateliê e suas funções
simultaneamente idealizantes e esclerosantes,
com dois exemplos que me influenciaram, um
pessoal, outro histórico.
1. Pessoal
Ainda muito jovem (tinha 17 anos), iniciei
um estudo sobre a pintura na Provence, de
Cézanne a Picasso (focalizando as influências
do local geográfico nas obras). Para levar o
trabalho a conclusão satisfatória não só percorri
de ponta a ponta o sudeste da França, como visitei
o ateliê de grande número de artistas. Minhas
visitas conduziram-me a artistas dos mais jovens
aos mais velhos, dos mais desconhecidos aos mais
célebres. Surpreenderam-me na época sobretudo
a diversidade, depois, a qualidade, a riqueza e
especialmente a realidade – a “verdade”, portanto
– dos trabalhos, independentemente de seu autor
ou sua reputação. “Realidade/verdade” não só em relação ao autor e a seu local de trabalho, mas também em relação a seu entorno, à paisagem.
Bernard BoyerDaniel Buren Affichage sauvage, abril de 1968 Trabalho in situ, ParisFonte: http://catalogue.danielburen.com/fr/oeuvres/1944.html
Daniel BurenHommes-Sandwichs, abril/maio de1968Madeira, papel com listras brancas e verdes, tachinhas, correias.Cada estandarte 80 x 60,9 cm.Trabalho in situ, Paris, FrançaFoto © Daniel BurenFonte: www.danielburen.com
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011194 195TEMÁTICAS | DANIEL BUREN
Pouco tempo depois, visitei uma a uma as exposições dos artistas que havia conhecido e meu encantamento desbotou-se, às vezes desaparecendo por completo – como se as obras que eu vira nos ateliês não fossem as mesmas, nem tivessem sido feitas pelas mesmas pessoas. Arrancadas de seu contexto e, pode-se dizer, de seu ambiente, elas perdiam seu sentido, sua vida; tornavam-se “falsas”. No entanto, não compreendi isso de imediato (longe disso), nem o que exatamente se passava, nem o motivo dessa desilusão. Uma coisa apenas ficou clara para mim: a decepção. Revi várias vezes alguns desses artistas, e a cada vez o hiato entre seus ateliês e as paredes parisienses se acentuava a tal ponto, que se tornou impossível continuar a visitar seus ateliês e suas exposições. A partir desse momento, algo irremediável, embora por razões ainda confusas, se rompeu.
Mais tarde, repeti a desastrosa experiência com
amigos de minha geração, ainda que dessa vez
a “realidade/verdade” profunda do trabalho me
parecesse bem mais clara. Essa “perda” do objeto,
esse desinteresse pela obra fora seu contexto – como
se a energia essencial a sua existência desaparecesse
assim que a porta do ateliê fosse ultrapassada –,
começava realmente a me preocupar. Essa sensação
de que o essencial da obra se havia perdido em
algum lugar entre o espaço de sua produção (o
ateliê) e de seu consumo (a exposição) levou-me a
questionar o problema e a significação do lugar da
obra. Compreendi mais tarde que o que se perdia,
o que certamente desaparecia, era a realidade da
obra, sua “verdade”, ou seja, a relação com o local
de sua criação, o ateliê: local em que geralmente
estão misturados trabalhos acabados, trabalhos em
andamento, trabalhos nunca acabados, esboços
etc. Todos esses vestígios, simultaneamente visíveis,
permitem uma compreensão do processo da obra
que o museu definitivamente exclui em seu desejo de
“instalar”. Não se fala cada vez mais em “instalação”
em vez de “exposição”? E o que se instala não é o que está próximo de se estabelecer?
2. Histórico
Constantin Brancusi foi o único artista que sempre me pareceu demonstrar real inteligência frente ao sistema museal e a suas consequências, e o que mais tentou combatê-lo − ele tentou evitar que sua obra nele se cristalizasse e assim ficasse vulnerável ao capricho de qualquer curador de plantão.
De fato, ao legar grande parte de sua obra com a expressa recomendação de que fosse conservada como no ateliê que a viu nascer, Brancusi eliminou definitivamente a dispersão do trabalho, assim como toda especulação sobre a obra. Além disso, ofereceu ao visitante exatamente o seu ponto de vista no momento em que produzia. Foi o único artista que, mesmo trabalhando no ateliê e consciente de que lá o trabalho estava mais próximo de sua “verdade”, assumiu o risco – a fim de preservar essa relação entre a obra e seu local de criação – de “confirmar” ad vitam8 sua produção no próprio lugar em que foi concebida. Entre outras coisas, ele também produziu um curto-circuito no desejo do museu de classificar, embelezar, selecionar e assim por diante. A obra fica visível tal como foi produzida, para o bem e para o mal. Assim, Brancusi foi o único a saber preservar na obra esse lado cotidiano – que o museu se apressa em retirar de tudo o que exibe.
Podemos afirmar igualmente – mas isso exigiria estudo mais longo – que a fixação operada na obra pela visibilidade adquirida em seu lugar de origem não tem nada a ver com a “fixação” que o museu exerce sobre tudo o que expõe. Desse modo, Brancusi prova que a chamada pureza de suas obras não é menos bela nem menos interessante entre as quatro paredes de um ateliê de artista entulhado de utensílios diversos,
de outras obras, algumas inacabadas, outras terminadas, do que entre as paredes imaculadas de museus assépticos9.
Posto que toda a produção da arte, tanto ontem quanto hoje, é não só marcada, mas provém do uso do ateliê como local essencial (às vezes único) da criação, todo o meu trabalho deriva de sua abolição.
dezembro de 1970-janeiro de 1971
Tradução Analu Cunha
Revisão técnica Livia Flores
NOTAS
* Este primeiro texto de Daniel Buren dedicado ao atelier
só foi publicado em francês e em inglês em setembro de
1979, em Ragile, Paris, tomo III: 72-77. Esta tradução
baseou-se na versão encontrada em Daniel Buren,
Fonction de l´atelier (1971), Ecrits, v.1, Bordeaux: LAPC -
Musée d´art contemporain, 1991: 195-205
1 Descrevemos adiante o ateliê como arquétipo,
sabendo de antemão que todo artista que se inicia
na vida artística (e alguns deles por toda a vida)
deve contentar-se com barracos miseráveis ou um
cômodo ridiculamente pequeno; todavia, gostaria de
acrescentar que aqueles que conservam, apesar das
dificuldades, os lugares sórdidos em que trabalham
são evidentemente aqueles para quem a ideia de
possuir um ateliê para o trabalho é uma necessidade
– e que, consequentemente, sonham com um
lugar que, se tivessem condições, provavelmente se
aproximaria do arquétipo do qual falamos.
2 Século 19 (NT).
3 Já podemos observar que a exposição de um ateliê de artista requer mais cuidados, da parte dos arquitetos, com relação à iluminação, ao posicionamento, etc., do que aqueles que o próprio artista toma para controlar a exposição de suas obras quando saem de seu ateliê!
4 Falamos aqui do estúdio nova- yorkino, pois, assim
como esse vasto país, em seu desejo de aniquilar
e superar a École de Paris, de triste memória, tem
reproduzido todos os seus defeitos, incluindo o
principal: forçada centralização que, já ridícula
na escala da França e mesmo na da Europa, é
absolutamente grotesca na escala americana e
certamente nefasta ao desenvolvimento artístico.
5 Aos museus americanos, em geral artificialmente
iluminados, opomos os museus europeus, geralmente
iluminados pela luz do dia por meio de uma série de
vidraças. Percebemos também que isso cria o que
alguns entendem como antagonismo e que, muito
frequentemente, não passa de diferença de estilo entre
os ambientes de produção europeu e americano.
6 No original “place” e “une place” (NT).
7 No original “en place” e “exactement placée” (NT).
8 Para sempre (N.T.).
9 Devemos observar que se o ateliê de Brancusi
tivesse podido ficar no Impasse Roussin [n. 11,
endereço do ateliê] ou ainda em sua própria casa
(mesmo transportada para outro lugar), a exibição
teria sido mais feliz. (N.D.L.R. de Ragile. Esse texto
escrito em 1971 refere-se à reconstituição do ateliê
de Brancusi no Museu de Arte Moderna. Desde
então, o conjunto de prédios foi reconstruído na
esplanada do novo museu, o Centre Beaubourg, o
que torna obsoleta esta nota.
Daniel Buren nasceu em 1938 em Boulogne-
Billancourt. Em 1960 graduou-se na École Nationale
Supérieure des Métiers d’Art, em Paris. Foi um dos
fundadores do grupo BMPT (iniciais dos artistas-
membros: Daniel Buren, Olivar Mosset, Michel
Parmentier e Niele Toroni), de influência situacionista.
A partir da década de 1960, se apropria das listras
verticais do tecido industrial francês, que utiliza em
intervenções no espaço público e em instituições de
arte. Vive e trabalha em Paris.
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011196 197TEMÁTICAS | JONATHAN CRARY
O termo “espetáculo” tornou-se de uso
corrente entre o final dos anos 50 e o início
dos 60, graças aos diversos tipos de atividades
atualmente designadas como pré-situacionistas
e situacionistas,1 independentemente de ter sido
ou não originalmente tomado de Critique de la vie
quotidienne, de Henri Lefebvre. Seja no campo de
crítica radical à prática da arte modernista, seja na
discussão política da vida cotidiana ou na análise
do capitalismo contemporâneo, sua influência
intensificou-se claramente com a publicação,
em 1967, de A sociedade do espetáculo, de Guy
Debord.2 Vinte e dois anos depois, a palavra
“espetáculo” não apenas persiste como se tornou
lugar-comum no vasto campo dos discursos críticos e não tão críticos assim. Acreditando que não
se tenha desgastado completamente como explicação da operação contemporânea de poder, cabe
ESPETáCULO, ATENçÃO, CONTRAMEMÓRIA
Jonathan Crary
espetáculo atençãosituacionismo práticas surrealistas
Neste artigo de 1989, exatamente quando deslocamentos sistêmicos significativos
começam a tornar-se evidentes, Jonathan Crary indaga em que medida o uso do
termo espetáculo, que ganha força com a emergência do situacionismo nos anos
60, pode ainda contribuir para nossa compreensão sobre modos não coercitivos
de funcionamento do poder. A partir dessa perspectiva, Crary discute indicações
fornecidas por autores como Baudrillard, Benjamin, T.J. Clark e pelo próprio Guy
Debord, localizando no final da década de 1920 desenvolvimentos históricos cruciais
que transformam a natureza da atenção exigida do sujeito moderno e informam tanto
a noção de espetáculo quanto as tentativas de resistência a seus poderes.
Montagem de imagens capturadas dos filmes de Fritz Lang: Dr. Mabuse, The Gambler (1924) e The Testament of Dr. Mabuse (1931), Livia Flores, 2011 (Dr Mabuse-Livia copy.jpg)
SPECTACLE, ATTENTION, COUNTER-MEMORY | In this article from 1989, precisely when significant systemic movements were becoming more evident, Jonathan Crary questions to what extent the use of the term show, which gained force with the emerging Situationism in the 1960s, can still contribute to our understanding of the non-coercive ways of how power functions. From this viewpoint, Crary discusses indications by authors such as Baudrillard, Benjamin, T.J. Clark and Guy Debord himself, positioning in the late 1920s crucial historical developments that transformed the nature of attention required for the modern subject and informed both the notion of show and attempts to resist its powers. | Show, attention Situationism, surrealist practices.
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011198 199TEMÁTICAS | JONATHAN CRARY
entretanto indagar se o atual sentido do termo
mantém o significado do início dos anos 60. Que
conjunto de forças e instituições ele designa?
E, se elas sofreram transformações, que tipos
de prática são hoje necessários para resistir aos
efeitos do espetáculo?
Pode-se ainda questionar em que medida o
conceito de espetáculo não impõe unidade
ilusória sobre um campo por demais heterogêneo.
Trata-se de conceito totalizante e monolítico,
inadequado para representar incomensurável
pluralidade de instituições e eventos? Para
alguns, um aspecto problemático do termo
“espetáculo” é a presença quase que ubíqua
do artigo definido que o precede, sugerindo
um sistema de relações único, global e sem
fissuras. Para outros, implica mistificação do
funcionamento do poder, nova explicação do tipo
“ópio do povo”, apontando para uma formação
cultural e institucional vaga, com autonomia
estrutural suspeita. Ou um conceito como o de
espetáculo é ainda ferramenta necessária para se
compreender o deslocamento radical e sistêmico
na maneira como o poder funciona de forma
não coercitiva na modernidade do século 20?
É um meio indispensável para revelar relações
entre fenômenos que de outra forma pareceriam
disparatados e sem conexão? Não serviria para
evidenciar como, à maneira de uma colcha de
retalhos, um mosaico de técnicas pode ainda
constituir um efeito homogêneo de poder?
Característica surpreendente do livro de Debord
é a ausência de qualquer tipo de genealogia
histórica do espetáculo, e essa ausência deve ter
contribuído para a impressão de que o espetáculo
surgiu totalmente do nada. Então, a questão que
me interessa é a seguinte: considerando que o
espetáculo de fato designa um certo conjunto
de condições objetivas, quais são suas origens?
Quando podemos dizer que começou a vigorar
efetivamente? E não pergunto isso apenas como
exercício acadêmico. Para ter qualquer eficácia
prática ou crítica, o termo depende, em parte,
de como é periodizado; isto é, “espetáculo” irá
assumir significados bem diferentes dependendo
de como for historicamente situado. É algo mais
do que mero sinônimo para capitalismo tardio?
Ou para o crescimento dos meios e tecnologias
de comunicação de massa? É mais do que uma
versão atualizada da indústria cultural ou da
consciência, delas cronologicamente distinta?
O trabalho “inicial” de Jean Baudrillard fornece
alguns parâmetros gerais para o que podemos
chamar de pré-história do espetáculo (que
Baudrillard considera ter desaparecido em
meados da década de 1870). Segundo esse
autor, que escreve no final dos anos 60, uma das
consequências cruciais das revoluções político-
burguesas foi a força ideológica que deu vida aos
mitos dos direitos do homem: o direito à igualdade
e à felicidade. O que ele vê acontecer no século
19 é que, pela primeira vez, provas concretas
se tornaram necessárias para demonstrar que a
felicidade, de fato, havia sido obtida. Felicidade,
diz ele, “tinha que ser mensurável em termos de
signos e objetos”, signos que fossem evidentes
ao olho como “critérios visíveis”.3 Algumas
décadas antes, Walter Benjamin também
descrevera a “fantasmagoria da igualdade” no
século 19 em termos de uma transformação
do cidadão em consumidor. O relato de
modernidade de Baudrillard é o de crescente
desestabilização e mobilidade de signos que, até
a Renascença, ainda se encontravam firmemente
enraizados em posições relativamente seguras
dentro de hierarquias sociais fixas.4 Assim, de
acordo com Baudrillard, a modernidade está
ligada à luta das novas classes de poder para
tentar superar essa “exclusividade dos signos” e
iniciar a “proliferação de signos sob demanda”.
Imitações, cópias e falsificações desafiam tal
exclusividade. Logo, o problema da mímese não
é de estética mas de poder social, e a emergência
do teatro italiano e da perspectiva na pintura são
o começo dessa capacidade sempre crescente
de produzir equivalências. Obviamente, porém,
para Baudrillard e muitos outros, é no século
19, junto com novas técnicas industriais e formas
de circulação, que um novo tipo de signo aparece:
“objetos potencialmente idênticos produzidos em
série indefinidamente”. No entender do autor, “a
relação de objetos em tais séries é de equivalência e
indiferença... e é no nível da reprodução, da moda,
da mídia, da publicidade, da informação e da
comunicação (setores não essenciais do capitalismo,
segundo Marx)... que o processo global do capital
se mantém coeso”. O espetáculo coincidiria então
com o momento em que o valor simbólico ganha
precedência sobre o valor de uso. A questão
da localização desse momento na história da
mercadoria, entretanto, continua em aberto.
T.J. Clark oferece periodização muito mais
específica na introdução de seu livro The Painting
of Modern Life. Caso se concorde com Clark, as
origens do modernismo e do espetáculo não
apenas coincidem; são indissociáveis. Escrevendo
sobre as décadas de 1860 e 1870, Clark usa o
espetáculo para explicar a íntima solidariedade
entre a arte de Manet e a emergência dessa nova
configuração social e econômica. Essa sociedade
do espetáculo, escreve ele, está ligada a uma
“massiva expansão interna do mercado capitalista
– a invasão e reestruturação de áreas inteiras
de tempo livre, vida privada, lazer e expressão
pessoal... isso indica nova fase da produção de
mercadorias – o marketing, a transformação em
mercadoria de grandes áreas da prática social,
antes casualmente referidas como vida cotidiana”5.
Na cronologia de Clark, o espetáculo coincide com
a fase inicial do imperialismo moderno ocidental,
com duas expansões paralelas do mercado global,
uma interna e a outra externa.
Apesar de considerar impossível a ideia de
“temporalidade pura”, ele localiza o começo do
espetáculo no final das décadas de 1860 e 1870,
citando a comercialização de aspectos da vida e
do lazer como consequência do deslocamento de
Labbe, Edmond. Exposition internationale des arts et des techniques, Paris : Ministère du commerce et de l’industrie, 1941, via: http://bei-necke.library.yale.edu (1110275.jpg)
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011200 201TEMÁTICAS | JONATHAN CRARY
um tipo de produção capitalista para outro. Esse
deslocamento, observa, “não foi mera questão de
reformulação ideológica e cultural, mas de total
transformação econômica”. Quais são, contudo,
segundo Clark, os exemplos dessa avassaladora
modificação? “Uma mudança para o mundo dos
grands boulevards e grands magasins, indústrias
correlatas, turismo, recreação, moda e exibição”.
Surpreendentemente, Clark lembra seus leitores
de que o espetáculo foi projetado “antes de mais
nada como uma arma de combate” na década
de 1960.6 Estaria ele sugerindo que a estrutura
política e econômica desse mundo de avenidas
e lojas de departamentos é, em sua essência,
contínua ao que Debord descreveu como lugar
de contestação em 1967? E que as lutas culturais
[cultural politics] dos anos 60 ocorreram em
condições semelhantes àquelas de 1870? A
insinuação de que a noção de espetáculo seria a
mesma na Paris de Manet e na de Debord é, no
mínimo, problemática.
Ao referir-se à reconstrução de Paris por Hauss-
mann, um dos exemplos mais familiares de mo-
dernização do século 19, Clark apresenta-a como
parte da transformação do capitalismo de peque-
nos empreendimentos em formas crescentes de
monopólio. E a Paris pós-Haussmann torna-se
para ele a expressão visível de um novo alinha-
mento de classes. Essa maneira de dispor o espe-
táculo, porém, pressupõe que ele seja uma forma
de dominação imposta de fora a uma população
ou indivíduo. O tipo de mudanças que o autor
descreve permanece essencialmente exterior à
constituição de um sujeito individual, reservando-
lhe posição distanciada, a partir da qual o espe-
táculo poderia ser rememorado e representado,
ainda que de forma imperfeita. Ao periodizá-lo
dessa maneira, Clark desconsidera a possibilidade
de que o espetáculo tanto signifique uma reorga-
nização fundamental do sujeito quanto a cons-
trução de um observador;7 este último é o pré-
requisito para a transformação da vida cotidiana
que então se iniciava. Ao fazer da sociedade do
espetáculo quase um equivalente da sociedade de
consumo, Clark dilui sua especificidade histórica e
negligencia alguns aspectos do espetáculo que fo-
ram cruciais para a prática política do situacionis-
mo nos anos 60: o espetáculo como nova forma
de poder de recuperação e absorção, capacidade
de neutralizar e assimilar atos de resistência ao
convertê-los em objetos ou imagens de consumo.
O próprio Guy Debord datou de maneira
surpreendentemente precisa o início da sociedade
de espetáculo. Em texto publicado em 1988, ele
registra que em 1967, data de seu livro original,
o espetáculo mal completara 40 anos.8 Não
um número arredondado, como 50, mas 40 –
portanto, 1927 ou, pelo menos, final dos anos
20. Infelizmente, ele não fornece indicação do
motivo pelo qual destaca esse momento. Isso
me deixou curioso sobre o que Debord tinha em
mente ao designar o final dos anos 20 como limiar
histórico, situando a origem do espetáculo quase
meio século mais tarde do que Clark. Ofereço
então algumas especulações fragmentárias sobre
eventos muito dispersos que poderiam estar
implícitos na observação de Debord.
1. O primeiro é tão simbólico quanto concreto.
O ano de 1927 assistiu ao aperfeiçoamento
tecnológico da televisão. Vladimir Zworikin,
nascido na Rússia e formado físico e engenheiro
nos EUA, patenteou seu iconoscópio – o primeiro
sistema eletrônico de tubo contendo uma pistola
de elétrons e uma tela formada por um mosaico de
células fotoemissivas, cada uma delas produzindo
carga proporcional à intensidade variável de luz da
imagem exibida na tela. Justamente no momento
em que a consciência sobre a era da reprodução
mecânica aumentava, apareceu um novo modelo
de transmissão e circulação que iria ultrapassar
essa época, dispensando sais de prata ou suporte
físico permanente.9 O espetáculo estava prestes a
se tornar inseparável desse novo tipo de imagem,
de sua velocidade, ubiquidade e simultaneidade.
Igualmente importante, porém, foi o fato de que, no
final dos anos 20, quando ocorreram as primeiras
transmissões experimentais, estava sendo implantada
vasta rede interligando formas de controle
corporativas, militares e estatais sobre a televisão.
Até então nenhuma técnica de regulamentação
institucional havia sido planejada e repartida com
tamanha antecipação. Assim, em certo sentido,
grande parte do território do espetáculo, o domínio
intangível de seu espectro, já havia sido diagramado
e padronizado antes de 1930.
2. Talvez a estreia do filme The Jazz Singer, em
1927, seja ainda mais imediatamente significativa,
assinalando a chegada do filme sonoro, e
especificamente, do som sincronizado. Isso não
foi apenas uma transformação na natureza da
experiência subjetiva; foi também acontecimento
que trouxe consigo completa verticalização de
produção, distribuição e exibição na indústria do
filme e seu amálgama com os conglomerados
corporativos que detinham as patentes sonoras
e forneciam capital à onerosa mudança para a
nova tecnologia.10 De novo, como no caso da
televisão, a nascente infraestrutura institucional e
econômica do espetáculo se estabelecia.
Especificar o som aqui torna evidente que o poder
do espetáculo não pode ser reduzido a modelo
óptico; ao contrário, ele é inseparável de uma
organização mais ampla do consumo perceptivo.
É claro que o som fez parte do cinema desde
o início através de formas variadas que a ele se
somavam, mas a introdução do som sincronizado
transformou a natureza da atenção que era exigida
do espectador. Talvez essa seja a ruptura que faz
com que as formas anteriores de cinema fiquem
de fato mais próximas dos aparelhos ópticos do
final do século 19. A plena coincidência entre
som e imagem, voz e figura, não foi apenas nova
e crucial maneira de organizar espaço, tempo e
narrativa, mas de impor maior autoridade sobre o
espectador, obrigando-o a novo tipo de atenção.
Claro indício desse deslocamento pode ser visto
nos dois filmes de Fritz Lang da série Mabuse.
Em Dr. Mabuse, o jogador, filme mudo de
1924, o protofascista Mabuse exerce o controle
através de seu olhar com poder hipnotizante; já
em O Testamento do Dr. Mabuse (1931), uma
encarnação do mesmo personagem domina seus
subalternos apenas através de sua voz, que emana
por trás de uma cortina (que, como se descobre,
não esconde uma pessoa, mas um aparelho de
gravação e alto-falante).
E desde a década de 1890 até a de 1930, um dos
Television Spy, 1939, via: www.tvhistory.tv
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011202 203TEMÁTICAS | JONATHAN CRARY
problemas centrais da psicologia tradicional foi
a natureza da atenção: a relação entre estímulo
e atenção, problemas de concentração, foco e
distração. A quantas fontes de estímulo alguém
podia prestar atenção simultaneamente? Como
estimar a influência da novidade, da familiaridade
e da repetição sobre a atenção? Era um problema
cuja proeminência no discurso psicológico
estava diretamente relacionado à emergência de
um campo social cada vez mais saturado com
informações sensoriais. Algumas dessas questões
foram tratadas no trabalho de James McKeen
Cattell, cujos experimentos com estudantes da
Universidade de Columbia forneceram dados hoje
clássicos para a noção de limiar de atenção. Grande
parte dessa pesquisa estava inicialmente ligada à
necessidade de informação sobre a atenção no
contexto da produção racionalizada, mas antes
mesmo de 1910 já haviam sido feitas centenas de
estudos em laboratórios experimentais voltados
especificamente para a variação da atenção na
publicidade (incluindo títulos como O valor da
atenção em anúncios periódicos, Atenção e
os efeitos da dimensão na publicidade de rua,
Publicidade e as leis da atenção mental, Medição
da atenção a valores de cor na publicidade, este
último, uma dissertação de 1913 da Universidade
de Columbia).
Foi também em 1927 que Walter Benjamin
começou seu projeto das Passagens, obra na
qual pretendia apontar para uma “crise da
própria percepção”, resultante da avassaladora
reconfiguração do observador por uma calculada
tecnologia do indivíduo derivada de novo
conhecimento do corpo. No decorrer da escrita
das Passagens, o próprio Benjamin interessou-se
pela questão da atenção e de suas relações com
os temas do choque e da distração, buscando em
Matéria e Memória, de Henri Bergson, saída para o
que ele considerava percepção “desnaturalizada e
padronizada” das massas. Bergson havia lutado para
resgatar a percepção de seu estatuto de puro evento
psicológico; em sua opinião, atenção era questão de
engajamento do corpo, de inibição do movimento,
estado de consciência preso ao presente. A
atenção, porém, só podia ser transformada em algo
produtivo se estivesse vinculada a alguma atividade
mais profunda da memória.
A memória recria a percepção presente...
fortalecendo-a e enriquecendo-a... Se
depois de termos fixado o olhar sobre um
objeto, desviamos abruptamente nossos
olhos, obtemos uma “pós-imagem” [image
consécutive] dele. É verdade que estamos
lidando aqui com imagens fotografadas
no próprio objeto, e com recordações que
se seguem imediatamente à percepção,
da qual são apenas o eco. Mas por trás
dessas imagens idênticas ao objeto, há
outras guardadas na memória que apenas
se lhe assemelham...11
O que Bergson procurava descrever era a vitalidade
do momento em que se produzia uma separação
consciente entre memória e percepção, momento
no qual a memória permitia reconstruir o objeto
da percepção. Deleuze e Guattari descreveram
efeitos similares da entrada da memória na
percepção, por exemplo, na percepção de um
rosto: ele pode ser visto como um vasto conjunto
de micromemórias e uma rica proliferação de
sistemas semióticos, ou, o que é bem mais
comum, em termos de tristes redundâncias de
representações; é nelas, dizem, que as conexões
com as hierarquias das formações de poder
podem sempre ser efetivadas.12 Esse tipo de
redundância da representação que a inibição
e o empobrecimento da memória acarretam
era o que Benjamin via como padronização da Estréia do filme The Jazz Singer, 1927
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011204 205TEMÁTICAS | JONATHAN CRARY
percepção ou o que podemos chamar de efeito
do espetáculo.
Apesar de considerar Matéria e Memória “obra
imponente e monumental”, Benjamin reprovava
Bergson por circunscrever a memória ao quadro
isolado da consciência individual; as pós-imagens que
interessavam a Benjamin eram as da memória histórica
coletiva, imagens fantasmagóricas do obsoleto com
capacidade de promover novo despertar social.13 A
apreensão benjaminiana da atual crise da percepção
é assim filtrada por pós-imagem ricamente elaborada
em meados do século 19.
3. Dado o conteúdo do trabalho de Debord, podemos supor outro desenvolvimento crucial em finais dos anos 20: a escalada do fascismo e, logo depois, do stalinismo, e a maneira pela qual deram corpo a modelos de espetáculo. Importante,
por exemplo, foi o uso inovador e sinérgico que
Goebbels fez de qualquer meio de comunicação
disponível, sobretudo o desenvolvimento da
propaganda audiovisual e sua desvalorização da
palavra escrita, porque ler implicava tempo para
reflexão e pensamento. Numa campanha eleitoral
de 1930, Goebbels enviou pelo correio 50 mil
gravações fonográficas de um de seus próprios
discursos para eleitores especialmente escolhidos.
Goebbels também introduziu o avião na política,
transformando Hitler no primeiro político a
voar para diferentes cidades no mesmo dia.
Viagens aéreas funcionavam como instrumento de propagação da imagem do líder, produzindo inédita sensação de ubiquidade.
Como parte dessa tecnologia mista da atenção, a televisão desempenharia papel crucial. Estudos recentes mostraram que o desenvolvimento da televisão na Alemanha estava mais adiantado do que em qualquer outro país.14 A televisão
Triumph of the Will, filme de Leni Riefenstahl, 1934
Triumph of the Will, filme de Leni Riefenstahl, 1934
In girum imus nocte et consumimur igni, filme de Guy Debord, 1978
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011206 207TEMÁTICAS | JONATHAN CRARY
alemã iniciou suas transmissões regulares em 1935, quatro anos antes dos EUA. Fica claro que os nazistas não se deram conta de sua eficácia como instrumento de controle social, mas os primórdios de sua história na Alemanha lançam luz sobre os diferentes modelos de organização espetacular que estavam sendo propostos nos
anos 30. Logo surgiu grande cisão entre as forças
corporativas monopolistas e o partido nazista
em relação ao desenvolvimento da televisão na
Alemanha. O partido queria centralizar e tornar
a televisão acessível em salas de exibição pública,
ao contrário do uso descentralizado do rádio
em casas particulares. Goebbels e Hitler tinham
em mente a recepção coletiva acreditando que
essa era a forma mais eficaz. Para esse fim,
foram designadas salas públicas de televisão,
com capacidade variável de 40 a 400 lugares, de
forma não muito diferente da que promoveu o
desenvolvimento posterior da televisão na URSS,
onde também se favoreceram os ambientes de
recepção massiva. Segundo o diretor nazista
de radiodifusão, em texto de 1935, a “missão
sagrada” da televisão era “incutir de forma
indelével a imagem do Führer no coração do povo
alemão”.15 Por outro lado, o poder corporativo
visava à recepção domiciliar para maximizar os
lucros. Um modelo queria fazer da televisão uma
técnica a serviço das demandas do nazifascismo
em geral – um meio de mobilizar e incitar as
massas – enquanto os agentes do capitalismo
pretendiam privatizar e dividir para impor um
modelo celular.
É fácil esquecer que em A sociedade do espetáculo
Debord distinguiu dois modelos diferentes de
espetáculo; um que chamou de “concentrado”
e o outro de “difuso”, evitando assim que a
palavra espetáculo se tornasse simples sinônimo
de capitalismo tardio ou de consumo. Espetáculo
concentrado era o que caracterizava a Alemanha
nazista, a Rússia stalinista e a China maoísta; o
modelo mais proeminente de espetáculo difuso
era o dos EUA:
Onde quer que o espetáculo concentrado
domine, a polícia também domina... ele é
acompanhado de violência permanente.
A imagem imposta do bem inclui em
seu espetáculo a totalidade de tudo
que existe oficialmente e em geral se
concentra em um só homem, garantia de
coesão totalitária. Todos devem identificar-
se magicamente com essa celebridade
absoluta – ou desaparecer.16
O espetáculo difuso, por outro lado, deixa-se
acompanhar pela abundância de mercadorias. E
é certamente a esse modelo que Debord dedica a
maior parte de sua atenção em seu livro de 1967.
A propósito, menciono o famoso repúdio de
Michel Foucault ao espetáculo em Vigiar e punir:
“Nossa sociedade não é a sociedade do espetáculo,
mas a da vigilância; sob a superfície das imagens,
investe-se a fundo nos corpos.”17 O espetáculo,
entretanto, é também um conjunto de técnicas
de administração dos corpos, de administração
da atenção (estou parafraseando Foucault)
“para assegurar a ordenação das multiplicidades
humanas”, “seu objetivo é fixar, é uma técnica
antinomádica”, “usa procedimentos de divisão e
celularidade (...) nos quais o indivíduo é reduzido
enquanto força política”.18 Suspeito que Foucault
não tenha passado muito tempo vendo televisão
ou pensando a respeito, pois não teria sido difícil
enxergá-la como aperfeiçoamento suplementar da
técnica do panóptico. Nela, vigilância e espetáculo
não são termos opostos, como ele insiste, mas
que se eclipsam reciprocamente em favor de um
aparato disciplinar mais efetivo. Desenvolvimentos
recentes confirmam de forma literal esse modelo
de imbricação: aparelhos televisivos que contêm
tecnologia avançada de reconhecimento da
imagem servem para monitorar e quantificar o
comportamento, a atenção e o movimento do
olho do espectador.19
Em 1988, porém, Debord vê seus dois modelos
originais de espetáculo – o difuso e o concentrado
– tornarem-se indistintos, convergindo para
o que ele chama de a “sociedade integrada do
espetáculo”.20 Em seu livro, profundamente
pessimista, ele descreve um alinhamento mais
sofisticado de elementos oriundos dos modelos
anteriores, um arranjo flexível do poder global
que se adapta a necessidades e circunstâncias
locais. Em 1967 ainda havia marginalidade e
periferias que escapavam a esse domínio. Hoje,
porém, insiste, o espetáculo se infiltrou em
tudo e tem controle absoluto sobre produção,
percepção e, principalmente, sobre a forma do
futuro e do passado.
Mais do que qualquer outro aspecto isolado,
Debord vê instalar-se no âmago do espetáculo
a aniquilação do conhecimento histórico – em
particular, a destruição do passado recente. Em
seu lugar, impera o presente perpétuo. História,
pondera, sempre foi a medida pela qual a novidade
era avaliada, mas qualquer um que esteja nesse
negócio de vender novidade tem interesse em
destruir os meios pelos quais ela pode ser julgada.
Dessa forma, produzem-se incessante aparência
do importante e, quase imediatamente, sua
aniquilação e substituição: “Aquilo sobre o que o
espetáculo para de falar durante três dias já não
existe mais.”21
Para concluir, gostaria de comentar brevemente
duas diferentes respostas à nova textura da
modernidade que toma forma a partir dos anos
20. O pintor Fernand Léger escreve em 1924 um
ensaio intitulado O espetáculo, publicado logo
após a realização de seu filme Balé mecânico.
O ritmo da vida moderna é tão dinâmico,
que uma fatia de vida vista da varanda de
um café é um espetáculo. Os mais diversos
elementos se chocam e empurram uns aos
outros. O jogo de contrastes é tão violento,
que há sempre um exagero no efeito
daquilo que se vislumbra. Na avenida,
dois homens estão carregando umas
letras douradas imensas num carrinho
de mão: o efeito é tão inesperado,
que todo mundo para e olha. Aí está
a origem do espetáculo moderno (...) no
choque do efeito surpresa.22
Léger passa então a detalhar como a publicidade
e as forças comerciais tomaram a dianteira na
produção do espetáculo moderno e cita a loja
de departamentos, o mundo da moda e os
ritmos de produção industrial como formas
que conquistaram a atenção do público. O
objetivo de Léger é idêntico: quer conquistar
aquele mesmo público. Naturalmente, ele está
escrevendo num momento de incerteza sobre
os rumos de sua própria arte, quando encara o
dilema do que pode significar uma arte pública.
O confuso programa que ele lança com esse
texto, no entanto, é uma instância inicial das
manobras de todos aqueles – de Warhol aos
assim chamados simulacionistas atuais – que
acreditam ou pelo menos reivindicam estar
ganhando a partida contra o espetáculo em
seu próprio campo. Léger resume esse tipo de
ambição: “vamos levar o sistema a seu limite”,
propõe; e oferece sugestões vagas de pintar o
exterior de fábricas e prédios de apartamentos
de várias cores, usar novos materiais e colocá-
los em movimento. Essa tentativa ineficaz de
superar a sedução do espetáculo, porém, torna-
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011208 209TEMÁTICAS | JONATHAN CRARY
se cúmplice de sua aniquilação do passado e do
fetichismo do novo.
Também em 1924, o primeiro Manifesto surrealista
sugere estratégia estética bem diferente de enfren-
tamento da organização espetacular da cidade mo-
derna. Refiro-me ao que Walter Benjamin chamou
de dimensão “antropológica” do surrealismo23 − es-
tratégia de virar ao avesso o espetáculo da cidade
pelo recurso à contramemória e a contraitinerários.
Tais percursos revelariam a potência dos espaços
abandonados, fora das principais vias de circulação,
e dos objetos antiquados excluídos de suas superfí-
cies polidas. Essa estratégia encarnava uma recusa
ao presente imposto; ao recuperar fragmentos de
um passado arruinado, esboçava-se implicitamente
uma imagem alternativa de futuro. E, apesar da na-
tureza equívoca de muitos desses gestos surrealistas,
não é por acaso que eles reapareceriam, sob novas
formas, nas táticas situacionistas dos anos 60, na
noção de deriva ou perambulação, de desvio (dé-
tournement), de psicogeografia, de ato exemplar e
de situação construída. Se hoje essas práticas têm
ainda alguma vitalidade ou mesmo relevância, isso
depende em larga medida do que uma arqueolo-
gia do presente tem a nos dizer. Estamos ainda em
meio a uma sociedade organizada como aparência?
Ou entramos em um sistema global não espetacular
organizado principalmente em torno do controle e
da circulação de informações – um sistema cuja ad-
ministração e regulação da atenção exigiria formas
totalmente novas de resistência e memória?25
Tradução Livia Flores Lopes
Revisão técnica Tadeu Capistrano
NOTAS
Este artigo foi originalmente publicado na revista October, v. 50, Outono, 1989:96-107.
1 Este artigo foi apresentado originalmente no VI
International Colloquium on Twentieth Century
French Studies, “Revolutions 1889-1989”, na
Universidade de Columbia, em 30.3-1.4 1989.
2 Guy Debord, A sociedade do espetáculo, Rio de
Janeiro: Contraponto, 1977
3 Jean Baudrillard, La societé de consommation: ses
mythes, ses structures, Paris, Gallimard, 1970 :60.
4 Uma passagem bem conhecida do Baudrillard
“tardio” amplia essa referência: “Não existe nada
parecido com moda numa sociedade de castas e
estamentos, onde cada um tem seu lugar assinalado
de forma irrevogável. Assim, a mobilidade de classes
é inexistente. Uma proibição protege os signos e
assegura-lhes total clareza; cada signo se refere
inequivocamente a um status (…) Nas sociedades
de casta, feudais ou arcaicas, os signos são
numericamente limitados e de difusão restrita (...)
Cada signo é uma obrigação recíproca entre castas,
clãs ou pessoas.” Simulations, trad. Paul Foss, New
York, Semiotexte, 1983:84.
5 T. J. Clark, The Painting of Modern Life: Paris in the
Art of Manet and His Followers, Princeton: Princeton
University Press, 1984:9.
6 Idem, ibidem:10.
7 J. Crary justifica o uso do termo observador em
detrimento de espectador por suas ressonâncias
etimológicas que remetem à conformação a usos e
códigos (observar uma regra, por exemplo). Enquanto
o termo espectador “designa uma testemunha que
assiste a um espetáculo sem participar, tanto numa
galeria de arte quanto no teatro”, o observador
se inscreve na trama histórica como “efeito de um
sistema irredutivelmente heterogêneo de relações
discursivas, sociais, tecnológicas e institucionais”.
Ver Crary, Jonathan. Techniques of the Observer:
on Vision and Modernity in the Nineteenth Century.
Cambridge: MIT, 1990. (NT)
8 Guy Debord, Commentaires sur la société du
spectacle, Paris: Editions Gerard Lebovici, 1988:13.
9 O historiador da ciência Francois Dagognet assinala
o caráter revolucionário desse advento em seu livro
Philosophie de I’image, Paris: J. Vrin, 1986:57-58.
10 Ver Steven Neale, Cinema and Technology: Image,
Sound, Colour, Bloomington: University: 1985:62-
102; e Douglas Gomery, Toward an Economic History
of the Cinema: The Coming of Sound to Hollywood,
in Teresa de Lauretis and Stephen Heath (eds.), The
Cinematic Apparatus, London: Macmillan, 1980:38-46.
11 Henri Bergson, Matter and Memory, trad. N.
M. Paul and W. S. Palmer, New York: Zone Books,
1988:101-103.
12 Ver, por exemplo, Félix Guattari, Les machines
concretes, in La revolution moleculaire, Paris: Encres,
1977:364-376.
13 “Pelo contrário, ele [Bergson] rejeita qualquer
determinação histórica da memória. Ele consegue
assim antes de mais nada se distanciar da experiência
da qual se originou sua própria filosofia, ou
melhor, da experiência contra a qual sua filosofia
reagia. Tratava-se da inóspita e ofuscante era do
industrialismo em grande escala.” (Walter Benjamin,
Illuminations, trad. Harry Zohn, New York: Schocken,
1969:156-157).
14 Baseei-me na valiosa pesquisa de William
Uricchio, Rituals of Reception, Patterns of Neglect:
Nazi Television and its Postwar Representation, Wide
Angle, v.10, n.4:48-66. Ver também Robert Edwin
Herzstein, The War That Hitler Won: Goebbels and
the Nazi Media Campaign, New York: Paragon, 1978.
15 Apud Uricchio, op. cit.:51.
16 Debord, Society of the Spectacle, sec. 64.
17 Michel Foucault, Discipline and Punish, trad. Alan
Sheridan, New York: Pantheon, 1976:217.
18 Idem, ibidem:218-219.
19 Ver, por exemplo, Bill Carter, TV Viewers, Beware:
Nielsen May Be Looking, The New York Times, June
1, 1989:Al.
20 Debord, Commentaires, op. cit.:17-19.
21 Idem, ibidem:29.
22 Fernand Léger, Functions of Painting, trad.
Alexandra Anderson, New York: Viking, 1973:35.
23 Walter Benjamin, One Way Street, trad. Edmund
Jephcott and Kingsley Shorter, London: New Left
Books, 1979:239. Christopher Phillips sugeriu-me
que o final da década de 1920 teria sido igualmente
crucial para Debord como o momento em que o
surrealismo foi cooptado, isto é, no qual seu potencial
revolucionário original foi anulado por uma instância
espetacular inicial de recuperação e absorção.
24 Sobre essas estratégias, ver os documentos em
Ken Knabb (ed.), Situationist International Anthology,
Berkeley: Bureau of Public Secrets, 1981.
25 Ver meu texto Eclipse of the Spectacle, in Brian
Wallis (ed.), Art After Modernism, Boston: David
Godine, 1984:283-294.
Jonathan Crary é professor de história e teoria da arte moderna na Universidade de Columbia desde 1989. É cofundador e editor de Zone Books e autor dos livros Techniques of the Observer: On Vision and Modernity in the Nineteenth Century (MIT Press, 1990) e Suspensions of Perception: Attention, Spectacle and Modern Culture (October Books, 2000). Tem inúmeros artigos publicados em revistas como Art in America, Artforum, October, Assemblage, Cahiers du cinéma, Film Comment, Grey Room e Domus, além de ensaios críticos em mais de 30 catálogos de exposição.
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011 ARTIGOS | CYBELE VIDAL NETO FERNANDES210 211
Analu CunhaCinema mudo, 2011
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011212 213RESENHAS
RESENHAS
Heloisa Schneiders da Silva obra e escritos
Zielinsky, Mônica (org.)Porto Alegre: MARGS, 2010Glória Ferreira
Merecedor do V Prêmio Açorianos de Artes Plásticas de 2011, o livro Heloisa Schneiders da Silva obra e escritos, com impecável organização de Mônica Zielinsky, nos introduz ao potente universo da produção de uma artista que, embora ainda pouco reconhecida no resto do Brasil, conta com ampla estima no meio de arte do Rio Grande do Sul.
Morta em 2005, aos 50 anos, após árdua luta contra enfermidade degenerativa desde muito jovem, a artista vem tendo sua obra catalogada e difundida pelo Projeto Heloisa Schneiders da Silva, formado por iniciativa de familiares, amigos e profissionais da área. Depois de realizar, entre outras atividades, sua exposição monográfica em 2009, no MARGS, o projeto, com o apoio desse museu, através da Lei Rouanet, é responsável pela publicação em pauta, com extensa apresentação de sua obra pictórica e suas fotografias.
Além dos esclarecedores textos de Mônica Zielinsky e do crítico Gaudêncio Fidelis, e de abrangente cronologia organizada por Beatriz Kessler Fleck e Ricardo Schneiders da Silva, são trazidos a público inúmeros escritos da artista. Reproduzidos de seus Cadernos de Anotações e apresentados em seções − Sobre arte, Sobre pintura, Outros escritos, Sobre arte postal −, eles permitem apreender suas reflexões a respeito de seu processo de trabalho e sua visão sobre a arte.
Surpreende a densidade de sua pesquisa pictórica para quem praticamente desconhece seu trabalho, como é o meu caso, salvo por uma exposição na Galeria Macunaíma, em 1985, relatos de seus
parceiros, como Karin Lambrecht, e, agora, esse livro. Heloisa parece buscar os limites possíveis da pintura, como nos trabalhos dos anos 80, em que associa superfícies em que predomina a cor, estiradas, porém, como “peles no espaço”, perfuradas por caules, bastões de madeira ou troncos retorcidos. Nessas “pinturas-objetos”, assim nomeadas pela artista, “as telas”, assinala Mônica Zielinsky, “subvertem seu emprego tradicional e discutem os planos ortogonais que acolhem a pintura, enquanto esta passa a ocupar muitas vezes o espaço circundante”.
Formada pelo Instituto de Artes da UFRGS, no qual ingressa em 1974, tendo como colegas e amigos, entre outros, Karin Lambrecht, Mara Alves, Simone Michelin, Regina Coeli, Renato Heuser, compartilha ativamente atividades acadêmicas e experimentais dos alunos, como na elaboração coletiva dos álbuns Relinguagem (1978) e Relinguagem (1979). Aluna de Carlos Pasquetti, desenvolve louvada pesquisa e produção na área do desenho, que se inscreve em momento singular de investigação em Porto Alegre e que leva, segundo a organizadora do livro, “a uma reavaliação do substrato construtivo e ideológico da produção artística local”. Durante breve período foi professora do Instituto de Artes e orientou artistas como Elida Tessler. Participou igualmente de diversas ações coletivas de caráter experimental e dos debates sobre os caminhos da arte e de sua circulação pública, algumas realizadas no Espaço N.O. “Em meio a essas escolhas”, ainda de acordo com Mônica Zielinsky, “a artista salienta, desde os primeiros tempos de vida artística, a importância que atribui à experimentação e à multiplicidade de ações; compreende a arte como manifestação plural, que se estabelece como rede, ao referir-se, a título de exemplo, à arte postal”.
É conhecida sua relação com a natureza, tendo adotado, durante longo período, o lobo como
temática de muitos trabalhos. Simone Michelin, em breve conversa, informa que o lobo como símbolo revelava sua busca de certa pureza associada com a questão do animal. Em seu ensaio sobre a obra da artista no contexto dos anos 80, Gaudêncio Fidelis assinala que “a predisposição de conviver com um universo próximo à natureza foi, antes de tudo, uma posição política da artista que teve impacto direto na realização de sua pintura e que a diferencia conceitualmente dos novos selvagens ou expressionistas, com suas atitudes mais cínicas em relação à linguagem da pintura como uma tradição histórica e culturalmente definida”.
Enfim, se o livro Heloisa Schneiders da Silva obras e escritos tem o grande mérito de nos introduzir no universo dessa apreciada artista, ele aporta também amplo e necessário conhecimento sobre a relevante produção artística contemporânea no Rio Grande do Sul.
No contemporâneo: arte e escritura expandidas
Roberto Corrêa dos Santos; Renato RezendeRio de Janeiro: Ed. Circuito, 2011, 124p.
Ana Mannarino
Os autores de No contemporâneo: arte e
escritura expandidas enfrentam o desafio de
desenvolver livro acerca de uma produção artística
que é, ela própria, a um só tempo, proposição
estética e reflexão teórica: o trabalho de artistas
contemporâneos brasileiros que operam nas
fronteiras, dissolvidas, entre artes plásticas e
poesia, imagem e escrita, texto e visualidade.
Como refletir e produzir um livro acerca dessa
produção sem trair seu propósito de abertura, sem
reduzir sua força, sem limitar suas possibilidades
de aproximação e de leitura? Paralelamente, não
há como negar a necessidade dessa reflexão sobre
as obras, de debruçar-se sobre elas, provocando conexões que potencializem seu alcance e a produção de novos sentidos e relações. O caminho proposto pelos autores é fazer um “livro-de-artistas-pesquisadores” situando-o também na mesma difusa fronteira entre pesquisa teórica e produção artística em que se encontram as obras nele abordadas.
Na breve introdução ao livro, parte do Projeto para a Construção Adisciplinar de uma Teoria da Arte, do Instituto de Artes da Uerj, Santos e Rezende discorrem sobre algumas das principais questões que os nortearam no desenvolvimento do trabalho, dentre as quais se destacam o exame desconstrutivo de categorias relativas ao fazer artístico e à produção histórica e crítica; a célebre definição de campo ampliado de Rosalind Krauss; e a busca de uma teoria da arte ligada às práticas contemporâneas, evitando-se modelos totalizantes e limitadores – propondo a expansão da prática relacionada à produção e análise de obras que recorrem a escritos, grafismos, livros de artista.
A relação entre arte e escritura é profícua e estende-se por diferentes épocas e lugares. Os autores traçam um dos percursos possíveis no diálogo entre palavra e artes visuais, entremeando citações e referências críticas e históricas com conceituações próprias, em texto que transita entre a escrita teórica e a poética. Trata-se, contudo, de caminho sugerido, em que o leitor não é conduzido a direção definida, mas levado a passear por uma colagem de textos cujos “fios soltos” permitem diversos percursos. A escrita que embaralha versos e fragmentos constitui uma espécie de diálogo entre textos próprios e alheios, uma coleção de apontamentos e ideias.
O livro passa pela arte norte-americana das décadas de 1960 e 1970, pela poesia concreta brasileira, pelo Manifesto Neoconcreto, pelo Tropicalismo, pela poesia em contexto digital. O
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discurso videográfico, “impuro por natureza”, a confluência de mídias e o fim da especificidade do meio nas artes têm destaque na abordagem dos autores – assim como considerações acerca do momento contemporâneo, principalmente no que diz respeito ao fim das certezas estéticas e à fluidez entre os meios. As citações e referências de teóricos como Rosalind Krauss, Antonio Risério, Philadelpho Menezes, Giorgio Agamben, Jacques Rancière, Antonio Cícero – para mencionar apenas alguns – costuram uma trama de reflexões e interrogações sobre arte, palavra, filosofia, política, poesia e linguagem que repercute nos outros dois discursos que integram o livro de Santos e Rezende: o texto dos autores (formados por frases curtas, quase versos) e as imagens do trabalho dos artistas Adolfo Montejo Navas, Alberto Pucheu, Alberto Saraiva, Brígida Baltar, Laura Erber, Leila Danziger, Lena Bergstein, Lenora de Barros, Ricardo Basbaum e Rosana Ricalde.
No texto dos autores, entremeado pelas
referências, algumas palavras são pontos de
partida para séries de frases e reflexões sobre arte
e outras categorias caras à discussão proposta –
arte, escrever, ato, homenagem, modernidade,
contemporâneo, ideia, obra, pensamento,
conceito, ponto – em tentativas de esgotar seu
sentido, mas que não se esgotam, se multiplicam.
São afirmações, reflexões, contestações que
às vezes conferem ao livro ares de manifesto –
pensamento sobre arte, arte voltando-se para si
própria, arte conceitual.
O projeto gráfico, assinado por Lucas Osório, desempenha papel importante nesse entrelaçamento de discursos. Emprega diferentes pesos de texto, usando duas tipografias – uma para as citações e referências históricas e críticas, a outra para os versos e frases dos autores – e diversos tamanhos de letras, em manchas gráficas variadas de texto, explorando a dimensão espacial
da palavra. Não há relação direta entre texto e imagens; eles constituem discursos paralelos. Embora tratem do mesmo tema geral, um discurso não está submetido ao outro (apesar de se cruzarem em alguns momentos, como quando as reproduções de frames do vídeo Homenagem, de Lenora de Barros, aparecem lado a lado a algumas possíveis definições propostas para o termo que dá nome à obra). Textos e imagens têm igual peso na constituição do livro. A disposição dos elementos permite diversas possibilidades e níveis de leitura, tanto uma leitura linear, que siga o texto na sequência das páginas, como leituras não sequenciais, que se dão ao se folhear o livro, ao se lerem prioritariamente as imagens, os fragmentos de texto ao acaso. Se o texto às vezes recebe tratamento de imagem, destacado na página, cercado de amplos espaços em branco, também a imagem é às vezes tratada como texto – por exemplo, as imagens do vídeo de Brígida Baltar, que é reproduzido como uma série de frames disposta no espaço, a ser “lida” sequencialmente.
Repleto de referências artísticas e literárias, o livro constitui importante fonte para os que se interessam pela pesquisa sobre confluências de arte e escritura, sobre as complexas relações entre as mídias e a desconstrução das categorias artísticas no mundo contemporâneo. Ponto de conjunção de pensamentos, vertentes e caminhos, ele abre uma gama de possibilidades a serem percorridas. É livro para ser lido e relido, visto e revisto, estudado e fruído, bem-sucedido nos desafios a que se propõe.
Gerhard Richter, Sinopse
Pinacoteca do Estado de São Paulo,São Paulo, 23 jul.-21 ago. 2011
Alvaro Seixas
Na exposição Sinopse (Survey), Gerhard Richter (1932, Dresden, Alemanha) assume a figura de artista-curador para realizar um passeio resumido por sua própria produção. Constituída de 27 obras entre pinturas, fotografias e gravuras, exibiu-se na Pinacoteca do Estado de São Paulo depois de percorrer outras importantes cidades da América Latina e do Brasil.
No final da década de 1960, em mainstream artístico que começava a afirmar as chamadas “novas mídias” como sendo o mais novo degrau da ascensão a formas superiores de arte, o artista alemão persistiu – desse modo anacrônico – na pintura tradicional, tendo reativado criticamente certos aspectos de estilos que começavam a ser enfraquecidos pela crítica da época, como o expressionismo abstrato.
A opção por intitular sua mostra Sinopse a identifica como uma espécie de “retrospectiva precária”, sortilégio conceitual que se liga diretamente ao modus operandi do artista, que em sua produção não cessa de nos apresentar a um universo visual diversificado, fragmentado e lacônico. Desse modo, Richter opta por um passeio vago, assumidamente sintético e, assim, incompleto, por sua obra para rediscutir as ambições acadêmicas das tradicionais, grandes e pretensiosamente completas retrospectivas de artistas.
Para confeccionar muitos de seus trabalhos de pintura, o artista busca referências em registros fotográficos – pessoas, coisas e cenários reconhecíveis e desconhecidos –, imagens vindas de uma espécie de armazém aparentemente sem limites que é o mundo globalizado, articuladas pelo artista a outras obras de natureza supostamente “abstrata”.
A produção de Richter define uma estratégia “documental” pouco ortodoxa, comparável ao curioso Atlas de Imagens Mnemosine concebido
na década de 1920 pelo historiador alemão Aby Warburg,1 que consistia em uma série de painéis móveis, sobre os quais o historiador dispunha suas coleções de imagens da cultura visual universal, sob forma até então inconcebível segundo as normas acadêmicas, ajustadas em rígida linearidade e limitações geográficas. Warburg passa a identificar as imagens como possuidoras de uma espécie de “memória coletiva” ou “social”, passando a interligar tempos históricos não lineares e as artes visuais produzidas em partes do globo até então distantes e, para as tradicionais “Histórias da Arte”, de impossível associação.
A mostra em questão é composta em grande parte por obras que consistem em pequenas e médias reproduções fotográficas – impressas em off-set – e de pinturas representativas do artista que, aliás, originalmente tiveram como base a estética fotográfica e com ela mantiveram forte relação visual – é o caso dos retratos Betty (1991) e Tio Rudi (2000). Também estão presentes obras da série Pinturas Abstratas, mas em tamanhos modestos, adequando-se ao perfil das reproduções fotográficas em exposição. Há ainda uma fotografia com intervenções de pintura – da série Fotografias Pintadas –, uma única obra de grandes dimensões e um painel fotográfico datado de 1998, formado por 128 detalhes em tons de cinza de Halifax, pintura a óleo abstrata, de denso impasto, feita pelo artista em 1978. Resta mencionar curiosa linha do tempo em off-set, semelhante a uma página de enciclopédia, diagramada por Richter em 1998, na qual o artista nos apresenta seu resumo pessoal da história cultural ao destacar nomes de importantes artistas plásticos, arquitetos, escritores, músicos e filósofos.
Em sua Sinopse, Richter parece menos interessado em apresentar uma exposição de obras únicas ou de grande formato, que se poderiam encerrar em
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sua própria plasticidade, e mais em lançar um olhar sobre o caráter conceitual e heterogêneo de sua produção e nos desafiar a adentrar sua lógica difusa.
NOTAS
1 Para estudo da relação entre as produções de Gerhard Richter e Aby Warburg, ver Buchloh, Benjamin. Atlas de Gerhard Richter: o arquivo anômico. In: Arte & Ensaios, v.1. n.19. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Escola de Belas Artes, UFRJ, 2009: 194-209.
José Resende
Museu de Arte Moderna do Rio de JaneiroRio de Janeiro, 9 jun.-18 set. 2011
Felipe Scovino
Tomar contato com a recente produção de José Resende é refletir sobre questões universais da escultura (monumentalidade, forma, técnica e presença no espaço). A sentença soa como chavão, mas é nesse momento que se revela a diferença em seu trabalho e particularmente nessa exposição. Devemos partir do princípio de que o conjunto de cinco esculturas foi pensado para o Salão Monumental do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Sendo invadido por luz e natureza, formando uma espécie de continuidade com seu entorno e, portanto, expondo seu espaço a feixes externos de atravessamento, o próprio MAM-RJ não conhece seus limites, digamos, estruturais. É uma extensão desse panorama que sobrevoa a exposição de Resende. Compreender que o (suposto) limite da escultura não termina em sua apreensão formalista, mas que o campo de diálogo estabelece fruição inclusive com o meio em que está inserido. Apesar de sua grandiosidade, o resultado plástico nesse
conjunto de esculturas contraria a tendência à busca das manifestações espetaculares e sublinha original dimensão de sobriedade. Permanecem em território ambíguo porque tanto atuam como formulações de ficções individuais quanto formam uma rede de interlocuções de impossível desmembramento. Essa exposição também reflete a possibilidade de um trabalho tornar (ainda mais) específico um lugar. A conclamada sobriedade se faz no diálogo entre a escala das esculturas e a necessidade de percurso que elas invocam ao espectador − discursar sobre o corpo a partir não apenas da experiência física do percurso em torno das esculturas, mas singularmente expor uma visão de mundo, que passa pelo aspecto estabilizador (e potencialmente desestabilizador) da escultura. São obras que se condicionam como verbo de ação, na condição, portanto, de revelar a instabilidade da matéria e a situação de um corpo em permanente estado de desequilíbrio com o meio. Esta última característica também pode ser confundida com dúvida ou incerteza. Suas esculturas parecem duvidar de sua própria condição de imobilidade porque almejam o espaço e o diálogo. Parecem descontentes com sua qualidade de imagem ou forma de aparição no mundo. Há um desconforto pairando sobre aquele território.
Os elementos dessas esculturas são experimentados como estruturas físicas. Ora, suas vigas e estacas são dispostas a intervalos largamente espaçados sustentados como que por pernas. Ora, uma estrutura vertical em cobre e preenchida de forma intercalada por madeira nos remete tanto a uma magistral coluna vertebral quanto a uma manifestação totêmica. Assim, a forma de seu trabalho e a noção de totem convertem-se em duas metáforas interligadas e recíprocas, que apontam para um mesmo aspecto: o repertório de formas do cotidiano que, deslocadas de seu contexto e identidade,
criam coerente e contínuo discurso sobre o corpo e visão de mundo muito particular e instigante sobre a contemporaneidade. Uma terceira obra é formada pelo “diálogo” entre dois círculos de cobre fixados por duas espécies de sapatas e tendo em suas extremidades um conjunto de longos fios de aço. É surpreendente como de certo modo essa imagem congela um tempo e uma ação. Há um dado de velocidade sendo transmitido ainda que estejamos diante de uma escultura que, entretanto, no exato momento em que tomamos ciência dessa imagem, se transforma em corpo vibrátil. Essa ideia é reforçada pela relação totêmica que a obra também explora, nesse caso imagem que pode ser identificada com temas sexuais e canibalísticos.
A aparição dessas obras é sempre resultante de economia de gestos e materiais que se convertem harmonicamente em um corpo. Este vem à tona na obra de Resende porque sua presença no mundo é incondicionalmente necessária. Ademais, a ideia de corpo torna efetivas a inserção e a vontade do sujeito na produção escultórica. O tom confessional de Resende nos faz refletir a respeito de não sermos um conjunto de significados privados que podemos escolher entre tornar ou não público. Esses gestos são resultantes das convenções e do repertório do lugar que habitamos ao mesmo tempo em que se convertem (e logo se impõem) como discurso sobre nossa vontade de expor, organizar e modificar essa “ordem natural das coisas”.
Ana Linnemann, Cartoon
Galeria da Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro | 15 jun.-31 jul.2011 Curadoria de Fernando CochiaraleVera Beatriz Siqueira
A chegada à exposição Cartoon, de Ana Linnemann, é marcada pela presença bem-humorada de uma palmeira, plantada no canteiro em frente à Casa de Cultura Laura Alvim, na praia de Ipanema, no Rio – Os invisíveis no8. Ao lado da escultura de Franz Weismann, Quadrado em torção no espaço, que há anos identifica o espaço cultural, a palmeira não chamaria propriamente atenção, em meio a tantas outras da orla carioca, a não ser pelo fato de realizar, de tempos em tempos, rotações sobre si mesma. Após o que para de forma abrupta, mantendo a ondulação de suas folhas por instantes antes de reconquistar a quietude. Um leve sorriso se insinua no rosto do espectador que, curioso, sobe as escadas da galeria.
Ao entrar na sala, mais uma experiência inusitada: na parede lateral, estranhas protuberâncias se projetam, a intervalos regulares, em três leves manchas que parecem indicar infiltrações – Os invisíveis no9. A sutileza da obra e os intervalos longos entre uma aparição e outra fazem com que, a princípio, duvidemos do que vimos. Ilusão? Realidade? A surpresa traz novo sorriso. As folhas empilhadas de uma estante articulável e um par de xícaras cortadas como se fossem cascas de frutas – da série O mundo como uma laranja – convidam o visitante a participar de uma curiosa e instigante experiência estética.
Surpreendidos pela palmeira que gira, pela parede que se projeta ou pelas xícaras retalhadas, nos vemos imediatamente desarmados, destituídos das formas tradicionais de apreciação estética. As ideias mais corriqueiras que nos apoiam na experiência de visita às exposições de arte não parecem funcionar direito. Sequer há objetos, bases, molduras, etiquetas para nos auxiliar. A estante articulável vai escrevendo o roteiro da mostra, marcado antes por fissuras e interrupções do que pela continuidade.
Em cada obra vivemos a fragmentação. Logo à
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esquerda de quem adentra a sala central, duas pesadas pilhas de tiras retangulares de feltro são costuradas no centro de uma de suas bordas, ficando uma à frente da outra, com essas bordas para fora da prateleira interrompida que, por sua vez, avança sobre o vão de passagem para outro espaço da galeria. Entre as tiras que compõem cada pilha, é colocada uma pérola, detalhe caprichoso que reforça o sentido de intervalo e descontinuidade, além de contribuir para a instabilidade da peça, completada pelo fato de a linha de costura permanecer estendida pela agulha, apenas tensionada e enfiada na trama do feltro. Como o título da obra sugere – Inevitável –, ficamos suspensos no tempo, aguardando o momento em que o conjunto pode vir a se desmanchar.
Novamente é a descontinuidade e o sentido intervalar que surgem nos retângulos de azulejos iluminados frontalmente por spots, que devem ser vistos pela face posterior, na qual aparecem os traços, vertical ou horizontal, formados pela luz que vaza de intervalos na junção dos ladrilhos – Frestas de luz 1 e 2. Outros objetos da série O mundo como uma laranja – como o tênis All Star, o relógio que, nessa mostra, se conecta com a luminária acima, o globo ou os livros fatiados – ajudam a exacerbar a sensação de espacialidade fragmentada. Como se Ana Linnemann recusasse, antes de tudo, qualquer solução de continuidade, qualquer forma de inscrever a totalidade, qualquer possibilidade de estabelecer entre a arte e o mundo uma relação ausente de fricções e rupturas.
Como afirma em seu site: “Eu faço objetos que, sendo improváveis, criam novas situações para o que é possível”. O que a leva a trabalhar justamente com as fissuras do real. Cortes, incisões, vaivens de invisibilidade, instabilidades de sentido são algumas das estratégias de manifestação desse jogo de improbabilidades e possibilidades. Pois na afirmação da artista podemos perceber sua busca
deliberada por criar novos mundos, nos quais o elemento lúdico e a ilusão são essenciais para evitar que a arte se dissolva na realidade. Como se a artista lançasse, no limite, a pergunta sobre as condições de possibilidade da própria arte no contexto atual.
Empenhada em recuperar para a experiência da arte alguma ordem de autonomia com relação à realidade mundana da qual parte, a artista, porém, deve recusar as narrativas totalizantes, sejam as mais tradicionais, sejam as recentes. O que nos leva a outra dimensão de sua obra. Encontramo-nos igualmente incapazes de ordenar a experiência a partir dos temas mais correntes na arte contemporânea. Seus globos cortados – O mundo como uma laranja (globo) – ou esmagados nos nichos da estante em ziguezague – Ziguezague com globos – não falam, por exemplo, de identidades, multiculturalismo, hibridismo ou territorialidades. Os cortes e os achatamentos falam, sim, de uma realidade ambivalente, entre a imagem símbolo de nosso mundo e a matéria de que é feito. Novamente, ficamos desarmados e desassistidos diante do humor, que não deseja sequer reter a dimensão mais conceitual da ironia duchampiana.
Em XS, fatias de pedra-sabão são bordadas com fios coloridos de algodão e seda, seguindo os padrões florais em ponto-cruz de revistas de trabalhos manuais, executados caprichosamente pela artista. À pura fisicalidade da rocha ela opõe o trabalho com as linhas, forçando a matéria a perder sua autossuficiência e a se converter em suporte. Ao mesmo tempo, o gesto de bordar deixa de ser íntimo e delicado, para envolver furos na pedra resistente e uma artesania bruta. Curiosa reflexão sobre a natureza se impõe: a rocha perde sua materialidade autossuficiente, as flores nascem do trabalho da artista. O resultado, novamente, é o sorriso diante do inusitado. Também ao costurar zíperes em folhas secas, Ana Linnemann retoma
esse sentido dúbio e indefinido da natureza, entre matéria-prima e fluxo orgânico.
Em outras obras ela nos coloca diante da experiência da indecisão sobre a figura geométrica. É o caso de 1 nível/3 níveis, na qual três copos transparentes, com diferentes quantidades de água, dispostos em níveis distintos nas prateleiras articuladas, são unificados pela virtualidade da linha reta que se pode traçar a partir da superfície do líquido em cada recipiente. Ou dos delicados bordados em tira de feltro, nos quais o círculo e o quadrado são formados não apenas pela trama de linhas, mas também pelas agulhas (curva e reta) que, aliás, determinam o tamanho das formas. Sugere, assim, uma espécie de interioridade problemática ou dúbia da forma geométrica.
Todos esses dilemas surgem, entretanto, sem que a artista faça uso de outra ordem de totalização, valendo-se para tal da centralidade da dimensão do jogo. É preciso suspender os discursos por meio da surpresa, da ilusão e do riso. Destituir a miniatura da célebre performance de Joseph Beuys, I like America and America likes me, de toda profundidade cultural e histórica. Fazê-la girar sobre um cd, acionado por uma geringonça mecânica, ligada a uma tomada escancaradamente incrustada na lombada de livros escavados que, por sua vez, viram-se de costas para nós. Recupera, assim, o sentido bem humorado e improvável da própria performance citada, agora desprovida de toda aura e convertida em ação ininterrupta e sem direção, repetida como em uma caixa de música muda – Beuysiana.
A referência a Joseph Beuys volta a aparecer em Os invisíveis no2, obra na qual uma garrafa de coca-cola se desloca lateralmente sobre uma pilha de livros encimada por exemplar sobre o artista alemão. Aqui, Ana nos fazer experimentar vários níveis de encontros insólitos: entre o movimento motorizado da garrafa e a imobilidade silenciosa
dos livros; entre as elaboradas publicações de arte e a própria garrafa plástica de refrigerante – que se situam em polos opostos na hierarquia dos objetos produzidos pelo homem; – mas também entre os livros sobre Leonardo da Vinci e Bonnard, o minimalismo e Lucio Fontana, e o discreto, porém insidioso, exemplar de Dick Tracy: America’s most famous detective. Junto aos artistas renomados, esse herói de histórias em quadrinhos parece forçar um sorriso amarelo, promovendo o questionamento a respeito das frestas que separam realidade e ficção, cultura pop e erudição, valor estético e fama.
Talvez, porém, a presença desse livro seja ainda
mais significativa. Poderíamos pensar nela como
uma espécie de chave de compreensão de toda a
mostra, cujo título, aliás, refere-se ao universo dos
comic books. É Dick Tracy quem parece oferecer
a Ana Linnemann a possibilidade de criar novas
situações para a arte, sem descambar para as
soluções tradicionais ou para a discursividade
característica da contemporaneidade. É ele quem
vai permitir que ela se diferencie, por um lado,
da figura do artista como gênio, presente tanto
em Leonardo quanto na influência romântica em
Beuys, e, por outro, da exteriorização absoluta
das formas simples do minimalismo, a recusar
qualquer resquício de autoria. O detetive criado
em 1931 que, durante décadas, desvendou
mistérios e solucionou crimes, serve à artista
como contraponto necessário para seu empenho
em atualizar a tarefa artística de reconfigurar o
real. Projeto ambicioso e especialmente relevante
na contemporaneidade.
Não nos deixemos, portanto, iludir pela aparente facilidade de seus trabalhos – instância necessária de aproximação e contato. Suas obras querem nos pegar, pretendem atrair e prender o espectador pelo humor, pela ilusão, pelo desafio a nossos dispositivos perceptivos. Desejam mais do que
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isso, entretanto, ao nos envolver na experiência da fricção, da fissura, da indeterminação, sugerindo que cabe à arte contemporânea estabelecer uma relação nova (de descontinuidade) com o mundo. Rejeitando as narrativas tradicionais, mas também a afetação conceitual, a recusa de sentido pós-moderna, a negação da autoria ou o ceticismo pop, e recuperando uma ordem nova de autonomia da experiência estética, os jogos visuais propostos na mostra Cartoon criam um espaço fragmentário em que experimentamos a arte em sua natureza híbrida, simultaneamente extraordinária e comum, especial e corriqueira, grandiosa e ridícula.
Francis AlÿsA Story of Deception
MoMA Manhattan / MoMA PS18 mai.-1o ago. 2011
Doris Kosminsky
O título da mostra do artista belga Francis Alÿs, A
Story of Deception, fala do desejo de perseguir
o que sempre parece nos escapar. Trata-se de
conceito que o artista instala entre a poética e
a política. Alÿs vive no México desde a década
de 1980. Essa mudança de continente proveu-o
de ponto de vista único, embora problemático,
do intruso, do estrangeiro dono de olhar aguçado
ante a realidade naturalizada. Nesse contexto,
os ciclos de avanços e retrocessos nos campos
da política e da economia, tão frequentes nos
países da América Latina, são colocados como
repetições e tentativas de alcançar um futuro
nunca concluído ou plenamente realizado. Uma
miragem do que poderíamos ser, mas com
resultado sempre decepcionante. Essa descrença
na retórica moderna do desenvolvimentismo e do
progresso perpassa a obra que o artista apresenta
em instalações, vídeos, sketches preparatórios, desenhos, pinturas, colagens e fotografias.
O olhar estrangeiro mostra-se explícito na fotografia Turista (1994) em que o artista aparece identificado por uma placa com a palavra “turista”, ao lado de trabalhadores temporários com suas placas: “eletricista”, “bombeiro”, “pintor e gesseiro”, etc. A figura de Alÿs, mais alto e usando óculos escuros, destaca-se dos outros homens, de vidas precárias. De certa forma, com sua presença, o artista oferece seus serviços como turista para quem quiser ver o mundo através de seus olhos. Como essa imagem, a obra de Alÿs consiste fundamentalmente da documentação de ações e práticas poéticas. A natureza processual de seu trabalho é desdobrada em desenhos, pinturas, vídeos, filmes, fotografias e cartões-postais, além de objetos menos óbvios, preparatórios da ação artística, tais como cópias de e-mails e anotações. Se seus vídeos não são a obra em si, mas um meio para fixar e apresentar a obra, os recortes de jornais e desenhos que acompanham as instalações não buscam ser ilustrações explicativas dos processos. Parecem-se mais com enigmas ou fragmentos do pensamento do artista, envolvido em processos que muitas vezes requerem financiamento e minucioso planejamento, além da participação de voluntários e contratação de profissionais especializados (cinegrafistas, editores de imagem, etc.).
O entrelaçamento entre política e poética em jogo que nunca é concluído satisfatoriamente aparece claramente como metáfora no vídeo Rehearsal I (1999-2001). Nessa obra de 29 minutos, assistimos às inúmeras tentativas de um fusca vermelho em alcançar o topo de uma íngreme estrada de terra ao som do ensaio de um grupo de mariachis. A cada vez que os músicos interrompem o que estão tocando, seja para afinar os instrumentos
ou trocar comentários, o fusca desce a ladeira de ré até que a volta da música o encaminhe para nova tentativa. O ensaio que fazem, ao mesmo tempo, o grupo folclórico e o carro em sua repetida tentativa de alcançar o topo, sugere uma alegoria às frustradas tentativas das nações sul-americanas de alcançar o progresso. A sonoridade dos mariachis cria certa comicidade ao mostrar o empenho diante das sucessivas frustrações.
A obra Tornado (2000-10) documenta 55 minutos de ação que se desdobra em tentativas de alcançar o epicentro de redemoinhos de vento, frequentes nas regiões empoeiradas e secas ao sul da Cidade do México. O processo da ação consiste na aproximação em direção ao tornado. Ao adentrar a nuvem de poeira, a tela escurece. Ao fim de alguns segundos de escuridão, em que só se pode ouvir o ensurdecedor som do vento e a respiração ofegante do artista, temos a sensação de que Alÿs e seu aparato foram cuspidos para fora do redemoinho. O processo se repete sem conclusão, sugerindo a eterna e utópica luta entre dom Quixote e os moinhos de vento.
O vídeo Guards (2004-5) registra proposição
envolvendo os famosos guardas ingleses. De
início, eles marcham individualmente pelas ruas
de Londres. À medida que se encontram, entram
em formação e passam a marchar juntos. O ritmo
sincopado da marcha acaba por atrair e fixar um
número maior de soldados. Quando o grupo
atinge o número de oito por oito guardas, dirige-se
à ponte mais próxima. Ao alcançá-la, a formação
é desfeita, e o grupo se dispersa. A construção
da ação é documentada por tomadas precisas.
A edição reforça o enredo da proposta. O único
áudio da obra vem do marchar dos soldados, que
vai aumentando à medida que a ação avança.
O trabalho pode ser lido com uma parábola do
caminhar junto, do seguir os passos da maioria.
A surpresa da dispersão final desvela o estado
de suspensão do significado que se encontra na natureza do ato poético. Segundo Alÿs, a arte, através do ato poético de transgressão, pode nos fazer olhar as coisas de modo diferente. Ou, pelo menos, o absurdo da situação pode fazer-nos pensar que as coisas poderiam ser diferentes. Talvez seja esse o caso da obra Re-enactments (2000), constituída por dois canais de vídeo. O primeiro é a documentação de ação realizada pelo artista. Ele entra em uma loja, compra e carrega um revólver e sai caminhando pelas ruas com a arma em punho até ser detido pela polícia. No dia seguinte, e por isso as duas sequências de imagens, a ação é re-encenada com a cooperação da polícia. Ao apresentar, lado a lado, a ação dramática e sua simulação, o artista dissolve a fronteira entre documentação e ficção, questionando a autenticidade da obra. Ao mesmo tempo, discute a segurança da população mexicana diante da debilidade de sua polícia.
Uma de suas obras mais conhecidas e documen-
tadas, When faith moves mountains (2002), ope-
ra sobre uma inversão do princípio da eficiência
reinante no pensamento moderno: “Máximo es-
forço, mínimo resultado”. Em ação de proporções
épicas, Alÿs teve a participação de 500 voluntários
equipados com pás com o objetivo de deslocar
em alguns centímetros uma duna dos subúrbios
de Lima. A obra pode ser considerada uma me-
táfora da sociedade latino-americana, em que o
esforço e o sacrifício da população são solicitados
de forma a alcançar resultados que, ao final, se
mostram incipientes.
A extensa obra de Francis Alÿs parece repetir o
que captamos em seus atos poético-políticos:
a necessidade de seguir sempre, a resistência
ante a frustração mesmo diante de resultados
desanimadores. Algo que Samuel Beckett assim
resumiu: “Tente de novo. Fracasse novamente.
Fracasse melhor.”
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011222 223SUMÁRIO DAS EDIÇÕES ANTERIORES
SUMÁRIOS DAS EDIÇÕES ANTERIORESArte & Ensaios 22, 2011 Sucessão de fatos | Entrevista com Antonio Manuel
ARTIGOS
A história do cinema nas páginas da loucura: o espectador, a imagem e a dissociação | Tadeu Capistrano
A Fotografia Subjetiva, abertura ao contemporâneo | Celso Guimarães
O olhar e o tempo | Tiago Cotrim
Aleijadinho em carne viva: o gesto na escultura | Leonardo Etero
Processos de mediação | Beatriz Pimenta Velloso
O ‘lugar’ negociado no qual o trabalho se move, sabendo-o e sabendo-se parte de um mundo maior, ou, se quisermos, desconhecido | Hélio Branco
COLABORAÇÕES
Tempo alterado. O flashforward da linguagem na vida e na arte | Fernando Gerheim
Wols, pintor maldito, no acervo do Masp | Almerinda da Silva Lopes
Ghérasim Luca aos pedacinhos | Laura Erber
Tempo cego | Patricia Corrêa
DOSSIÊTunga
Uma vanguarda viperina | Carlos Basualdo
Cópula | Viviane Matesco
Um experimentador ocasional em equilíbrio instável | Suely Rolnik
REEDIÇÃO
Quasi-cinema | Ligia Canongia
TEMÁTICAS
Uma tradição negligenciada? A história da arte como Bildwissenschaft | Horst Bredekamp
O que se mostra. Da diferença icônica | Gottfried Boehm
Os cães e a cidade | Miwon Kwon
Sobre (não) pintura considerada (não) arte comunista. O caso de Otto Muehl | Éric Alliez
RESENHAS
Livro ou livro-me: os escritos babilônicos de Hélio Oiticica (1971-1978) | Ana Mannarino
A Série Negra | Gilton Monteiro
A constelação Didi-Huberman ou instruções para construir uma máquina de guerra visual | Hernán Ulm
Anticristo | Cristina Salgado
Arte & Ensaios 21, 2010
Eu nunca ensaio| Entrevista com Laura Lima
ARTIGOS
Lugares que habitam lugares | Luiza Peixoto Baldan
Inscrições contemporâneas: a palavra-imagem no projeto da visualidade pós-moderna | Julie Pires
Cena para um figurino: no corpo, no palco, na galeria | Desirée Bastos de Almeida
Brasilidades na obra de Calmon Barreto | Gisele L. Faleiros da Rocha
Etnografia e ficção: o documentário de Jean Rouch e o cinema brasileiro | Rogério Bitarelli Medeiros
História da arte e ficções num caderno de notas de Eliseu Visconti | Ana Cavalcanti
COLABORAÇÕES
Jochen Gerz: o monumento como processo e mediação| Leila Danziger
Queda do Solar de Smithson: ficção, disrupção e entropia | Tatiana Martins
Deslocamentos de Vergara | Renata Santini
Origem e permanência da crítica | Leandro Gama Junqueira
DOSSIÊ Navilouca | Organização Cezar Bartholomeu, Inês de Araujo e Ronald Duarte
TEMÁTICAS
Inscrever-se em falso | Jacinto Lageira
Transcendendo a fragmentação da experiência:o acousmêtre no ar nos filmes de Michael Snow| Randolph Jordan
A ficção documental: Marker e a ficção da memória | Jacques Rancière
Por uma meta-história do filme:notas e hipóteses de um lugar-comum | Hollis Fra
PÁGINA DUPLA | Cristina Salgado
RESENHAS
A pintura como arte | Clarice Ferreira de Sá
Cem, Sem, Imagens | Edith Magnan
Sergio Rodrigues. Um designer dos trópicos | Gloria Costa
Sobre o ofício do curador | Luiza Interlenghi
Arte & Ensaios 20, 2010
Não adianta procurar algo em sua transparência, porque o trabalho não está em lugar de nada | Entrevista com José Resende
ARTIGOS
Religião e estética: a arte como comunicação | Mariana Emiliano Simões
Ensaio sobre a perda do instante decisivo | Pollyanna Freire
O risco como poética artística | Leandro Furtado
O SDJB e as obras neoconcretas | Elizabeth Catoia Varela
Da suspensão à implosão no caminho da arte e tecnologia | Maria Luiza Fragoso
O objeto e a experiência material | Marcus Dohmann
COLABORAÇÕES
Robert Smithson: a memória e o vazio na paisagem entrópica contemporânea | Martha Telles
O arquivo e a busca de visibilidade – Pinturas de gênero histórico nos álbuns fotográficos dos salões de Paris | Pedro de Andrade Alvim
O ato poético como experiência estética no readymade de Marcel Duchamp | Renata Reinhoefer França
Cartografia da demarcação da terra que produz diamantes – cotidiano em suspensão | Fabíola Silva Tasca
DOSS IÊ Espaço Ar te B ras i l e i r a Contemporânea – ABC / Funarte | Organização Ivair Reinaldim
R E E D I Ç Ã O A n o v a t e o r i a d a representação | José Arthur Giannotti
TEMÁTICAS
Por uma oftalmologia do estético e uma ortopedia do olhar | Robert Morris
O que fazer da vanguarda? Ou o que resta do século 19 na arte do século 20? | Thierry de Duve
Expressão conceitual sobre gestos conceituais em pintura supostamente expressiva, traços de expressão em trabalhos protoconceituais e a importância de procedimentos artísticos | Isabelle Graw
Seis conceitos | Bernard Tschumi
PÁGINA DUPLA Duplicação/Repetição/Londres/Paris/ Patético/Trágico, 2008-201 | Cezar Batholomeu
RESENHAS
projetos [in]provados: visitação, texto e partilha | Maria Moreira
Forma em movimento: videoinstalações refletem sobre o tempo no MAC | Fernando Gerheim
Contra o encerramento do desejo. A poesia concreta no Espacio de Lectura 1: Brasil | Fernando Nogueira
Sophie Calle Cuide de você | Fernanda Pequeno
Arte & Ensaios 19, 2009
Em outra vida acho que fui arquivista | Entrevista com Paulo Bruscky
ARTIGOS
Uma prática urbana entre outras: Enquanto o artista bebe água, a obra acontece | Fabrício Carvalho
Espaços virtuais: cantos, no 4, de Cildo Meireles - estudo de caso de uma metodologia de conservação e restauro de arte contemporânea | Humberto Farias
A chama como experiência meditativa na cena teatral | Almir Ribeiro da S. Filho Emygdio de Barros: o poeta do espaço | Glória Chan
Cultura visual porta adentro e a construção de um olhar decorativo no século 19 | Marize Malta
Digitally Born ou de volta para o futuro | Simone Michelin
COLABORAÇÕES
A poética da memória e o efeito-arquivo no trabalho de Leila Danziger | Luiz Cláudio da Costa
C a m p o / e v e n t o / a r q u i v o , a s possibilidades do arquivo atual como exposição problemática de (algumas) obras contemporâneas | Cristina Ribas
Furor de arquivo | Suely Rolnik
O reviramento do sujeito e da cultura em Hélio Oiticica | Tania Rivera
DOSSIÊ Warburg | Organização Cezar Bartholomeu, Aby Warburg, Giorgio Agamben
REEDIÇÃO Introdução à leitura de Winckelmann | Gerd Bornheim
TEMÁTICAS
Um passeio pelos monumentos de
Passaic, Nova Jersey | Robert Smithson
“Eu não trabalho com símbolos.” Joseph Beuys, a experiência e a construção da lembrança | Jean-Philippe Antoine
Arquivos da Arte Moderna | Hal Foster
Atlas de Gerhard Richter: o arquivo anômico | Benjamin Buchloh
PÁGINA DUPLA Interface I, Janela no MNBA | Carlos Azambuja
RESENHAS
O projeto do Renascimento |Ana Cavalcanti
A filosofia de Andy Warhol | Louise D.D.
Arquivo contemporâneo | Ivair Reinaldim
Jardim da Oposição | Guilherme Bueno
2 em 1 | Kenny Neoob
Felipe Cohen – Colagens | Sérgio Bruno Martins
Arte & Ensaios 18, 2009
No território da fronteira | Entrevista com Dias & Riedweg
ARTIGOS
Imaginário Periférico: impasses, propostas e principais questões | Renata Gesomino
A arte de Konstantin Christoff: possibilidades do estudo de uma região do norte de Minas Gerais e sua relação com a estética do grotesco | Maria Elvira C. Christoff
Jeff Wall e a imagem quase transparente na fotografia contemporânea | Leonardo Ventapane
Cindy Sherman – retardo infinito | Cezar Bartholomeu
Na fronteira da pintura e do teatro: Tadeusz Kantor e Valère Novarina | Ângela Leite Lopes
As decorações carnavalescas cariocas, um breve histórico | Helenise Guimarães
COLABORAÇÕES
Limites do tempo | Vera Beatriz Siqueira
O desvio de Cildo Meireles: um modo de estar no mundo contemporâneo |Sylvia Ribeiro Coutinho
Vem cá minha Teresa... | Marta Lúcia Pereira Martins
A comunidade inventada da Puente México, Tijuana: participação e acolhimento no projeto de arte pública de Felipe Barbosa e Rosana Ricalde na fronteira entre dois mundos | Luiz Sérgio de Oliveira
HOMENAGEM Vida ativa | Glória Ferreira e Sonia Gomes Pereira
REEDIÇÃO Da Antropofagia à Tropicália | Carlos Zilio
TEMÁTICAS
Sucessos e fracassos quando a arte muda | Allan Kaprow
Refazendo passaportes: o pensamento visual no debate sobre multiculturalismo | Néstor García Canclini
A arte e o 11 de setembro | Arthur C. Danto
Repensando o Ocidente |A. Raghuramaraju
PÁGINA DUPLA Alvo fácil: jogue a bomba aqui - Museu de Serralves, Porto, Portugal, 2008 - Bolsa Iberê Camargo, residência no Espaço Maus Hábitos | Ronald Duarte
RESENHAS
Caminhos da arte popular. O vale do Jequitinhonha | Rosza vel Zoladz
Nova Arte Nova | Felipe Scovino
Cildo Meireles - Tate Modern, Londres| Rodrigo Krul
Estética relacional | Luciano Vinhosa
As ilhas sonham | Marisa Flórido Cesar
Arte & Ensaios 17, 2008
No Hemisfério Sul | Entrevista com Artur Barrio
ARTIGOS
Celeida Tostes e a narrativa do feminino | Isabel Hennig
A arte de copiar: gravura, pintura e artista colonial | Raquel Quinet Pífano
Escultura como imagem | Cristina Salgado
Para chegar ao mictório deve-se descer a escada (em dois lances de 8 ou 80) | Milton Machado
O projeto de Revitalização do Museu D. João VI da EBA / UFRJ, a reinterpretação do acervo do museu e sua nova curadoria | Sonia Gomes Pereira
COLABORAÇÕES
Arte e deriva: a escrita como processo-invenção | Cecilia Cotrim
Circuito, cidade e arte: dois textos de Malasartes | Patricia Corrêa
Estratégias para não se perder na cidade Derivas urbanas de Sophie Calle | Cláudia França
Idéias-em-forma: invervenções de
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011224 225SUMÁRIO DAS EDIÇÕES ANTERIORES
Gordon Matta-Clark | Elena O’Neill
Abordagens da cultura popular carioca: Hélio Oiticica, Dias & Riedweg, Paula Trope e Rosana Palazyan | Beatriz Pimenta Velloso
HOMENAGEM Dossiê Luciano Fabro | Simone Michelin, Glória Ferreira, Carlos Zilio, Vanda Klabin e Carla Vendrami
REEDIÇÃO A escultura no campo ampliado | Rosalind Krauss
TEMÁTICAS
Táticas de jogo da Internacional Situacionista | Libero Andreotti
A polêmica em torno de Tilted Arc:: um precedente perigoso? | Harriet F. Senie
Um lugar após o outro: anotações sobre site-specificity | Miwon Kwon
O romance do espaço público | Adrián Gorelik
PÁGINA DUPLA Sítios arqueológicos | Luciano Vinhosa
RESENHAS
As coleções do Museu Nacional do Azulejo de Lisboa | Raphael Fonseca
Colors of the world: a geography of color | Rosane Bezerra Soares
Anita Malfatti, no tempo e no espaço | Messias Basques
Experiência neoconcreta: momento limite da arte | Elizabeth Catoia Varela
Últimos lançamentos da coleção Arte+ | Ivair Reinaldim
Nova York delirante: um manifesto retroativo para Manhattan | Rodrigo Krul
Bia Medeiros: trajetórias do corpo | Alexandre Emerick
Arte & Ensaios 16, 2008
A gente vai para o que ama | Entrevista com Ernesto Neto
ARTIGOS
Perguntas ordinárias em percursos existenciais – algumas considerações sobre a produção artística em contextos urbanos | Enrico Rocha
As charges políticas e seu reflexo na sociedade | Octavio Aragão
Antônio Bento e a vanguarda artística brasileira no final da década de 1950 | Ana Paula França Carneiro da Silva
Conversas em exposição: sentidos da
arte no contato com ela | Lígia Dabul
No olhar da imagem | Carlos Alberto Murad
COLABORAÇÕES
A fragmentação do corpo do herói e a sensibilidade do final do século 19 | Maraliz de Castro Vieira Christo
Território: um evento que dá lugar à experiência estética | Luciano Vinhosa
Corpo, caminhos e lugares | Alexandre Emerick
Retrato fotográfico oitocentista: o corpo visto através do “olhar iluminista” | Lícius da Silva
HOMENAGEM Dossiê Eliane Duarte | Paulo Venancio Filho, Chacal e Viviane Matesco
REEDIÇÃO Breviário sobre o corpo | Lygia Clark
TEMÁTICAS
O corpo é imagem | Jean-Marie Schaeffer
Masculino, feminino ou neutro? | Adrian Forty
Vídeo: a estética do narcisismo | Rosalind Krauss
Seguindo Acconci/visão direcionada | Christine Poggi
PÁGINA DUPLA Ângelo Venosa
RESENHAS
A arte da performance – do futurismo ao presente | Alexandre Sá
Espaço e performance | Alexandre Emerick
The preference for the primitive | Rosane Bezerra Soares
L’image ouverte | Cezar Bartholomeu
Arte & Ensaios 15, 2007
Tornar o real .... | Entrevista com Iole de Freitas
ARTIGOS
Como se existisse a humanidade | Marisa Flórido Cesar
Como fazer cinema sem filme? | Livia Flores
As narrativas fotográficas de Marcel Gautherot: estudo visual do guerreiro a lagoano e do bumba-meu-boi maranhense | Patrícia Pereira Peralta
Cotidiano e cultura no Rio de Janeiro na década de 1950: os cinejornais da
Agência Nacional | Renata Vellozo Gomes
Arquitetura moderna brasileira e as experiências de Lucio Costa na década de 1920 | Ana Slade
Imagens migrantes | Janaina Garcia
COLABORAÇÕES
O Ateliê livre de gravura do MAM-Rio 1959/1969: projeto pedagógico de atualização da linguagem | Maria Luisa Luz Tavora
Exercícios estéticos de ampliação de espaço e liberdade | Maria Luiza Tristão de Araújo
A estética fenomenológica de Merleau-Ponty | Rosa Werneck
A utopia expressionista de Kandinsky | Sheila Cabo Geraldo
Instauração: um conceito na filosofia de Goodman | Noéli Ramme
A ironia e suas estratégias na obra de Cildo Meireles | Felipe Scovino
Arte contemporânea brasileira nas fronteiras do pertencimento | Marcelo Campos
Off register: o retrato por Andy Warhol | Fernanda Lopes Torres
Universos paralelos: Paul Klee e Mira Schendel | Beatriz Rocha Lagoa
Compreender é julgar | Entrevista de Danièle Cohn a Glória Ferreira e Cezar Bartholomeu
HOMENAGEM Jean Baudri l lard – enigmas e paradoxos da imagem na era do simulacro | Rogério Medeiros
REEDIÇÃO Modelos europeus na pintura colonial | Hannah Levy
TEMÁTICAS
Gênese de uma pintura de Paul Gauguin: manifesto e auto-análise de um pintor | Dario Gamboni
Buren sobre Ryman, Moritz sobre Winckelmann: a crítica constitutiva da história da arte | Roland Recht
Estúpida | Yve-Alain Bois
Arte e política | Ana Mendieta
Táticas para viver da adversidade. O conceitualismo na América Latina | Mari Carmen Ramírez
Francastel e Panofsky: o espaço como problema | Jean Duvignaud
PÁGINA DUPLA Carlos Murad.
RESENHAS
O documentário de Eduardo Coutinho: cinema, televisão e vídeo | Beatriz Pimenta.
Auto Retrato - exposição na Fundação Serralves | Márcia Valéria Teixeira Rosa
Manet: uma mulher de negócios, um almoço no parque e um bar | América Cupello
O fim da história da arte | Mauro Trindade Escritos de artistas-anos 60/70 | Isabela Pucu
Arte & Ensaios 14, 2007*
Edição Especial - Correspondência Transnacional
Livros, botes e pássaros | Sutapa Biswas entrevistada por Michael Asbury
COLABORAÇÕES
Longe ou perto demais para saber do que se trata | Moacir dos Anjos
Sombras / Shadows | Michael Asbury
A re-locação da autenticidade e os dilemas transnacionais | Oriana Baddeley
O sonho americano (sonhos que o dinheiro pode comprar) - Notas sobre o inter-nacionalismo na cultura moderna | Guilherme Bueno
Diálogos espaciais: os derramamentos de caramelos de Felix Gonzalez-Torres | Deborah Cherry
Ar te e po l í t i c a à margem do multiculturalismo | Fernando Cocchiarale
Capítulos à parte | Glória Ferreira
Este Corpo é Todo Poros | Milton Machado
Vicissitudes do valor da anglicidade em Hamburgo do século 19: Nikolaikirche, a prefeitura e o sistema de água e esgoto | Toshio Watanabe
Mira Schendel: rumo a história de um diálogo | Isobel Whitelegg
Goeldi: um expressionista nos trópicos | Paulo Venancio Filho
Justamente o contrário | Carlos Zilio
Gostava da arte que produziam e gostava deles como pessoas. Assim, nos tornamos amigos | Entrevista de Guy Brett a Linda Sandino
TEXTOS DE REFERÊNCIA
Introdução de Information | Kynaston McShine
Rumo a uma nova localidade: as bienais e a “arte global” | Hou Hanru
Nosso Bauhaus, barraco dos outros | Rasheed Araeen
Modernos fora dos eixos | Paulo Sergio Duarte
Da arte nacional brasileira para a arte brasileira internacional | Tadeu Chiarelli
O tango local e a dança global: Uma
conversa inacabada entre Vasif Kortun e Cuauhtémoc Medina | Cuauthémoc Mediria e Vasif Kortun
DOSSIÊ CORRESPONDÊNCIAS
Introdução | Malu Fatorelli
Carta à mãe | Édouard Manet
Carta a Anita Malfatti | Mário de Andrade
Carta à família | Mário Pedrosa
Carta a Mira Schendel | Vilém Flusser
Carta a Hélio Oiticica | Lygia Clark
Carta a Lygia Clark | Hélio Oiticica
Brígida Baltar - Conversas por e-mail com Amal Saade e Christine Lemke, 2001 | Brígida Baltar
PÁGINA DUPLA David Medalla | Lúcia Nogueira
RESENHAS
l shall be the tropical sun | Suzana Vaz
DoubtfuI Strait um modelo da celebração da incerteza | Joanne Harwood
Tópicos sobre coletivos de artistas | Daniela Mattos/Alexandre Sá
London, London | Cristina Salgado
Questionando a necessidade de circular; fisicamente. Um encontro com Judy Freya Sibayan | ErikaTan
Arte & Ensaios 13, 2006
Que história é essa?! | Entrevista com Carlos Zilio
ARTIGOS
A obra de arte na era de sua reproduti-bilidade turística | Alexandre Sá
O belo e o sublime românticos nas paisagens de mundos virtuais online | Martha Werneck
Esplendor e sigilo: o Brasil na cartografia portuguesa dos séculos XVI e XVII | André Monteiro de Barros Dorigo
Read Me, Ready Me: a caixa preta do ser em tempo real | Ricardo Maurício
Os pintores de letras: um olhar etnográfico sobre as inscrições vernaculares urbanas | Marcus Dohmann
A importância do uso na preservação da obra de arquitetura | Cyro Corrêa Lyra
COLABORAÇÕES
Salões Oficiais de Arte no Brasil – um tema em questão | Angela Ancora da Luz
Kosuth com Freud – Imagem, psicanálise e arte contemporânea | Tânia Rivera
Uma conversa com José Damasceno | Sandra Vieira Jürgens
Formalismo e Modernidade | Guilherme Bueno
Lances de Hubert Damisch. Pensando a arte na história | Ernst van Alphen
Por um último Ring-Gespräch | Catherine Bompuis
Da prática da arte às outras práticas. O papel da arte na produção de realidade | Luciano Vinhosa
HOMENAGEM Linguagens Visuais – 10 anos
DOSSIÊ Instituições de arte no Brasil – relatos de experiências | Interface
REEDIÇÃO Salão de 1879 | Ângelo Agostini
TEMÁTICAS
Os espaços discursivos da fotografia | Rosalind Krauss
Entrevista a Harald Szeemann | Carolee Thea
Abertura da cilada: a exposição pós-moderna e Magiciens de la Terre | Thomas Mc Evilley
Um meio à procura de sua forma as exposições e suas determinações | Katharina Hegewich
Do indício ao índice ou da fotografia ao museu | Daniel Soutif
PÁGINA DUPLA Simone Michellin
RESENHASArt since 1900 | Alexandre SáDada | Cezar BartholomeuPoét ica(s) dos F luxus: a lgumas considerações | Daniela Mattos Marcia X: clichês | Felipe ScovinoTropicália: uma revolução na cultura brasileira | Michael AsburryEscritos de Artistas nos Anos 60/70 | Patricia GuimarãesPrague Biennale 2 Expanded painting / acción directa | Pedro MeyerBig Bang: destruição e criação na arte do século 20 | Sheila Cabo Le mouvement des images - Art et Cinéma | Valéria Faria
Arte & Ensaios 12, 2005*
Tornar real a realidade | Entrevista com Carmela Gross
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011226 227SUMÁRIO DAS EDIÇÕES ANTERIORES
ARTIGOS
Não-habitável como poética de espaço | Regina de Paula
Imagens e signos de Santa Teresa: movimentos artísticos e culturais de um bairro carioca | Luciane de Siqueira
A figura nos concursos de magistério | Ivan Coelho de Sá
Translocalidade | Giordani Maia
Imagem fotográfica na República Velha: um estudo sobre a coleção Rondon do Museu Histórico do Exército e Forte de Copacabana | Elizabete Mendonça
A pintura histórica de Antônio Parreiras: a temática do herói nacional e o imaginário republicano | Reginaldo da Rocha Leite
COLABORAÇÕES
Escarificações na pele ingênua da arte | Guilherme Vaz
A instalação em situação | Stéphane Huchet
Retrato de Dorian Gray – uma pintura in progress | Ligia Canongia
O momento que dura para sempre | Sean Scully
Semiótica aplicada à análise da imagem: a corte no Rio de Janeiro nos desenhos de Joaquim Cândido Guillobel | Rosana Ramalho
Bellevue II: uma visão não tão bela da sociedade de consumo | Antônio Sena Batista
Crítica em tempos de guerra: Ruben Navarra e os anos 40 | Vera Lins
REEDIÇÃO Sobre pintura moderna | Ruben Navarra
DOSSIÊ Soto
TEMÁTICAS
O artista como etnógrafo | Hal Foster
Quando (onde) a obra acontece | Jean-Marc Poinsot
O pós-artista | Peter Plagens
O debate crítico e os problemas estéticos | Rainer Rochlitz
A função crítica da arte entre recusa e indeterminação | Serge Bismuth
ENCARTE Milton Machado
RESENHAS
Marcel Duchamp – uma biografia | Alexandre Sá
Luz e letra | Carlos Augusto Nóbrega
Proust e a fotografia | Cezar Bartholomeu
Experiência crítica – textos selecionados: Ronaldo Brito | Fernanda Lopes
Os artistas contemporâneos e a filosofia | Glória Ferreira
Sobre um lugar – Torreão | Malu Fatorelli
A peregrinação de Watteau à ilha do amor | Rogério Medeiros
Imaginário brasileiro e zonas periféricas – algumas proposições da sociologia da arte | Valéria de Faria Cristofaro
O Pensamento Crítico Brasileiro | Viviane Matesco
Arte & Ensaios 11, 2004
Movimento aleatório disciplinado | Entrevista com Abraham Palatnik
ARTIGOS
Imagem digital e interatividade: considerações sobre o estatuto de obra e autoria nas representações expostas na rede | Yoko Nishio
Vítor Meireles e a tradição pictórica | Alexandre Linhares Guedes
Ações pontuais no espaço telemático: rádio e webrádio | Romano
Aloisio Magalhães: o artista, a arte e o design brasileiros na óptica de seus contemporâneos | Isis Fernandes Braga, Isis Braga
A Exposição do Centenário e o meio arquitetônico carioca do início dos anos 20 | Ruth Nina Veira Fereira Levy
O longe e o perto como distâncias contemporâneas | Malu Fatorelli
COLABORAÇÕES
Depois de História do Futuro (arte) e sua exterioridade | Milton Machado
Lygia Pape: gravuras ou antigravuras? Deslocamentos possíveis da tradição | Maria Luisa Luz Tavora
A (outra) Arte Contemporânea Brasileira: intervenções urbanas micropolíticas | Fernando Cocchiarale
Cildo Meireles: A indústria e a poesia | Moacir dos Anjos
Sub specie ludi: Função e estrutura de uma “arte lúdica” | Marion Hohlfeldt
Um copo de mar para navegar | Luisa Duarte
Interações, hibridações e simbioses | Carlos Augusto Moreira da Nóbrega Guto Nóbrega
HOMENAGEM Dossiê Lygia Pape
TEMÁTICAS
O impulso alegórico: sobre uma teoria do Pós-Modernismo | Craig Owens
A atividade fotográfica do pós-modernismo | Douglas Grimp
A visualização de dados como uma nova abstração anti-sublime | Manovich
Curadorias do fluxo – os desafios do intercâmbio colaborativo e do espaço das novas mídias | Sarah Diamonds
Tempos subjetivos & tempos objetivos da fotografia | François Soulages
Arte na vanguarda da Net: O futuro será úmido! | Roy Ascott
ENCARTE Livia Flores
RESENHAS
Arte e Vida no Século XXI e Redes Sensoriais | Valéria de Faria Cristofaro
O quarto iconoclasmo e outros ensaios hereges | Ricardo Cristofaro
Forma e Imagem Técnicas na Arte do Rio de Janeiro: 1950-1970 | Fernanda Lopes
Zoom out | Glória Ferreira
Lance 36 | Romano
O artista em meio à era do indivíduo | Rosza vel Zoladz
Fronteiras: arte, crítica e outros ensaios | Guilherme Bueno
Lygia Pape – Entre o Olho e o Espírito | Viviane Matesco
Arte & Ensaios 10, 2003*
Superfícies em distúrbio | Entrevista com Eduardo Sued
ARTIGOS
O espaço de representação e as representações do espaço | André Amaral
A Vontade Poética no Diálogo com os Bichos: o ponto de chegada de uma arte participativa no Brasil | Felipe Scovino
Angelo Agostini: a arte de levar a sério um trabalho bem-humorado | Octavio Aragão
COLABORAÇÕES
Desenho, composição, tipologia e tradição clássica – uma discussão sobre o ensino acadêmico do século 19 | Sonia Gomes
Duas visões sobre a Pop Art: Clement Greenberg e Arthur Danto | Fátima Couto
História, Antropologia e Arte: uma proposta de abordagem transdisciplinar
para o tema da “natureza exuberante” nas artes brasileiras | Helio Vianna
REEDIÇÕES
Milton Dacosta: vinte anos de pintura | Mário Pedrosa
Born to be Famous: a condição do jovem artista, entre o sucesso pop e as ilusões perdidas... | João Fernandes
TEMÁTICAS
O que é um artista (hoje)? | Nicolas Bourriaud
Linguagem internacional? | Gerardo Mosquera
A idé ia de obra-pr ima na arte contemporânea | Arthur C. Danto
Quando a forma se transformou em atitude – e além | De Duve
Entrevista a Carolee Thea | Dan Cameron
O ensino da arte conceitual | Charles Harrison João Fernandes
ENCARTE Regina de Paula
RESENHAS
O Meio Como Ponto Zero – metodologia da pesquisa em artes plásticas | Malu Fatorelli
Pensando a Arte na Escola | Marcelo Campos
Revistas de arte: biopolíticas em mídias gráficas | Newton Goto
A vanguarda como software | Romano
L’artiste en personne | Glória Ferreira
A Semiologia da Imagem Francesa e o Contexto Brasileiro | Rogério Medeiros
Arte & Ensaios 9, 2002**
O lugar que vejo | Entrevista com Antonio Dias
ARTIGOS
O ateliê do artista | Marisa Flórido Cesar
Galeria do Poste Arte Contemporânea: estudo etnográfico sobre arte e inventividade no espaço urbano | Laura Martini Bedran
Projeto Urubu na Ilha do Fundão | Gisele Ribeiro
Entre a alegoria e o deleite visual: as pinturas decorativas de Eliseu Visconti para o Theatro Municipal do Rio de Janeiro | Ana Maria Tavares Cavalcanti
COLABORAÇÕES
Chega de futuro? Arte e tecnologia diante da questão expressiva | Paulo Sergio Duarte
Barnett Newman: Pintura escrita / escrita pintura | Mel Bochner
Riegl e Benjamin: arte, história e teoria moderna | Sheila Cabo Geraldo
E Agora? | Ricardo Basbaum
Revista de Art[istas] dos anos 1968-79 | Sylvie Mokhtari
Sinceridade como conceito | Christine Tichatschek
REEDIÇÃO Belas-Artes | Gonzaga Duque
HOMENAGEM Dossiê Lucio Costa
TRADUÇÕES
Arte e objetidade | Michael Fried
Expanded Body. Variations V e a conversão das artes na era eletrônica | Marcella Lista
Arte híbrida? Um olhar por trás das cenas globais | Hans Belting
Sociologia visual: seguindo o olhar de Robert Frank | Howard Becker
RESENHAS
O trágico tematizado no imaginário | Rosza W. vel Zoladz
Uma história do espaço – de Dante à internet | Malu Fatorelli
O espaço moderno | Guilherme Bueno.
Palatnik: a luz e o movimento no pioneiro da fusão arte e tecnologia no Brasil | Felipe Scovino
Arte & ensaios 8, 2001**
As coisas vêm chegando | Entrevista com Aluísio Carvão
ARTIGOS
Giulio Carlo Argan, Clement Greenberg: a teoria para a arte moderna como projeto | Guilherme Bueno
A construção de um imaginário moderno: as capas da Editora Civilização Brasi leira (1960-1975) | Amaury Fernandes da Silva Junior
O pêndulo do sentido: distâncias indiciais e oscilações alegóricas | Ricardo Maurício
“Como todos os outros”: arte e estética na antropologia modernista | Kátia Maria Pereira de Almeida
O imaginário e seus contextos de referência no Brasil | Rosza W. vel Zoladz
Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro: revisão historiográfica e estado da questão | Sonia Gomes Pereira
Emprestar a paisagem – Daniel Buren e os limites críticos | Glória Ferreira
COLABORAÇÕES
O feminino na arte | Viviane Matesco
A reinvenção do realismo como arte do instante | Luiz Renato Martins
Atrocidades maravi lhosas: ação independente de arte no contexto público | Alexandre Vogler
Adrian Piper | Cyríaco Lopes
REEDIÇÃO Propósito experimental | Jorge de Oteiza
TRADUÇÕES
Terra e museu – local ou global? | Guy Brett
Jean-Luc Nancy / Chantal Pontbriand, uma conversa | Chantal Pontbriand
Circuito das heliografias: arte conceitual e política na América Latina | Mari Carmen Ramírez
Regionalismo | François Loyer
A rede de Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas | Alfred Gell
HOMENAGEM Paulo Houayek. Dia-a-dia | Carlos Zilio
RESENHAS
O cotidiano digital | Marcelo Simão de Vasconcellos
As diferenças culturais | Luciane de Siqueira
O fotógrafo e o historiador ilustrado | Cezar Bartholomeu
Mestre Valentim | Anna Maria Tavares Cavalcanti Volpi
Ivan Sá e Vera Hermano | Flávio de Carvalho
Alexandre Pessôa. The Pleasure of Beholding | Marcia Campos
Zona Franca | Adriano Melhem de Mello
Voici | Ítalo Bruno, Zalinda Cartaxo e Malu Fatorelli
De onde vem e para onde vai o fio da faca (construtiva) | Luiz Renato Martins
As instituições da arte | José Luiz da Silva Nunes
Arte & Ensaios 7, 2000**
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011228 229SUMÁRIO DAS EDIÇÕES ANTERIORES
Pano-de-roda | Entrevista com Cildo Meireles
ARTIGOS
Da polifonia poético-visual nas artes armoriais | Daniel Bitter
Justificação de um gesto | Edwiges da Silva Henriques
Klaxon: um percurso de leitura | Marcus Vinícius de Paula
A propósito do imaginário e suas representações culturais | Rosza W. vel Zoladz
Picasso e a história | Paulo Venancio Filho
Anna Bella Geiger: inquietações no corpo fragmentado | Maria Luisa Luz Tavora
Os labirintos do imaginário. Influências estéticas no cinema de Glauber Rocha | Rogério Medeiros
Projeto MN.02: ensaio no espaço de telecomunicações da cidade do Rio de Janeiro | Simone Michelin
Imagem e idéia – a propósito da experiência artística | Angela Ancora da Luz
Corpos escritos. Paisagem, memória e monumento: visões da identidade carioca | Margareth da Silva Pereira
(?)? Pergunta dentro da pergunta | Ricardo Basbaum
Considerações sobre a escultura urbana de Richard Serra | Renato Rodrigues
Ecco: uma experiência de arte a distância | Ricardo Maurício
REEDIÇÃO
Formação do artista no Brasil | José Resende
ENTREVISTA | Paulo Mendes entrevista João Fernandes
TRADUÇÕES
Uma perspectiva sociológica sobre a continuidade entre as práticas cotidianas, as atividades artísticas e a sensibilidade estética | Jean Pierre Silvestre
A arte da natureza | Gilles A. Tiberghien
Procedimentos alegóricos: apropriação e montagem na arte contemporânea | Benjamin H. D. Buchloh
Arte sem paradigma | Arthur C. Danto
RESENHAS
Um olhar aprisionado na imagem-máquina – as novas tecnologias virtuais de transmissão de imagens e sua ação diluidora de uma visão do real | Elizabeth C. Paiva Silva
O mais novo Laocoonte | Guilherme Bueno
O que vemos, o que nos olha | Renata Camargo
Cibercultura: para uma compreensão do contemporâneo | Etinete A. do Nascimento Gonçalves
A psique exterior | Luis Andrade
A imagem da cidade | Luciane de Siqueira
Nosso século 21 – notas sobre arte, técnica e poderes | Laura Bedran
Estampas Eucalol: imagem, cultura e nostalgia | Regina Lucia Schiefler da Cunha Tessis
O humanismo lírico de Guignard | Adriano Melhem de Mello
A cultura do papel | Paula Wienskoski
Arte & Ensaios 6, 1999**
Entrevista com Amilcar de Castro
ARTIGOS
Base Central Cão Mulato viralata em processo | Edson Barrus
Carybé, obra e tradição: o universo mítico afro-brasileiro | Marcelo Campos
A dobra e a diferença: colagens de Picasso | Marisa Flórido Cesar
O mundo em metamorfose. Análise semiológica de Paisagem Brasileira, de Lasar Segall | Rogério Medeiros
Identidade e estratégias do gosto artístico no Rio de Janeiro setecentista | Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira
“Fazer de dois um multiplica o rir”. Depoimentos sobre Lygia Clark em Paris | Glória Ferreira
Arte com filtro – XXIV Bienal Internacional de São Paulo | Roberto Conduru
As bienais – formatos abertos x conteúdos fechados. Reflexões sobre identidade e função das bienais | Luiz Guilherme Vergara
Hélio Oiticica e a morte do cinema | Cláudio Dacosta
Quase Cinema, Block-Experiments in Cosmococa CC 3: Maileryn. A fragrância narcótica da arte | Luis Andrade
Do caráter mercantil, monetáro e, ainda assim, autônomo do objeto de arte | Moacir dos Anjos
REEDIÇÃO Jorge Guinle: Raciocínios de um pintor | Jorge Guinle Filho
TRADUÇÕES
Narciso barroco. Hubert Damisch · Tradução Maria Flórido · Revisão Glória Ferreira
Douane-Zoll | Jean-Claude Lebensztejn Tradução Glória Ferreira · Revisão Antonio Guimarães
Mesa-redonda: a recepção dos anos 60 | Tradução Carlos Feferman · Revisão Paulo Venancio Filho
RESENHAS
A arte no contexto do lugar | Arthur Leandro/Alexandre Vogler
FARMAX – passeios na densidade | Fabiana Izaga
A crítica capaz | Luis Andrade
A herança da arte | Resenha Muriel Caron Tradução Fabiana Santos
A noção de estilo | Guilherme Bueno
Les raisons du paysage | Lenice da Silva Lira
O crítico Walter Benjamin | Beatriz Rocha Lagôa
Le primitivisme dans l’art moderne | Rosza W. vel Zoladz
Clássico anticlássico | Rosana de Freitas
Limites do moderno, o pensamento estético de Mário de Andrade | Marcus Vinicius de Paula
Arte & Ensaios 5, 1998**
Entrevista de Lygia Pape a Paulo Venancio Filho, Glória Ferreira e Ronald Duarte
DOSSIÊ Lygia Pape
ARTIGOS
Arte em explosão: rompimento dos limites entre as categorias artísticas | Renata Wilner
Da arte: sua condição contemporânea | Luciano Vinhosa Simão
Materialidade Situs: um recorte espacial | Ronald Duarte
Artista, formação do artista, arte moderna | Carlos Zilio
O ensino de arquitetura no Brasil no século 19 – uma contribuição ao estudo do tema | Cybele V.N. Fernandes
Claude Monet quer que a catedral se torne uma esponja de luz | Maria Luisa Luz Tavora
História, cultura periférica e a nova civilização da imagem | Paulo Venancio Filho
Vitalidade e socialidade da arte: a estética de Guyau | Annamaria Contini
Reinterpretar a modernidade | Entrevista de Thierry De Duve a Glória Ferreira e Muriel Caron
Kant depois de Duchamp | Thierry De Duve
RESENHAS
Sob o domínio da imagem banal | Elizabeth Paiva
Compulsive Beauty | Monica Mansur
L’informe, mode d’emploi | Glória Ferreira
Carta de Lord Chandos, Hugo Von Hofmannsthal | Paulo Houayek
Arte & Ensaios 4, 1997**
A influência do computador na arte contemporânea | Luiz Antonio Fernandes Braga
Primitivismo no Les Demoisel les d’Avignon: universalidade na tradição | Lígia Dabul
Bastide, a arte e os outros | Jean Duvignaud
Umbandacarnaval | Luiz Felipe Ferreira
Cela e mundo – o conflito de Mondrian na tridimensionalidade | Cristiane Monteiro Flores
Exposições universais: duas diferentes abordagens em obras francesas recentes | Ruth Vieira Ferreira Levy
A leitura visual de Viva Jacaré. Uma ilustração cinematográfica de Rui de Oliveira | Marisa de Oliveira Mokarzel
O cinema em cartaz. Um estudo de caso: Fernando Pimenta | Carlos Eduardo da Silva Valente
Arte & ensaios 3, 1996**
Os “Tecelares” de Lygia Pape | Maria Clara Amado Martins
Os abebés. Os espelhos do ventre | Elena Maria Andrei
São Miguel Arcanjo. Duas esculturas policromadas | Fátima Justiniano
A cidade e a arte contemporânea | Anne Cauquelin
Decadentismo e maneirismo em relações de personalidade | Francisca Maria Teresa dos Reis Baltar
O objeto industrial na linguagem cinematográfica - Um estudo da formação da cultura de massa perante o objeto industrial, através do cinema | Vicente Cerqueira
A expressão da natureza na obra de Paul Cézanne | Marcelo Duprat Pereira
Arte & ensaios 2, 1995**
Sobre Celeida | Helena Severo
Celeida de Barro | Regina Célia Pinto
Um módulo vida na Universidade Federal do Rio de Janeiro | André Bazzanella
A cerâmica como processo. Uma experiência prática no Centro Integrado de Cerâmica EBA/UFRJ | Marcos Varela
A cerâmica como elemento aglutinador para três domínios diversos. O barro, a madeira, a informática | Isis Braga
A cidade de terra | Amauri Ferreira Macedo
“Teapot Po Ris Malevich” | Piedade Epstein Grinberg
Fazer cerâmico. Fazer urbano, fazer imaginário | Andréa Pessôa Borde
Arte & ensaios 1, 1994**
Entrevista com Carlos Zilio
Formação do artista plástico no Brasil – o caso da Escola de Belas Artes | Carlos Zilio
O hedonismo rococó através da pintura de temática carnavalesca |Ivan Coelho de Sá
Mãos na pedra – a repetição do gesto primevo na Toca da Argila, região arqueológica da Central, BA | Angela Rabelo
Grupo Frente e o experimentalismo emergente de Lygia Pape, Lygia Clark e Hélio Oiticica | Eileen M.F. Cunha
Um sonho que se mostra – a criação da Casa do Pontal | Maria Angela S. Mascelan
Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011230 231SUMÁRIO DAS EDIÇÕES ANTERIORES
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIROCENTRO DE LETRAS E ARTESESCOLA DE BELAS ARTESPROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS
O Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais destina-se a proporcionar formação cultural e artística, ampla e aprofundada em níveis de mestrado e doutorado, desenvolvendo a capacidade de ensino e pesquisa no campo teórico e do fazer artístico.
árEas dE ConCEntração
História e Teoria da ArteTeoria e Experimentação em Arte
linhas dE pEsquisa
História e Crítica da Arte (HTA)Imagem e Cultura (HTA)Linguagens Visuais (TEA)Poéticas Interdisciplinares (TEA)
Corpo doCEntE pErmanEntE Amaury FernandesAna Cavalcanti Ângela Leite LopesCarlos Alberto Murad
Carlos Augusto NóbregaCarlos AzambujaCarlos TerraCelso Pereira GuimarãesCybele Vidal Neto FernandesHelenise Guimarães Livia FloresMarcus Dohmann Maria Cristina Volpi Nacif Maria Luiza FragosoMaria Luisa TavoraMarize MaltaMilton MachadoPaulo Venancio FilhoRogério MedeirosTadeu CapistranoSimone MichelinSonia Gomes Pereira
ColaboradorEs
Angela Ancora da LuzCezar Tadeu Bartholomeu (LV)Doris Kosminsky (PI)Felipe Scovino (LV)Giselle de Carvalho Ruiz (PI)Glória FerreiraMaria Clara Amado (HCA)Rosa Werneck
publiCaçõEs
Revista Arte & EnsaiosCaderno de Pós-GraduaçãoAnais do Encontro do Programa de Pós-Graduação
Para envio de colaborações, consultar www.eba.ufrj.br/ppgav/arte&ensaios ou pelo e-mail [email protected]
Endereço para correspondênciaPrograma de Pós-Graduação em Artes Visuais | EBA/UFRJAv. Pedro Calmon, 550 / sala 704 | Prédio da Reitoria | Cidade Universitária | Ilha do FundãoRio de Janeiro | RJ | Brasil | 21.941-901 | Tel.: (21) 2598 1643www.eba.ufrj.br/ppgav/arte&ensaios | [email protected]