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a e Arte & Ensaios Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais / EBA / UFRJ ano XVIII · n. 23 · novembro 2011

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Arte

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os

Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais / EBA / UFRJ

ano XVIII · n. 23 · novembro 2011

ISSN - 1516-1692

Semestral

BARTHOLOMEU, Cezar, TAVORA, Maria Luisa (org.)Arte & Ensaios n. 23. Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais/ Escola de Belas Artes, UFRJ, novembro de 2011. 224 p. 1. Artes Visuais 2. História e Teoria da Arte 3. Imagem e Cultura 4. Linguagens Visuais

I. Universidade Federal do Rio de Janeiro II. Título

a eA

rte &

Ens

aios

Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais / eba / ufrj. Qualis A2 – CAPES

Apoio CNPq e CAPES

UFRJ · Universidade Federal do Rio de JaneiroReitor | Carlos Antônio Levi da ConceiçãoDecano do Centro de Letras e Artes | Flora De Paoli FariaDiretor da Escola de Belas Artes | Carlos Gonçalves TerraCoordenadora do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais | Maria Cristina Volpi Nacif

EditorEs rEsponsávEis

Cezar BartholomeuMaria Luisa Tavora

Comitê Editorial

Carlos Alberto MuradMaria Luisa TavoraMilton MachadoRogério Medeiros

ConsElho Editorial

Amaury FernandesAna CavalcantiAngela Ancora da LuzAngela LeiteCarlos MuradCezar BartholomeuDóris KosminskyFrançois Soulages (Université de Paris VIII)Georges Didi-Huberman (EHESS/Paris)Gerardo Mosquera (New

Museum of Contemporary Art NY)Giselle RuizGlória FerreiraGuto NóbregaGuy Brett (Curador independente Inglaterra)Jean-Claude Lebensztejn (Université de Paris 1)Livia FloresMarcus DohmannMaria Luisa TavoraMaria Luiza FragosoMarize MaltaMilton MachadoPaulo VenancioRogério MedeirosSonia Gomes PereiraTadeu Capistrano

EditorEs ExECutivos

Gloria CostaRonald Duarte

EquipE Editorial

Analu CunhaAna MannarinoCarla de CiccoClaudia BakkerDenise LopesGabriela MuredGloria Costa Mariana EstellitaMarina MenezesRoberta BarrosRonald DuarteViviane Viana

rEvisão

Maria Helena Torres

abstraCts Elvyn Marshall

projEto gráfiCo

Mary Paz Guillén

Capa

Milton Machado

agradECimEntos

Bárbara Spanoudis

Inês de AraujoFloriano RomanoGabriel AmorimConchita MorgadoElizabete Marin RibasLouise GanzLuiza VidalLuis Camillo OsorisMAC USPMaria Isabel BrancoMarisa FloridoPriscila PlantaridaVanessa Santos

6

40

Apresentação

O que eu quero que você veja é a sombraMilton Machado

Espetáculos de civilidade: modernidade e pós-modernidade no papel-moeda brasileiroAmaury Fernandes

Festas reais em Portugal e no Brasil Colônia: organização, sentido, função socialCybele Vidal Neto Fernandes

A imersão no panorama de Victor MeirellesCristina Pierre de França

O ticumbi: imagens e memória da Vila de ItaúnasLuciana Alvarenga

De quantas partes se faz uma quimera maquínica?Bete Esteves

Sob palavras e imagens: proposição poética e contextualização cultural de um disposi-tivo digital de artemídiaMano Vianna

Robert Morris e o estúdio do artistaKim Paice

Teatro de imagens e autobiografia: espetáculo?Gabriela Lírio Gurgel Monteiro

As Exposições Gerais da Academia de Belas Artes: teatro de corte e formação de um mercado de artes no Rio de JaneiroLeticia Squeff

Theon SpanudisArte das formas e arte das formações

ENTREVISTA

52

ARTIGOS

64

74

82

94

104

118

COLABORAçõES

REEDIçÃO

128

138

5

SUMáRIO

APRESENTAçÃO

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxAlém da crítica institucionalIsabelle Graw

Representação, apropriação e poderCraig Owens

A função do ateliêDaniel Buren

Espetáculo, atenção, contramemóriaJonathan Crary

Analu Cunha

Heloisa Schneiders da Silva obra e escritosGlória Ferreira

No contemporâneo: arte e escrituraexpandidasAna Mannarino

Gerhard Richter, SinopseAlvaro Seixas

José ResendeFelipe Scovino

Ana Linnemann, CartoonVera Beatriz Siqueira

Francis Alÿs - A Story of DeceptionDoris Kosminsky

Sumário das edições anteriores

160

186

196

210

212

213

214

216

217

220

222

PáGINA DUPLA

RESENHAS

TEMáTICAS 148

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 20116 7ENTREVISTA | MILTON MACHADO

Cezar Bartholomeu Acho interessante começar pensando sua relação com a arquitetura.

Milton Machado Minha história curricular é a seguinte: na minha infância, um tio da Marinha, que

era capitão de mar e guerra, me trazia brinquedos importados, carrinhos com controle remoto e tudo o

mais. Por influência dele, eu quis ser da Marinha também para poder viajar, ter coisas importadas, mas

para isso tinha que ser militar, e eu não tinha a menor vocação. Tomei um gosto por montagens, por

engenharias, a partir de um brinquedo francês que ele me trouxe chamado Mecano, fantástico, com o

qual você monta estruturas, helicópteros, rodas-gigantes. Eu brincava com esse brinquedo diariamente,

montava coisas incríveis, às vezes fugia do figurino dos manuais, fazia coisas que eu mesmo inventava,

minhas próprias máquinas. Então eu achei que estudar engenharia seria, além de uma coisa de geração,

vocação. Fiz um ano de engenharia na PUC, em 1964. No meio do ano, comecei a sentir certa dificuldade

com geometria analítica no espaço. Achava que era possível aquilo fazer sentido, mas para mim não

fazia, era muito além de minhas possibilidades, de minha realidade construída a Mecano. Some-se

a isso o fato de eu passar muitas das aulas jogando boliche em uma pista em frente à faculdade.

Comecei a sentir uma dificuldade imensa, primeiro porque era um universo muito diferente do meu

próprio círculo tijucano – na PUC, muitos alunos foram do Santo Inácio, eu era do Aplicação, chegavam

lá de BMW, Alpha Romeo, e eu de carona num Fusca. Falei então para meus pais, que eram muito

compreensivos: quero mudar de curso. Minha mãe consultou um psicólogo que me aplicou um teste

vocacional e apontou que seria aconselhável eu fazer arquitetura. Que, aliás, era uma atividade que meu

pai exercia, mesmo sem ser arquiteto formado. Fiz vestibular para arquitetura e fiquei até o fim, formei-

me arquiteto. Fundei com Antônio José, que é meu amigo até hoje, o cineclube da FAU, que dirigimos

com nosso entusiasmo típico de Geração Paissandu, apesar da interferência do diretor, que apagava a

luz da faculdade inteira para nos impedir de mostrar os filmes, obrigando-nos a transferir nossas sessões

para teatros da Zona Sul, o que acabou nos proporcionando maior visibilidade e publicidade. Foi um

O QUE EU QUERO QUE VOCÊ VEJA É A SOMBRA

Milton Machado

Entrevista de Milton Machado a Arte & Ensaios – com a participação de Tânia Rivera, Cezar

Bartholomeu, Livia Flores, Marina Menezes, Rodolfo Caesar, além de Glória Ferreira e Guilherme

Bueno, que enviaram perguntas por e-mail – no ateliê do artista em 14 de outubro de 2011.

Kosuth Teóricoobjeto, cartões impressos, foto, verbetesdécada de 1980

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 20118 9ENTREVISTA | MILTON MACHADO

cineclube importantíssimo nos anos 60. Comecei a estudar cinema loucamente, vi montes de filmes e

com isso não tinha muito tempo para assistir às aulas. Assistia a poucas aulas, mas participava de um

grupo de estudos extremamente dinâmico com colegas e com arquitetos, como Paulo Casé, com quem

trabalhei por uns cinco anos.

Tânia Rivera Grupo de estudos sobre o quê?

MM Sobre arquitetura, basicamente. Muitos de nós trabalhávamos com Paulo Casé e Luiz Acioli num

escritório bastante dinâmico dos anos 60. Some-se a isso minha aproximação à música. Ainda na

arquitetura eu já tocava um pouco de violão e comecei a estudar mais seriamente. Estudei sete anos

de violão clássico, de modo que acho que posso incluir a música como parte de minha formação. A

FAU já funcionava no prédio da EBA, que não tinha EBA, que na verdade é uma intrusa. Tínhamos uma

relação muito intensa com aquele edifício, porque virávamos noites lá fazendo projetos de arquitetura

sobre pranchetas fantásticas desenhadas por Jorge Moreira, com armários individuais e equipamento

perfeito, hoje tristemente sucateado. Apesar da distância, era um lugar que nos acolhia muito. Tínhamos

professores incríveis, bons arquitetos atuantes, como o próprio Paulo Casé, Henrique Mindlin e vários

outros, pessoas bacanas. A atuação política no diretório, do qual eu era representante externo, também

foi fundamental porque me fez participar de reuniões do DCE, da UME, da UNE. Então, minha vida era

isso, assistir a filmes, alguma militância, ir ao Museu de Arte Moderna; eu me lembro de exposições de

Genovese, de Ivan Serpa, Flavio Shiro, e tenho quase certeza de que era capaz de sentir o cheiro da tinta

a óleo, que me inebriava.

TR Isso foi em que ano mais ou menos?

MM Eu entrei para a faculdade de arquitetura em 1965, me formei em 1970. O próprio fato de

frequentar o MAM, de estudar cinema, estudar música, me fazia um peixe fora d’água na engenharia.

Assim, quando me formei eu já estava completamente embananado, porque, além de estar entregue,

como alguns nesta sala, à experiência psicodélica com relativa intensidade, havia a experiência musical,

sexual, drogal, entremeadas por sessões de análise de grupo e meditações budistas. Isso me deixava um

tanto perdido, literalmente perdido nas minhas tentativas de encontro. Em 1973, fascinado por Robert

Crumb e companhia, organizei e publiquei A Esperança no Porvir, uma revista de quadrinhos, o que

aumentou mais ainda a balbúrdia. Lembro que fui ao escritório do Casé tentar vender a revista,

todos ficaram chocadíssimos: mas você não é arquiteto? Acho que sim, eu devo ter dito, mas isso

não impede que eu faça revistas em quadrinhos… Assim que me formei em 1970 fui para o Instituto

Villa Lobos, onde conheci Rodolfo Caesar; somos amigos desde então. Estudei um pouco de música

no Villa Lobos, mas comecei a estudar mais seriamente com professores como Jodacil Damasceno,

Yan Gestzi, entre outros. Isso tudo gerava uma confusão danada, mas produtiva. De uma coisa eu não

fazia parte de jeito nenhum: ser artista, não havia o menor ... não sabia o que significava isso. Eu não

imaginava uma situação de artista expositor, embora eu desenhasse desde pequenininho. Mas houve

uma circunstância que me deixou frente a frente com Gilberto Chateaubriand. Ele foi a uma galeria

muito importante para a história das artes no Rio de Janeiro – Veste Sagrada, depois Central de Arte

Contemporânea – para comprar uma coisa qualquer e se deparou com um desenho meu que é a capa

de A Esperança no Porvir, e começou a me procurar. Um ano depois ele estaria comprando os primeiros

trabalhos meus de sua coleção, e assim tudo começou, um pouco a minha revelia. Sintomaticamente,

esse desenho se chama O Princípio do Fim.

Glória Ferreira Você chegou a frequentar cursos de arte antes de participar da Bienal de São Paulo,

em 1969?

MM Acho que só fui frequentar curso de arte quando fiz o doutorado na Inglaterra, se é que se pode

considerar um PhD Fine Arts um curso de arte, em que acabei escrevendo algo mais voltado para a filosofia.

Da Bienal de 1969 participei como estudante, um concurso internacional de escolas de arquitetura, em

que nossa equipe tirou segundo lugar, empatando com a da França. Nos anos 70, tive umas poucas

aulas de gravura em metal com Eduardo Sued. Mais tarde, início dos anos 80, já às voltas com a pintura,

inscrevi-me no curso de Aluísio Carvão no MAM, pensando em travar com ele interlocuções mais teóricas,

mas logo saí quando ele descobriu, constrangido, que eu não era exatamente um iniciante, julgando

que eu não teria nada a aprender com exercícios rudimentares que ele passava para totais iniciantes.

Não me incomodava com isso, mas talvez não fosse mesmo necessária tal iniciação para usufruir da

sabedoria dele, de pintor e gente fina. Para não perder o dinheiro da inscrição, transferi-me para o curso

de serigrafia de Dionísio del Santo, que era genial, experiência da qual resultou uma única serigrafia

com tiragem de 1/1. Aí ocorreu algo semelhante ao encontro com Carvão. Dionísio achou que, antes

de me aventurar por caminhos mais experimentais e de pretender ambicionar uma linguagem própria,

eu deveria “soltar o traço”. Os catálogos que então dei a ele causaram a mesma surpresa que causaram

em Carvão, mas Dionísio me acolheu de modo caloroso, e fui com ele até o final do curso. Não sei mais

como se faz, mas tenho e gosto muito de minha única serigrafia de impressão única.

TR Quando é que virou uma arquitetura sem medidas?

MM Não sei se existe arquitetura sem medidas, mas sei que existe o arquiteto sem medidas, que tento

ser eu mesmo. É claro que existe arquitetura sem medidas, a arquitetura dos jardins de Canterel em

Locus Solus, por exemplo. Uma arquitetura sem medidas é a que recorre a medidas marotas, peculiares.

Os metros de Duchamp só servem para levantar construções fictícias, porque se você construir um

edifício com os metros de Duchamp o edifício vai ruir. A denominação “arquiteto sem medidas” veio

com História do Futuro. Esse é um trabalho que surgiu da vontade – ou eu poderia dizer desejo, fazendo

contraponto com a palavra desígnio, projeto –, do desejo de um arquiteto sem medidas preocupado

com a perda da unidade e sua recuperação. A primeira vez que me deparei com esse problema foi

quando li um livro escrito em 1938 pelo paleontólogo Alfredo Brandão, A escripta pré-histórica no

Brazil, em ortografia antiga. Ele especulava sobre a existência do Pangea, o continente único que foi

separado por cataclismos, terremotos, no período cambriano. Com o instrumental que eu tinha da

arquitetura, dispus-me a projetar um sistema de pontes gigantescas que, progressiva e artificialmente,

iriam reconstituir a unidade perdida. Era um projeto originado de especulações científicas, lidas num

livro de paleontologia, mas que nasce de uma ficção, de um projeto utópico, imaginário, de minhas

pontes simbólicas, sem medidas. É curioso, porque se a gente lê o Timeu, uma primeira referência que

Platão faz é à Atlântida, uma porção de terra ideal e fantástica, que desapareceu. Um “mito verossímil”,

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201110 11ENTREVISTA | MILTON MACHADO

segundo Francisco Samaranch, na introdução da edição espanhola que tenho. Assim, o “arquiteto sem

medidas” surge como o autor desse projeto inexequível, inútil, totalmente especulativo, mas do qual

emerge a preocupação – e, aí sim, essa é uma medida que se pretende universal – de reconstituição da

unidade. O trabalho começa, então, com desenhos muito rudimentares, cheios de erros aliás, ou melhor,

imperfeições. A primeira série de desenhos de HF tem erros, por exemplo na direção em que o Módulo

de Destruição caminha, entre outros pequenos detalhes gráficos, mas...

TR Erros de continuidade?

MM Sim. Erros na configuração das chamadas Cidades Mais-que-Perfeitas, por exemplo. Eu não conhecia

ainda a conformação dessas cidades, que só depois fui descobrir, quando percebi que não estava lidando

apenas com o desejo de construir pontes imaginárias, mas com um problema seríssimo, com a própria

questão da unidade, uma recorrente idealidade ocidental, vide a busca de unidade do self, unidade do

planeta, unidade da arte, unidade de Deus, essas coisas todas que perturbam nossa natureza fragmentária

e que nos fazem aperfeiçoar cada vez mais a busca da coisa una. História do Futuro começa em 1978,

justamente quando eu frequentava uma especialização em urbanismo na própria FAU, que não terminei.

Mas no mesmo andar já funcionava o Instituto de Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional – IPPUR,

que era excelente. E eu passei lá cinco longos anos fazendo mestrado em planejamento urbano. Minha

dissertação chamou-se História do Futuro. Levei o trabalho para lá, causando certo problema para mim e

para eles. Ouço dizer que os bibliotecários até hoje caminham com o volume História do Futuro para lá

e para cá sem saber onde colocar. Aliás, tenho eu também a mesma dificuldade.

TR É um Módulo de Destruição.

MM Exatamente, é um Módulo de Destruição; eu diria até que minha passagem pelo IPPUR foi um

pouco assim; talvez eu tenha causado certo rebuliço pelo fato de ter reivindicado minha presença lá não

como arquiteto, mas como artista. Fiz questão de me identificar como artista e, na defesa da dissertação,

tive que enfrentar a banca como tal. Fizeram-me uma pergunta que me colocaria numa situação difícil,

porque me cobrava interlocuções com o planejador urbano. Algo que eu não era mesmo. E que os

professores do curso também não eram. Respondi argumentando que não conhecia nenhum planejador

urbano. Um economista, que aliás é um sujeito brilhante, Carlos Vainer, queria me colocar em exigência.

Mas eu falei: não posso ter interlocução com quem não conheço, não conheço qualquer pessoa que seja

planejador urbano, e nem vocês são. Meu orientador, Carlos Nelson Pereira dos Santos, era arquiteto e

antropólogo, completamente avesso à ideia mais ortodoxa de planejamento. O que estou dizendo é que

uma ideia de planejamento urbano que proponha uma teleologia de projeto e daí o controle do espaço

urbano vinha fortemente criticada na dissertação. Afinal, era a tese de um “arquiteto sem medidas”.

CB Fico pensando na ideia de um problema de projeto e trazer isso para um problema de experiência e

não mais de projeto. A perplexidade é o modo de tirar uma coisa de seu projeto e causar a experiência?

MM A perplexidade é uma inevitável condição contemporânea. Você tem no início do século 20 a

necessidade imperiosa da certeza, sem a qual você não poderia ter Mondrian, não poderia ter Malevitch,

História do Futurodetalhe, 2 de 14 desenhos

1. Cidades Mais-que-Perfeitas, Módulo de Destruição2. Cidades Mais-que-Perfeitas, Ciclos de Vida, Destruição e Construção

1978– em progresso

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o construtivismo russo, nem mesmo o dadaísmo. Mesmo em sua negatividade, o dadaísmo tinha certeza

pelo menos de ser contra a arte, contra o Dada inclusive. É o que o Danto chama de Era dos Manifestos.

Era necessário que os artistas tivessem certezas absolutas daquilo que estavam propondo. Se pensarmos,

por exemplo, no temor quase insuportável que os pintores abstratos tinham do nonsense, que faz

Kandinsky recorrer ao espiritual na arte, ou Malevitch ao suprematismo, ou Mondrian dizer que só

existe um caminho para a vida, portanto um único caminho para a arte, o que se vê são veredictos,

diagnósticos e proposições definitivas. Hoje em dia, se alguém lhe apontar o caminho de qualquer coisa,

você pode estar certo de que está mentindo. Isso me faz pensar numa proposição muito interessante de

Jeff Koons. Ele diz: se você me mostrar uma imagem abstrato-expressionista, ficarei desconfiado de suas

boas intenções; mas se você me mostrar algo em que eu consiga ver os pixels, aí saberei que podemos

falar seriamente, porque saberei que você está me enganando, portanto estaremos combinados.

Sabemos hoje que só a ficção não mente. Não temos mais nem a necessidade de ter certeza de alguma

coisa. Pensemos na derrocada das grandes narrativas, na perda da unidade, na ideia da arte como

projeto unificador. A perplexidade vem dessa incapacidade, e mais, da inutilidade de termos certezas.

É preciso viver a experiência micrologicamente. Por isso recorro, lá nas minhas teorias, até no título da

exposição (1 = n), um intervalo, aos parênteses. É uma ferramenta conjuntural, para tratar não com

extensões, mas com intensidades. Por exemplo: (1 = n) é um intervalo que fala da indeterminação e,

ao mesmo tempo, da igualdade. Coloco arte entre parênteses para poder falar dela, de alguma arte,

durante certa vigência intervalar. O subtítulo da minha tese é (arte) e sua exterioridade. Recorro aos

parênteses para poder garantir – muito provisoriamente – que estamos entendidos: arte com inicial

minúscula, necessariamente. Ou, se quisermos, de cavanhaque e bigode e com o rabo quente. Uma arte

que seja nossa, mais próxima de nós, como distâncias em proximidade.

CB Começar uma premissa de não certeza.

MM Sim. Qual arte? A arte de Joseph Beuys, a arte de Andy Warhol. Sim, mas qual trabalho? Em qual

circunstância? Nesse intervalo, vamos falar que língua? Em qual contexto? Lygia Clark entra no livro Art

Since 1900 como arte não ocidental, e eis aí um intervalo barra-pesada. Acho até que Paulo Venancio

cobrou isso do Yve-Alain Bois. E aqui, na palestra que deu em São Paulo, Rosalind Krauss foi extremamente

fugidia. Recusou-se a responder à pergunta, nem sequer admitiu que o livro do qual é coautora diz isso

de Lygia Clark. O livro comete a generosidade de nos “reconhecer” como não ocidentais. Bem, esses

intervalos, os parênteses que os demarcam, não devem permanecer para sempre. São como as margens

de História do Futuro, a que me refiro no Texto Descritivo de 1978. Posso inventar qualquer maluquice

dentro desse universo, porque ali eu sou deus. Estou garantido por aquelas margens, porque aquilo é

desenho, drawing, não é design, não é projeto. Então, até segunda ordem, eu não tenho qualquer tipo

de compromisso de ser consistente com as realidades objetivas, nem com outras histórias. É claro que

faz parte de minha responsabilidade, em determinado momento, romper com essa margem, que é (de)

limitadora, por isso excludente. Ela deve cumprir o papel de romper-se, de vazar para além dos papéis,

ou seja, de tratar a relação desse intervalo com outros intervalos. Daí a proposição: tudo é intervalar e

modular. Isso tem a ver com o modernismo; foi aí que eu aprendi sobre os módulos, você cria módulos

que funcionem segundo ordens específicas.

TR História do Futuro é uma grande alegoria crítica, mesmo da linguagem de ordem simbólica. Você

reafirma que ela não se refere a nada, mas você reconstrói uma grande fábula que é uma espécie de – e

estou evitando o termo metalinguagem – uma espécie de linguagem crítica, autocrítica, que diz respeito

à arte e ao mundo.

MM Falei que até certo ponto eu poderia me garantir naquelas margens desenhadas a lápis. Esse certo

ponto pode ser o momento em que eu, estudando a teoria do planejamento urbano – com mergulhos

profundos na economia política de Karl Marx, por exemplo, e é claro por conta de meu interesse

pela cidade como urbanista e arquiteto – senti que meu trabalho era devedor de algum coeficiente

de realidade. Eu reconhecia que era de minha responsabilidade recorrer a algum tipo de mecanismo

que derrubasse os parênteses. Isso aconteceu radicalmente na Sicília, onde vivi uma experiência

absolutamente mágica. Eu estava na Itália por conta de uma exposição. Fui o curador e convidei quatro

artistas [Cinque Artisti Brasiliani: Angelo Venosa, Daniel Senise, Frida Baranek, Ivens Machado, Milton

Machado, Sala Uno, 1990] para uma coletiva em Roma, e como decorrência surgiu o convite a mim e

Ivens Machado para fazermos individuais numa pequena cidade siciliana chamada Gibellina, destruída

em 1968 por um terremoto, que abriga um museu importante e inúmeras esculturas públicas. A Sicília

é um lugar muito inóspito, totalmente isolado de tudo, um lugar onde você percebe o isolamento de

forma muito clara. Pois bem, eu fui para uma cidade destruída por um terremoto. Ora, em História do

Futuro, a origem dos chamados plissements, que remetem às fissuras na crosta terrestre de que fala

Alfredo Brandão, são geológicas, são terremotos, cataclismos, o que já traz uma primeira analogia. Pois

eu estava ali, instalado nessa nova Gibellina, absolutamente nova, construída ao lado de uma cidade

velha destruída por um terremoto...

TR A analogia vem depois, e não antes…

MM A analogia vem depois, são as histórias do futuro, que vêm com as simbologias. Além disso, as

coincidências não são coincidências, são histórias coincidentais. Que se sucediam de forma vertiginosa!

Quando cheguei ao espaço em que fizemos as exposições, um prédio inacabado, ainda em construção

– lembrando que em História do Futuro há um Ciclo de Construção, um Ciclo de Vida e um Ciclo de

Destruição – havia lá, como que esperando minha presença, uma sequência de pilares de concreto

armado, vazios. Pois me pareceu óbvio que sua função era a de receber o Módulo de Destruição!

E foi exatamente o que fiz; meu cubo está lá até hoje e nunca mais vai sair, a não ser que apodreça;

foi adotado pelo edifício e pelo arquiteto como escultura pública permanente. Está plantado sobre

Pilares do Novo Mundo, que foi como passei a enxergar os pilares outrora vazios de Gibellina, que são

elementos do chamado Mundo Perfeito de História do Futuro.

E aí veio a esfera, representação do Nômade. Lembrem-se de que a origem do trabalho é a separação

dos continentes. Olho pra ela: uma bola de mármore port’oro, peça que foi desviada de uma construção

onde funcionaria como terminação de uma balaustrada. E aí eu vejo, marcados pela natureza, pelos

deuses meridionais, em ouro sobre negro, os continentes desenhados na superfície da esfera! Pensei: os

deuses estão me provocando, querendo que eu leve minhas analogias até o fim. E assim foi: bem em

frente ao prédio onde expus havia uma igreja de forma e gosto duvidosos: uma esfera atravessando um

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201114 15ENTREVISTA | MILTON MACHADO

cubo! Que remete, justamente, à situação crucial em História do Futuro, em que o Nômade, que é uma

esfera diminuta, atravessa o Módulo de Destruição, que é um imenso cubo.

Isso me fez repensar, mexeu comigo e com o trabalho. Embora possa ser muito interessante, poético,

muito belo até, eu dizer que o “O Nômade se move” [do texto Fast Forward, História do Futuro] ou

dizer que o que importa é o caminho, coisas que tirei de minha própria cabeça ou de citações filosóficas

interessantes, ali eu olhava em volta e via pessoas reais no papel do Sedentário, do Nômade. Todos

esses “personagens conceituais” estavam conversando comigo, numa língua que eu, aliás, não entendia,

porque, se eu falava bem italiano, muitos deles só falavam bem siciliano. Era uma situação intervalar, em

que as analogias que eu propunha como possibilidade do trabalho, até como uma espécie de álibi para

justificar o trabalho, caíam por terra, ou caíam do céu com a força dos cataclismos, fazendo-me deparar

com realidades não mais Mais-que-Perfeitas, mas mais-que-totalmente-objetivas.

TR A realidade vem depois da ficção.

MM Exato. É uma espécie de confirmação, justamente, da perplexidade. Isso acontece muito em meu

trabalho, e de certa forma me causa sobressaltos como, por exemplo, desenhar uma paisagem de

meu quarto para, na mesma semana, sofrer dois assaltos consecutivos, em que me roubaram exatamente

os objetos que estavam no desenho.

Livia Flores Acho curioso, ouvindo esse seu relato de vida e de trabalho, como os títulos acabam se

amalgamando. Fico pensando em Homem Muito Abrangente, em Sobre a Mobilidade. Você fala da

situação em que o Gilberto vai lá e compra seus trabalhos, você diz que ali você não estava na posição

de artista, foi um acidente. Depois você está numa banca de defesa de mestrado, e ali você se afirma

como artista. Fico pensando no trabalho sobre a mobilidade que faz do móvel imóvel e do imóvel

móvel... esses modos de mobilidade.

MM É, a mobilidade. O Nômade se move, mas não é o único. A exposição Sobre a Mobilidade, no Paço

Imperial em 2001 e que depois itinerou por Brasília e São Paulo, tratava de uma situação específica, tinha

a ver com meu retorno para o Brasil. Os títulos são importantes para mim. Somas e Desarranjos é outro

título importante...

LF Um homem muito abrangente, você fala de inúmeras possibilidades…

MM “O título é o fim, no mais são vitrines”. Essa era uma de minhas pequenas tentativas poéticas no

catálogo da exposição Somas e Desarranjos [Galeria Saramenha, Rio, 1985]. Havia pinturas “íntegras”

na vitrina da galeria, quando lá dentro aconteciam operações desconstrutivas extremamente elaboradas

e matemáticas. As somas são importantes, mas os desarranjos são mais, porque se somam às somas.

Havia o slogan “ver as coisas pela metade para conhecê-las em dobro”. Enfim, essa derrubada, essa

desconstrução, já está no próprio projeto; então, “o título é o fim, no mais são vitrines” porque, se chego

ao título, é como se o trabalho estivesse pronto para acabar. Não que ele acabe, o trabalho não acaba

nunca; tem o trabalho e depois tem o trabalho do trabalho, que muitas vezes se pode apelidar de arte, o

trabalho do trabalho da escultura, da pintura, da fotografia, do filme. Pode-se chamar de arte o trabalho

do trabalho, não aquele objeto que ali está, prostrado, inerte. É o trabalho do trabalho que faz com que

a arte esteja sempre à procura, até de si mesma. Assim, se eu chego ao título é porque, de certa forma,

cheguei à necessidade dessa demonstração. CQD – como queríamos demonstrar. O título nunca aparece

antes, sempre depois. História do Futuro já se chamou História do Processo, e se você for aos originais

verá que está escrito História do Processo, antiga História do Futuro, que preferi não apagar. Isso me

diverte, eu me arrependi de chamar História do Processo, antiga História do Futuro, de História do Futuro.

História do Futuro é um título do futuro para um trabalho em processo, em progresso.

TR Você acha que essa diversão não é fortuita em seu trabalho, existe uma diversão que é uma torção

que é feita...

MM Não é fortuita, há uma certa maldade, no sentido maldoso, uma certa travessura. Sobre a Mobilidade

é o subtítulo do trabalho Edifício Galaxie. Fotografei os originais de Edifício Galaxie em 1975, quando

Nômade de História do Futuro, 1978 escultura, detalhe da instalaçãoin Interventi, Museo Civico Gibellina 1990-91

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201116 17ENTREVISTA | MILTON MACHADO

o carro era 0Km, um Ford Galaxie verde-metálico que era do pai de um amigo. O edifício também era

novinho, nem tinha sido inaugurado, na esquina da Farme de Amoedo com Vieira Souto. Em 1975,

cliquei as 36 fotografias de um filme, mas só descobri que aquilo podia tornar-se um trabalho em 1982,

quando ampliei as sete fotos finais. Aí descobri que havia em uma delas um grupo de capoeiristas

que conheci em 1978, quando eu era capoeirista amador. Portanto, conheci os caras em 1978, os

fotografei em 1975, mas só fui descobrir isso em 1982! E tem mais, eram capoeiristas, não eram

jogadores de pôquer. Nada mais móvel do que um capoeirista. Em 1990, quando estava na Sicília, perdi

o negativo original, que havia feito a partir de fotomontagens manuais, construídas com tesoura e cola.

Os laboratoristas sicilianos, quando ampliaram as fotos, perderam justamente a tira do negativo com

os capoeiristas, e tive que fazer novo negativo a partir de uma reprodução. No lugar de minha tira de

negativos veio outra, com imagens de um aniversário de crianças. Crianças que, na minha cabeça, só

podiam ser sicilianas, naturalmente. Então vim para o Brasil e mostrei ao Zé Roberto, que me ajudou com

as ampliações em 1982, e ele disse: “Que crianças sicilianas qual nada, este aqui é o João, meu filho!”

E eu: “Zé, como é que um negativo da festa do teu filho em Teresópolis foi parar na Sicília?” Claro que

pode vir algum gaiato e explicar que a tira sempre esteve dentro do envelope. Mas eu não quero ouvir

isso, sabe, não quero ouvir. Que tipo de pergunta é essa? Essa é daquelas perguntas que não são para ser

feitas. Perguntas que, se fossem ouvidas, poderiam vir a comprometer até o mito verossímil da Atlântida,

que inaugura toda a cosmologia do Platão, a criação do mundo, o Universo. É como na Utopia, de

Thomas More. Alguém está descrevendo aquele lugar, aquela agricultura, aquela economia saudável e

tudo o mais, e aí vem um cara e pergunta: “Existe mesmo esse lugar?” Um outro alguém ao lado tem um

ruidoso acesso de tosse, de modo que a pergunta não é ouvida. Sempre que a pergunta é feita, alguém

tosse e não se ouve a pergunta... O curioso é que Thomas More admite e inclui o risco da pergunta, isto

é, a pergunta pode vir a ser feita; portanto é preciso cuidado com as proposições, assim como é preciso

cuidar dos ruídos que as cercam. Cuidar da tosse, da rouquidão, por assim dizer, junto com a bela voz.

TR Você usa frequentemente um discurso pseudocientífico, acho que como uma espécie de paródia.

Você traz uma diversão que é, talvez, o que faz o Investigador entrar em férias.

MM O Investigador está em férias; em férias porque ele/eu precisa ser, precisa dar uma de Artista. Na

verdade, são uma mesma coisa, em diferentes personificações. Quando comecei a pensar no vídeo que

faz parte da coleção do RioArte [As Férias do Investigador, direção Arthur Omar, 1994], eu seria um ator

travestido ora em Madame, ora em Artista, ora em Investigador, que é uma triangulação perfeita, um

personagem não existe sem o outro. Quando está investigando, o Investigador está desenhando, sua

demonstração é toda desenhada com cores, formas e tudo mais. Quando ele se retira em férias entra

em cena o Artista, no mesmo lugar em que a investigação se passou, à beira da piscina de Madame.

São coisas concorrentes, são falas, investimentos concorrentes para demonstrar uma situação sem saída,

sem solução, porque em As Férias do Investigador a pergunta crucial, “Afinal, quem é a vítima?” não é

respondida (mas é formulada, sem acessos de tosse). Na exposição [Galeria Cesar Aché, Rio, 1981], se

você conhece As Férias do Investigador, a resposta que ele consegue decifrar é: “O artista matou a vítima

Screwpintura, de Somas e DesarranjosRio de Janeiro 1985

Edifício Galaxie (sobre a mobilidade)7 fotografias, fotomontagens, vídeo detalhe, 1982

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201118 19ENTREVISTA | MILTON MACHADO

afogando-a na piscina e escondeu o corpo no jardim das hortênsias, à tardinha.” A tardinha era 5:30h:

a hora em que o Investigador entra em férias e que eu chegava à galeria, recebia o público e abria os

livros desenhados para as pessoas que estavam vendo desenhos na parede. Havia uma troca o tempo

todo de identidades, de personagens, de suportes, de posições. Eu no centro, como Artista Madame

Investigador, mas o meio mesmo era a imagem, o desenho e as investigações. A vítima do trabalho do

trabalho pode ser o trabalho.

TR O que são esses livros?

MM São desenhos feitos em folhas superpostas, como cadernos que você folheia de certa forma e

vão acontecendo coisas curiosas, uma espécie de quebra-cabeça vertical. O que eu fazia era submeter

os objetos pintados – que

nem eram pintados, eram

desenhos em pastel seco

sobre papel – a testes de

desconstrução. Por exemplo,

eu desenhava um original,

feito com 36 gestos, e ao

mesmo tempo a anotação

de sua fatura gesto a

gesto, de modo que um

primeiro desenho contém o

primeiro gesto, o segundo

contém o primeiro mais o

segundo gesto e assim por

diante. O trigésimo sexto

desenho é semelhante ao

original. Rauschenberg faz

um pouco essa provocação

com o expressionismo

abstrato, com pinturas em

que ele repete uma imagem

à semelhança de outra, em

princípio espontânea. O que

de certa forma concluí com

As Férias do Investigador é

que a imagem não precisa

da integridade, de uma unidade de pintura; que a mobilidade, as transações, os contrabandos, as trocas

de posição e outras molecagens que usei para desconstruir ou construir aqueles objetos não conseguiam

comprometer a potência da imagem. Acho que o que garante a permanência da pintura é o interesse

na imagem, mas sem privilégios, porque há o cinema, há o desenho, a fotografia e todos os meios pelos

quais as imagens circulam sem cerimônia. A pintura não está mais discutindo pintura em sua eventual

autonomia, e isso vale para a fotografia, o cinema ou qualquer outro meio. São, propriamente, meios.

Em relação ao discurso pseudocientífico, ou à paródia, gostaria de lembrar o problema da bola de

pingue-pongue que atravessa a parede de concreto. Claro que não é possível isso acontecer. Mas não

me interessa saber se é possível; quero saber se é provável. O professor que propôs esse problema de

física teórica para meus amigos que estudavam engenharia no IME quando eu estudava na PUC não

era nenhum maluco de propor isso, pois a premissa é uma só: isso não é possível. O enunciado pedia

que se calculasse o número que expressaria a probabilidade de uma bola de pingue-pongue atravessar

uma parede de concreto. A resposta objetiva também é uma só: (1x10)–n quando n tende ao infinito.

Não é 0, até segunda ordem. O estudante preguiçoso que respondesse “zero” se daria mal, porque o

professor retrucaria: você não enfrentou o problema, não considerou o problema como problema. Não

estou querendo discutir possibilidades, pois já sabemos que, na prática, isso não é possível. Eu quero

que você prove que, em teoria, a bola pode atravessar, nem que para isso você tenha que recorrer a uma

física alternativa, a uma patafísica. O que estou querendo discutir não é da ordem das possibilidades,

mas das probabilidades.

CB O problema é ser verossímil... O espírito do seu trabalho é essencialmente antitécnico, então a

resposta só responde ali, depois ela…

MM É uma resposta em andamento, na verdade é uma demonstração em progresso. Se eu estiver

correto em meu entendimento de Montaigne, é possível provar que esses óculos, que esse objeto que

tenho na mão é um ovo amarelo. É claro que não é, se você estiver falando em nome da claridade, da

luz, mas o que eu quero que você veja é a sombra, o monstro, a máscara, o rabo quente da Mona Lisa.

Como fazer isso? Você cria um intervalo, abre parênteses, e bota ali dentro o que você bem entender

porque o trabalho, a demonstração é sua. Até segunda ordem, porque depois vêm os julgamentos.

História do Futuro é julgado em Gibellina, embora aquelas pessoas não tenham a menor ideia de que isso

aconteceu lá. Se a ciência dá conta disso ou não, a ciência teórica pelo menos, eu não sei. O importante

é que certas circunstâncias nos levam a fazer coisas alternativas, muitas vezes incertas. Estou sempre

mudando de uma situação para outra.

TR Você chama isso de negociar uma posição…o Nômade, o Módulo de Destruição…

MM O personagem Nômade é mínimo, infinitesimal, é minúscula a escala dele, só que esse Nômade, em

algumas situações, como na instalação da 29a Bienal e em Gibellina, precisa crescer e tomar o aspecto

de uma esfera de mármore, como representação. Mas essas são representações tridimensionais. Nos

desenhos de História do Futuro o Nômade não aparece, é apenas aludido. Já o Módulo de Destruição é

um imenso cubo. A representação gráfica de alguns elementos desse trabalho é uma questão curiosa. As Férias do Investigador, 1981capa da revista Módulo, Rio de Janeiro 1982foto de Sebastião Barbosa

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201120 21ENTREVISTA | MILTON MACHADO

Como representar, por exemplo, as Cidades Mais-que-Perfeitas, já que não dispomos de modelos

para isso? Um modo imediato seria partir das cidades imperfeitas, das cidades familiares pelas quais

circulamos, dos marcos culturais que conhecemos. Sendo esse o caso, talvez a melhor representação

fosse um espelho, em nome das semelhanças, do mimetismo. A negociação de posições entre o Nômade

e o Módulo de Destruição é a negociação de suas diferenças. Isso é o que promove o movimento.

TR Você situa o Nômade como artista, e é ele que trapaceia, ele que de alguma forma introduz uma

presença, ele é um intruso que consegue driblar alguma coisa, transformar alguma coisa nesse esquema

tão perfeito.

MM Nos textos de HF, o Nômade é referido como a “figura emblemática do Homem criador”. Na

verdade o Nômade é um aplicador de cosquinhas, que faz cócegas no Módulo de Destruição, de modo

a provocar sua agitação. São várias as leituras, algumas anedóticas. É um mecanismo, um relógio, um

jogo perfeito, um videogame, uma perseguição Tom & Jerry. Lembro-me, na defesa da tese de mestrado,

de alguém perguntar: mas por que o Nômade só pode mudar de cidades passando pela Posição Alfa?

Dei uma explicação, digamos, técnica, mas que não vem ao caso agora. Eu também poderia ter dito

que é assim porque sou deus nesse trabalho. O que importa é que o Nômade vai ao encontro do

Módulo de Destruição, que ocupa justamente a Posição Alfa. Pois é aí que vão se dar as negociações de

posição. Não é a Posição Alfa que é negociada, e sim a Cidade Mais-que-Perfeita contígua que vai viver

um Ciclo de Vida. Para passar a essa nova cidade e continuar vivendo, para adquirir a tal “forma móvel

de eternidade”, o Nômade terá que passar por dentro do Módulo de Destruição. Mas quem disse que

o Módulo quer? Há, no trabalho, uma leitura possível desse encontro, às vezes bélico, às vezes lúdico,

como um intercurso amoroso, sexual. Platão se refere em determinado texto à transação entre a Alma do

Mundo e a Teoria, com a ideia de bom e de belo, como um encontro sexual, do qual nascem filhos: os

discursos, as obras, a política. Na verdade, uma grande e banal proposição de História do Futuro é que

as diferenças produzem o movimento, do qual o Nômade é causa ativa.

TR Essa proposta é uma leitura alegórica da arte numa dimensão política de negociação das diferenças,

trapaças, jogos, contrabando.

CB O atraso que os parênteses determinam é um atraso da ordem da negociação e é um atraso temporal

também, a analogia vem depois, o mundo está atrasado.

MM Há a formação de uma cadeia, um adiamento permanente. A potência política dos trabalhos,

sejam eles quais forem, está nessa possibilidade de ocupar vários espaços, de migrar de uma cidade para

outra, de buscar e atravessar módulos de destruição. Se não fosse assim, não teríamos mais arte, a

arte teria seu universo específico e delimitado. Ninguém teria mais paciência para a arte, porque se a arte

não tivesse dado essa escapadela com a bunda quente que Duchamp diz que ela tem, se não tivesse se

travestido em outra coisa que não arte e saído por aí rebolando, o que mais poderíamos estar fazendo

em seu nome? Rezar?

Marina Menezes Você poderia falar sobre sua tese? Os parênteses no título implicam exterioridade?

MM O título da tese é After History of the Future, que em português é mais complicado porque fica

Depois de História do Futuro, como Art After Philosophy, que foi traduzido como Arte Depois da Filosofia,

quando talvez fosse mais correto Arte Segundo a Filosofia. Mas não me incomoda tanto a tradução

Depois de História do Futuro, que é como traduzo mesmo. No original, chama-se After History of the

Future: (art) and its exteriority. Isso parte de uma constatação muito confortadora para mim, de que a

arte não existe. Mas não é como diz o Gombrich, que diz que arte não existe, o que existe são os artistas.

Digo de outra maneira: digo que nada existe já como arte, nada acontece como arte, assim como nada

acontece como história. Se você não escrever, e se não escrever bem, você não vai conseguir colocar

a arte nos lugares em que as coisas bem escritas estão bem escritas e fazem história, e aí nada vai virar

arte. Estou falando de julgamentos, do trabalho do trabalho. E estou, de certo modo, apelando para a

lógica do evento.

MMz Os parênteses, a definição, como uma forma de delimitar determinado sentido.

MM Exatamente. Assim como nada acontece como história, nada acontece como arte. Arte não existe

senão como negociação de sua exterioridade. Eu apelo para Heidegger, uma argumentação dele que

já está manjada, a questão do Lichtung, a clareira, em A Origem da Obra de Arte. Eu gosto muito

disso, de sua ideia de uma fissura constituinte. A clareira é uma fissura, um vazio, que apesar ou por

conta de não ter árvores, você percebe, justamente pela claridade, que aquilo é uma floresta mais

facilmente do que se você estiver em uma floresta densa, porque aí você percebe a relação da floresta

com o que está fora. A clareira é a sombra da floresta. Negociação de posições, como em História do

Futuro. Essa sua exterioridade é o que o trabalho tem de mais potente, porque é a partir desse potencial

que está aí dentro, latente, que você vai produzir os julgamentos capazes de levar à ideia de que aquilo

seja arte. Pensar a lógica do evento me ajuda a lidar com isso muito bem. Infelizmente, a palavra em

português foi traduzida como acontecimento, que me parece uma tradução equivocada, pois o evento

seria justamente o contrário do acontecimento, evento é aquilo que só acontece eventualmente. Chama-

se événement, event e traduz-se como acontecimento, ou seja, o caráter eventual da ocorrência a

tradução joga fora. O evento é uma coisa inusitada, tão inesperada que quebra todas as expectativas;

você tem que reorganizar, expandir, reagrupar, renomear as coisas para poder caber aquilo, aquele

evento, ou seja, para que aquilo seja incorporado como história, como arte etc. E arte precisa dos

julgamentos; não adianta você botar um mictório lá no salão dos independentes porque mictório não

vira arte, assim como bolas de pingue-pongue não atravessam paredes. Fonte, o readymade, demorou

meses para ser visto e nem foi visto como Fonte nem como readymade; foi visto como fotografia,

correndo, portanto, o risco de ser visto como mictório. O trabalho ficou conhecido por meio de uma

foto de Stieglitz publicada numa revista, com a legenda: o trabalho de Marcel Duchamp recusado no

salão. E entrou para a história das artes visuais sem nunca ter sido visto, a não ser muito mais tarde,

em suas consagrações. Portanto, negociar uma posição não é brincadeira. Então, o que eu falo sobre

exterioridade é isso, é a negociação com o que não é arte que mostra a eventualidade, a probabilidade

de aquilo ser entendido como arte, discutido como arte, politizado como arte, porque muitas vezes você

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201122 23ENTREVISTA | MILTON MACHADO

coloca aquilo no universo da arte e o trabalho perde potência política. O trabalho do Ilya Kabakov, por

exemplo, incrivelmente político, é tão poético que, colocado em determinadas circunstâncias, poderia

virar um trabalho quase alegórico. Estou falando mais especificamente de um trabalho lindo no qual ele

pede a pessoas quaisquer que tenham ideias, boas ideias [The Palace of Projects, Roundhouse, Londres:

http://srg.cs.uiuc.edu/Palace/projectPages/palace.html]. Um motorista de táxi sugere: todos os mortos

deveriam ser ressuscitados. Ótima ideia! Outra: poderíamos ter uma escada individual que nos levasse,

cada um de nós – como fazemos com nossos orixás –, uma escada altíssima só minha para eu conversar

com o meu anjo da guarda, exclusivo e pessoal. Perigoso? Claro que não, o anjo da guarda protege. Era

maravilhosa a exposição. Exibicionalidade é uma ideia da Sonia Saltzstein que me parece importante.

Usei esse seu conceito em um texto que escrevi, exemplificando com o trabalho do Kabakov, como o

contrário da exibicionalidade. Simplificando, a exibicionalidade que, claro, é um neologismo, se refere a

trabalhos que se valem e dependem da condição de exibição. Nesse trabalho de Kabakov você se senta

no banco de trás e vê o artista na frente conversando com o motorista do táxi; você vê o processo, refaz

a história do processo. Vê da exposição para trás. Curioso que ele expõe isso na Roundhouse, que era

onde o bonde literalmente fazia a curva, em Londres, para voltar atrás. Ele construiu nesse lugar uma

espécie de espiral de madeira, bem tosca mas belíssima – tudo ali era tosco e belíssimo. Por exemplo,

os mortos ressuscitados saíam de uma caixa de papelão cortada com tesoura, totalmente mambembe,

cheia de terra preta com bonequinhos recortados em papel branco, mal enfiados, tortos, amassados.

Era tão rica aquela porcaria toda, aqueles trapos, aquelas bolas de isopor pintadas com guache de

papelaria... era absurdamente poético. Não havia nenhum aparato senão a própria linguagem. Fiquei

muito impressionado com o despojamento desses trabalhos, que contraponho à minha irritação atual,

que já vem de longa data, com trabalhos polidos. Tem-me irritado essa coisa reluzente, bem acabada, eu

não tenho mais muito tempo para gostar desse tipo de trabalho.

Módulo de Destruição na Posição Alfade História do Futuro, 1978–

escultura, detalhe da instalaçãoin Interventi, Museo Civico Gibellina 1990-91

Módulo de Destruição na Posição Alfade História do Futuro, 1978– escultura, detalhe da instalação29a Bienal de São Paulo, 2010

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201124 25ENTREVISTA | MILTON MACHADO

TR Você fala em História do Futuro das imperfeições que o trabalho vai adquirindo ao longo do processo:

as imperfeições, as diferenças em relação a si próprio. Pelo que entendi, a negociação tem a ver com

essas diferenças também, incorporadas.

MM Como eu disse, cada livro que leio, situações que eu vivo, como por exemplo o desafio de levantar

aquele cubo de duas toneladas na Bienal, faz surgir um monte de ideias novas. Depois, o cubo migrar para

o Sesc de Santos, onde se tornou algo totalmente diferente. Era o mesmo cubo, mas era absolutamente

outro; era o mesmo personagem, mas que mudou de cidade. Em Santos era uma situação peculiar,

o cubo ficou transparente. Na Bienal de São Paulo ele também era transparente, afinal era o mesmo

objeto, mas sobre um fundo branco, a coluna branca em forma de árvore de Niemeyer. Me lembro que

alguém até me advertiu: cuidado, porque você está instalando um canhão de luz direcionado para o

cubo, o que vai acabar criando uma projeção de sombras no pilar lá atrás. Exatamente, respondi; é por

isso mesmo que estou fazendo os caras se pendurarem perigosamente em andaimes, justamente para

obter esse efeito, para mostrar a sombra.

TR Mas você acha que, numa situação expositiva como a Bienal de São Paulo, o Módulo de Destruição

destruiu alguma coisa, ele agiu como um intruso?

MM Ainda está agindo. O fato de a escultura estar, não destruída, mas desconstruída na oficina de meu

serralheiro significa alguma coisa. O fato de eu ainda não ter conseguido doar o trabalho, primeiro para

algumas instituições paulistas, depois inscrevê-lo num edital pretendendo sua incorporação à coleção

de um museu carioca e meu projeto ser “inabilitado”, sob a alegação de que o orçamento não era

consistente com os termos do edital, para mim são atuações de algum módulo de destruição. O fato

de eu ter um monte de ferro empilhado numa serralheria quando aquilo não é um monte de ferro,

deve sinalizar que algum módulo está agindo. Não o meu, metafórico, simbólico, que também constrói

nos Ciclos de Construção, mas um outro, esse sim, intruso, que age por meio de ações destrutivas,

afirmações equivocadas de diferenças improdutivas, más negociações de posições mal ocupadas. Alguma

Cidade Mais-que-Perfeita está indo para o brejo, e algumas Cidades Imperfeitas estão lá buscando sua

perfeição. Uma forma de procurar a perfeição é recusar meu projeto, porque meus orçamentos não são

consistentes com editais perfeitos e porque meu cubo, diferente do motorista do Kabakov, não consegue

uma habilitação.

TR Você estava falando sobre o nômade que não é um artista.

MM Eu não preciso literalizar para demonstrar que as propostas audaciosas – ou pretensiosas – de

História do Futuro se reidentificam diariamente. É óbvio que aquilo tudo é um comentário com muito

respaldo no real; para você ver, eu mencionei o Nômade como personagem conceitual em 1978 e logo

em seguida, em 1980, Deleuze e Guattari escrevem seu Tratado da Nomadologia; em 97 Maffesoli

escreve Sobre o Nomadismo. Qualquer curador hoje fala em nomadismos, no artista em trânsito, nas

mobilidades. Eu não falo de um artista que pinta, de outro que faz escultura, afinal em HF o Nômade

é uma esfera. Mas, como disse antes, nas analogias de HF, o Nômade é apresentado como “figura

emblemática do Homem criador”. Há, nos textos do trabalho, alguma referência a Beuys. Sem querer me

alinhar a Beuys, que embora seja um artista incrível tem um quê de messianismo, aquela coisa romântica

alemã, voos e quedas da Luftwaffe, gordura e cera demais, que me importunam um pouco. Pode ser

verdadeiro que “todo homem é um artista”. Eu ando lendo algo cujo subtítulo é “todo artista é um

artista”. Melhor assim, todo artista é um artista, uma vez que todo homem é um homem. O Nômade é

uma esfera, mas nem toda esfera é um nômade.

TR Mas o Homem Muito Abrangente é um nômade, o Nômade é um homem muito abrangente.

MM Não, veja, o Nômade é uma esfera. O Homem Muito Abrangente não é feito de fatos, ele também

não existe, é outro personagem conceitual. A frase escrita na parede pelo assistente do atirador de facas,

que na performance sou eu mesmo, fornece o aporte teórico: “Um homem tão abrangente que ocupasse

o mundo todo menos o próprio espaço de seu corpo poderia sair-se muito bem como assistente de um

mau atirador de facas”. É um enigma, de certa forma. Outro dia eu me peguei escrevendo algo assim: “a

verdade é uma resposta a perguntas que não admitem respostas porque só admitem a verdade”. Escrevi

esse negócio e é isso mesmo, tem aí um jogo de palavras que cria uma situação meio tongue in cheek.

Homem Muito Abrangenteperformance, instalação, detalheInstituto Tomie Ohtake, São Paulo 2002

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201126 27ENTREVISTA | MILTON MACHADO

Então é preciso ir costurando a coisa aos pouquinhos. O mau atirador de facas vai acertar todas as facas

no interior da figura. No texto de Homem Muito Abrangente, cito o personagem de Daniel Auteil no

filme A mulher do atirador de facas, que diz: o importante não é o atirador, o importante é o alvo. No

caso do meu atirador de facas, ele faz o papel de um mau atirador – não no real, porque ele é um ótimo

profissional; ele é um mau atirador porque “erra” tudo, cravando as facas todas dentro da figura. Num

regime cotidiano ele teria matado sua pobre assistente várias vezes. Nesse caso, não há problema em

errar, porque o Homem Muito Abrangente não ocupa este espaço, o espaço de seu corpo, o espaço que

lhe é próprio. Antes da performance, escrevo a palavra PELE em todos os lugares que consigo alcançar,

até na própria câmera, no vídeo, nas paredes, no chão, no mundo todo. O título do texto, aliás, é Este

corpo é todo poros.

TR Ele é muito abrangente, mas ele não está dentro dele mesmo, ele está fora.

MM É, ele tem esse dilema da interioridade e da exterioridade porque é um híbrido, um impuro, porque

não tem nada de próprio; e, no entanto, ele é pura exterioridade. Um sujeito que é pura relação.

CB Nessa relação com os personagens conceituais, eu tenho a sensação de que é a primeira vez que

o corpo é implicado diretamente no seu trabalho porque o tempo todo ele está sub-reptício nos

personagens, na questão do movimento, no diálogo. Aí tem efetivamente o atirador.

MM Na verdade, foi a primeira e única performance que fiz em minha vida. Homem Muito Abrangente

é um desenho de 1978, em aquarela e nanquim, que originou as performances de 2002, 2003 e 2006.

Desenho, aliás, que deixei inacabado.

CB Todos os seus trabalhos potencialmente são alcance, se modulam e podem estar aqui, podem estar

no futuro.

MM Eu gostaria muito que isso fosse verdade.

CB Basta calcular quanto demora a probabilidade de viver para sempre.

MM A tal “forma móvel de eternidade”? Mas, enfim, quanto ao desenho de 1978, não terminei porque

perdi o saco de desenhar faquinha com aquarela e o expus todas as vezes que fiz a performance. Em

2002 veio o convite do Instituto Tomie Ohtake, para participar de uma exposição chamada Territórios,

com curadoria de Agnaldo Farias. Eu sempre estive a fim de realizar esse trabalho, e arrisquei. Você

pode imaginar o terror que senti, não só porque eu estava pela primeira vez fazendo uma performance,

mas por ter que contar com a boa pontaria de um “mau” atirador de facas em um lugar que não era

propriamente o meu circo. Mas o pânico do meu bom atirador, que certamente nunca ouviu falar de

Vitruvio nem de Leonardo, era ainda maior.

TR Um atirador de facas que é o Módulo de Destruição.

MM É o que lhe digo, é possível fazer articulações, que me surpreendem o tempo todo. Por exemplo, um

trabalho anterior a História do Futuro é uma série de oito desenhos chamada Poder, que é um prenúncio,

uma espécie de esboço de História do Futuro. Mas se eu vou lá atrás e vejo uma série ainda mais antiga

como A Invasão, que vira A Evasão, que vira ao contrário, pelo lado avesso; ou se vejo uma estação

que vira trem, um avião que vira pipa, um jornaleiro que vira bicicleta, um 1 que vira 7 [série CQD,

anos 70], caramba! É tudo a mesma coisa, e tudo parece começar com O Princípio do Fim, que é esse

tal desenho que o Gilberto comprou e que foi capa de A Esperança no Porvir. As esperanças no porvir

produzem histórias do futuro. Chamava-se A Esperança no Porvir, e o que aconteceu, naquele presente,

com o esperançoso no porvir? Fui preso! Fiz a revista e fui preso, preso por agentes da elite da repressão

brasileira, o SIEX, Serviço de Informação do Exército. Não apenas por conta do conteúdo subversivo da

revista, tudo ali era subversivo, era uma revista clandestina, udigrudi, hippie, da contracultura, mas isso

só ganhou importância depois. O que me levou mais imediatamente à prisão foi eu ter invadido, sem

querer e sem saber, a casa do novo presidente da República, Geisel, que antes de ir para Brasília ocupou

uma casa no Jardim Botânico, onde eu estava passeando e fotografando. Nas definições de História

do Futuro, o Nômade é descrito como um passer-by, um passante, que tem dificuldade em reconhecer

Trem analisadodesenho, série CQD1973

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201128 29ENTREVISTA | MILTON MACHADO

limites e fronteiras, mas não tem dúvidas quando está sendo alvejado, quando invade o pomar do

proprietário da terra para colher maçãs e o sujeito atira nele. Eu nunca havia pensado nisso, nessa nova

articulação, pensei agora: eu fiz A Esperança no Porvir e fui alvejado porque invadi a casa do presidente

da República.

LF Para pegar maçã.

MM Para pegar maçã, ou abacaxi, que seja, tudo é muito coerente. Então, eu não preciso me preocupar

em dar coerência, porque o mundo é tão absurdo, tão coerentemente nonsensical, as coisas são tão

inacreditavelmente eventuais e se demonstram o tempo todo, como CQDs que são demonstrações do

absurdo pelo absurdo. Você pode, na matemática, fazer demonstrações por absurdo, só que no caso

essas demonstrações por absurdo demonstram justa e exclusivamente o absurdo.

CB Há a expressão latina reductio ad absurdum; ao absurdo, mas, no seu caso, nada de redução, mas

diferença... não por redução mas por diferença, digamos assim.

MM Eu não sei, algumas vezes é preciso reduzir. Uma coisa até da guerra, fique pequenininho, esconda-

se, reduza-se a sua insignificância, reduza a coisa à insignificância. Se você pensar no readymade, acho

que traduz bem, se você reduzir totalmente a fala própria do mictório você não vai mais ter mictório e

você não vai ter uma fonte, porque uma fonte é um emissor e o mictório é um receptor, ele recebe o

seu xixi. Se você retirar, se você silenciar, reduzir totalmente a fala, a vibração do mictório ou da roda de

bicicleta, você não vai ter possibilidade alguma, quando girar lá os potenciômetros de seus aparelhos

amplificadores, de ouvir os ruídos da significação, porque as coisas adquirem significado pela produção

de ruídos, não pela produção dos belos sons, das eufonias. É como diz o Derrida, você não pode estar

sempre na transgressão, é preciso que aquilo que transgride venha a ser incorporado. É a questão

da tradição, você primeiro trai, de tradire, depois traduz, de tradure, e a coisa ordinária incorpora o

extraordinário. Se a coisa não produz ruído, se a pintura do Matisse da mulher com pincelada verde

não fosse estranhada de forma tão absurda como uma pintura absurda, se o mictório não tivesse...

aliás, repare como era sortudo Marcel Duchamp, o cara foi recusado em todos os salões, com o Nu,

com Fonte.... Então, são trabalhos que produzem atrito, que produzem estranhamento, mais uma vez

a questão da lógica do evento, algo que põe sob suspeita todas as teleologias, todos os projetos, todas

as academias, todas as lógicas sistemáticas, que faz Descartes se retirar para trazer de volta Montaigne,

que nos faz pensar menos em possibilidades e mais em probabilidades. Assim, a redução, o nonsense,

a insignificância, é uma arma importantíssima para você criar o significado, para você silenciar não

totalmente, mas reduzir o barulho do apartamento ao hmmm da geladeira, de modo que você possa

ouvir o silêncio e, quem sabe, dormir em paz.

TR Tem outra operação a que você alude, acho que para falar desse estranhamento, esse atrito no

sentido, que é a diáfora. Qual é esse trabalho?

MM Na verdade é uma sequência de três trabalhos. Diáfora é uma palavra... aliás, em nossas conversas

com Rodolfo Caesar sobre Raymond Roussel lembramos que ele usava muitas diáforas, palíndromos,

espelhamentos. Diáfora é quando você usa o mesmo vocábulo com significados diferentes, portanto

recorrendo a certo nonsense. Ou à relatividade, à instabilidade do sentido. Não é uma distorção, é

uma torção, uma alteração. Isso está em Mallarmé, nos formalistas russos, no Marinneti, nos poemas

dadaístas, enfim. Essa procura da materialidade da palavra, do vocábulo, da sílaba e do espaço da página,

esse tipo de coisa. Eu fiz essa série de trabalhos, o primeiro um objetinho que se perdeu em algum lugar

deste mundo, de que eu gostava muito porque ele era manual, como um brinquedo. Depois, fiz outra

versão em Roma, daí o exemplo

de diáfora em italiano que é Il

sogno della mia vita è perdere la

vita, que se pode traduzir como o

sonho da minha vida é perder a

vida, ou como o sonho da minha

vida é perder a cintura. No caso,

são objetos que apresentam

situações de similaridade, por

exemplo, quadrados que, de

acordo com as circunstâncias,

vibram diferentemente enquanto

ocupam espaços diferentes. O

quadrado, compreendido como

signo, migra, no trabalho de

Roma por exemplo, do formato

das cerâmicas do chão para os

quadrados que eu delimito com

pregos numa placa de metal

perfurada, que ora preenchem ora

não preenchem as perfurações,

dos buracos vazios aos cheios,

de uma placa pendurada a uma

outra apoiada; ou seja, posições

negociadas, diferenças que criam

esse atrito que você talvez esteja

chamando de ruidoso e que...

Rodolfo Caesar Bem, eu poderia

só adicionar algum, somar uma

subtração para você. Você não

contou, talvez esqueceu, de

que uma vez lhe roubaram uma

Diáforachapas perfuradas, pregosSala 1, Roma, 1990

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201130 31ENTREVISTA | MILTON MACHADO

camisa no estacionamento do Sérgio Porto quando íamos fazer o seu Dueto 1 + I [Dueto 1 + I, para

executantes extremamente atentos e isolados um do outro, desenho/partitura de 1978, interpretado por

Rodolfo Caesar e Vania Dantas Leite, 2002].

MM É verdade, mas está desenhado, faz parte da série dos Atentados, como aquele outro, do roubo

das roupas do desenho. 1 atentado + I atentado, e assim, extremamente atentos, vamos seguindo as

partituras.

TR Será que a sua tradução

para evento não é atentado?

MM De certa forma sim,

são atentados, às vezes ao

pudor (rs).

TR Às vezes à lógica, às vezes

à ordem.

Guilherme Bueno Quando

lido com o universo

enciclopédico dos seus

trabalhos, penso se ele não

participa ainda de uma

condição “moderna” da pós-

modernidade. Dito de outra

maneira: é uma definição

de pós-modernidade que,

como o termo assinala, ainda

não descarta seu “índice”

moderno. Em 21 Formas de

Amnésia notei ainda uma

curiosidade que me lembrou

outro projeto seu, O Paraíso

Perdido de Milton M...

achado. Há um dos desenhos,

Assinatura verde de um artista

maduro, que tem um corte

semelhante àquele imaginado

no Paraíso... Para retomar esta

fronteira moderno/pós-moderno que às vezes sinto nos trabalhos, ela não assume ou parte do problema

kosuthiano da definição da arte, só que, ao invés de uma definição universal e especulativa, uma outra

pessoal, aquela justamente da passagem da Arte para a /arte/? Não seria também essa responsabilidade

que nos deixa tão perplexos?

MM Enciclopédico? E mesmo assim pós-moderno? Bem, Diderot pesquisou as propriedades da involuta

do círculo, caso especial das espirais, curvas descritas em Dois burros girando em torno de dois postes

aos quais estão amarrados... Por outro lado, sua noção de máquinas situacionais inspirou Lyotard, que

Falo de Cézannedesenho, colagemde 21 Formas de Amnésia, detalhe1988-89

21 Formas de Amnésiainstalação, desenho, colagens1988-89

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201132 33ENTREVISTA | MILTON MACHADO

discorre sobre a condição pós-moderna, a propor a sátira como a mais eficaz estratégia contemporânea.

Pois as máquinas situacionais de Diderot, assim como a sátira de Lyotard, partem do princípio de que a

natureza nos mostra não apenas uma mas muitas e diferentes coisas e de muitas e diferentes maneiras.

De modo que os artistas, diz Lyotard, evitam os diagnósticos, os pronunciamentos definitivos sobre a

natureza do ser. Isso vale para a arte. E o que fazem os artistas, então? Ensaiam! O ser ou os seres, e

isso vale para a arte, jamais se revelam, e sim apresentam pequenos universos, micrologias, a cada vez, a

cada trabalho. Micrologias con-correntes, que babam e bufam de inveja umas das outras, diz ele. Esses

ensaios – incompletos, insuficientes, fissurados – constituem a sátira. E a condição para seu acionamento

e continuidade é a experimentação. A experimentação é separada da experiência por uma distância

desregulamentar. Isso parece diferir da ideia kosuthiana de que a função da arte seria a de questionar

a natureza da arte, e que a arte agiria via proposições analíticas, exclusivamente. Essa noção tem um

quê de diagnóstico, de pronunciamento modelar, sobre o ser da arte. A mim – e isso procuro sugerir

por meio de meus ensaios experimentais, ensaios satíricos de um Investigador em Férias que só perfaz

horas extras – interessa mais o excesso de resultados e de respostas do que as justas medidas. Interessa

mais o deslocamento da experiência e dos lugares da experiência do que a comunicação imediata, mais

a ultrapassagem de fronteiras e limites do que as delimitações de território. Interessa mais o exercício

experimental da imaginação (ou da liberdade, como ensaiou Mário Pedrosa) do que a busca de coerência

das proposições analíticas. Interessa mais a munição amnésia1 do que a persistência da memória.

Interessa tanto a assinatura verde quanto o artista maduro.

TR Você concorda com a afirmativa de Joseph Kosuth de que a arte teria tomado para si, na

contemporaneidade, as questões sobre o homem e o mundo nas quais a filosofia teria fracassado?

MM Ever tried. Ever failed. No matter. Try Again. Fail again. Fail better: sátira, com jeito de Samuel

Beckett. Arthur Danto descreve as primeiras décadas do século 20 como a “era dos manifestos”, mas

não inclui Art After Philosophy, que para mim seria o último dos manifestos. Kosuth acredita piamente

em arte, acredita que exista uma função para a arte, qual seja questionar a (verdadeira?) natureza da

arte. Ora, não existe tal coisa; a natureza da arte é justamente não ser verdadeira, desde o mimetismo

cavernoso de Platão, passando pela falsificação da natureza no Renascimento, pela imitatio e pela morte

de Deus, pela mentira nobre em Nietzsche, pela crise da representação, por Benjamin e suas auras

transferidas, por Malraux e seu museu imaginário, por Beuys e seus mitos de origem, por Duchamp

e sua fonte de gerar securas, chegando a nós como uma grande ficção em constante revisão de sua

pretensa identidade de grande narrativa. Arte e filosofia caminham juntas, não necessariamente numa

mesma direção, daí estarem sujeitas a esticamentos, estiramentos, distensões, fraturas mesmo. Mas têm

em comum a característica de serem avessas às aplicações. A filosofia de Kosuth me parece por demais

aplicada, tal qual um manifesto – um aplicativo, propriamente. A arte de Kosuth também é aplicada, mas

me parece, ao contrário do texto e apesar de sua seriedade, uma arte que ri às gargalhadas de si mesma,

de seu fracasso na busca da tal natureza da arte, de suas risíveis tautologias, como no caso de One and

Three Chairs. Gosto bastante de seu trabalho, e a leitura de seu texto é fundamental; foi fundamental

para nós traduzi-lo, cultivá-lo e discuti-lo nos anos 70.

CB A pergunta do Guilherme diz respeito um pouco a sua relação com história, porque faz referência à

história moderna e pós-moderna, depois ele cita trabalhos específicos, ele faz essa pergunta referenciando

O paraíso perdido de Milton M achado e Assinatura verde de um artista maduro.

MM É outra coincidência divertida, quem sabe outra diáfora. Um cara chamado Milton escreve O Paraíso

Perdido, séculos depois vem outro Milton, chamado Milton M achado (rs...), ora, tem que fazer esse

trabalho! Esse é um trabalho que sempre quis, mas nunca fiz.

RC Tem algo também a ver com o corpo, o Cezar até te fez uma pergunta sobre o corpo e eu acho que

aí já tem a coisa corporal no desenho, no desenhar, aliás, muito evidente nesses desenhos recentes que

você tem feito.

Dois burros girando em torno de dois postes aos quais estão amar-radosperseguindo um pássaro que voa das mãos de Denis Diderot (Ceci n’est pas un conte)livros artesanais, madeira de balsa, desenho técnico, 1986foto de José Roberto Lobato

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201134 35ENTREVISTA | MILTON MACHADO

MM Eu tenho que fazer este trabalho, O Paraíso Perdido de Milton M achado. Quase aconteceu uma

vez, a partir de um convite de Agnaldo Farias para fazer uma exposição no Instituto Tomie Ohtake

paralela a A Bigger Splash, uma coletiva de arte britânica na OCA, mas que por algum motivo acabou

não acontecendo. Era um espaço complicado, uma sala muito comprida, alta e estreita, mas muito

conveniente para o trabalho. John Milton era cego, e O Paraíso Perdido foi ditado por ele para uma

de suas filhas. Daí que a única iluminação da sala seria por meio de dois lampiões a gás, colocados no

chão, sob as duas iniciais M, uma de cada lado da sala. Seriam a luz dos olhos do poeta. De um lado,

a frase O PARAISO PERDIDO DE MILTON; do outro, na parede em frente, apenas a letra M. O resto, a

palavra ACHADO, seria depositada em Londres, aos pés da tumba e da estátua de John Milton, que está

enterrado em uma igreja do Barbican Centre, onde, por outra coincidência, já expus, uma individual em

2000. As letras de ACHADO, assim como as demais, seriam confeccionadas em latão polido, dessas de

escrever nomes de edifícios. Uma câmera de vídeo fixa sobre essa palavra transmitiria sua imagem, assim

como a do poeta, diretamente de Londres para o espaço da exposição, aqui no Brasil. Se alguém aí do

paraíso estiver ouvindo e quiser patrocinar...

Sobre Assinatura verde de um artista maduro, é uma das colagens de 21 Formas de Amnésia, feitas

com fragmentos de um desenho que cortei em 1.750 quadrados de 1cm de lado. No caso, são quatro

quadradinhos, com partes de minha assinatura. O Guilherme, com seu olho enciclopédico, indicou algo

que nunca percebi; que algo semelhante aconteceria em Paraíso Perdido..., isto é, a inicial M isolada de

ACHADO pelo corte. A assinatura verde ficaria por conta da cor de fundo, verde para um artista, quem

sabe, M ADURO.

RC Quem o conhece pessoalmente sabe o valor que você dá às analogias, aos jogos de palavras e

entre imagens, às relações lúdicas e inicialmente desinteressadas mas que sempre adquirem sentidos.

Mas há também em sua arte o lado mais selvagem, vernacular, paisano, que se percebe no abrangente

aproveitamento de trouvailles. Seus desenhos parecem resultar de um processo no qual você, de lápis

ou caneta entre os dedos, às vezes talvez meio embalado pelo ritmo de alguma música, ou pelo som

da ponta no papel, vai fabricando linhas que de repente – ou mais lentamente – transformam-se em

pequenas células esperando desenvolvimento. A improvisação põe em jogo um erotismo meio especial

entre os corpos, excitando desde a pele mais fina do tímpano até os movimentos corporais. Não é por

acaso que a improvisação teve grande impulso na escrita automática surrealista, movimento do qual

eu considero você fiel e psicodélico leitor. Por que, então, você subestima o valor desse trabalho? Seria

por conta de uma atenção às contingências do mercado? O conceito de obra/objeto é determinante no

processo de avaliação?

MM Não sei se sou propriamente um fiel leitor da escrita automática surrealista, que já me fascinou mais

na juventude, assim como o psicodelismo; mas desse não nos livramos nunca, uma vez intensamente

experimentado e bem vivido. Sou muito chegado às improvisações, mas como músico, em minhas

aventuras jazzísticas ao violão. Mas na produção de arte costumo trabalhar por partitura, ainda que

elas possam surgir depois da execução, como notações do improviso. Geralmente são séries, como

(1=n) um intervalo, Mundo Novo, Somas e Desarranjos, As Férias do Investigador, História do Futuro,

que, mais do que títulos temáticos e de exposições, são demonstrações de alguma ideia subjacente.

De uma matemática esquerda, gauche, naturalmente, daí a referência a um “arquiteto sem medidas”.

Os desenhos a que se refere, e sei que você tem em mente os mais recentes, anacronicamente a bico

de pena sobre papel, são de certo modo improvisações. Nisso alinham-se, pelo menos por enquanto,

com trabalhos que chamo de “vira-latas”, por seu caráter marginal às séries mais sistemáticas. O fato

de serem vira-latas não impede que sejam “fora de série”, isto é, que tenham suas qualidades, que

uivem em alto e bom som em noites de lua cheia. Na verdade, estou fascinado por eles, de um modo,

digamos, quase psicodélico. Arrisco comentar que não os considero arte, e sim desenhos. Não os

subestimo, pelo contrário. Apenas reservo a eles a oportunidade, antes de se tornar arte, de ser “o

que são”. Arte implica negociações de seus objetos com “sua exterioridade”. Esses desenhos, mas essa

talvez seja uma característica própria do desenho, são prenhes de interioridade, com vocação de diário,

de escritura, de anotação, de monólogo ensimesmado. Talvez façam boa companhia a meus poemas,

outra forma de improvisação reclusa com vocação confessional. Usando os termos de sua pergunta,

seriam trabalhos com alto valor de uso, aguardando outras valorações que possam resultar de trocas

de mercado, de outros julgamentos. Seriam, não ainda obra, mas canteiros, construções, trabalho-em-

progresso. Investimentos, antes dos eventuais revestimentos. Por enquanto, basta a eles e a mim que

sejam desenhos.

RC Pelo que conheço de seu trabalho, destaco dois aspectos relacionados à música. Um é de cunho

erudito, que tem a ver com a ars nova do século 14. O outro é vernacular, associando a figura do

trovador. No contrapelo da Arte Moderna, a Arte Contemporânea tem uma de suas origens na obra

de Duchamp, que, por sua vez, nunca se esqueceu do dia em que foi exposto à obra de Raymond

Roussel. Logo adiante, a ars subtilior do início do século 15 confirmava esse prenúncio ao modernismo

demonstrando “emphasis on generating music through technical experiment”, cf. o musicólogo Daniel

Albright. Ex.: “Tout par compas suy composés”. (Sou todo composto a compasso, na partitura circular

de Baude Cordier.)

Uma espécie de opinião (tácita?), dominante no mundo das artes plásticas, administra a noção de que ela

seria, de todas as artes, aquela que empreende um projeto reflexivo mais amplo, seja estético, político,

histórico, cultural, etc. Como você se coloca?

MM Eu não sei o que Giotto ouvia em sua vitrola, mas sei que ele tocava, ele também, por partituras.

Se a catedral gótica do século 13 era construída na base de certo empirismo, numa espécie de “pra

cima com a viga, moçada!”, com Giotto – e depois mais ainda com Brunelleschi – o desenho, em sua

acepção de projeto, de design, desígnio mais que desejo, passa a fazer parte do processo construtivo,

transformando radicalmente a estrutura produtiva. Por isso era possível a Giotto ausentar-se da produção

direta de algumas de suas obras, mesmo de pintura, desde que seus assistentes seguissem à risca seus

rabiscos e riscos. Com Brunelleschi, o projeto é mandatório. Sem projeto, sem os modelos reduzidos

que o arquiteto construiu, não teria sido possível construir o duomo da Santa Maria del Fiore, em

Florença, que ele nem chegou a ver realizado, como aliás quase tudo que projetou. Projeto que, diga-

se de passagem, foi escolhido por concurso. Desejo não ganha concurso. A ars subtilior do século 15

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201136 37ENTREVISTA | MILTON MACHADO

coincide com o tempo em que a perspectiva era objeto principal do interesse de arquitetos e pintores,

e tal interesse contribuiu para dar ao artista, agora às voltas com o cálculo e a matemática, o status de

profissional liberal. “Gerar obra por meio de experimentação técnica”, traduzindo sua citação, parece-

me resultar justamente dessa complexidade. Os mistérios da perspectiva eram extremamente sedutores

para os artistas – lembremos a crítica (injusta) de Vasari a Paolo Uccello, de que teria sido um grande

pintor se não tivesse perdido tanto tempo na companhia de sua amante, a perspectiva. Em Uccello,

até cavalos em uma batalha morrem em perspectiva! Se o caso é o experimentalismo de um Raymond

Roussel, e por tabela um Duchamp, há que acionar outros botões de nossa agilíssima máquina do

tempo, primitiva geringonça que alguém deve ter inventado nos tempos da ars antiqua. Botões que

acionam defeitos, disfunções, engasgos, chabus. Experimentar com a linguagem era mania corrente

entre escritores do início do século 20, na cola de Mallarmé no século 19, tais como o futurista Marinetti,

a balbúrdia desconstrutiva dadaísta, os formalistas russos, companheiros de Malevitch e Tatlin. O recurso

a certas genealogias é sempre salutar, e não custa apontar, como você faz, que a ars subtilior do século

15 prenuncia o modernismo. Mas há que recorrer também às “quebras de paradigmas”, via Thomas

Kuhn, para valorizar mais ainda esses empreendimentos experimentais mais próximos de nós. Sobre a

opinião tácita ou dominante de que as artes plásticas empreenderiam um projeto reflexivo mais amplo,

eu diria que essa eventual amplidão depende e resulta justamente da própria plasticidade, mais do

que propriamente da arte e de suas operações específicas, que podem ser duras. Para lidar com a

perplexidade contemporânea, só um projeto que seja flexível, moldável, adaptativo. Plástico, enfim. Com

a plasticidade da sátira, como sugerido por Lyotard. Não me parece que tal elasticidade seja exclusiva das

artes plásticas, a não ser que você flexibilize o termo a ponto de pouco restar de sua dada identidade.

Não há nada de próprio da arte, a arte nunca é idêntica a si mesma. As operações da arte há muito não

são específicas. Arte é um troço mole, por isso são necessários fios flexíveis para tirar suas medidas.

GF Em um texto de Roberto Pontual de 1976, há uma citação sua: “o desenho tem para mim

essencialmente um sentido: o de trazer ao plano da consciência os rumores que me povoam o mundo

interno. Meus desenhos são cartas que chegam do interior”. Algo que, de certo modo, se pode dizer

de qualquer trabalho de arte. Esse é um período importante de seus desenhos, com projetos, digamos,

ficcionais, com uma lógica de ordem conceitual. Esse viés conceitual permanece em seus trabalhos

posteriores. Como você avalia essa dimensão conceitual em seu trabalho e na produção artística atual?

MM Caramba, eu disse isso? Rumores que povoam o mundo interno? Pelo jeito se aplica mesmo a todo

trabalho de arte, já que Pollock disse mais ou menos a mesma coisa. Mas meu interior não é o mesmo

de Pollock, que nasceu em Cody, Wyoming, e cresceu em Tingley, Iowa. Meu interior é a Tijuca, onde

nasci e cresci, meu exterior Copacabana, que me parecia, quando era menino, algum lugar bacana no

exterior. Não havia ainda túneis separando e unindo essas lonjuras cariocas. A dimensão conceitual

é como um túnel separando e unindo, talvez por isso sua condição subterrânea, de escavação, que

pede mergulhos mais profundos do que conseguem as toupeiras. Animais, por sinal, quase cegos, mas

com olfato muito sensível. Desenho e pintura em condições de igualdade é um trabalho feito com pós

de pastel seco, recolhidos durante a produção de desenhos, ao lado de fragmentos de tinta acrílica

raspados de minhas palhetas de pintura. Algumas vezes os túneis são escavações no papel, outras no

vidro, às vezes no pó, outras na tinta. Algumas vezes levam a Pollock, outras a Copacabana. Descobri por acaso, visitando o Louvre, uma provável (humm...) origem dos desenhos de pedra portuguesa das famosas calçadas cariocas: viriam de uma pintura de batalha pelo já citado Paolo Uccello, na qual o pintor representou uma bandeira preta e branca quadriculada tremulando em perspectiva. (Micheletto da Cotignola Envolvido em Batalha, 1450s, têmpera sobre madeira: http://www.wga.hu/). Quem diria que existem túneis conceituais separando e unindo Florença, Paris, Portugal e Copacabana?

GF Desde 1979 você tem dado aulas, na Santa Úrsula, no Parque Lage e, já há 10 anos, na EBA. Que transformações você identifica no ensino de arte e na formação dos artistas? Como você avalia a formação de pós-graduação para artistas?

MM Do Centro de Arquitetura e Artes da Santa Úrsula saíram muitos artistas, já contei mais de 50. Muito devido à presença ali, nos anos 70 e 80, de Lygia Pape, que me convidou e com a qual tive o privilégio de trabalhar, por alguns dos 15 anos que lá estive, junto a outros artistas, na cadeira de Plástica, que tinha um caráter eminentemente experimental. Aliás, é comum artistas terem formação em arquitetura, que pode levar a muitos caminhos. Talvez a maior transformação seja o fato de que novos e bons artistas estejam se formando em escolas de arte, no Rio de Janeiro com maior concentração ainda no Parque Lage, e cada vez mais na nossa EBA, que por décadas afugentou estudantes mais antenados com a contemporaneidade e menos dispostos às formalidades acadêmicas. Um renitente conservadorismo ainda impede que a EBA assuma de vez, como deveria e na medida de sua importância universitária, um papel progressista, de vanguarda, em contato estreito e interessado na produção e na reflexão de excelência, de modo a participar do debate contemporâneo de forma mais intensa e eficaz. Não que isso não se dê, mas é pontual. Os recentes concursos, que têm trazido para o corpo docente da escola professores com esse perfil, vêm mudando, ainda que lentamente, o perfil da própria escola. No âmbito da pós temos tido, na linha de Linguagens Visuais do PPGAV, destinada a artistas praticantes, cada vez mais alunos graduados pela EBA, muitos já atuando no circuito profissional, participando de exposições, publicando livros, ganhando prêmios. Nosso programa obteve o grau 6 nas avaliações da Capes, o que se deve em grande parte às atuações dos professores e alunos de nossas quatro linhas em circuitos profissionais, não só acadêmicos. Tudo isso deve ser celebrado. Falando da pós-graduação em artes no contexto nacional, a proliferação de programas de mestrado e doutorado também é motivo de celebração. Se cabe algum reparo, nunca procurei disfarçar – ao contrário, sempre manifestei claramente – meu estranhamento em relação ao formato mais comumente adotado pelos programas de pós-graduação para artistas no país, nos quais se privilegiam pesquisas de mestrado e doutorado calcadas em e voltadas para a produção prática do próprio candidato, num exercício autoanalítico e autointerpretativo que considero, em regra, improdutivo. Sempre que posso, o que procuro fazer com meus orientandos mais dispostos ao desafio é convidá-los a refletir sobre questões conceituais contempladas em seus trabalhos de artistas, de modo a definir, antes, o território e, depois, a inserção. Diferente disso é quando o próprio trabalho é tratado como o território, a partir do qual se buscam eventuais inserções.

MMz Você tem um cartão de visitas do Parque Lage que o apresenta como teórico.

MM É verdade, e isso é curioso. É uma coincidência, outra dessas coincidências. A EAV imprimiu um cartãozinho trazendo o nome do professor e o núcleo ao qual pertencia. Fizeram então um cartão em que se lê Milton Machado, Teórico. Eu disse: isso dá pano para manga. Fiz uma série de trabalhos

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201138 39ENTREVISTA | MILTON MACHADO

com esses cartões, que são muito bonitinhos. Tem o Mondrian teórico, Milton Machado teórico, os nascimentos e óbitos teóricos. Kosuth teórico, por exemplo, é uma cadeira feita com esses cartões, ao lado de uma foto dessa mesma cadeirinha e dos verbetes de dicionário com as definições de cadeira e de teórico: “Teórico – aquele que conhece muito bem os princípios de uma determinada arte, mas que não a pratica.” Na época em que dava aulas na EAV eu era frequentemente acusado por alguns críticos de ser um artista excessivamente teórico, o que é uma bobagem... Era uma coisa típica dos anos 80, em que tudo era emoção, arte nascendo no coração, pintura como sintoma de prazer, essas bobagens todas que se alardeavam nos anos 80, que falam mais dos anos 80 do que de arte. Havia uma condenação explícita a artistas dos anos 70, de minha geração, que estariam se metendo em áreas sem competência para delas tratar, como a matemática, filosofia, política, sei lá mais o quê. O que mais então “não podemos” discutir? Nos anos 80, eu vivia perguntando isso a meus interlocutores entusiasmados ou inebriados com a pintura, o prazer, o cheiro da terebintina e tudo o mais. De modo que é um trabalho de fato muito irônico, que se vale da coincidência incrível de eu ter sido presenteado com um cartão que identificava, meio sem querer, os excessos de um Milton Machado teórico.

MMz Eu estava lendo seu artigo Dance a noite inteira mas dance direito [in Arte Brasileira Contemporânea em Textos, org. Ricardo Basbaum, Editora Marca d’Água, Rio de Janeiro 2001], em que aparece o cartão, e você faz uma análise crítica do sistema, do circuito, dos críticos durante os anos 80 comparando com os anos 70. Aí eu tenho uma curiosidade: como você vê esse circuito hoje?

MM Produzimos uma arte de muito boa qualidade, discutida em alto nível internacionalmente, e no entanto nosso circuito interno ainda nos impõe condições muito ruins. A própria universidade, à qual pertencemos mais do que ela nos pertence, talvez exemplifique isso de forma pontual, com cursos de graduação em arte quase sempre voltados para uma orientação conservadora, ainda muito calcada nas técnicas, radical e intencionalmente alienada da discussão contemporânea. Talvez o circuito reflita distorções como essa, pontual mas importante, porque tem a ver com a própria formação, de artistas e de opinião. Quanto ao circuito profissional, trata-se de questão igualmente complicada. Nosso circuito, mesmo precário, ou até por isso mesmo, é extremamente complexo, talvez daí se possa falar não de um circuito, mas de circuitos, no plural, com precariedades concorrentes, algumas vezes rivais, o que agrava ainda mais seu grau de perversidade. Como é complexa a questão política das alianças que é preciso fazer e das que não se deveriam fazer mas se fazem, em prol dos pertencimentos, das pertinências, das adequações, dos favorecimentos, das celebrações institucionais e comerciais. De algum modo, é preciso que os orçamentos sejam consistentes com os editais. Mas pertence quem diz que não pertence? Consiste quem diz que não é consistente? Então, essas geometrias mais por tangentes do que por secantes, mesmo que não bastem para regular o círculo, são reguladoras do circuito. Dance a noite inteira mas dance direito seria um tipo de andamento

servil, que obedece ao compasso, muitas vezes em detrimento da música.

Edição Marina Menezes e Cezar Bartholomeu

Transcrição Priscila Plantanida

HI-FI (alta fidelidade)mapotecas de aço FIELmúsica por Rodolfo Caesar19a Bienal de São Paulo, 1987

NOTAS

1 Ammunition Amnesia foi o texto de contribuição do artista para o catálogo da coletiva Other Modernities (Cildo Meireles, Foreign Investment, Milton Machado, Yinka Shonibare), The London Institute Art Gallery, curadoria de Oriana Baddeley e Michael Asbury, Londres 2000, da qual fazia parte o trabalho 21 Formas de Amnésia. Esse mesmo trabalho foi remontado na exposição Europalia, Bozar, Bruxelas 2011, sessão curada por Guilherme Bueno.

ARTIGOS | AMAURY FERNANDESArte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201140 41

Estado nacional é conceito bem recente na história,

assim como os sentimentos de identidade e de

pertencimento nacional. As formas de manifestação

da nacionalidade passam pelos espetáculos de

civilidade, e sua presença no imaginário coletivo

se constrói através dos símbolos oficiais e oficiosos

que os governos produzem e disseminam pela

sociedade, em especial para a comemoração das

datas nacionais mais importantes.

O dinheiro é elemento da cultura material anterior aos Estados, mas é parte da construção do imaginário

coletivo que modela o das nações. Inventado no século 6 aC. e presente desde então nas sociedades,

muitas vezes é elemento determinante dos fatos e funciona plenamente como signo. Expressa identidades

nacionais coletivamente construídas, o que o legitima como representação máxima do valor das coisas

materiais e, muitas vezes, das imateriais. Por essa razão, do ponto de vista sociológico, o dinheiro pode

ser compreendido como elemento da cultura material quase ubíquo e que funciona como o principal

signo do valor na cultura contemporânea. Signo universal, apesar de, em algumas de suas formas, ainda

manter características locais.

ESPETáCULOS DE CIVILIDADE: modernidade e pós-modernidade no papel-moeda brasileiro

Amaury Fernandes

identidade nacionalimaginário dinheiro Estado

Analisa as expressões plásticas presentes em duas cédulas comemorativas brasileiras,

emitidas em 1972 e 2000, relativas a grandes festividades cívicas. Busca compreender

de que forma as identidades nacionais predominantes em determinados momentos

históricos podem ser plasmadas em representações do Estado que servem de veículo

para sua divulgação.

SHOWS OF CIVILITY: modernity and post-modernity in Brazilian banknotes | This article analyzes the plastic expressions in two Brazilian commemorative banknotes issued in 1972 and 2000 for major civic festivals. It aims to understand how predominant national identities at certain historical times can be shaped into representations of the State that act as vehicles for its publicity. | National identity, imaginary, money, State.

Anverso e reverso da cédula de 500 cruzeiros novos, 1972 e cédula comemorativa dos 500 anos do descobrimento do Brasil, 2000. Imagens capturadas da cédula (coleção pessoal)

ARTIGOS | AMAURY FERNANDESArte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201142 43

Segundo Simmel1, o dinheiro é “uma dessas

imagens do mundo que consideramos como a

expressão mais adequada dos conhecimentos e

sentimentos atuais”. Marx afirma que “a fixação do

preço do numerário é da competência do Estado,

assim como o trabalho técnico de cunhagem”, e,

por essa razão, “o dinheiro adquire um caráter

local e político, fala línguas diferentes” por vestir

“diferentes uniformes nacionais”. De acordo

com o senso comum, o dinheiro parece ser algo

que simplesmente trafega pela sociedade. Quase

nunca há questionamentos sobre sua materialidade

nem se indaga a respeito de sua fabricação

que, assim, acaba anônima. Aparenta surgir

naturalmente, do que decorre boa parte de sua

silenciosa onipresença, e converte-se em uma

das representações mais fortes das narrativas de

nacionalidade.

Neste artigo analisa-se o discurso visual, as imagens

do mundo, os uniformes nacionais, as narrativas

de nacionalidade materializadas em duas emissões

comemorativas que celebram datas históricas para

a afirmação da brasilidade: o sesquicentenário da

independência e os 500 anos do descobrimento.

O dinheiro como símbolo nacional é objeto

privilegiado para análises semiológicas. Alterações

em bandeiras, hinos e armas nacionais não são

comuns nos Estados modernos, e a imutabilidade

de tais representações dificulta a análise de

aspectos mais flexíveis ligados a cada um dos

diferentes momentos históricos; estes são como

representações congeladas de uma identidade

nacional fixada no tempo, elementos que refletem

mais a narrativa fundadora dos Estados. Ainda

que o verde e amarelo ou o “Ouviram do Ipiranga”

efetivamente sejam expressões da brasilidade, são

antes representações congeladas concebidas em

momentos muito distantes no tempo. Servem

mais de âncora aos sentimentos fundadores do

pertencimento nacional do que de espelho dos

sentimentos dos brasileiros contemporâneos.

Diferentemente, as cédulas brasileiras variam

muito ao longo do tempo; suas estampas são

alteradas quase que governo a governo. Tornam-

se narrativas da identidade nacional privilegiadas

por suas mudanças e, assim, refletem melhor

seus desdobramentos.

O sesquicentenário da independência:

o espetáculo da modernidade no papel-

-moeda brasileiro

Em 1972 a independência brasileira completa 150 anos; o governo militar promove intensa campanha publicitária para o evento e decide emitir cédula em comemoração à data, com valor facial de 500 cruzeiros novos. Aloisio Magalhães3

é convocado para criar o projeto da nova cédula, pois já desenhara as que então circulavam e o

logotipo da comemoração.

Assim com nas primeiras emissões concebidas por

Aloisio Magalhães, o trabalho de valorização da

narrativa histórica oficial é privilegiado também

nessa, voltada para o conceito de integração. A

estrutura compositiva é rigidamente estabelecida

pela divisão geométrica do espaço plástico em áreas

retangulares que se cortam, e cujas massas visuais

amarram a composição; nelas estão acomodados

os motivos figurativos de anverso e reverso.

A iconografia da cédula recorre à plasticidade das vanguardas geométricas da época e à valorização da mestiçagem como formação do povo brasileiro, exaltando e modernizando um discurso que, do ponto de vista sociológico e literário, está referenciado principalmente nas teses de Gilberto Freyre (pernambucano como Aloisio Magalhães e amigo íntimo de sua família) e nas narrativas

Anverso e reverso da cédula de 500 cruzeiros novos, 1972Imagens capturadas da cédula (coleção pessoal)

ARTIGOS | AMAURY FERNANDESArte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201144 45

heroicas da brasilidade de Euclides da Cunha, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa.

No anverso a cédula representa a integração racial. Uma sequência de rostos é desenhada em retângulo horizontal mais escuro que atravessa a composição; nessa imagem estão

as diferentes etnias que formariam o povo

brasileiro; a posição é determinada pela ordem

cronológica de sua inclusão na população

brasileira, e acompanha o sentido de leitura,

da direita para esquerda, o que poderia implicar

leitura “evolucionista”. Nessa sequência estão

estampados os rostos que representam índios,

portugueses e negros, e duas figuras com feições

de mestiços. Na composição as cabeças se

apresentam organizadas do perfil exato do índio,

ao frontal completo da face mestiça mais à direita

da composição. A rotação da figura destaca o

último rosto, em claro favorecimento ao elemento

mestiço, que se torna mais evidente e é reforçado

por ser o único com dois retratos na composição.

A ordenação das cabeças sofre críticas do

brasilianista Thomas Skidmore “considerando-a

portadora de todos os preconceitos praticados no

país”.4 Aloisio Magalhães as rebate; apontando a

ordenação cronológica e o conceito historicista do

projeto, afirma: “Não estaria o eminente professor

transpondo, para análise do nosso contexto

cultural, modelos e estruturas preconceituais

de onde o problema se apresenta de maneira

diversa? Que outra nação usou com naturalidade

sua formação étnica em objeto de comunicação

tão amplo como o seu próprio papel-moeda?”5

No reverso o conceito de integração é aplicado às

fronteiras nacionais. Uma nova sequência, dessa

feita com o sentido cronológico da direita para a

esquerda, estampa os mapas cartográficos que re-

presentam o país ao longo de cinco séculos, com

a geografia representativa do descobrimento mais à

direita e o mapa da “integração” mais à esquerda;

entre eles outros três mapas (denominados “comér-

cio”, “colonização” e “independência”) estampam

as modificações das fronteiras brasileiras.

O da esquerda, primeiro no sentido de leitura,

apresenta linhas axiais que cortam o território

brasileiro; elas representam as vias de transporte

(ferroviário e rodoviário) que os governantes

militares prometem construir como parte do

processo de integração nacional.

Mais uma vez há apelo a “uma narrativa

através da qual uma história alternativa”6 pode

ser construída para reafirmar legitimidades e

constituir “um campo de significados e símbolos

associados com a vida nacional”.7

As associações visuais com a comemoração

do sesquicentenário apoiam-se também nas

tipologias. Letras utilizadas nas legendas e dísticos

oferecem recurso visual igual ao empregue

por Aloisio Magalhães para criar o logotipo

comemorativo da celebração. Sombras são

projetadas, e as faces dos tipos são vazadas, se

apresentando mais claras. Os fundos de segurança

recorrem ao efeito de moiré, como nas emissões

anteriormente projetadas pelo designer.

Como emissão comemorativa, a cédula se diferencia

das que compõem a família em circulação menos

por sua estrutura compositiva, bastante próxima

da utilizada nas demais emissões do medalhão, do

que pelas características das imagens calcográficas,

gravadas quimicamente e sem a delicadeza

do trabalho de gravado manual da família em

circulação. A principal diferença, contudo, está na

narrativa sociológica que apresenta.

Não há mais panteão nobiliárquico-militar8 de

heróis, mas sim o enaltecimento da mestiçagem

que conforma o povo brasileiro. Não há exaltação

de personagens históricos ou de elementos da

cultura brasileira como prédios ou obras de

arte, mas sim confirmação das fronteiras e da

integração do território de uma nação.

A cédula é concebida para, de forma inconfundível,

ser entendida como documento histórico, o que é

almejado para validar a narrativa historiográfica

que ela representa ainda mais. Os conceitos

visuais reafirmam essa característica em quase

todos os detalhes, e as próprias palavras de Aloisio

Magalhães confirmam a intenção de o projeto

provocar, antes de tudo, essa interpretação. Uma

peça de comunicação de massa que reafirma uma

leitura específica da brasilidade.

Tratar o objeto cédula como um objeto de

comunicação mesmo foi o que o Aloisio

descobriu com as primeiras cédulas; ele

falava isso o tempo todo: ‘Depois que eu fiz

o primeiro, a questão da forma para mim se

relativizou muito. A questão é: esse é o objeto

de maior comunicação do país.’9

Na cédula do sesquicentenário é apresentada

configuração visual que reforça a concepção

de que o Brasil seria um “cadinho de raças”,

ideologia que é sobreposta ao projeto político do

governo militar.

Há exaltação do projeto de integração nacional

pelas vias de transporte, pelas grandes obras

e pelos projetos de ocupação com atividades

agropecuárias e industriais das áreas menos

povoadas das regiões Norte e Centro-Oeste

do país, cujas baixa densidade demográfica e

dificuldade de acesso, crê o governo militar,

podem estimular a cobiça de outras nações.

No imaginário dessa cédula somam-se as repre-

sentações de uma visão sociológica e antropoló-

gica da formação do povo brasileiro e um projeto

político, ambos como reforço da importância da

integração nacional, quer seja via misturas étnicas

ou transporte. Afirma-se uma modernidade auto-

ritária, que corrobora o projeto individual de Aloi-

sio Magalhães de civilização do Brasil pelo design

e o projeto político do governo ditatorial.

Os 500 anos de descobrimento no papel-moeda: do papel ao polímero, o espetáculo do pós-moderno

Em 2000, quando a chegada de Pedro álvares

Cabral ao Brasil completa 500 anos, é emitida

nova cédula comemorativa; após muitos anos,

o dinheiro circulante no Brasil tem uma data

histórica como tema de uma denominação.

Várias possibilidades temáticas são debatidas

entre as equipes do Banco Central e da Casa

da Moeda:

O que é que se fez na época? Vários estudos

de tema. Um deles era a língua portuguesa

(...) porque é o elemento que dá unidade

ao Brasil (...) e é também uma herança da

colonização. Só que foi muito difícil trabalhar

o tema língua portuguesa em imagens (...).

Na época (...) não se achou interessante se

adotar [essa linha] para a cédula de polímero

(...) Começou a ficar muito difícil, porque (...)

grande escritor nós temos vários também,

então fica difícil você definir, é uma questão

polêmica, e a gente estava querendo fugir

dessas polêmicas naquele momento também.

Mais uma vez uma questão do momento,

não é? Do governo da época. Então optou-

se pelo tradicional: Cabral e imagens relativas

ao descobrimento: mapa do Brasil de época,

uma caravela que foi usada como elemento de

segurança e para marca-d’água, os motivos de

ARTIGOS | AMAURY FERNANDESArte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201146 47

azulejos portugueses que estão nos fundos de

segurança...

Pois é. E do outro lado o que fazer? (...) Pensou-

se em fazer, depois de algumas discussões, a

história de homenagear tipos brasileiros, mas

não na linha do gaúcho, ou da baiana e tal...

Mas pessoas! Pessoas comuns. E aí então, tem

aqueles rostos atrás que você vê na cédula de

polímero, essa foi a linha da época.10

Na definição do tema e do imaginário pelo Banco

Central, da forma relatada, fica óbvio que há uma

preocupação a atender no projeto da cédula: uma

determinada narrativa do nacional comprometida

com o projeto político do governo da época.

Provavelmente o ocorrido com a troca do desenho

da família de moedas metálicas tenha influenciado

essa opção, uma vez que a eleição popular

escolheu o projeto dos profissionais da Casa da

Moeda do Brasil, que tem seu imaginário baseado

em uma visão mais tradicional do meio circulante

e promove o retorno dos vultos históricos.

A cédula da Thereza Regina agradou em cheio ao cliente (...). No anverso é abordado o Brasil ano um, com contorno do mapa Terra Brasilis, com portrait do descobridor, com microtexto da carta de Caminha, com fundos de segurança baseados em perfis de caravelas e naus, e enfim, todo o anverso é uma homenagem ao ano um e todo o reverso é uma homenagem ao ano 500. Afinal de contas, depois do descobrimento o que aconteceu é o que está sendo retratado no reverso (...) a miscigenação, as características do povo brasileiro como é hoje, através dos portraits lançados em diversas regiões do mapa, que é todo fragmentado, para efetivamente mostrar o resultado dos 500 anos de história, de influências de diversos povos, áreas de colonização diferentes.11

Uma pesquisa bem fundada permite escolha de

elementos visuais afinada com as determinações

do grupo misto. Como relata a autora do projeto,

todo o processo de escolha da iconografia da

cédula é permeado pela mesma lógica utilizada

nas moedas metálicas, havendo, em especial, a

preocupação de manter a vinculação do retrato

utilizado para imagem historicamente aceita no

imaginário do país:

Eu sei dessa importância até pelas moedas; participei dessas moedas de real. O escolhido pelo povo mesmo foram as figuras históricas, e as figuras históricas são reconhecidas por aquele retrato, por aquele ícone (...). Eu usei a gravura mais antiga que existe do Cabral.12

Durante seu relato Regina Fidalgo aborda o fato de

ter descoberto que a imagem de Cabral tida como

oficial é produzida bem posteriormente à morte do

navegador. Evidencia-se que a intenção principal

é determinar qual a figura sedimentada no

imaginário brasileiro como representativa do vulto

histórico. Além disso, toda a iconografia remete ao

que a projetista classifica como “livros de história”,

detalhes como o mapa que ladeia o portrait e

mesmo os demais elementos complementares,

todo o imaginário do anverso da cédula é específico

e vinculado ao fato do descobrimento.

No reverso a imagem central é a do mapa atual

do Brasil; esse lado é marcado pela atualidade,

imaginário centrado em vocabulário visual

mais contemporâneo. Segundo as palavras da

desenhista “coisa de computador, não é? Como

se o Brasil estivesse estourando os pixels assim...

No mapa do Brasil... E o último pixel crescia

e vinha uma pessoa”. Cada pixel carrega uma

representação de brasilidade encarnada em um

tipo físico que é imaginado, nesse momento, como

representativo do cadinho étnico da brasilidade.

Cédula comemorativa dos 500 anos do descobrimento do Brasil, 2000Imagens capturadas da cédula (coleção pessoal)

ARTIGOS | AMAURY FERNANDESArte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201148 49

Os pixels estariam em primeiro plano, assim... Aquelas pessoas... Na realidade eram cinco quadrados, por causa das cinco regiões, caracterizando cada região, o tipo... Não é? Assim: Santa Catarina uma loirinha... acabou por se chegar à conclusão de que era melhor não caracterizar mesmo regiões, só as etnias... Tipos físicos... Eu queria mesmo assim mais simples... O povo, o povo brasileiro assim... Que existe... A parte dos índios é que foi mais complicada...

Sobre a construção de imaginário que reforce determinada identidade nacional de interesse oficial Regina Fidalgo afirma que “a identidade é uma coisa política” − outros entrevistados, aliás, também colocam claramente a questão da escolha de personagens, temas e elementos

visuais sob esse prisma.

O projeto tem como característica principal de

seu discurso visual uma mescla de elementos:

os consagrados da representação histórica e

numismática – em especial a representação

figurativa bem realista, o portrait, a marca-

d’água, a gravura de talho-doce etc. – e outros

extremamente contemporâneos, como o

próprio polímero no qual a cédula é produzida

ou os pixels como fragmentos visuais que

explodem da composição do reverso e acabam

dominando a cena.

Se, entretanto, procuramos compreender quais

as “narrativas ideológicas dissimuladas, que estão

em curso, em todos os conceitos aparentemente

não narrativos”,13 como os signos visuais e mesmo

a base física sobre a qual essa cédula é impressa,

poderemos perceber algumas relações significativas

que esse novo dinheiro pode representar.

Em um primeiro nível de análise a escolha

do polímero como matéria-prima para

impressão de uma cédula por si só já

contrasta significativamente com o material

tradicionalmente utilizado para fabricar dinheiro:

o papel-moeda. A textura própria e diferenciada

do papel-moeda, reconhecida pelo tato de

praticamente todos os seres humanos como

sendo a do dinheiro, já substituiu há décadas o

toque do ouro e da prata no imaginário coletivo

como matéria-prima do numerário; só em

nível mais profundo, quase onírico, as moedas

com valor intrínseco reaparecem no imaginário

coletivo como representação da riqueza. O

contraste estabelecido, aos dedos mais do que

aos olhos, já denuncia a passagem desse dinheiro

do campo do moderno para o do pós-moderno,

pois a proximidade táctil com os cartões de

crédito e os smartcards similariza as peças tanto

quanto a função econômica, e ambos os aspectos

aproximam essa manifestação monetária da

economia virtual, e não das formas tradicionais

do dinheiro da época do capitalismo industrial.

São, porém, necessárias reminiscências visuais

que repercutam no imaginário coletivo para que

a cédula venha a ser reconhecida como tal; é

preciso fazer parte de certo conjunto de signos

socialmente partilhados para que esse significante

novo ancore seu sentido ao sentido tradicional

do dinheiro como representação do valor em si.

Nesse sentido, o portrait de Pedro álvares Cabral

torna-se o elemento físico principal para espelhar

uma tradição numismática incorporada ao objeto

com ar contemporâneo e tecnológico.

O artifício que mais denuncia essa ancoragem é

o fato de a imagem escolhida para o portrait ser

muito similar a outros já utilizados em cédulas

brasileiras. A identidade histórica do personagem

remete à representação centenariamente aceita,

que valida a circulação do signo novo com

autoridade muito superior à que uma gravura

atualizada pode ensejar.

Quase todas as imagens do anverso possuem

aspectos ancorados na tradição numismática,

reforçando a ação do portrait. Por seu tipo de

configuração visual estão ligadas, no imaginário

brasileiro, ao descobrimento e aos primeiros

tempos da colonização as naus, a Cruz da Ordem

de Cristo, os motivos da azulejaria portuguesa

colonial, mas principalmente o mapa Terra Brasilis.

As figuras humanas retratadas no reverso são

mais simplificadas, personagens anônimas que,

segundo o site do Banco Central, representam

a “pluralidade étnica e cultural” do Brasil. As

imagens estão embutidas em fundo com os

contornos do mapa nacional, que faz a ligação

visual entre esses elementos. O mapa, com o

contorno desenhado como imagem digital muito

ampliada, atualiza a linguagem gráfica do símbolo

que representa uma face da identidade da nação;

nas palavras da projetista Regina Fidalgo, é “o

Brasil em pixels”. A fragmentação da imagem na

composição não é do mesmo tipo das chamadas

artes sequenciais, nas quais cada parte pertence a

uma narrativa claramente encadeada, como nos

vitrais sacros ou nas histórias em quadrinhos. Na

cédula, o mapa que sustenta a representação das

etnias brasileiras explode, e as figuras humanas –

encapsuladas nos pixels que partem do centro do

mapa – são distribuídas por dispersão por toda a

composição sem que isso represente uma forma

estruturada ou ordenada de narrativa.

Nesse aspecto há marcante contraste com

a composição da cédula comemorativa do

sesquicentenário da independência que teve

temática idêntica. Nela as faces representantes

das diferentes etnias integram-se e se apresentam

em composição aglutinadora naquilo que está

descrito pela documentação do Banco Central

como sendo “uma sequência das diversas raças,

por ordem de precedência histórica”.

Em meio aos elementos que promovem a

integração do discurso visual dos dois lados é

interessante perceber que a harmonização da

paleta de cores se dá por contraste da temperatura

da cor. A cor fria (o azul) nos remete à sensação

de afastamento, e a quente (o laranja), de

proximidade, tanto física como temporalmente.

Uma vez que “as cores quentes parecem convidar-

nos enquanto as frias mantêm-nos à distância”14

e devido ao azul frio aplicado, o centro visual da

composição do anverso se contrai, e sua presença

dominante auxilia na construção de um foco

de atenção nessa área, que destaca a narrativa

histórica ali concentrada. No reverso, a expansão

do laranja quente das bordas, em maior área,

reforça a sensação de que os pixels se movimentam

rumo a um tempo futuro. Assim, a leitura das cores

intensifica o jogo passado/presente do discurso

plástico da cédula como um todo.

Os aspectos cromáticos somam-se à composição

centrípeta do layout do anverso, que concentra os

elementos gráficos de maior interesse nos centros

e deixa a periferia da face ocupada por elementos

cujos significados são menos presentes − em

contraponto à composição centrífuga do reverso,

que expande o tempo através dos elementos

que flutuam ao redor do mapa “pixelado”.

Alguns outros elementos gráficos, como dísticos

e numerais, parecem flutuar nas espirais visuais

determinadas pelas composições e pelas cores,

soltos pela inexistência das tarjas e rosáceas –

desenhos geométricos tão comuns em cédulas

mais antigas. Dessa forma o anverso/passado e

o reverso/presente estão igualmente estruturados

ARTIGOS | AMAURY FERNANDESArte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201150 51

e unidos visualmente, apesar de separados pela

linguagem gráfica aparentemente contraditória.

Um elemento mais do que todos promove

a integração de significados e essa união de

passado e presente: a rosa dos ventos que envolve

a janela transparente e vermelha do polímero e se

reproduz em ambos os lados da cédula. Indicadora

das direções de navegação, seu sentido pode ser

tanto o de representar a guia dos navegadores das

naus portuguesas do anverso/passado quanto dos

modernos navegantes da internet, cujos pixels do

reverso/presente explodem.

Por essas razões é possível considerar que o

imaginário da cédula foi extraído “de um novo

domínio da realidade das imagens, que é a um

só tempo ficcional (narrativo) e factual”,15 no qual

as imagens de personagens históricos e realidades

passadas e futuras são construídas, tornando-se

tradicionais e partes de uma invenção da narração

coletiva do nacional pressentida e representada

através do inconsciente da projetista.

Diferentes, mas iguais

Em 2002 a União Europeia lançou a família

de cédulas de sua moeda, o euro, que se vale

de elementos arquitetônicos para transpor a

barreira das nacionalidades e integrar o meio

circulante do continente sem que haja polêmicas

por conta do emprego de algum vulto histórico.

Recentemente os Estados Unidos iniciaram a

troca de seu meio circulante, e a manutenção das

efígies dos “Pais Fundadores” foi adotada para,

exatamente ao contrário da Europa, reforçar a

identidade nacional estadunidense.

Os discursos apresentados pelas duas cédulas

comemorativas emitidas no Brasil são distintos

e representam, cada um a seu modo, narrativas

visuais sobre a brasilidade oficialmente instituída.

Próximos, por expressar a mestiçagem como

identidade nacional, diferenciam-se na importância

atribuída a esse ponto, nas opções plásticas que

constroem seus imaginários e nos vínculos que

estabelecem com o imaginário coletivo.

No projeto da cédula do sesquicentenário opta-

se por esquema rígido de divisão geométrica

das áreas da composição, com aprisionamento

e subordinação dos elementos figurativos à

geometria; a paleta cromática é muito discreta, e

os contrastes de tom determinam a concentração

da atenção em determinadas áreas; além disso, a

composição visual muito se aproxima das cédulas

em circulação, não a distinguindo como signo

novo, mas reforçando a validade de um discurso

visual moderno, já em circulação. Nesse momento

o discurso da integração nacional se estabelece

pela sucessão e aglutinação dos elementos

discursivos, e é referendado pelo panteão de

heróis nacionais em circulação.

Na cédula do descobrimento há contraste

discursivo entre anverso e reverso. Linguagens

visuais diferentes estabelecem narrativas

distanciadas no tempo e integradas no

plano discursivo pela paleta cromática e pela

visualidade das composições, complementares

em seus aspectos estruturais. A absorção de

elementos tradicionais, em sua maior parte

respeitando a linguagem estabelecida pela

numismática, vincula o signo à tradição, em

contraponto com seu suporte, que o liga ao

meio monetário do século 21.

Os aspectos visuais da emissão do

descobrimento destoam da família existente

no meio circulante, em movimento oposto

ao realizado pelo Banco Central do Brasil em

1972, no sesquicentenário. O valor facial da

cédula não é o maior do meio circulante. A

primeira emissão compõe o meio circulante e é

concebida de forma publicidade da ideologia do

governo militar. A emissão do descobrimento é

fruto da celebração, mas ainda assim espelha as

dificuldades de construção da identidade nacional

na virada do milênio, expõe a fragmentação dos

discursos políticos e as tentativas de apropriação

das grandes narrativas do nacional por um governo

com dificuldades de construir narrativa própria.

NOTAS

1 Simmel, Georg. Filosofía del dinero. Granada:

Comares, 2003:5. Biblioteca Comares de Ciencia

Jurídica. Colección Crítica del Derecho, v.44.

2 Marx, Karl. Contribuição à crítica da economia

política. São Paulo: Martins Fontes, 2003:107.

Coleção Clássicos.

3 Antes da cédula comemorativa do sesquicentenário

da independência Aloisio Magalhães desenvolve

a família do padrão cruzeiro novo, que entra em

circulação em 1967 – chamada de família medalhões.

4 Leite, João de Souza. A herança do olhar. O design de

Aloisio Magalhães. Rio de Janeiro: Artviva, 2003:210.

5 Idem.

6 Hall, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade.

10 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005:55.

7 Bhabha, Homi K. Narrando la nación. In Bravo,

álvaro Fernandez (org.). La invención de la nación:

lecturas de identidad de Herder a Homi Bhabha.

Buenos Aires: Manantial, 2000:214.

8 Até a emissão dessa cédula em 1972 todos os

personagens que tiveram seus portraits estampados

nas cédulas brasileiras, emitidas por entidades

governamentais, eram figuras das nobrezas

portuguesa e brasileira ou militares já falecidos,

exceção feita ao presidente Getúlio Vargas,

homenageado em vida.

9 João de Souza Leite, designer e um dos principais

colaboradores de Aloisio Magalhães, em entrevista ao

autor em 2006. Todos os relatos aqui apresentados

são originários das entrevistas realizadas para a

pesquisa da minha tese de doutorado Uma etnografia

do dinheiro: os projetos gráficos de papel-moeda no

Brasil após 1960, PPCIS/Uerj, 2008.

10 Márcia Barbosa Silveira, funcionária do

Banco Central, formada em arquitetura, então

coordenadora do grupo misto de trabalho que

resolve as questões relativas aos projetos de cédulas

e moedas, em entrevista ao autor em 2006.

11 Entrevista ao autor de Glória Ferreira Dias, chefe

da Seção de Projetos Artísticos da Casa da Moeda do

Brasil na ocasião, em entrevista ao autor..

12 Thereza Regina Barja Fidalgo, desenhista da Casa

da Moeda do Brasil, autora do projeto da cédula

comemorativa dos 500 anos do descobrimento do

Brasil, em entrevista ao autor em 2007.

13 Jameson, Fredric. Modernidade singular: ensaio

sobre a ontologia do presente. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2005.

14 Arheim, Rudolf. Artes & percepção visual: uma

psicologia da visão criadora. São Paulo: Pioneira/

Edusp, 1980:360. Biblioteca Pioneira de arte,

arquitetura e urbanismo.

15 Jameson, Fredric. Pós-modernismo: a lógica

cultural do capitalismo tardio. São Paulo: ática,

2002:283. Série Temas, v.41.

Amaury Fernandes é professor da Escola de

Comunicação e do Programa de Pós-Graduação

em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFRJ.

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011 ARTIGOS | CYBELE VIDAL NETO FERNANDES52 53

O cortejo joanino passeou-se com todo o seu

esplendor, por ruas e praças de Lisboa até ao

Terreiro do Paço, onde se apearam e se dirigiram,

debaixo do pálio, levado por membros do Senado

de Lisboa Ocidental (...) Os dias que se seguiram

foram tempos de festa popular. Ao pasmo que as

montanhas de ouro e as luzidias galas provocaram

em todos os que, passivamente, se deixaram

embalar pelas grandezas dos que iam passando

pelas ruas e praças, seguiram-se dias de touradas

e noites de luminárias e fogos de artifício no Terreiro e no Castelo, enquanto os salões do Paço da Ribeira

se enchiam de bela música.1

Desde a Antiguidade as sociedades organizavam cerimônias de comemorações motivadas por

acontecimentos que fugiam à realidade cotidiana. Essas celebrações podiam referir-se a fatos

extraordinários ligados à vida dos governantes, como nascimentos, mortes, casamentos, vitórias em

batalhas, datas especiais referentes ao calendário anual, ou às festas religiosas. Eram acontecimentos

singulares, impregnados de forte carga simbólica, capazes de sensibilizar a sociedade e promover

momentaneamente uma transformação, uma nova ordem social. A festa criava um sentimento especial

que unia os cidadãos em torno de um objetivo comum, a manifestação da aceitação do motivo da festa,

através das mais diversas formas de expressão.

FESTAS REAIS EM PORTUGAL E NO BRASIL COLÔNIA: organização, sentido, função social

Cybele Vidal Neto Fernandes

festas artistasartífices barroco

O artigo trata do conceito de festa no mundo português e no Brasil colonial. Analisa

os elementos que fazem parte de sua estrutura, assim como a relação com projeto

único e a relação que mantém com as mais diversas camadas da população. A análise

visa compreender a festa como expressão sociopolítica e cultural.

ROYAL FESTIVALS IN PORTUGAL AND COLONIAL BRAZIL: organization, meaning, social function| The article addresses the concept of festival in Portugal and colonial Brazil. It analyzes the elements that are part of its structure and the relationship with a unique project and the continuing relationship with the different layers of the population. The analysis aims to understand the festival as a cultural and socio-political expression. | Festivals, artists, crafts, Baroque.

Prestígio das endoenças, c. 1722, nave da Igreja da Santa Misericórdia, Salvador, Bahia. Azuleijos de Portugal e Brasil. Revista Oceanos, Lisboa: Comissão Nacional para as comemorações dos Descobrimentos Portugueses, n. 36-7, outubro 1998-março 1999: 63-64. Foto André Ryoki.

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011 ARTIGOS | CYBELE VIDAL NETO FERNANDES54 55

Foi a partir do século 17, na corte de Luiz XIV,

na França, que as celebrações das monarquias

ganharam maior importância em toda a Europa,

com o surgimento do sistema absolutista e do

fortalecimento dos Estados Nacionais. Naquela

época, observou-se a reapropriação de antigas

tradições ligadas às festas gregas e romanas,

para homenagear a figura divina do rei e criar

os magníficos cenários das festas reais, que se

tornaram cada vez mais elaboradas. Sua realização

promoveu a formação de equipes dos mais diversos

profissionais, cada vez mais bem preparadas. Esse

modelo francês espalhou-se por toda a Europa,

graças às notícias e às gravuras que circulavam,

especialmente sobre a corte de Versailles.2

Essa forma de celebração chegou a Portugal

e alcançou ampla repercussão no país e nas

colônias, onde as festas reais eram celebradas

por ordem régia, mesmo que ocorressem muito

tempo depois do acontecimento que as movera.

As celebrações dos séculos 17 e 18 tinham ênfase

na festa barroca, com todos os elementos que

traduzissem o dramático, o excesso, o simulacro,

o êxtase, a luz, a vida, a morte. Portugal soube

interpretar com entusiasmo esse fenômeno, com

celebrações comemoradas com toda a pompa,

fosse na capital ou nas demais cidades e vilas

do país e das colônias. Esse modelo alcançou o

Brasil de forma oficial, ou chegou através dos

artistas e artífices migrantes. Era inegável que

o brilhantismo das celebrações dependia da

participação de todos, letrados ou não, ricos ou

pobres, nobres ou negociantes, representantes da

Igreja, delegações estrangeiras.

Nas regiões interioranas, em especial em Minas

Gerais, no século 18, esses acontecimentos

alcançaram enorme sucesso a partir da descoberta

de ouro e pedras preciosas, levando ao rápido

aumento da população, graças à migração

interna, ou originada de Portugal e outros países,

fato que impulsionou o surgimento de numerosas

vilas e cidades. Essa população deu origem a uma

sociedade muito complexa, na qual ambição

de enriquecimento era o sentimento comum,

alimentado pela euforia do ouro cada vez mais

abundante. Nesse contexto, foi na região das

Minas Gerais que ocorreram os mais grandiosos

espetáculos ligados às festas reais e religiosas.3

Os diferentes grupos da sociedade atuavam em

conjunto para a preparação da festa, participando

com seu trabalho ou patrocinando parte dos

festejos, visando sempre a seu brilhantismo. A festa

promovia o conhecimento, o congraçamento, a

alegria, o orgulho da cidade.4

Foi também no século 18 que ocorreu o

fortalecimento das ordens terceiras, instituições

que trouxeram alterações na ordem social, com

suas organizações de caráter religioso e assistencial,

pois promovia o orgulho do pertencimento. Suas

regras e o cerimonial eram muito respeitados e

reconhecidos, funcionando também como um

sistema compensatório (uma vez que concedia

alguns privilégios junto ao Senado da Câmara e

a outros órgãos do governo). A rivalidade entre

essas instituições resultou em várias iniciativas que

identificavam o orgulho da população em defesa

de suas tradições. As festas, a partir desse contexto,

foram comemoradas com grande entusiasmo e

pompa nas cidades e periféricas.

A festa no mundo português

A historiografia da arte portuguesa tem-se

dedicado ao tema da festa e trazido à luz

notícias, documentos, relatos descritivos, com

destaque especial para as festas de Lisboa e do

Porto.5 Também no Brasil, desde o século 17, a

Igreja realizou festas que congregavam todos

em torno de um fato extraordinário e ao mesmo

tempo introduziam hábitos e costumes em

uma população inculta e sedenta de formação

e informação. Nesse sentido, há relatos que se

referem às festas em que o papel da Igreja era

primordial, especialmente na organização das

procissões, que seguiam a tradição espanhola

e portuguesa, nas quais a sociedade se fazia

representar em suas diferentes camadas, como

os religiosos, os homens nobres e de negócios,

os militares, as ordens terceiras e as bandeiras de

ofício, os homens simples, sendo famosos os relatos

referentes à Bahia, a Pernambuco, ao Rio de Janeiro.6

Para compreendermos a festa no mundo por-

tuguês, em toda a sua expressão sociopolítica e

cultural, vamos analisar os elementos de sua es-

trutura, assim como sua importância como mó-

vel de um projeto único e grandioso que, para

se realizar, dependia do envolvimento das mais

diversas camadas da população, do nobre ao tra-

balhador comum, cada um realizando seu papel,

cuja participação em função do brilhantismo da

festa situa-se, pode-se dizer, no mesmo patamar

de importância.

A organização

Todas as ações em favor da festa partiam do

centro para as periferias, procurando unir todas

as partes num todo comum, isto é, trabalhando

no sentido de dar coerência a sua motivação,

enfatizando a figura do governante e de todas

as suas representações. Anunciada a festa, e

previsto o tempo de preparação, convocavam-

se as equipes de trabalho para a execução das

tarefas programadas.7 Os festejos eram descritos

por relatos de pessoas letradas, com licença

oficial para realizar tais narrativas. Esses relatos

funcionavam como “leitura autorizada” e se

detinham na organização das diversas etapas

da festa, conduzindo o leitor a uma verdadeira

viagem no tempo, criando também uma espécie

de receituário, que a tradição consagrou.

A etapa de preparação dava-se logo após o anúncio

da festa, mas nem sempre era cumprida dessa

maneira; houve festas no Brasil, por exemplo, que

ocorreram com grande defasagem em relação

ao motivo que as originou, pois, muitas vezes, o

anúncio da festa chegava ao interior com atraso,

e os preparativos não terminavam no tempo

previsto. Era comum, por exemplo, a dilatação

do tempo de preparação em função da própria

importância da festa, cujo programa, muito

complexo, precisava contar com profissionais

especializados, nem sempre existentes na região.

Entre os pesquisadores que mais contribuíram

com o estudo do tema festas reais realizadas na

cidade do Porto, Joaquim Jaime Ferreira-Alves

conseguiu reunir farta documentação arquivística,

analisada em seu trabalho A festa barroca no

Porto a serviço da família real na segunda metade

do século 18. Subsídio para seu estudo.8 Suas

pesquisas vão ajudar-nos a compreender melhor

a organização dos festejos, seu programa, a

execução de seu projeto, o tempo da festa, cujo

modelo posteriormente orientou as que foram

realizadas no Brasil, até o século 19.

A razão da festa ou motivação, o anúncio,

o bando

A motivação para as festas reais eram nascimentos,

mortes, casamentos, comemorações nacionais

relevantes. O primeiro passo era o anúncio,

feito através de carta régia ao governador das

Armas, ao Senado da Câmara, ao bispo, que

se encarregavam de dar as primeiras notícias.

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011 ARTIGOS | CYBELE VIDAL NETO FERNANDES56 57

Seguia-se depois a divulgação da notícia ao

povo, cuja participação era solicitada. O tríduo,

determinava que a comemoração tivesse pelo

menos iluminação por três dias, nas casas e na

cidade, missas e procissões. O programa da festa

era geralmente elaborado pelos homens cultos

da cidade, que se reuniam em suas instituições

e se colocavam a serviço do evento. Jaime

Ferreira-Alves chama atenção para o fato de que

nem sempre os três dias de programação eram

respeitados, pois o entusiasmo do povo levava ao

prolongamento das manifestações da festa por

muitos dias.

A notícia era divulgada nas ruas pelo “bando”,

grupo de pessoas que incluía o porteiro, o alcaide

da cidade, e homens e oficiais. Seguiam em trajes

de gala, alguns a pé outros a cavalo, todos bem-

vestidos, a tocar tambores e clarins, chamando

a atenção do povo nos dias que antecediam os

festejos anunciando, ao longo do dia, a grata

notícia. O bando tinha, na verdade, duas funções:

levar a notícia e abrir os festejos com os sons, os

trajes coloridos, o desfile, transmitindo a todos

o sentimento da festa, a ser absorvido pelos

habitantes da cidade.

Luz, sons ou ruídos

Elementos imprescindíveis na festa, seu uso era

enfatizado, no sentido de contaminar a cidade

e manter vivo o espírito da celebração. A luz era

um artifício ao alcance de todos, pois poderia ser

utilizada em maior ou menor quantidade, colocada

nas fachadas ou completando os carros e demais

arranjos ou as montagens em arquitetura efêmera,

que se multiplicavam pelas praças e ruas. Segundo

Jaime Ferreira-Alves, a luz transformava o cenário

da cidade “vencendo a escuridão e seus medos”.9

O espaço da cidade se prolongava através da luz,

como diziam os cronistas sobre a cidade do Rio

de Janeiro, no século 19, cujos morros surgiam ao

longe, como um verdadeiro presépio, iluminado

pelas velas de cera e lampiões variados. Nos salões

ou construções efêmeras, os lustres de cristal

iluminavam com suntuosidade o ambiente.

Às vezes, buscavam-se efeitos mais espetaculares

com o uso da luz: é o caso dos “transparentes” ou

painéis em papel com imagens ou textos escritos,

que realçavam com o efeito das sombras contra a

luz. As casas se enfeitavam e, ao mesmo tempo,

faziam saudações aos homenageados com

figuras simbólicas, votos ou versos, utilizando

textos clássicos, escritos por pessoas de formação

erudita, muitas vezes de difícil entendimento

pelo povo comum, mas recebido pela população

como forma correta de comunicação e saudação

ao homenageado.

Como exemplo, lembremos a decoração que o

artista inglês Mr. Bouck realizou, no Rio de Janeiro,

por ocasião da festa de aclamação de dom João VI,

quando foi contratado pelo intendente de polícia

Paulo F. Viana para decorar a fachada de sua

residência, no Campo de Santana. Mr. Bouck

criou um aparatoso conjunto, com efeitos dos

transparentes, com o retrato do rei, ao lado dos

Gênios dos Três Reinos, Portugal, Brasil, Algarves,

arrematado com a frase “A indelével memória da

feliz coroação do Augusto Senhor dom João VI”.

Os sons eram também muito importantes: todos

os sinos tocavam acordando a cidade; os navios

faziam suas descargas nos portos e baías, os

tambores se sucediam nos desfiles, o povo cantava,

e os múltiplos sons se misturavam, mantendo

a animação da festa. Seguindo a tradição, os

relatos sobre as celebrações no Rio de Janeiro

testemunham as salvas de canhões das fortalezas

que protegiam a entrada da Baía de Guanabara

e dos navios ancorados no porto, a acordar a

população e a acompanhar os acontecimentos.10

Os homens ricos e de negócios promoviam bailes

e jantares faustosos em suas residências, em que

a música estava sempre presente.

Ofícios religiosos: missas, Te Deum, procissões

A Igreja tinha participação obrigatória nas festas,

e o fazia com grande pompa, promovendo

cerimônias para as quais eram preparados cenários

e ornamentações que às vezes ultrapassavam

o espaço dos templos, quando havia cortejo

pelas ruas − os moradores emolduravam as

janelas com colchas e toalhas bordadas, jogavam

flores, iluminavam suas casas, saíam às ruas para

participar da celebração.

Nas solenidades da aclamação de dom Pedro I, o

Te Deum, ou missa solene, foi celebrado na capela

imperial, logo após dom Pedro ser aclamado pelo

povo e homenageado com uma salva de 101

tiros, do palacete armado para a celebração, no

Aclamação de D. Pedro I Imperador do Brasil, no campo de St.ª Anna no Rio de Janeiro

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011 ARTIGOS | CYBELE VIDAL NETO FERNANDES58 59

Campo de Santana. As procissões eram também

desfiles de grande significação, contando com a

presença das mais altas representações da Igreja,

do Estado, da sociedade local, além dos grêmios

e demais agrupamentos.11 No Rio de Janeiro, a

mais famosa era a Procissão das Cinzas, que

seguia com grande aparato pelas ruas da cidade

abrindo os festejos da Quaresma. Essas procissões

barrocas, nas regiões interioranas, tinham um

tom ainda mais dramático, sendo o ponto alto da

festa nas comemorações em honra da família real

ou nas festas do calendário litúrgico.

Touradas

Entre as muitas manifestações que ocorriam na

festa, eram observados jogos e outras atividades

de grande gosto popular, como as “touradas”.

Eram espetáculos preparados com muito

aparato, precedidos por desfiles alegóricos, pelo

carro de aguar o chão, por música, dança e fogos

de artifício. Não havendo praças de touros, eram

montadas praças provisórias em algum terreno

propício da cidade para abrigar os espetáculos:

“Sobre os divertimentos o mais célebre e plausível

é o combate de touros, ou seja a pé ou a cavalo:

festa (...) para a qual todos concorrem com

grandes gostos, e se fazem com muito aparato e

magnificência”.12

Simulações de batalhas e lutas

Eram de grande gosto popular as lutas e simulações

de batalhas vitoriosas, revividas através de um

verdadeiro teatro de rua. As batalhas sempre

foram apresentadas como espetáculo popular de

sucesso, desde os tempos dos jogos romanos. Em

Portugal, segundo Ferreira-Alves, tinham muita

aceitação as lutas entre cristãos e mouros, nas

quais homens portando vestes e armas medievais

lutavam em defesa de suas convicções religiosas. Às

vezes esses combates se davam na arena, antes das

touradas, animando o povo para a luta final com os

animais. “Em 1757, João de Almada e Melo, para

comemorar o aniversário de dom José I – em 6 de

junho – realizou na Cordoaria um exercício militar

que consistiu no ataque a uma fortaleza...”13

O teatro, as óperas, a música, o canto

A programação de gala dos teatros era muito

esperada, principalmente as óperas, por serem

espetáculos mais completos, com o canto e a

dança, indumentárias apropriadas, cenários muito

elaborados. Às vezes as companhias de óperas

vinham de longe para promover os espetáculos,

previamente anunciados, e muito aguardados pelo

povo. Era comum as representações ultrapassarem

os dias previstos para a festa, bem como haver

necessidade de improvisar a construção de um

teatro, resultando desses espaços efêmeros,

por exemplo, o Teatro do Corpo da Guarda e

posteriormente o Teatro São João, no Porto. No

Brasil, na aclamação de dom Pedro I, Debret criou

um novo pano de boca, uma alegoria na qual

o governo imperial foi representado como uma

mulher sentada e coroada, usando túnica branca

e o manto ricamente bordado, portando as armas

do imperador e segurando na mão direita a

Constituição do Brasil.14

A arquitetura efêmera, os artistas e artífices

A festa transformava o espaço da cidade, com o

recurso das arquiteturas efêmeras. Para realizá-las

eram chamados os melhores artistas e artífices,

mão de obra especializada, capazes de responder

adequadamente pelos numerosos projetos de

cenários e carros alegóricos, de difícil execução.

Desde o mais simples artesão ao mais bem

formado, como o alfaiate, o ferreiro, o marceneiro,

o arquiteto, o escultor, o pintor, todos eram

requisitados para trabalhar em função da festa,

geralmente em espaço de tempo muito reduzido.

A Igreja, as representações, o Exército, o Senado

da Câmara, todos propunham projetos, cujos

temas eram buscados no vocabulário clássico e

nas gravuras das festas reais, que percorriam toda a

Europa. De modo geral, eram erguidas “varandas”

para as autoridades, muitos arcos de triunfo e

obeliscos, espaços provisórios para celebrações,

teatros, monumentos ao homenageado. Sabe-se

das atividades desses profissionais pelos numerosos

contratos que assinavam para esses empreendimentos

e também pelos frequentes processos referentes à

falta de pagamento aos executantes.15

Por ocasião da aclamação de dom João VI foi

erguida a Varanda da Aclamação, projeto do

Festas do casamento de dom João e dona Carlota Joaquina em Madri. Muzi (a.,d.,1785). Óleo sobre papel, 37 x 54 cm. Dom João VI e seu tempo. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999: p. 175. Lisboa, Coleção Maria Keil Amaral. Foto André Ryoki

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011 ARTIGOS | CYBELE VIDAL NETO FERNANDES60 61

arquiteto português João da Silva Muniz. Fazia face

com a frontaria do antigo Convento do Carmo,

abrindo-se para a praça através de 19 arcos,

sendo o central destacado do plano de fundo,

em formato de tribuna. No interior, ricos lustres

de cristal, paredes revestidas de veludo e seda,

e pinturas alegóricas no teto comemoravam as

virtudes de dom João. Ali o rei, sentado no trono,

de uniforme e segurando o cetro − de acordo

com a tradição e o protocolo − foi aclamado,

mas não coroado. A coroa foi depositada em

uma almofada a seu lado, durante a cerimônia.

A música ficou a cargo da orquestra de músicos

austríacos trazidos pela princesa Leopoldina.

O espaço mágico da festa

A festa se fazia em grandes espaços, fossem os

fechados das residências, edifícios públicos, igrejas e

teatros ou os abertos das ruas e praças. Jaime Ferreira-

Alves lembra que, na maioria desses espaços, havia a

duplicidade do uso, que se alternava entre o sagrado

e o profano. Geralmente determinada atividade

tinha seu percurso demarcado por um mapa oficial,

e esse espaço era então preparado adequadamente

para tal função, como se pode observar em vários

documentos da época.

Em 1810, para comemorar o casamento da

infanta Maria Tereza, em uma armação munida

de fogos e profusamente iluminada, o Gênio da

Concórdia coroava um grande painel oval com os

retratos de dom João e dona Carlota Joaquina e,

mais abaixo, protegidos pelo Himeneu, divindade

grega protetora dos casamentos; outros dois painéis,

colocados nas esquinas, tinham os retratos dos

noivos, dom Carlos e dona Maria Tereza. Seis meses

depois ocorreram mais sete dias de festas, a cargo

do intendente de polícia Paulo Fernandes Viana. No

Campo de Santana, foi montado um imenso jardim,

com anfiteatro quase circular, com 348 camarotes,

em dois andares. Uma ampla varanda com três

janelas dava acesso à chamada Praça do Curro, com

cenário tropical de jardim com palmeiras.

Fogos de artifício e carros alegóricos

Como a luz e os sons, os fogos de artifício

não poderiam faltar nas festas reais, sendo

utilizados de forma cada vez mais complexa.

Recurso de grande efeito, requeria a contratação

de especialista em sua preparação e estava

associado às encomendas oficiais. Os fogos de

artifício eram geralmente utilizados nas touradas

e desfiles de carros alegóricos, e proporcionavam

momentos espetaculares na festa.

Os carros alegóricos também não faltavam e

eram sempre muito esperados. Criações muito

originais, eram, de modo geral, oferecidos pelas

Pano de boca executado para o Teatro da Corte, para a representação da cerimônia por ocasião da coroação do imperador dom Pedro I

Vista exterior da varanda da aclamação de dom João VI (no Rio de Janeiro)

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011 ARTIGOS | CYBELE VIDAL NETO FERNANDES62 63

associações de comércio e homens de negócio,

e baseavam-se nos temas mitológicos, utilizando

representações simbólicas e alegóricas, em

função do homenageado. Eram construções

bastante complexas, com figurantes fantasiados

e recursos de jatos de água, luz, fogo, som. Esses

desfiles buscavam animar o povo e estimular sua

imaginação; assim sendo, adotavam também

temas exóticos, recebidos com entusiasmo, ao

lado do vocabulário clássico, mais comum, sendo

lembradas a áfrica, a China, as Américas com seus

mistérios. No Campo de Santana, comemorando

o casamento da infanta Maria Tereza, desfilaram

vários carros alegóricos ofertados: 1- comerciantes

do varejo e boticários (Carro da América); 2-

ourives de ouro e prata (a dança dos chineses);

3- negociantes de secos e molhados e de louças

(Carro da Imortalidade com a dança dos heróis

portugueses); 4- artesãos latoeiros, ferreiros,

segeiros, caldereiros (a dança dos mouros); 5-

carpinteiros que executaram a obra do curro

(danças militares); 6- um grande barco com

bailarinos. O Carro da América representava

o povo e as terras do Novo Mundo, através de

uma montanha sobre a qual uma índia, de pé,

simbolizando a América, a cabeça coroada com

um cocar de penas coloridas, arco e flecha na

mão, remetia à luxuriante floresta tropical, com

sua rica vegetação, flores e animais. Nesse carro

uma engrenagem fazia jorrar água ao longo do

percurso, refrescando o ambiente.

Esse painel sobre as festas reais no mundo

português revela que a festa é um acontecimento

singular, que desde o passado se manifestou nas

diferentes sociedades como instrumento eficaz

de socialização e perpetuação das tradições.

Muito importante em Portugal, chegou ao Brasil

e, graças às características da sociedade colonial,

foi assimilada de forma enfática, revelando a

complexidade da população, do espaço tropical,

das lutas pela sobrevivência, da forte presença

da Igreja, o verdadeiro poder em ação nas terras

da colônia. A festa, como estrutura organizada,

nunca foi estanque, e sofreu mutações ao longo

do tempo, mantendo porém suas características

mais marcantes, em função da glorificação do rei e

da fé comum. No Brasil, a festa promovia, ainda, o

conhecimento através do vocabulário esclarecido

utilizado, dos mecanismos de perpetuação de

tradições dos povos, das propagandas de ideias

e ideais de amor à terra, ao governante, à ordem,

como elementos estimuladores das ciências e das

artes, como formação da ideia de Brasil.

NOTAS

1 Tedim, José Manuel. Triunfo da festa barroca na

Corte de D. João V. A troca das princesas. Revista

Barroco, n.19. Belo Horizonte, 2001-2004:121-136.

2 Benoist, Luc. Versailles et la monarchie. Paris:

Éditions de Cluny a Paris, 1947, 5 V, V II, pranchas

23-31; Garnot, Nicolas Saint Fare. Le décor des

Tuileries sous le règne de Louis XIV. Paris: Ed. De la

Réunion des Musées Nationaux, 1988.

3 São muito conhecidos os relatos referentes às Procissões das Cinzas, de Corpus Christi, as entradas de bispos e principais da Igreja nas cidades, os festejos especiais das cidades e vilas, como o translado do Santíssimo Sacramento da Igreja do Rosário dos Pretos, em Vila Rica, para a Matriz de Nossa Senhora do Pilar, em 1733, denominado o Triunfo Eucarístico. Essa festa reflete todo o contexto da sociedade setecentista das Minas e foi descrita pelo lisboeta Simão Ferreira Machado, em relato publicado em Lisboa, em 1734. Cf. Fernandes, Luciano Oliveira. Festa barroca e documento-monumento. Disponível em www.ichs.ufop.br\memorial\trab2\1521.

pdf. Acesso em 17.9.2011.

4 Cf. Del Priore, Mary. Festas e utopias no Brasil

colonial. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994; ávila,

Afonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco.

São Paulo: Editora Perspectiva, 1980; Arantes,

Adalgisa. O Triunfo Eucarístico e a universalidade.

Revista Barroco n.15. Belo Horizonte, 1992.

5 O tema das festas reais vem sendo estudado

na Europa e em Portugal, inserido na história

das mentalidades. Interessa-nos mais de perto

a bibliografia ligada à Península Ibérica, pela

aproximação das culturas espanhola e portuguesa, e

seus reflexos nas festas da Corte. Foram contribuições

ao tema: Bonnet Correa, A. Arquitetura efímera.

Ornatos Y máscaras. El lugar y la teatralidade de

la fiesta barroca. In Teatro y fiesta em el Barroco.

España e iberoamérica. Barcelona: Ed. El Serbal,

1986; Tedim, J. M. A festa e a cidade no Portugal

barroco. Disponível em ler.letras.up.pt\uploads\

ficheiros\7544.pdf. Acesso em 12.9.2011; França,

José Augusto. Lisboa pombalina e o Iluminismo.

Lisboa: Livraria Bertrand, 1977.

6 Hansen, João Adolfo. Festas e sociabilidade do

poder real e as festas públicas no Rio de Janeiro

colonial. São Paulo: Edusp, 2001.

7 Gervásio, Flavia Klausing. Festas para El Rei.

Relatos e símbolos das festividades régias na América

portuguesa setecentista. Belo Horizonte, Dissertação

de Mestrado, UFMG, 2008.

8 Ferreira-Alves, J. J. A festa barroca no Porto ao

serviço da família real na segunda metade do

século XVIII. Subsídios para o seu estudo. Revista

da Faculdade de Letras. Porto, s.d. Disponível em

ler.letras.up.pt\uploads\ficheiros\2102. Acesso em

30.8.2011.

9 Ferreira-Alves, op. cit.:18.

10 Para descrição completa da cerimônia, ver Souza,

Octavio Tarquinio de. A vida de D. Pedro I. In História

dos fundadores do Império do Brasil. Belo Horizonte/

São Paulo: Itatiaia/Edusp, 3v, 1988.

11 Segundo Maria Helena O. Flexor, passaram ao

Brasil as Procissões de El Rey ou Procissões Gerais,

como rezavam as Constituções Primeiras ordenadas

pelo Direito canônico, leis e ordenações do Reino e

costume do Arcebispado da Bahia. Flexor, Maria H.

O. Procissões na Bahia: teatro barroco a céu aberto.

Disponível em http-www.ichs.ofop.br-memorial-

trab.2-152. Acesso em 30.8.2011.

12 Ferreira-Alves, op. cit.:24.

13 Ferreira-Alves, op. cit.:26.

14 Debret, J.-B. Viagem pitoresca ao Brasil. São

Paulo: Edusp, 1978:326-329.

15 Para a festa eram convocados artífices e artistas

disponíveis na cidade, obrigados a colaborar

sob pena de multa. Havia trabalho para todos e

seria impossível listá-los aqui. Quando os mestres

franceses chegaram ao Rio de Janeiro no século 19,

Grandjean de Montigny e Debret trabalharam muito

para as festas da corte. Também são citados os

artistas portugueses que estavam no Rio de Janeiro: o

arquiteto João da Silva Muniz, na Aclamação de dom

João VI; o inglês Mr. Bouck, no casamento da infanta

Maria Tereza; Manoel da Costa, decorador português,

pintor e cenógrafo, que chegou ao Rio de Janeiro

em 1811; Luiz Xavier Pereira, maquinista do Teatro

Real, e muitos outros registrados nos contratos de

encomendas ou que ficaram no anonimato. Fernandes,

C.V.N. As construções efêmeras e as transformações

dos cenários para as festas e celebrações na Corte do

Rio de Janeiro. Anais do CBHA: Rio de Janeiro/Belo

Horizonte: Comarte, 2009.

Cybele Vidal Neto Fernandes é doutora em

história social da cultura, pós-doutoranda pela

Universidade do Porto, Portugal, e professora do

Departamento de História e Teoria da Arte do

Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da

Escola de Belas Artes da UFRJ.

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201164 65ARTIGOS | CRISTINA PIERRE DE FRANÇA

O século 19 foi intenso no campo da arte, tanto na

Europa quanto no Brasil. Em sua segunda metade,

dois artistas polarizaram a preferência dos críticos

e do público do país, Pedro Américo (1843-1904)

e Victor Meirelles (1832-1903). Formados pela

Academia Imperial de Belas Artes, ambos refletiam

as tensões do meio artístico nacional, de um

lado norteados pelos ensinamentos da Academia

Imperial de Belas Artes, formadora de sua filiação

artística, de outro, pelas novas correntes da arte

europeia com as quais tinham contato, devido ao

Prêmio de Viagem ganho por Meirelles, que o tornou bolsista da Academia Imperial, e à bolsa concedida

pelo imperador a Américo, o que lhes proporcionou longa estada no velho continente.

No caso de Victor Meirelles, essa aproximação das correntes europeias de arte pode ser observada nos

Panoramas, produzidos pelo artista no final do século 19. Essa modalidade artística corresponde a

uma forma específica de representação da paisagem realizada no país, com maior intensidade a partir

da segunda metade do Oitocentos, observada nas representações dos pintores nativos e dos artistas

viajantes que aqui aportavam.

É importante distinguir essa pintura de paisagem, em voga no Brasil do século 19, que representava a

natureza local, do Panorama como invenção. No primeiro caso, as pinturas de panorama podiam ser

A IMERSÃO NO PANORAMA DE VICTOR MEIRELLES

Cristina Pierre de França

imersão panoramailusão século 19

Fruto da tese de doutorado A paisagem imersiva: O Panorama do Rio de Janeiro, de

Victor Meirelles e a videoinstalação Fluxus, de Arthur Omar, defendida no Programa

de Pós-Graduação de Artes Visuais da EBA/UFRJ, orientada pela profa. Ana Cavalcanti,

o artigo discute a questão da imersão e sua constituição no Panorama, um meio que

alia tecnologia e entretenimento no século 19.

Panorama de Mesdag. The Hague. RotundaFonte: Comment, Bernard. The Painted Panorama. New York: Harry N. Abrams,Inc, 2000: p88

IMMERSION IN THE PANORAMA OF VICTOR MEIRELLES | The article discusses the issue of immersion and its constitution in the Panorama, a medium that combines 19th-century technology and entertainment. This paper is the result of my doctoral thesis − Immersive Landscape: The Panorama of Rio de Janeiro by Victor Meirelles and the video-installation Fluxus by Arthur Omar, presented to PPGAV-EBA/ UFRJ, under the guidance of Prof. Ana Cavalcanti. | Immersion, Panorama, Illusion, 19th century.

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201166 67ARTIGOS | CRISTINA PIERRE DE FRANÇA

realizadas sobre superfícies como papel ou tela

e tinham em comum a ênfase ou o predomínio

da horizontalidade, que determinava a visada do

espectador. Essas representações panorâmicas

apresentavam vistas das cidades a partir de um

ponto de vista elevado e tendiam a expandir a

visão a um ângulo mínimo de 180º. Embora

esse tipo de obra apresentasse a vista estendida

horizontalmente de um local, as dimensões da

obra não eram determinantes em sua fruição

e feitura. Podiam-se encontrar pinturas de

panoramas de dimensões tão reduzidas, que

sua visualização exigia o uso de lupas. No

segundo caso do Panorama, entendido como

meio imagético, as dimensões e a forma circular

ganhavam caráter fundamental, aliadas a uma

série de aparatos mecânicos e técnicos para sua

execução, incluindo a construção de edifícios

circulares para abrigar a tela.

Produções artísticas do final do Setecentos, os

panoramas representavam locais ou situações

determinados sob perspectiva ilusionista,

enfatizada pela dimensão ampliada do tema

pintado, configurando a situação categorizada

como imersão.

A imersão é definida como o “ato ou efeito de

imergir(-se), de submersão ou de afundar-se,

adentrar-se”.1 Nas acepções do termo estão

presentes caracteres reflexivos pelos quais a

imersão é fruto de uma ação voluntária do sujeito

de penetrar, de se deixar absorver, e que assinala

como consequência a ocultação, a subsunção do

sujeito no interior daquilo no qual imerge.

Na arte, a imersão seria um estado amplificado,

maximizado da ilusão, que agencia condições

mentais e corporais introdutoras do espectador

mais intensamente na cena e no objeto imagético

ali representado. Distinguimos duas operações: a

primeira seria de fusão das realidades atualizada

e representada, fundindo o espaço imaginário e

o real; a segunda seria do esmaecimento dos

aspectos do mundo contingente e da emergência

das qualidades intrínsecas da representação, que,

artificialmente, criam realidade paralela, a qual

pode ser divisada contemporaneamente nas artes

visuais nas instalações e videoinstalações e, no

século 19, nos panoramas.

Segundo Oliver Grau, a imersão é fato constante

na história da imagem e na história da arte. Nesse

sentido, a presença da virtualidade, observada

na contemporaneidade a partir de tecnologia de

base digital e, ainda, da reconstrução de um local

ou de intervenções em determinados ambientes, é

um aspecto exacerbado da arte que já existia com

o meio de produção manual desde as pinturas

rupestres. Assim, a questão da imersão relaciona-

se à sugestão de ‘presentificação’ da obra, para

tornar a acepção do objeto representado o mais

concreto e real possível para o espectador. Opera-

se, então, uma mudança dos estados mentais

do público, que apresenta sua capacidade crítica

proporcionalmente diminuída à medida que a

obra solicita maior adesão de seus sentidos para

a percepção do ambiente no qual está imerso. Há

uma vedação das instâncias de julgamento do

espectador como consequência de sua adesão à

obra artística na qual está imerso.

O ambiente imersivo necessita cumprir

determinadas exigências; deve constituir-

se em local hermético, que veda o acesso a

sua exterioridade, pois fecha-se nele mesmo,

solapando as instâncias de ingresso ao que se

localiza além do recinto da obra. A interioridade

do local se potencializa por focos de apelo

que atraem a atenção do público, admitindo

a manipulação (em menor ou maior grau) de

alguns artefatos de seu interior, que se agregam à

vivência real do espectador.

A intenção é instalar um mundo artificial

que proporcione ao espaço imagético uma

totalidade (...) que preencha todo o campo

de visão do observador. Ao contrário

(...) de um ciclo de afrescos que retrata

uma sequência temporal de imagens

sucessivas, essas imagens integram o

observador em um espaço de 360º de

Victor Meirelles. Estudo para Panorama do Rio de Janeiro: morro do Castelo, c. 1885, óleo sobre tela, 100cm x 100cm. Acervo Museu Nacional de Belas Artes. VM 003 Doc. 0011Fonte: Coelho, Mário Cesar. in Victor Meirelles – novas leituras. Org. Maria Inez Turazzi. Florianópolis Museu Victor Meirelles: Studio Nobel, 2009: p124

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201168 69ARTIGOS | CRISTINA PIERRE DE FRANÇA

ilusão, ou imersão, com unidade de tempo

e lugar (...) os espaços imersivos podem

ser classificados como variantes extremas

de mídias imagéticas que, por conta de

sua totalidade, oferecem uma realidade

completamente alternativa.2

Em vez de enganar o olho, enganam-se os sentidos

− trompe les sens.3 Estabelece-se, assim, seu

aspecto realístico, uma configuração simuladora

da realidade com graus cada vez mais intensos,

como é o caso das experiências com ferramentas

e ambientes informacionais. A imersão formula

um lugar alternativo que, mesmo por segundos,

suspende a capacidade de discriminação e incute

no público a ideia de estar, de fato, no local

representado. Há um intercâmbio de realidade

em que o que existe além daquele espaço se torna

irrelevante, pois se adensa outra realidade, que

potencializa o aspecto dúbio do real.

Interessa-nos, neste momento, destacar a

questão da bipolaridade, da superposição e da

ambiguidade promovida por essa esfera fictícia,

a qual intercambia informações a partir da

atenção dividida entre o mundo imaginário e o

real promovida pelos ambientes imersivos. É nesse

sentido que aos objetos efetivos e materiais se

agregam outros, da instância imaginária e imaterial,

promovendo uma realidade em que se misturam o

concreto e o sugerido, o matérico e o ideado.

Nessa perspectiva, os panoramas e as

videoinstalações se constituem como lócus

privilegiado dessa intersecção entre os espaços

ilusório e efetivo, como um cenário cujos objetos

habitam simultaneamente um lugar concreto, no

qual se ativa a concomitante instância imaginária.

Um espaço que existe no aqui e agora da visitação.

Com duração de aproximadamente 115 anos,

o panorama teve seu apogeu durante o século

19. Stephan Oettermann, em seu livro The

panorama history of mass medium,4 vislumbra

estreita conexão entre a modalidade artística e o

Oitocentos, período no qual muitas das invenções

tecnológicas envolvendo a visão apresentavam

caráter híbrido, entre a pura visualidade, como no

caso da máquina fotográfica, e o espetáculo de

representação, como no caso das fantasmagorias.

Considerado invenção, o panorama, tal como a

máquina a vapor ou a luz elétrica, foi patenteado

pelo irlandês Robert Barker no final do século 18,

mais precisamente em 9 de junho de 1787. Como

meio de arte, o panorama apresenta algumas

peculiaridades. Podemos assinalar, entre elas,

a montagem circular das telas, seu caráter de

fidedignidade ao tema representado a partir

de uma visada de 360º, sua feição ambiental,

uma vez que constitui espaço específico em que

o espectador é introduzido, além da questão

espetacular que carrega.

Victor Meirelles apresenta-nos esses dois tipos de

panorama. No início de sua carreira, suas produções

paisagísticas da cidade de Desterro são pinturas

panorâmicas e, já no final do Oitocentos, apresenta-

nos os panoramas realizados segundo a concepção

de aparato híbrido entre a pintura de tela e as

execuções mecânicas, e objetos exigidos pelo meio,

entre a contemplação e o espetáculo de lazer.

Obras da maturidade, os panoramas entraram na

vida de Victor Meirelles bem antes de sua efetiva

execução. A vontade de realizá-los provavelmente

foi fruto da intensa impressão que eles lhe

causaram em suas viagens à Europa. Na biografia

do pintor, escrita por Carlos Rubens, cita-se Max

Fleiuss para assinalar que, entre a ideia inicial e a

efetiva execução do Panorama do Rio de Janeiro,

decorreram “mais de 17 anos”.5

Ainda em 1884, o artista fazia publicar no jornal

O Paiz um anúncio visando granjear sócios para

a empresa. Nesse texto, explica que o panorama

seria “a reprodução em vastíssima tela, de um fato

grandioso da história da pátria”;6 assinala também

seu potencial mercantil e o caráter pedagógico

para desenvolver o patriotismo nos cidadãos

brasileiros. Em 1885, Arthur Azevedo saudava

a intenção do artista de constituir empresa

para explorar o Panorama do Rio de Janeiro,

destacando o patriotismo e a feição comercial

do empreendimento.7 Esse empreendimento

mostra uma visão nova no campo da arte, a do

artista como efetivo negociante de seu trabalho,

compreendido também como espetáculo

relacionado ao lazer − visão que também estará

presente em algumas estratégias para ampliar

o público assistente, envolvendo ações que

chamassem atenção sobre a obra, como pequenas

notas e uma espécie de propaganda do evento.

Victor Meirelles realizou três panoramas: o da

cidade do Rio de Janeiro, o das ruínas da Fortaleza

de Villegaignon e o da descoberta do Brasil.

O primeiro trabalho desse gênero realizado por

Meirelles foi o Panorama do Rio de Janeiro, em

colaboração com o pintor e fotógrafo belga Henri

Victor Meirelles. Estudo para Panorama do Rio de Janeiro: entrada da Barra, c. 1885, óleo sobre tela, 56,7cm x 195,4cm. Acervo Museu Nacional de Belas Artes. VM 003 Doc. 0006Fonte: Coelho, Mário Cesar in Victor Meirelles – novas leituras. Org. Maria Inez Turazzi. Florianópolis/Museu Victor Meirelles: Studio Nobel, 2009: p124 e 125

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201170 71ARTIGOS | CRISTINA PIERRE DE FRANÇA

Charles Langerock (1830-1915). Seus estudos

iniciais aconteceram em 1885 e foram realizados

a partir do Morro de Santo Antônio. No início

de 1886,8 ambos partiram para a Europa com o

objetivo de executar a pintura, realizada na cidade

de Ostende, na Bélgica.

O Panorama do Rio de Janeiro teve sua primeira

exposição realizada em Bruxelas, e a abertura

oficial, realizada com grande pompa, aconteceu no

dia 4 de abril de 1887, contando com a presença

dos soberanos belgas. A exibição alcançou grande

sucesso de público, sendo visitada por cerca de 50

mil pessoas. Segundo Carlos Rubens, esse trabalho

serviu como motivação para comentários elogiosos

a respeito do Rio de Janeiro e do Brasil, assinalado,

então, como “nação mais notável da América”.9

Em 1889, Victor Meirelles partia com seu

Panorama para Paris, com o objetivo de mostrá-lo

na Exposição Universal. Assim como na Bélgica, o

trabalho causou boa impressão aos críticos de arte

e ao público, apesar de não ter repetido o sucesso

original, sobretudo por estar fora do circuito

principal do evento, próximo ao Campo de Marte.

Esse fato foi determinante para que o afluxo de

público a sua obra fosse menor do que o esperado

pelo artista, que, assim, não conseguiu manter o

Panorama na capital francesa além do prazo de

duração do grande acontecimento mundial.

Infelizmente, a produção imagética do panorama

só pode ser divisada por meio dos estudos

realizados para sua execução. Tanto esse primeiro

quanto os demais pintados por Victor Meirelles

foram doados pelo artista e sua mulher ao

governo brasileiro em 1902,10 e as gigantescas

telas foram irremediavelmente perdidas nos

galpões do Museu Nacional.11

Os seis estudos que restaram do Panorama do

Rio de Janeiro, de Meirelles, trazem uma cidade

construída em meio a uma floresta, que cede lugar

às construções que galgam morros, povoando

densamente certas áreas geográficas, como a que

ainda hoje é o Centro da cidade, por exemplo,

enquanto outras, com habitações esparsas,

são dominadas espacialmente pela natureza. A

vista da cidade nos apresenta um domínio das

edificações, das ruas que avançam pelas colinas,

sintoma da civilização num lugar longínquo e

exótico, como parte remanescente do ideário

romântico que ainda habitava a mentalidade do

homem europeu do Oitocentos.

A apresentação do Panorama do Rio de Janeiro

na Exposição Universal de Paris, em 1889, fazia

parte de um projeto com intenções diversas, entre

as quais podemos citar a exibição de cidades

distantes, em países exóticos e dominados pela

floresta tropical. Essa temática atendia à ânsia

da burguesia europeia por viagens a terras

longínquas. A obra também era uma tentativa

de conciliação entre arte e entretenimento,

amadorismo e capitalismo, exemplificada

pela companhia aberta para a exploração do

meio, que tinha como última instância sua

exploração econômica.

Esse trabalho estava relacionado ainda à inscrição

do Brasil no circuito das nações com contribuições

para o progresso mundial, pois apresentava o país

como terra em que a natureza inóspita já teria sido

contida e que o homem comum poderia habitar,

objetivando, com isso, incentivar a imigração,12 e

estando, por esse aspecto, em consonância com

o espírito moderno e industrial que a mostra

trazia à baila. Para isso, contribuíam os diferentes

produtos exibidos, entre maquinarias, invenções e

exemplares da flora e da fauna nativa dos países

partícipes, incluindo-se também os novos meios

tecnológicos destinados ao entretenimento das

massas, como os panoramas e os dioramas.

Os eventos podem ser compreendidos como

representação da “expansão capitalista”,13 sob

a forma de construção materialmente visível,

similar à construção museográfica, no sentido de

apresentar visual e sistematicamente os objetos

constitutivos dessa sociedade que se estava

estabelecendo, com objetivos que não descartam

sua função pedagógica. Nessa perspectiva, as

exposições universais seriam “modelos de mundo

materialmente construídos”14 e, ainda, “veículos

para instruir (ou industriar) as massas sobre os

novos padrões da sociedade industrial”.15

Não está ainda devidamente esclarecida a razão pela

qual o Panorama de Meirelles não se encontrava no

pavilhão brasileiro destinado à apresentação das

obras de arte. O pintor teve de custear sua estada

na Exposição Universal, fato determinante para que

a obra ficasse fora do eixo principal das visitações

e, portanto, com menor afluxo de visitantes. Sabe-

se, entretanto, que tentou um patrocínio para a

manutenção de seu trabalho na capital francesa, de

acordo com carta publicada no jornal carioca Gazeta

de Notícias e assinada pelo Barão de Teffé.16 Talvez

um dos motivos tenha sido a pouca aceitação do

meio como atividade artística, devido a seu caráter

de entretenimento, ou a crise instaurada no regime

imperial brasileiro.

Não obstante a participação oficiosa em relação ao pavilhão brasileiro, o Panorama do Rio de Ja-neiro apresentava feição propagandista do Brasil, afirmando a “fórmula país-de-natureza-pródiga/país-aberto-à-imigração/país pragmático”,17 Nes-se sentido, algumas das motivações do artista estariam em consonância com a esfera governa-mental, sendo a mais visível o estímulo à imigra-ção de trabalhadores europeus para o Brasil.18

A opção por pintar panoramas feita por Victor

Meirelles indica que o artista estava sensível às

inovações que as artes plásticas apresentavam,

apesar do descrédito e da desvalorização artística

desse meio no país, que nos mostra, aliás, que,

apesar de pertencer ao círculo acadêmico, o

artista também era interessado nas novas mídias

e na pesquisa da imagem e de sua recepção.

O Panorama do Rio de Janeiro, pintado em conjunto por Meirelles e Langerock, teve cobertura da imprensa bem diversificada. Enquanto alguns jornais, como a Gazeta de Notícias,19 divulgavam com frequência a afluência dos visitantes e artigos com opiniões elogiosas sobre o Panorama, outros, como o Diário de Notícias, ignoraram a exposição, a ponto de inexistir cobertura no ano de sua inauguração e nos meses seguintes. Apesar do valor e do ineditismo da exposição na cidade, ela não teve na imprensa o destaque esperado; jornais importantes nem sequer noticiaram sua abertura ou fizeram comentários a seu respeito. Nesse sentido, como em Paris, o evento não obteve no Rio de Janeiro os resultados esperados de afluência de público, apesar das inúmeras tentativas de Meirelles de ampliar o número de visitantes. Ainda que a afluência do público não tivesse sido a estimada por Meirelles, o Panorama foi um acontecimento na cidade, como atesta artigo de João Ribeiro publicado no jornal O Paiz: “O Panorama é a great attraction do público fluminense. Lá fui, era a primeira vez que via um panorama. Gostei enormemente, imensamente. Belo e admirável como a própria natureza. Creio que consumi duas horas de alegre contemplação (...).”20

Para o espectador, o panorama seria uma antecipação do espaço cinematográfico, com suas grandes telas, causando impacto sensorial na plateia, lugar do espetáculo e do entretenimento. Outro artigo, sem assinatura, faz detalhada descrição do Panorama do Rio de Janeiro, realizado por Victor Meirelles, por ocasião de sua exibição nesta cidade em 1891:

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201172 73ARTIGOS | CRISTINA PIERRE DE FRANÇA

Dedicamos ontem, cerca de uma hora

à contemplação do Panorama da baía e

cidade do Rio de Janeiro, pintados pelos

artistas Victor Meirelles e Langerock e

exposto no antigo largo do Paço. (...)

No panorama de que agora nos

ocupamos, o visitante, assim que chega

ao terraço de observação, que tem

apenas cinco metros de elevação, tem a

sensação da vertigem que nos acomete

na altura de cinquenta metros.

A grande tela circular, que apresenta os

últimos planos a grande distância, funde-

se embaixo sem que lhe perceba solução

de continuidade, nos primeiros planos

reais, sólidos, verdadeiros, cobertos

de palmeiras verdejantes, de arbustos

vivos, de grama verde e viçosa cortada

por veredas e picadas, que despertam

a vontade de descer e observar o que

é realmente verdadeiro e o que é

artisticamente fingido.

O espectador deve destinar os dois ou três

primeiros minutos, para preparar os olhos

e o espírito para a impressão por assim

dizer nova (?) que vai sentir.(...)

Com os segundos e últimos planos

pintados, com os primeiros em relevo e

ornados por árvores, plantas e pedras

verdadeiras com os passarinhos voando

e chilreando por entre as folhas, os dois

artistas apresentam um espetáculo (...)

para ver-se e pelo qual lhes cabem os

maiores elogios.21

Esse impacto, essa confusão dos sentidos

encontram-se registrados nas inúmeras

impressões dos visitantes acerca da obra, um

misto de surpresa, arrebatamento e incredulidade

diante do que está diante de seus olhos. Muitos

descrevem que sua percepção da obra se aproxima

do sonho, provocando uma dúvida entre a

realidade e o apresentado imageticamente.

A compreensão da dimensão de ilusão que o

artista propõe é facilmente percebida na descrição

minuciosa do artigo publicado no jornal carioca

A Gazeta de Notícias e acima transcrito. Victor

Meirelles, com seu Panorama da Cidade do Rio de

Janeiro, participa, embora de forma marginal,

de uma prática da modernidade e aproxima-se

de algumas interlocuções artísticas de caráter

fenomenológico.22 Essa perspectiva de uma arte

fundamentada na questão perceptiva é basilar

nas experiências dos artistas europeus e também

se encontra, ainda que de maneira indireta, no

debate de arte nacional no final do século 19.

As impressões acerca das obras de arte que

estavam em circulação apontam para uma forma

de arte multissensorial. Em artigo publicado no

jornal O Paiz, João Ribeiro assinala esse caráter da

arte quando comenta sua visita a uma exposição

da escola livre, em texto anterior à exibição do

Panorama na cidade, em que afirma:

Todas as vezes que penso sobre as artes

figurativas, lembra-me sempre que elas

se fazem sob a cultura progressiva dos

sentidos. Primeiramente a visão, pela

arquitetura e pela pintura, depois o ouvido,

pela música. E eu imagino que em um

futuro remotíssimo por um refinamento

de artistas blasés haverá uma cultura do

olfato e uma arte do cheiro.23

Nesse texto João Ribeiro, no final do século 19,

alude à questão da multiplicidade de sentidos

envolvidos na recepção da obra de arte, o que

decerto antecipa algumas condições presentes

na arte da contemporaneidade. Pode-se observar

essa tendência principalmente nas constituições

de arte que utilizam as novas tecnologias, como

cinema 3D ou Caves, que procuram simulação

da realidade ou criação de realidade alternativa

e que integram em sua produção não só a

ambiência espacial, mas também uma gama de

proposições sensórias e espetaculares que ativam

a ambiguidade do real.

NOTAS

1 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2001:1.576.

2 Grau, Oliver. Arte virtual: da ilusão à imersão. São Paulo: Unesp/Senac, 2007: 30 e 32.

3 Pignoti, Lamberto. Apud Domingues, Diana. As instalações multimídia como espaços de dados em sinestesia. Relações corpo/arquitetura/memória e tecnologia. http://artecno.ucs.br; consultado em 13.8.2009.

4 Oettermann, Stephan. The panorama history of mass medium. New York: Zone Books, 1997.

5 Rubens, Carlos. Victor Meirelles sua vida e sua obra. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945:133.

6 O Paiz, 2.10.1884:2.

7 Azevedo, Arthur (sob o pseudônimo Eloy o Herói), Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 23.10.1885:1.

8 Rubens, op. cit.:134.

9 Idem.

10 Os três Panoramas realizados − O Panorama do Rio de Janeiro, A Entrada da Esquadra Legal em 23.6.1894, observada da Fortaleza de Villegagnon, e Descobrimento do Brasil − foram doados ao governo brasileiro em 2.7.1902 por Victor Meirelles e sua mulher, Rosalia Fraga Meirelles. Museu Nacional de Belas Artes. Pasta Victor Meirelles.

11 Elza Ramos Peixoto assinala a luta pela preservação dos Panoramas, exposta em correspondência trocada entre a Direção da Escola de Belas Artes e o Ministério da Justiça, ao qual a instituição era subordinada.

Proença, Angelo et al. Victor Meirelles de Lima: 1832-1903. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982:116ss.

12 Idem, ibidem:109.

13 Barbury, Heloísa. O Brasil vai a Paris em 1889: um lugar na Exposição Universal. Anais do Museu Paulista. N. Sér. v.4, São Paulo, jan.-dez. 1996:212. Disponível em www.scielo.br/pdf/anaismp/v4n1/a17v4n1.pdf, consultado em 31.5.2010.

14 Idem, ibidem.

15 Idem, ibidem.

16 A Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, 27.1.1891:1.

17 Barbury. Heloísa. A exposição Universal de 1889 em Paris. São Paulo: Loyola, 1999:216.

18 Além das questões econômicas, estavam em jogo também alguns aspectos de caráter político e cultural.

19 O número de visitantes à exposição do Panorama do Rio de Janeiro era frequentemente exibido na primeira página do jornal A Gazeta de Notícias. Desse modo, pode-se constatar que era maior nos finais de semana, principalmente aos domingos. Pode-se, portanto, deduzir que se tratava de programa de lazer familiar para a população da cidade.

20 Ribeiro, João. O Paiz, Rio de Janeiro 11.1.1891:1.

21 Artigo intitulado O Panorama do Rio de Janeiro, sem assinatura, publicado na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 5.1.1891:1.

22 Estas relações podem ser divisadas principalmente na dimensão auditiva que o artista interpõe em seu trabalho com o uso dos pássaros, os quais adicionam à obra um caráter sensorial fundado na amplificação dos sentidos em prol da intensificação da ilusão de estar na proximidade da natureza.

23 Ribeiro, J. O Paiz. Rio de Janeiro, 14.12.1890:1.

Cristina Pierre de França é doutora em artes

visuais pela EBA-UFRJ, atua como professora de

artes visuais no Colégio Pedro II e na Faetec, e

de história da arte na Unigranrio.

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201174 75ARTIGOS | LUCIANA ALVARENGA

A Vila de Itaúnas1 se localiza no extremo norte do

Espírito Santo, praticamente na divisa com a Bahia.

Um lugarejo bucólico de chão de terra batida, em

que vivem cerca de 2.200 pessoas.2 Nesse lugar,

encontramos grande diversidade de manifestações

culturais tradicionais, como o ticumbi, o jongo, o

alardo, o reis de boi, além de processos produtivos

artesanais como a confecção de cestos, barcos,

farinheiras, entre outros. Nesse contexto, a vila se

apresenta como um dos principais ‘palcos’ de representações das tradições3 da região.

Suas origens, porém, se perdem no tempo e na falta de documentos conclusivos e específicos sobre o

assunto. Até meados do século 20, segundo histórias contadas pelos moradores mais antigos, a vila se

resumia a duas ruas principais paralelas à praia − a de baixo e a de cima –, com castanheiras e gameleiras

frondosas, cerca de 200 casas de estuque, rebocadas e assoalhadas, duas padarias, armazéns, um posto

dos correios, uma escola, uma igreja na parte mais alta da vila e um cemitério. As casas eram geminadas

e possuíam quintal nos fundos com árvores frutíferas, hortas, criação de galinhas e porcos. Contornando

o povoado, o Rio Itaúnas era a principal via de comunicação com o mundo, e em suas margens ficavam

os barcos dos pescadores.

O TICUMBI: imagens e memória da Vila de Itaúnas

Luciana Alvarenga

ticumbi imagemmemória Vila de Itaúnas

O ticumbi se constitui como importante veículo de recriação do passado e de

elaboração do presente. É através dessa expressão que as histórias de uma vila são

construídas e reconstruídas, por meio de cultura que privilegia a oralidade, mas que

se expressa na visualidade, trazendo à tona o imaginário local. O artigo é fruto da tese

de doutorado em Artes Visuais (Imagem e Cultura)/UFRJ A festa e as representações

culturais do ticumbi: imagens e tradições da Vila de Itaúnas, ES, sob orientação do dr.

Rogério Medeiros.

Luciana AlvarengaA roda grande, 2010, arquivo digitalFonte: Alvarenga, 2011

TICUMBI: images and memory of the village of Itaúnas | Ticumbi, an Afro-Brazilian ritual, is an important event for recreating the past and preparing the present. It is through this folk expression that the stories of a village are built and rebuilt through a culture that appreciates the spoken word, but which is expressed in the visuality, bringing to the fore the local imaginary. | Ticumbi, image, memory, village of Itaúnas.

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201176

Há cerca de 70 anos, porém, uma misteriosa e sutil catástrofe paulatinamente se abateu sobre o lugar. Tudo começou com uma areia fina a invadir as ruas, formando pequenos montes junto às paredes externas das casas. Areia que podia ser rapidamente removida com enxada ou pá sem grandes problemas até então. No entanto, ela começou a entrar portas adentro e se refugiar sob os móveis. E, sem que isso fosse percebido, a areia que antes estava restrita à praia, passou a dominar a paisagem. Enquanto se conseguia colocá-la para fora das casas e tirar os pequenos montes das ruas e da praça, a areia foi de certa forma tolerada. Havia dias, contudo, em que o vento ficava mais forte, e a areia chegava com mais volume. Com o passar do tempo, ela modificou completamente a fisionomia da vila, e os montes de areia tornaram-se cada vez maiores. A igreja e o cemitério foram os primeiros a ser soterrados. Com o passar dos anos, a vila inteira foi desaparecendo sob as enormes dunas.

Com esse processo, a população precisou tomar medidas drásticas: alguns foram embora para outras localidades, outros resolveram recriar e refundar a comunidade. A mudança da antiga vila para a nova, iniciada no final da década de 1950, quando os primeiros moradores resolveram abandonar o lugar, só veio a terminar com a saída dos últimos habitantes, em 1974, cerca de 15 anos depois. No processo do soterramento, a vila foi atravessando lentamente o Rio Itaúnas e se instalou na outra margem. Quando a mudança não se consubstanciava de modo literal e físico, utilizava-se a imagem do que havia antes na tentativa de construir algo semelhante ou parecido. Junto com cada pedacinho da vila antiga que passou para a nova vieram as histórias mágicas e ricas do passado local, além de inúmeras tradições culturais. Enquanto carregavam seus móveis e pertences, os moradores levavam sua

história, seus costumes e sua cultura material.

Ininterruptamente durante mais de um século,

todo mês de janeiro acontece a festa em

homenagem a São Benedito e São Sebastião.

Segundo os moradores mais antigos, celebrar os

dois santos é também uma forma de precaução, de

impedir que a nova vila e seus moradores sofram

dos mesmos males e maldições que provocaram

o soterramento da antiga Itaúnas. A festa é

uma tradição desde os tempos do Império e da

escravidão − nem o processo do soterramento

conseguiu interrompê-la. A homenagem aos

dois santos está presente no calendário anual

do Município de Conceição da Barra e do Estado

do Espírito Santo. Mas, São Benedito, ou São

Bino, como o chamam seus devotos, possui

calendário à parte, também anual, que se inicia

com os ensaios dos grupos de ticumbi nas roças,

nos meses de outubro e novembro.

A festa e o ticumbi

A festa de São Benedito e São Sebastião é conside-

rada o principal evento da região. Durante uma se-

mana, ocorrem na vila apresentações, procissões,

missas e diversos tipos de danças e encenações. O

ticumbi é a principal manifestação cultural da fes-

ta, representando seu clímax e seu cerne. São os

membros do ticumbi que desencadearão todos os

processos e todas as ações do evento. Em processo

não linear no qual ocorrem vários acontecimentos

concomitantes, a festa se inicia com o último en-

saio nas imediações da vila. O evento dura a noite

inteira e culmina com procissão ao longo do rio e

das ruas de Itaúnas.

O ticumbi4 é a denominação dada ao baile de

congos do Vale do Cricaré − região que compre-

ende os municípios de Conceição da Barra e São

Mateus −, manifestação cultural que é sobretudo

uma espécie de enciclopédia virtual local, em que

cada verbete se encontra delegado a um morador

da vila. Cada habitante desse lugar, seja idoso ou

criança, tem uma história para contar, um mito ou

uma lenda para lembrar. E o principal veículo lo-

cal para essa transmissão de conhecimento é o ti-

cumbi, que em sua dança, suas letras e sua música

carrega histórias e lendas que atravessam séculos.

Algumas dessas histórias vieram da áfrica, outras

surgiram nas senzalas e nos quilombos que ali já

existiram e dos quais há hoje remanescentes; mui-

tas falam da vila antiga, outras, da nova.

No ticumbi, as tradições locais e ancestrais são

relembradas e recriadas infinitamente, ano a ano.

É um processo familiar que passa de pai para filho,

transpondo gerações. No centro dessa história

está São Benedito, padroeiro dos negros, pobres

e oprimidos, cuja imagem que se encontra hoje

na vila se supõe ser a chave para o mistério do

soterramento.5 De acordo com alguns relatos, o

ticumbi é criação de Silvestre Nagô,6 negro escravo

que, para animar seus pares, inventou os folguedos,

rapidamente transformados em modo de lembrar

e reviver o passado, fortalecer laços e identidades,

manter e reconstruir memórias e de mobilização

da própria comunidade que o produzia. Essas

características se mantêm nos dias atuais.

Personagens e indumentárias

O ticumbi possui estrutura hierárquica − reis, embaixadores e secretários − que conta a batalha mitológica entre o rei de congo, cristão, e o rei de bamba, pagão. Cada rei possui um secretário, e ambos possuem corpo de baile composto por dois guias, dois contraguias e número variável de congos, que representam os guerreiros das duas nações. Acompanha-os ainda um violeiro. Todos se vestem a caráter para a encenação, respeitando um modelo de indumentária. Usam longas batas brancas, rendadas, atravessadas por fitas coloridas. Vestem calças compridas brancas com ou sem frisos vermelhos. Cobrem a cabeça com lenço branco e coroa enfeitada com flores e fitas coloridas. Os reis usam coroas de papelão ornamentadas com papel dourado reluzente (às vezes, usam papel prateado), trazem peitoral espelhado com flores brilhantes e capa comprida, também florida. Para completar o figurino, carregam longa espada. Os dois secretários também usam capa e espada (o que os diferencia dos congos).

Enredo

Composto por danças e cantos, as danças do

ticumbi simulam o volteio dos guerreiros, numa

Luciana AlvarengaA procissão, 2010, arquivo digital Fonte: Alvarenga, 2011

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201178

espécie de combate gingado; os cantos são

alternados com as falas dos reis e dos secretários,

entoados em conjunto pelos congos das duas

nações. Acompanha os cantos o som dos pandeiros

e da viola, que dá o tom da música. O enredo

se constitui na rivalidade dos dois reis negros

(congo e bamba) que pretendem realizar a festa de

São Benedito, o que só um deles poderá fazer. Os

secretários levam os desafios de seus senhores ao rei

rival, em ato denominado embaixada.

Como não há acordo entre as duas nações, a

guerra é iniciada com luta bailada. Essa guerra

inicial é denominada primeira guerra de reis

congo ou guerra ‘sem travá’. Em seguida, com

a participação dos dois reis, realiza-se a guerra

travada, na qual os reis batem espadas junto com

seus secretários no centro de uma roda formada

pelos congos. Ao final da guerra, o rei bamba

é vencido, tendo que, junto com seus vassalos,

submeter-se ao batismo. Terminando a encenação

é realizada festa em honra ao rei de congo,

quando se canta e dança o ticumbi.

Uma das características mais interessantes dessa

manifestação é sua função de jornal narrado e

atualizado da localidade em que está inserido.

Como parte dos versos se modifica a cada ano,

o mestre do ticumbi se utiliza desse trecho da

apresentação para informar à comunidade local

assuntos do passado ou da atualidade que

ele considera relevantes. Podem ser temas de

interesse local ou até mesmo de âmbito nacional

ou internacional. É por intermédio dos reis,

de seus secretários e do corpo de baile que os

principais discursos − de ancestralidade, da vila

antiga e da vila nova, da relação com o lugar, de

identidade e de anseios da comunidade − são

expressos em praça pública. É importante destacar

que o ticumbi é processo vivo e paradoxal, pois

simultaneamente mantém e recria o passado,

trazendo para dentro de seu enredo as histórias

antigas e atuais da vila.

Imagens e memória da Vila de Itaúnas

Dos acontecimentos às visualidades presentes

nos vários dias da festa de São Benedito e São

Sebastião, dos rituais desenvolvidos − do ensaio

geral às dramatizações que ocorrem na vila −,

das indumentárias ao próprio cenário com a igreja

ao fundo, todo acontecimento hoje remete aos

processos, ações, visualidades, características e

eventos da festa na Itaúnas que foi soterrada. Como

observado e relatado pela própria comunidade,

em comparação entre as imagens fotográficas

da primeira igreja da vila antiga e da igreja atual,

pode-se afirmar que se trata de recriação,7 e,

conforme a informação geral dos moradores

mais antigos, essa semelhança não foi casual;

muito pelo contrário, houve deliberadamente um

processo de reconstituição da que foi destruída

pelas dunas no final da década de 1950. Nesse

mesmo parâmetro é possível também observar

que, após cerca de 50 anos do primeiro registro

fotográfico existente, além de mais de um século

de registro histórico oral, o ticumbi parece manter

os padrões ritualísticos e de visualidade. De acordo

com diversos depoimentos, falados e escritos, a

indumentária praticamente não sofreu mudanças

durante esse período. A ordem processual dos

acontecimentos também se manteve intacta − da

chegada das pessoas do entorno da vila, passando

pelos ensaios nas roças, pela procissão fluvial e

terrestre com os santos até a chegada à casa do

festeiro −, entre diversas outras características que

se mantêm praticamente inalteradas por mais de

100 anos até os dias atuais na nova Vila de Itaúnas.

Assim sendo, o ticumbi pode ser considerado

obra estética equiparada a sucessivas cenas

cinematográficas, reprisada ano a ano (como um

filme que é exibido uma vez por ano, todos os

anos), ao mesmo tempo em que é reformulada a

cada vez que é apresentada, por quem a assiste

e por quem a produz. É nesse contexto que

enquanto acontecimento ele se elabora como

forma ‘de estar em lugar de’. E é aí que mais

intensamente se revela o imaginário não só através

do imaginado, mas, sobretudo, do fazer imaginar.

O ticumbi se elabora através de meios essenciais

e existentes de sustentação da sobrevida dos

acontecimentos da vila antiga, pois nos envia ao

cenário da imortalização que há em seus afetos

e em sua memória. A partir dessa constatação,

percebe-se um de seus aspectos fundamentais,

o comunicacional,8 pelo qual são transmitidas

Em cimaLuciana AlvarengaO ticumbi, 2010, arquivo digital Fonte: Alvarenga, 2011

EmbaixoLuciana Alvarenga

A guerra travada, 2010, arquivo digital Fonte: Alvarenga, 2011

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201180 81ARTIGOS | LUCIANA ALVARENGA

as histórias que se consideram importantes,

aquelas que a comunidade pretende mostrar

como parte de seu imaginário e de seu passado

(recente ou remoto), mediante transposições

de narrativas em linguagens multifacetadas,

presentes nos personagens, nos versos, nas

músicas, nos cenários e nas encenações em

praça pública. No momento da encenação,

vestem-se apropriadamente, e esse cuidado

com a apresentação visual, de se fazer entender

pelo público – tanto os conhecedores como

quem nunca assistiu à festa –, de se mostrar

como parte de algo dramatizado, de um rito

tradicional, apresentando um código de decoro

segundo pauta de entendimento daquilo que “se quer

dar a ver”.9 No ato de encenar aquele indivíduo está

se apresentando da maneira como ele gostaria de ser

olhado e identificado pelas outras pessoas, ao mesmo

tempo está criando uma imagem do que deve ser a

vila no entender dele ou do grupo a que ele pertence.

A memória da vila antiga está presente em todas

as etapas da dramatização, nos personagens e

indumentárias, e, de forma pungente, nas letras do

ticumbi, que pode, por esse aspecto, ser caracterizado

como algo que realiza a passagem de um lugar a outro

e reidentifica os dois lugares tornando-os um só. É essa

transformação, essa transposição ou, melhor, essa

síntese que caracteriza e identifica a festa como a de São

Benedito e São Sebastião da Vila de Itaúnas. Assim,

o ticumbi nos possibilita compreender aquilo que

produz vínculos e elos, pois é o (re)ligare10 − na Vila

de Itaúnas essa ligação se constitui no presente,

entre as pessoas envolvidas na festa, ainda que

se trate também de ligação com os ancestrais e

com sua própria história. E é nesse sentido que

o momento também se contextualiza como uma

celebração e, sobretudo, a representação disso,

quando a vila se ‘transforma’ naquela que já não

existe.

Antiga ou nova, para os moradores Itaúnas con-

tinua sendo a mesma, e é nessa festa que po-

demos perceber isso em toda a sua magnitude.

Evidentemente, a vila nova não é a antiga, mas

os moradores, com essa festa anual, querem di-

zer a quem quiser ouvir (na verdade, falam para

eles mesmos) que as duas são uma só, ou melhor,

não existem dois lugares, mas passado e presen-

te. Assim como acontecia na Itaúnas antiga, essa

vila soterrada que emerge simbolicamente a cada

festa, todos os anos, sem nunca ter deixado de

acontecer, nem no período mais crítico da história

do soterramento, São Benedito é louvado e são

contadas histórias consideradas importantes para a comunidade, recados são lançados, discussões são empreendidas a partir da encenação do ti-cumbi que é, simultaneamente, lugar da oração, da fraternidade, da crítica, da comunicação e do

julgamento. É o lugar da família e da comunida-

de – é seu espelho. Quando a própria comuni-

dade acompanha a encenação, ela enxerga sua

imagem, seus valores, seu modo de vida, suas

lembranças e sua história. Vê sua alegria e sua

tristeza. Também ouve sua fala e sua música. Ao

mesmo tempo em que remonta aos tempos ime-

moriais, o ticumbi remete ao futuro, às discussões

sobre os conflitos existentes e sobre as melhorias

que podem ser promovidas. Enquanto o passado

é celebrado em atos dramáticos, no ticumbi se re-

escrevem os fatos históricos da Vila de Itaúnas, ou

seja, o passado é celebrado, mas também reescrito

e atualizado.

O passado, dessa forma, é recriado no próprio

acontecimento do ticumbi. O relato do passado,

por meio dessa ritualização, traz para o presente,

no momento da enunciação, o tempo e o espaço

– a vila antiga surge reinterpretada, corporificando

manifestações de um passado ainda vivo, que

deixa de ser passado e passa a ser presente. E é

nesse contexto que ocorre a mediação entre o

espaço, o tempo e o mundo dramatizado da vila

soterrada. As cenas presentes são refletidas no

conjunto das imagens acionadas do passado, um

passado revisitado e revivido durante o ticumbi. Os

discursos sobre o passado celebram as tradições

que são revivenciadas e reatualizadas no novo

espaço, no tempo de convivência do agora.11

NOTAS

1 A Vila de Itaúnas é a sede do distrito homônimo,

na zona rural do município de Conceição da Barra,

na microrregião do litoral norte do Espírito Santo.

O distrito faz divisa com os distritos de Conceição

da Barra e Braço do Rio, no mesmo município já

citado e, ao norte, faz divisa com o Estado da Bahia.

A vila atual está localizada a cerca de 700 metros

da antiga, na margem direita do Rio Itaúnas. Dista

cerca de 27km da sede do município de Conceição

da Barra, 53km de São Mateus e 260km da capital

do estado, Vitória.

2 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

Contagem da população 2007: agregado por

distritos. Rio de Janeiro: IBGE, 2008.

3 A noção de tradição pressupõe permanências que

podem ser auditivas (faladas, cantadas, narradas)

e visuais (expressões corporais, gestos, paisagens,

etc.), referências a elementos que transportam ao

passado. As tradições, porém, estão em permanente

mudança, de acordo com o contexto e a situação

vivida; por meio de processos de ressignificações, as

tradições são utilizadas como estratégias discursivas

de continuidade do “passado histórico adequado”.

Hobsbawn, E.; Ranger, T. (Org). A invenção das

tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

4 O ticumbi é encenação que acontece na

modalidade de congos ou congada no Espírito Santo,

município de Conceição da Barra, tendo bailado final

que denomina o auto. Os reis de Congo e Bamba,

seus secretários e corpo de baile representam os

guerreiros de duas nações que lutam pelo direito de

festejar o São Benedito. Cascudo, L. C. Dicionário do

folclore brasileiro. São Paulo: Editora da USP, 2001.

5 A história oral local conta que a antiga vila foi

amaldiçoada depois que retiraram a imagem de São

Benedito da antiga igreja, fato promovido pela elite

branca que ali não queria um santo negro.

6 Líder revolucionário dos tempos da escravidão

presente na memória local até os dias de hoje.

7 Alvarenga, L. A festa e as representações culturais

do ticumbi: imagens e tradições da Vila de Itaúnas

(ES). Tese de Doutorado. Escola de Belas Artes/UFRJ,

Rio de Janeiro:UFRJ, 2011.

8 Geertz, C. A arte como sistema cultural.

In_________. O saber local: novos ensaios em

antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes,

1997:142-181.

9 Martins, J. de S. Sociologia da fotografia e da

imagem. São Paulo: Contexto, 2009:14-15

10 Duvignaud, J. Festas e civilizações. Rio de Janeiro:

Tempo Brasileiro, 1983.

11 Esse contexto foi apresentado em pesquisa que

trata das representações do passado no culto aos

mártires de Cunhaú realizada por Oliveira, L. A. O

teatro da memória e da história: Alguns problemas de

alteridade nas representações do passado presentes

no culto aos mártires de Cunhaú, RN. Mneme –

Revista de Humanidades. v.4, n.8, abr./set. 2003.

Luciana Alvarenga é professora-assistente

da Universidade do Estado de Santa Catarina.

Doutora em Artes Visuais (Imagem e Cultura) pelo

Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da

Escola de Belas Artes da Universidade Federal do

Rio de Janeiro.

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201182 83ARTIGOS | BETE ESTEVES

“O que há por toda parte são máquinas, e sem

qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com

as suas ligações e conexões.”1

A expresão quimera maquínica ou máquina

quimérica reúne os termos máquina, quimera e

maquínico.

Quimera, substantivo feminino, designa um

produto da imaginação, sem consistência ou

fundamento real; ficção, fantasia, sonho ou

projeto geralmente irrealizável. Combinação, real

ou fantástica, de elementos diversos num todo

heterogêneo ou incongruente, algo a que falta

unidade, coesão ou coerência. Em alquimia ou na mitologia, quimera é um ser artificial, criado a partir

da fusão de animais: cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente.

DE QUANTAS PARTES SE FAZ UMA QUIMERA MAQUÍNICA?

Bete Esteves

arte quimeramáquina maquínico

A partir da investigação transversal e transdisciplinar dos conceitos de Deleuze e

Guattari (esquizoanálise, inconsciente maquínico, máquinas desejantes) e de outras

abordagens críticas, como de Richard Sennett, Vilém Flusser e George Bataille, a

autora disserta sobre as relações entre máquinas e arte apresentando alguns conceitos

que pairam sobre a contemporaneidade maquínica. O artigo é fruto da dissertação

de mestrado Quimeras maquínicas, defendida na UFRJ em agosto de 2011, sob a

orientação do professor doutor Milton Machado.

HOW MANY PIECES MAKE UP A MACHINISTIC CHIMERA? | Based on cross transdisciplinary research on the concepts of Deleuze and Guattari (schizoanalysis, machinistic unconsciousness, desiring machines) and on other critical approaches by namely Richard Sennett, Vilém Flusser and George Bataille, the author writes about the relationship between machines and art, addressing several concepts which hover over machinistic contemporaneity. This article is the result of her Master’s thesis “Machinistic Chimeras”, defended at UFRJ, under the guidance of Prof. Dr. Milton Machado in August 2011. | Art, chimera, machine, machinistic.

Uroboros. 2009-2010. Painel de MDF, caixa de descarga plástica, tubo de PVC 40mm, tubo de PVC ½ “, perfis de alumínio, polia plástica de 2”, garrafa PET, molas, peso de chumbo, cordão de náilon, parafusos diversos, microbomba d’água 127Vac, microinterruptor, cabo AC tipo paralelo, torneira plástica, acionador de descarga, fio de cobre. 82.5x275X66mm. Coleção da artista

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201184 85ARTIGOS | BETE ESTEVES

Quando me referir a quimeras é preciso entendê-

las como criaturas mistas, pelo aspecto fantástico

e no sentido de sonho, da fantasia que conjuga

também o lúdico, o mágico e o movimento

da imaginação. Nesse caso, porém, não mais

personagens ficcionais e imaginários, mas

criações a partir de organismos reais, “células” de

duas ou mais máquinas que saltam da lenda para

inaugurar territórios. Combinações improváveis,

invenções que brotam da tentativa de semear

poesia, de lançar pequenas faíscas ao relento,

lumen de vaga-lume.

Maquínico é conceito de Deleuze e Guattari −

que aparece em O antiÉdipo, de 1972 − ligado

diretamente ao inconsciente que o concebe

envolvido com produtividades múltiplas.

Inconsciente maquínico é conceito segundo o

qual o inconsciente, diferentemente da concepção

de Freud, é produtivo − e o que ele produz,

acima de tudo, é o real em sua multiplicidade.

O inconsciente é, ele próprio, “máquina de

máquinas”. Reúne qualidades heterogêneas2 em

dinâmica e apresenta um infinito número de

possibilidades de forças. Variações de relações que

dizem respeito ao interior dos corpos, técnicos ou

sociais, microcosmos com seus ritmos, pulsações,

vibrações, “esquizes”, fluxos de cor, peso, forma,

movimento, força, sentido.

O conceito de Deleuze e Guattari de máquina

desejante, vinculado à ideia de que tudo

é máquina, entende máquina como uma

combinação de corpos e forças, conjunto das

partes que constituem um todo.

Se, para algo ser considerado máquina, é preciso

que se esteja em meio a uma relação de forças que

derivam e são derivadas de ações; se a energia

trocada entre as partes de uma máquina e as

relações estabelecidas entre elas são elementos

constitutivos de uma máquina – o que abrange

muitas processualidades –, pode-se afirmar, a

seguir, que tudo é máquina.

O maquínico, ligado ao desejo por sua vez ligado

ao inconsciente envolvido com produtividades

múltiplas e não com a falta. O inconsciente como

fábrica e não uma cena de teatro. A noção de

maquínico convoca à cena o sentido molecular e

não mecânico. Implica pensar a vida a partir de

seu caráter processual, de alterações contínuas.

Para além do fato de que as “quimeras

maquínicas” se encontram no âmbito artístico

e que abrem horizontes de emparelhamento

com as quimeras na biologia e na mitologia,

elas operam de forma semelhante. Na qualidade

de desejantes, o fazem maquinicamente e por

contágios, não mecanicamente, no sentido

trivial. Isso significa que não obedecem a um

sistema de relações progressivas, de causalidades

necessárias, automáticas e previsíveis entre

termos dependentes, mas funcionam por meio

de um “conjunto de ‘vizinhanças’ entre termos

heterogêneos independentes”,3 dos quais fazem

parte o homem, ferramentas, coisas e os animais.

Essas máquinas têm por peça tudo que as

atravessa − o homem, o meio social no qual está

inserido e os variados “tipos de fluxo que entram

em conjunção”.

Criadas para funcionar a partir de determinações

que geram indeterminações de movimento, essas

máquinas lúdicas produzem repetição. Não aquela

da máquina que reproduz peças homogêneas

ou funciona destinada à obtenção de resultados

previsíveis, mas repetições de diferenças. É

como se essas máquinas “esquecessem” quase

instantaneamente o produzido e se lançassem a

novas produções subsequentes, uma vez que seu

objetivo é o próprio produzir.

Resumindo, temos, então, “quimera maquínica”,

o objeto, a coisa; é quimera adjetivada como

maquínica, ou “máquina quimérica”, a máquina

adjetivada como quimérica, como híbrida, fusão

de vários. Os termos trabalham aqui em sentido

biunívoco; complementam-se.

Adoto a expressão “quimeras maquínicas”

para referir-me a um tipo de trabalho artístico

específico, máquinas ou partes de “máquinas

desejantes”, que encontram também na arte sua

residência, operam de forma mecânica e também

abstrata, e cujo funcionamento é maquínico,

como o do desejo.

Compostos de máquinas técnicas e artísticas

que trabalham se utilizando de partes mecânicas

− lidam com operações concretas −, partes

eletrônicas − lidam com impulsos elétricos,

que, destituídos de velocidade, formato ou

força, são apenas virtualidades, sensores que

captam informações e as repassam para as partes

mecânicas capazes de fornecer produtos, sistemas

e processos poéticos − e partes orgânicas –

interações manuais, perceptivas e sensoriais

Não são gadgets, aproximam-se mais de

“torções” mecânicas, junção de coisas deixadas

de lado. Versam sobre o brincar de tangenciar

micromundos distintos e gerar miniaturas ou

ampliações brincantes e extraterrestres.

Não são produtos do acaso ou da inspiração de ordem

divina, mas do deliberadamente escolhido para

formar uma combinação improvável “numa ação

dirigida e estratégica” que funda DNAs imprevisíveis.

Montam-se e se desmontam no encontro de funções

e rearranjos disfuncionais, da física quântica, da

engenharia reversa,4 da biologia, da eletrônica.

Máquinas que cometem impropérios, metonímias

e não metáforas. Nem identificação subjetiva, nem

cosmologia metafísica. Sistemas especificamente

desenvolvidos para se comunicar com seu

entorno. Formais, posto que precisam materializar-

se, mas não objetos puramente estéticos ou

contemplativos. Máquinas que se fazem, na

sutileza de sua condição desejante, abstratas.

Máquinas que espreguiçam poeminhas, encontros.

Capaz de dialogar, essa máquina, faz uso dos

próprios aparelhos existentes, cyber-científicos,

telemáticos, tecnológicos, e pode subverter sua

ordem ao romper sua camada mais superficial.

Não como forma de vingança ou contestação. Ao

fazer micropolítica na urdidura dos mecanismos

mais sofisticados pode penetrar, aí, um germe

de outra origem, brincar de jogador de dados

que combina novas e armazenadas informações.

Promover desencontros de desiguais, criar rodas

de novas articulações, inventar mundos que

prometam novas formas de pensar, fora da

programação dos canais e das redes.

A máquina quimérica que descrevo é também

autorreferencial, minha própria produção. Nasce

da vontade de desaprisionar as coisas do mundo

dos conceitos, dar um jeito de desaprender o

objeto, “desvê-lo”, enlouquecer seu sentido, tirá-

lo dos lugares-comuns em que se encontra no

mundo. Um pouco como diz Manoel de Barros ao

“desacostumar as coisas” ou fazer “inutensílios”,

fazê-lo “pegar delírio”, inverter, brincar com a

lógica tradicional dos objetos e das coisas.

Nasce de tentativas de união de mundos

divergentes, de desajustes, de combinações entre

os muitos possíveis, das circularidades, do último

suspiro, do sopro de vida, da existência material

e incorporal, de todos os objetos encontrados no

fundo de meu quintal, em meu mato maquinal

e orgânico, eletric circus celibatarium dos

movimentos. São exemplos a máquina de abrir

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201186 87ARTIGOS | BETE ESTEVES

Conjugam o saber teórico com a execução prática

e a experiência. Trata-se do dado processual,

lúdico e efêmero de uma entidade complexa em

constante tensão de experimentação e trânsito de

conhecimentos, que pega o produto de partes e

joga dentro de outras, gerando território propício

para o desenvolvimento e surgimento de novas

ideias e práticas, novas maquinações.

Podem constituir-se de diversidades de materiais,

que variam, por exemplo, do aço carbono das

bicicletas de Simon Starling, como Carbon

(Pedersen), 2003, e em Tabernas Desert Run, 2004,

a pedaços de objetos precários encontrados nas

diversas peças da montagem de The way things

go (Der Lauf der Dinge), 1987, dos artistas suíços

Fischil and Weiss, que incrementa e combina muitos

aspectos, como a movimentação, a montagem, o

precário e o caráter mágico do truque.

Como maquínicas funcionam em meio a quaisquer

episódios, banais ou sofisticados, mas sempre

em conexão com o meio no qual foram criadas

e funcionam e com quem as produz, caso das

Rotozazas, 1967, em que Jean Tinguely apresenta

uma instalação maquínica composta de uma série de

engrenagens que inclui o público como participante.

Trabalham com o dinamismo, a ironia, o lúdico que

fazem espreguiçar os sentidos e os estados afetivos.

Podem lidar também com o truque, a maquinação

que não quer ser desvendada por ninguém.

São igualmente “marginais”, no sentido de que

muitas vezes dissociam ação do entendimento

ou pensamento, numa espécie de esquizofrenia

produzida pela quantidade e qualidade de forças,

e alucinações que perpassam suas partes. Como

acontece na filosofia Patafísica,6 criada por Alfred

Jarry, inventor de máquinas na literatura com base

na superação da metafísica e em nova compreensão

do ser, que abole o princípio da não contradição.7

Allstars, 2010-2011, instalação; trilho, carrinho, motor, bandejas de plástico, palitos de dente, gotejador, câmara de segurança, monitor e Programmable Interface Controller – PIC; Bete Esteves, 300x30x20cm, coleção da artista

Podem estar sujeitas, como as máquinas

celibatárias, à autodestruição, como a máquina

La mariée mise à nu par ses célibataires, même, a

pintura mais complexa e ambiciosa de Duchamp,8

a principal responsável pela disseminação do

termo célibataires aplicado às máquinas e à arte.

Célibataire significa aquele que se mantém

solteiro, preservando-se casto, improdutivo.

Os celibatários, encerrados em si mesmos,

colapsam, dado que só podem lidar com seus

componentes internos, seus funcionamentos,

sempre impossíveis, objetos partidos, sonhos

incompreensíveis e mirabolantes.

As máquinas celibatárias9 são mecanismos que

nada produzem além da movimentação de

fluxos e projeção de intensidades; são abstratas10

como La Mariée, operam por movimentos e

conexões imaginárias com o uso da linguagem

criptografada, interrompida, de difícil captura;

como as da literatura, no romance de Bioy Casares

Invenção de Morel ou em Colônia Penal, de Kafka,

ou ainda os trabalhos de Francis Picabia (1879-

1953), como Fille née sans mère (1916-1917)

,pinturas e desenhos com morfologias de peças

de máquinas nada funcionais.

Para o conjunto que chamo de quimeras

maquínicas, esse tipo de máquina proveniente da

literatura tem valor por estar conectado ao estado

de produção ininterrupta, “esquizofrênica”

que sucede à máquina paranoica e à máquina

miraculante, e com isso estabelece uma nova

relação de produção de quantidades intensivas.

Essas máquinas podem provocar nascimentos

quiméricos surpreendentes a partir de trilhas

transdisciplinares. Contam com o fazer do artista,

como o de um inventor de trajetórias que passeia

além e através dos campos disciplinares, em

busca de conexões mais completas, sem que haja

Cabe avaliar alguns dos aspectos que incidem

sobre essas quimeras maquínicas e regimes sob

os quais trabalham – nem sempre todos em uma

só máquina.

Como quimeras, sempre maquinação de vários

que podem ser orgânicos, humanos, mecânicos,

elétricos e eletrônicos. Lidam com a montagem,

edição de seres distintos, que pode dar-se sob forma

literária ou fílmica, embora mais frequentemente

sejam encontradas em materialidade física. Estão

implicadas com experimentalismo, empirismo,

transversalidade e fusão da técnica com a arte.

estrelas de palito Allstars e a caixa de fumaça

Fumus boni5 que desenvolvi entre 2009 e 2011.

Mais do que lúdico, há algo de ambíguo nesses

dois trabalhos, o que é comum em minhas

quimeras maquínicas. Elas se expressam na

lógica invertida do less is more. São conjuntos

que contrastam peças, traquitanas eletrônicas,

elétricas e mecânicas para realizar tarefas

cotidianas, muito simples. Talvez façam muito

barulho por nada, muita parafernália para

realizar tão pouco quanto o sopro de vida ou o

burburinho dos insetos.

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201188 89ARTIGOS | BETE ESTEVES

domínio único, e, sim, plural, de cooperação entre

vários saberes, em entendimento que organiza e

ultrapassa as próprias disciplinas.

Ao incorporar em suas criações o pesquisador,

o tecnólogo, o hacker, o cientista e o inventor,

tanto o artista ajuda a ativar e promover a arte

rumo a novas perspectivas como a própria

pesquisa artística esbarra em respostas, variações

ou mesmo soluções científicas e tecnológicas que

ampliam o processo de pesquisa para além dos

recônditos dos laboratórios.11

Acredito na fertilidade e contaminação positiva

que pode haver na assimilação da pesquisa pelos

diversos campos de atuação no trabalho artístico e

que a ideia de invenção, seja ela plástica, mecânica

ou industrial, esteja no cerne de toda criação.

Concordo com Guy Brett quando afirma que artistas

e cientistas criam modelos do universo, mesmo que

intuitivamente, mas “nem por isso menos válidos

ou menos formas de conhecimento”.

Arte não tem origem no acúmulo de conhecimentos

sobre ciência e tecnologia, e também ciência não

tem ligação estreita com estética ou poética.

Podem acrescentar-se mutuamente e estabelecer

relação multidirecional ao romper os rígidos

paredões que as separam; irrigar-se mutuamente

através de fluxos intercambiáveis, sem que haja

impedimentos ou perdas de desenvolvimentos em

ambos os campos.

Nesse âmbito é importante lembrar o trabalho

seminal de Jean Tinguely Homage to New York que

teve como peça o engenheiro Billy Klüver (1927-

2004) responsável pela montagem e partidário da

ideia de que o diálogo entre engenheiros e artistas

traria um agente de transformação social e cultural

significativo, dados os fatos de a arte se aproximar

cada vez mais da vida e a tecnologia dela se tornar

inseparável. Assim também, Abraham Palatnik

(1928) como artista liga seu trabalho à categoria

do projeto, às investigações no campo científico

e, por conta disso, criou Aparelhos cinecromáticos

(1965-2000) que traduz o desejo de acionar

algo para além do estático, que implica tempo

e espaço. Enfim, algo inclassificável naquele

momento da história da arte (1949-1951). Sobre

Palatnik, escreve Luiz Camillo Osorio:

Opera na produção de Palatnik a tensão entre o devir poético e devir tecnológico, não há nostalgia humanista nem recusa do futuro tecnológico, o que há é uma vontade de inserir alguma potência de invenção, de delírio e de graça nos usos e hibridações com a tecnologia e nesse sentido a intimidade com o interior das máquinas e seus processos de funcionamento é fundamental.12

A inquietação experimental de inventor, o rigor

na pesquisa de novos materiais, o conhecimento

adquirido no meio artístico e o contato fácil com

as tecnologias transformaram não só o ateliê

de Palatnik em oficina artística experimental de

ponta para a época, mas também inseriram novo

formato de fazer e pensar arte adaptada à nova

era, aos novos equipamentos e às novas mídias.

Relaciono as máquinas quiméricas − de certa

forma também são seres que se autorregulam −

a seres autopoiéticos (do grego auto = próprio;

poiesis = criação, produção). Um organismo vivo,

autopoiético, opera de forma autônoma a partir

e não além de suas próprias estruturas; como

sistemas fechados, referem-se às operações

criadas entre as partes do sistema que

constituem o limite do próprio sistema, o que

não significa que eles não estejam estabelecidos

no meio em que operam e a ele sensíveis. Para

manter seu funcionamento algumas máquinas

quiméricas estão sujeitas a disfunções, remissões,

reversões e atravessamentos, lidam com ordem e

Máquinas de fumaça, 2010-2011; duas caixas acrílicas de 65x50cm, membrana plástica, reservatório de líquido, máquinas de fumaça, disparador, solenoide e Programmable Interface Controller − PIC, coleção da artista

desordem e acabam se resolvendo internamente,

mas não deixam de se relacionar com o observador,

com o sistema vivo e com o mundo – relações não

deterministas e não apenas reativas, mas muitas

vezes paradoxais, múltiplas, aleatórias ou incertas.

Apresenta esse tipo de caracterísicas a máquina

do artista Ólafur Eliasson Ventilator: Different

Energies, 1997-2005, máquina-acrobática, que

funciona pendurada no teto de uma galeria.

Composta de uma parte que é pêndulo e outra

que é vento e meio no qual se desloca, dela

também são partes o pé-direito e o teto da

instituição em que a obra se apresenta instalada,

e o público que a visita.

As máquinas quiméricas podem operar com

forças de criação e destruição, utilidade e

inutilidade. No pós-guerra a arte incorpora o

mecanismo autodestrutivo como técnica, como

procedimento artístico que faz parte das decisões

do próprio trabalho. O artista que, de modo geral,

é responsável pela criação e manutenção de todo

um sistema de arte – curador, comprador, museus,

galerias –, preocupado com a conservação, o

mercado, a exposição, participa da destruição

desse território e instituição.

A inserção de algo que se repudia até os

estertores, máquina complexa, concebida para

alcançar a autodestruição ao operar apenas uma

vez em uma só noite, caso de Homage to New

York, aponta uma questão existencial e parece

invocar o exercício da antiga tradição pictórica do

Memento Mori; a destruição convoca a lembrança

da efemeridade humana, instaura um desarranjo

que destitui o status sagrado da arte e critica a

conduta da criação.

Bataille foi um dos pensadores que alavancou a

reflexão sobre os riscos de uma sociedade limitada

à atividade útil. Em sua opinião, o fundamental,

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201190 91ARTIGOS | BETE ESTEVES

na existência de uma sociedade, é o espaço

reservado ao gasto e ao consumo, o que chama

de “dispêndio improdutivo”,13 sejam eles excessos

produzidos pelo campo social, psicológico ou

cultural. Em vez da discussão falseada a respeito

da utilidade, Bataille provoca uma inversão do

modo tradicional de entendimento a respeito dos

constituintes das primeiras motivações da sociedade

humana, em que o que passa a ser mais investigado

é o consumir, e não o produzir; o despender, e não o

conservar; o destruir no lugar do construir.

A máquina artística faz parte da categoria de

dispêndio improdutivo. Está vinculada às forças

que rompem com a condição humana do circuito

produtivo do trabalho e da subordinação temporal.

A atividade artística assume o caráter nobre da

noção de despesa, na contramão das concepções

racionalistas e econômicas do século 17. Introduz

a descontinuidade, a inutilidade, momentos em

que o trabalho é suspenso, gerando indiferença

em relação à função que os objetos ou atividades

poderiam desempenhar na cadeia da utilidade. Se

a razão da funcionalidade ou utilidade é retirada

da relação de trabalho, pode-se fazer emergirem

dados que ela escamoteia como, por exemplo,

a indesejável e incompreensível inutilidade ou

efemeridade da vida, as atividades excrementícias,

a doença e a morte.

Com as obras Homage to New York e

Break Down, Tinguely e Michael Landy,

respectivamente, fizeram dois dos exames

mais enérgicos do consumismo, do

desperdício, da destruição e criatividade

da sociedade pré e pós-industrial. Ambos

os trabalhos, vivendo apenas na memória,

na documentação, no rumor e no mito,

tornaram-se o máximo em esculturas

desmaterializadas de seus tempos. Utilizando

os resíduos de suas épocas, eles revelaram

que o prazer do consumo, ao que parece,

pode estar também em sua destruição.14

Break Down não é apenas de um objeto instalativo e escultórico pensado para o aniquilamento de todos os pertences do artista, mas um conjunto de relações que, implicado com todo o sistema de mercado de consumo, de arte, máquinas técnicas, estéticas, econômicas, sociais, a que se está subjugado, traça direções de fuga que implicam novos direcionamentos e lembram também a noção de dispêndio improdutivo de Bataille.

Segundo esse autor, há no mundo, na raiz da vida, uma tendência inevitável para a perda, para a dissipação do excesso em termos biológicos, que se estende à ordem social. O que, no entanto, é abafado pela tendência da aquisição e do acúmulo de excessos, responsável, de modo geral, pela produção de meios danosos que podem transformar-se em guerra de destruição em massa e certamente fazem parte do tédio da vida burguesa.

O ineditismo do paradigma da dádiva estaria no fato de propor um “antiutilitarismo positivo”, que pode ser aplicado às atividades artísticas. As máquinas quiméricas trazem, em sua origem, em sua natureza, a inutilidade fundamental, mas que muitas vezes remete o homem à dimensão do cosmo, ao pertencimento da condição humana, à liberação do mundo dos objetos, à experiência do desapego através da qual o homem se dá conta de seu destino – entendimento da ambiguidade que traz à tona o útil e inútil.

Richard Sennett, no capítulo Ferramentas estimulantes15 do livro O Artífice, sugere o “despertar” para que se lide com as ferramentas de maneira a tirar proveito delas. Afirma que através de saltos intuitivos se encontrariam maneiras de rever a função inicial das ferramentas. De certa maneira, o que Vilém Flusser propõe, a reprogramação do aparelho como saída para

a imagem técnica, Sennett aponta como novo método de abordagem frente às ferramentas.

Sugere, para isso, atitudes como:

1 Disposição de verificar se uma ferramenta ou prática pode ser mudada no uso, ou seja, defende a importância de deixar que o limite das finalidades das ferramentas esteja aberto à criação de novas derivas, em que a quebra do molde e de sua função possa ser bem-vinda.

2 Aproximação de domínios improváveis. Aqui se trata de aproximações de universos que inicialmente estão distantes. O autor cita o exemplo da tecnologia do telefone conjugada com a do rádio que origina a telefonia móvel, universos que, em princípio, não seriam pensados juntos e que, uma vez aproximados, fazem nascer novas composições, novas máquinas.

3 Preparar o terreno para o assombro, a surpresa. Esclarecer procedimentos, nomeá-los, muitas vezes revela compreensões inesperadas e de complexidade maior do que se supunha. É preciso deixar que a perplexidade penetre.

4 Um salto não desafia a gravidade. Não é o fato de haver transferências de habilidade ou prática de uma área para outra, ou de uma ferramenta para outra que vai fazer com que o problema seja resolvido. Sempre quando se insere o estrangeiro, isto é, uma nova forma de lidar com o problema, há que lidar com o que trouxe esse novo dispositivo, essa importação técnica que também trará seus

próprios procedimentos e problemas.

Penso nos caminhos apontados por Sennett e por

Vilém Flusser não como silogismos, mas como

possibilidades de criação, de rompimento com

verdades, de entrada nos códigos dos aparelhos.

Penso que tais noções geram possibilidades

de criação das máquinas quiméricas. Dão

chance de pensar o fazer artístico, em meio ao

aprimoramento tecnológico, e a ele também se

conformar, revoltar, formatar e reformatar com

possibilidades de novas configurações formais,

estéticas, conceituais e filosóficas.

Para além do entretenimento, a figura de

um autômato carrega consigo um grande

interrogante. Pensa-se também a respeito da

ação programada e repetida, daquela que faz de

nós reféns, utensílios ou instrumentos. As figuras

dos autômatos, aprisionados nas engrenagens

das repetições e ritmos não humanos impingem

movimentos rumo à força do hábito.

Assemelhar-se a operários padronizados, maquina-

dos, adormecidos certamente pode ser também re-

duzir-se à qualidade de máquina, regra do regime

fordista, capitalista. Tornar-se peça com a máquina,

na multiplicidade de sua produção, do movimento

que estabelece rotas de mutações que se alteram

na composição entre partes, pode ser promover o

solavanco que rompe com o esquema-padrão com

o qual já se acostumaram os corpos.

Para tanto há que promover enguiços, solavancos,

rodopios, invenções, apropriações, movimentos

celibatários que não obedecem a outra regra

senão a do desejo e que têm a chance de retirar

do grau zero as engrenagens, polias e alavancas,

sem outra ordem senão a da repetição.

É preciso promover o giro do pião ou da bailarina

que, de tantas voltas na caixinha de música,

executa finalmente um tal grau de volta desejante,

criativa e reflexiva que acaba por flutuar sobre o

linóleo do palco ampliado.

Regras para reconhecer uma quimera maquínica

I Para reconhecer quimeras é preciso saber-se

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201192 93ARTIGOS | BETE ESTEVES

máquina, no sentido mais amplo, saber que tudo

é máquina.

II É preciso saber-se máquina e saber-se quimera,

sonho, fusão mítica de muitas fontes. Para

reconhecer máquina quimérica é preciso infinita

capacidade de sonho.

III Sonhador de final de semana não adquire

certificado de reconhecedor: é preciso não temer

pesadelo. Quem teme pesadelo não sabe como

destarrachar a torneira do sonho bom. Sonho

bom é devorar coelhos na orientação dos gatos,

o que só se aprende lendo Cortázar no original.

IV Para reconhecer uma quimera maquínica

é preciso tomar chá com o coelho de Alice

servido no bule de Keaton preparado com a

graxa do desejo.

V Máquina quimérica se reconhece na sobrie-

dade da ontogenia da Diferença, na falta de

sentido, na vertigem do delírio, na inútil e precária

e movediça e intersticial e formidável existência.

Toda beberragem alucinógena libera o contorno

nítido de uma quimera maquínica, mas é preciso

estar despedaçado.

VI É preciso apagar o Inferno e queimar o Céu,

recitar de trás para diante os Cantos de Maldoror,

reconhecer toda a humana (ou divina) possibilidade

como sendo parte-peça-engrenagem combustível

de si e com esse Todo sentir-se Um; assim se

reconhece uma máquina quimérica:

VII Nos inutensílios da poesia, nas teorias-ficções

de todos os campos, na falível concepção dos

conceitos inventados para produzir uma história

que nos contam na hora de dormir, em volta da

fogueira que projeta sombras no fundo da caverna.

VIII Para reconhecer máquina quimérica ou qui-

mera maquínica é preciso prescindir de todo

manual ou roteiro de modo a descasar para

sempre o que jamais haveria de ter par. Tudo que

pulsa, mesmo no pulso lento de milhões de anos,

como o ciclo do sol, das galáxias e do universo

inteiro, é máquina e quimera na imaginação de

toda criatura-criadora.

IX Para reconhecer uma tal coisa é preciso dar

descargas em sequência, conversar e casar

com anéis de fumaça, derreter o desejo um

minuto antes da meia-noite, voltar e tornar

a voltar eternamente para o lugar que é teu

e seguir para sempre exilado e transformar

grades de ferro em asas na ausência de louça,

como o amor que partiu numa fatia fina

de fala reconstruída com cola feita de luz e

água mineral capaz de espreguiçar estrelas

arquivadas em neon por 40 anos em caixinhas

de isopor e de sonho de menina.

X Para reconhecer uma tal coisa é preciso desistir

de buscá-la, pois está em toda (p)arte.

NOTAS

1 Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. O antiÉdipo. Capitalismo e esquizofrenia. Trad. Joana Moraes Varela e Manuel Carrilho. Lisboa: Assírio & Alvim, 1996:53.

2 Guattari, Félix. O inconsciente maquínico − ensa-ios de esquizoanális. Campinas: Papirus, 1988.

3 Deleuze, Gilles; Parnet, Claire. Diálogos. Lisboa: Relógio D’ água, 1996:127.

4 É o processo de análise de um artefato (um aparelho, um componente elétrico, um programa de computador; etc.) e dos detalhes de seu funcionamento, geralmente com a intenção de construir um novo aparelho ou programa que faça a mesma coisa sem realmente copiar algo do original. Objetivamente a engenharia reversa consiste em, por

exemplo, desmontar uma máquina para descobrir

como funciona. Disponível em http://vai.la/21VC

5 Fumus boni vem de Fumus boni iuris, expressão

latina que significa fumaça ou sinal de bom direito,

aparência ou indício de bom direito. O fumus boni

iuris é a presença aparente de uma situação que não

foi inteiramente comprovada, mas em que existe a

possibilidade de que o direito pleiteado exista no

caso concreto.

6 A ‘Patafísica diz respeito a uma concepção

do mundo alternativa, que revê a compreensão

do ser, da ciência ou da técnica, do tempo e do

tratamento da linguagem. Estuda os epifenômenos

a própria observação da aleatoriedade da “dança”,

da espiral, do caos e da ordem. Epifenômenos são

porções de fenômenos que existem para além das

leis da não contradição. Abordam a equivalência

universal contingente em que tem lugar o acaso ou

o acidental. “É, sobretudo, a ciência do particular,

embora se diga que só existem ciências do geral.

Estuda as leis que regem as exceções e explica

um universo suplementar a este; ou, menos

ambiciosamente, descreve um universo que pode

– e talvez deva – ocupar o lugar do tradicional, já

que as leis do universo tradicional são derivadas

de correlações de exceções, ou, em todo caso, de

correlações de ações acidentais que, reduzindo-se

a exceções pouco excepcionais, deixam de possuir

o atrativo da singularidade” Jarry, Alfred. Gestas y

opiniones del Doctor Faustroll. Trad. Teresa Fernández

Echeverría. Zaragoza: Libros del Innombrable, 2003.

7 O princípio da não contradição, formulado por

Aristóteles em seus estudos sobre a lógica, afirma

que uma proposição não pode ser verdadeira e falsa

ao mesmo tempo.

8 Sylvester, David. Sobre arte moderna. São Paulo:

Cosac & Naify, 2006:472.

9 Michel Carrouges elaborou interessante estudo

que compara artistas que teriam encenado em

suas produções o mito da máquina celibatária.

Em leitura atenta dos elementos constitutivos das

obras, o autor aproxima as máquinas de Locus

Solus, de Roussel, às de la Mariée mise à nu par ses

célibataires, même... de Duchamp. As analogias,

feitas ainda entre livros de outros escritores como

Kafka e Lautréamont, são traçadas com convicção

por Carrouges. Carrouges, Michel. Les machines

célibataires. Paris: Arcanes, 1954.

10 O conceito de “máquinas desejantes” de Deleuze

e Guattari, que aparece expresso em O antiÉdipo,

mais tarde revisto, irá ceder lugar aos conceitos de

“agenciamento” e “máquinas abstratas” presentes

em Mil platôs. As expressões se equivalem, se

explicam e se adicionam. No âmbito que importa a

este texto, o emprego desse e de outros conceitos

deleuzianos serviru para balizar uma reflexão

sobre o que faz do desejo-máquina uma quimera

maquínica, uma quimera que é desejo e que se

torna “máquina abstrata”.

11 Brett, G. Force Fields; phases of the kinetic.

London: Hayward Gallery, 2000:9.

12 Osorio, Luiz Camillo (org.). Abraham Palatnik.

São Paulo: Cosac Naif, 2004.

13 Bataille, G. A parte maldita: precedido de A noção

de despesa. Lisboa: Fim de Século Edições, 2005.

14 Sillars, L. Joyous machines: Michael Landy and

Jean Tinguely. Liverpool: Tate, 2009. p.27

15 Sennett, Richard. O Artífice. Rio de Janeiro:

Record, 2009:234.

Bete Esteves é artista, mestre em artes visuais pela Linha de Pesquisa em Linguagens Visuais (PPGAV-EBA/UFRJ). Trabalha na criação de dispositivos poéticos que unem experiências artísticas, científicas e técnicas com aparatos mecânicos, digitais e tecnológicos que, muitas vezes, destituídos de sua função original, são matéria-prima estrutural dos

dispositivos escultóricos.

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201194 95ARTIGOS | MANO VIANNA

As manifestações artísticas contemporâneas com

uso da tecnologia digital têm sido denominadas

artemídia por diversos autores1. Fazem parte de

uma nova cultura que se estabelece em contexto

no qual arte, ciência e tecnologia interagem e se

influenciam. Diversas disciplinas, como a filosofia, a

arte, a comunicação, a antropologia e a sociologia,

se inter-relacionam para explicar o atual contexto

social. Noções e conceitos estão sendo criados ou

revistos em todas as áreas do saber em função dos

recursos tecnológicos digitais que nos permitem

representar coisas que não podíamos descrever. As relações dos indivíduos em sociedade transformam-

se para aceitar um conhecimento plural, aberto às múltiplas entradas de informações culturais de um

mundo conectado em rede. Na arte, da mesma forma, o caminhar das experimentações estéticas tem

permitido a incorporação de uma imagética que expande os horizontes artísticos às mídias. Pensa-se

agora em novo estatuto para o espectador, o artista e a obra.

SOB PALAVRAS E IMAGENS: proposição poética e contextualização cultural de um dispositivo digital de artemídia

Mano Vianna

arte e tecnologia artemídiaarte virtual arte interativa

Considerada uma produção variável, inconstante ou efêmera, a artemídia, ou a arte que

faz uso da tecnologia, é contextualizada pela proposição poética Sob palavras e imagens,

possibilitada pela criação de um software gráfico desenvolvido para gerar imagens através

das mensagens de texto enviadas por usuários da web. Esta é a apresentação parcial da

dissertação de mestrado Sob palavras e imagens: proposição poética e contextualização

cultural de um dispositivo digital de artemídia (PPGAV/EBA/UFRJ), orientada pelo Prof. Dr.

Celso Pereira Guimarães e defendida em fevereiro de 2011.

Sob palavras e imagens, 2011. Arte digital (jpg), 20 x 25cm, 300 dpi

IN WORDS AND IMAGES: poetic project and cultural contextualization of a digital media-art device | Media Art, considered as a variable, inconstant or ephemeral production, or art that uses technology, is contextualized by the poetic proposition Underneath words and images, made possible by the creation of graphic software to generate images from text messages sent by web users. This is a partial presentation of the Visual Arts Master’s Thesis (MA). Supervised by Prof. Dr. Celso Pereira Guimarães | Art and technology, art media, virtual art, interactive art.

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201196 97ARTIGOS | MANO VIANNA

Para investigar esse contexto no qual as

tecnologias digitais estão alterando os processos

de construção, prática e pesquisa nas artes e nas

ciências, renovando muitos conceitos tradicionais,

foi criado um dispositivo digital, denominado

Fontes, acessado no website <fontes.bitspoéticos.

com>, que pode ser definido como máquina de

escrever virtual desajustada, pois torna os textos

digitados pelos usuários ilegíveis: na imagem

as letras que compõem o texto tornam-se

emaranhadas quando configuradas numa área

comum, em que todas as mensagens se combinam.

Entretanto, para ampliar as possibilidades de seu

uso, uma frase foi inserida como detonadora do

processo de libertação imagética do participante,

estabelecendo marcação temporal a partir da qual

se podem fazer diversos tipos de especulação

poética. Assim, para que fosse oferecida ao

participante a chance de ‘viajar’ através de uma

avenida de novos significados, foi escolhida a

expressão Sob palavras e imagens, também usada

para denominar o projeto.

Arte fora da redoma

Virtualidade e instantaneidade. Discorrer sobre

a proposição Sob palavras e imagens como

uma experimentação da arte contemporânea

significa considerar a entrada da arte em um

novo campo de discussão, no qual as imagens

técnicas deslocam os debates para os temas da

comunicação, fato que Lyotard acredita ser a

chave para se compreender a questão cultural

do pós-moderno.2 O pensamento estético,

ao considerar a importância da mediação no

processo de recepção da obra de arte, desdobra-

se para responder às novas questões. Podemos

definir estética como a área de significação

que se desenvolve em torno da arte, como

explica a filósofa Anne Cauquelin,3 e que pode

ser empregada como adjetivo, qualificando

alguma coisa que possua atributos conferidos

à atividade artística, ou como substantivo,

remetendo ao conjunto de teorias que analisam

e avaliam as obras. Assim, à medida que ocorrem

desdobramentos significativos no campo estético,

a esfera de considerações poéticas é ampliada,

mobilizando a atenção de diversos intérpretes. O

filósofo Benedito Nunes4 aponta uma mudança

da posição tradicional do artista e do destinatário

em relação à “coisidade” da obra, abrindo um

espaço de exploração que valoriza a relação entre

quem produz e quem recebe, tirando do objeto

artístico seu poder autônomo de transmissão de

ideais de beleza, da mesma forma como retira

do artista seu poder de gênio, do iluminado que

revela a obra ao mundo5− questão denominada

por diversos autores “superação” ou “explosão”

da estética.

O momento atual em que discutimos a arte

interativa – ligada mais aos processos criativos do

que à realização de obras acabadas – corresponde

a uma etapa da aproximação entre a arte e o

observador, que vem ocorrendo desde o início

do século 20. Essa parece ser uma reação ao

distanciamento realizado pela arte modernista

que, impulsionada pela experimentação de

diversas novas linguagens, acaba por criar seus

próprios cânones e princípios, afastando-se cada

vez mais dos espectadores. Para ‘entender’ (e

poder gostar de) uma obra de arte, as audiências

necessitavam ser informadas sobre o significado

da produção, ou seja, elas eram incorporadas ao

conteúdo cultural do produto.6 A radicalização

desse processo, porém, acaba por criar novos

territórios, descartando as determinações de

representar o objeto, ou por buscar uma expressão

do sujeito. Assim sendo, muitas dessas atitudes

Sem formato. Arte digital (jpg), 20 x 25cm, 300 dpi

foram dirigidas à participação do espectador

na obra. O pesquisador Júlio Plaza7 identifica,

somados à atual etapa em que predomina a

arte interativa, dois outros momentos distintos

e anteriores: a obra inacabada – relacionada à

polissemia, à ambiguidade, à multiplicidade de

leituras e à riqueza de sentido; e a arte participativa

– que contribuiu para o desaparecimento e

desmaterialização da obra. É importante notar,

portanto, que houve um processo de aproximação

entre a arte e o observador bem antes do

aparecimento da tecnologia digital.

A ecologia da rede de bits

Ao fazer uso das tecnologias digitais, o artista traz ao debate temas que envolvem uma nova maneira de informar e comunicar. Mais do que apenas mudança de suporte material, o fenômeno artístico ocorre sob critérios nos quais

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201198 99ARTIGOS | MANO VIANNA

Vilém Flusser.11 Segundo esse filósofo, a natureza

matemática da mídia digital também evidencia

mais do que o aparecimento de nova forma de

transmissão de informação. Estamos diante

de uma nova forma de comunicação. Partindo

da observação de que a comunicação humana

é processo artificial criado para armazenar

informações, em que símbolos são organizados

em códigos, Flusser verifica que a entrada num

regime digital altera profundamente a maneira de

codificar a realidade: “passamos de um universo

imagético que interpretava um ‘mundo’ para um

sistema que interpreta as teorias referentes ao

mundo”.12 Isso significa que estamos passando a

representar o mundo através de códigos criados

a partir de outros códigos e não de nosso contato

direto com a realidade. Estamos passando a

“interpretar em vez de explicar”, resume Flusser.13

O homem e a máquina

O potencial comunicativo do computador para

experimentação poética, capaz de estimular

diversos sentidos corporais, revela-se através

de sua capacidade de se conectar a diferentes

interfaces. Embora no presente trabalho a opção

de suporte de transmissão tenha sido a rede

mundial de computadores, diversos tipos de

equipamentos digitais poderiam ter sido utilizados

para fazer a interação com o participante.

Sensores de luz, térmicos e de movimento,

acionadores de máquinas, equipamentos sonoros

e diferentes tipos de softwares, como os de

realidade aumentada, por exemplo, poderiam

responder aos impulsos gerados pelos dados

digitados pelos participantes. Se considerarmos

apenas a internet, como rede em que se

interligam pessoas, computadores e uma série de

dispositivos periféricos, podemos perceber que

foi criado um novo espaço de relações em que

nossos corpos respondem a novos paradigmas de

espaço e tempo.

Cognição, percepção e ação. Tudo é diferente nesse cenário, em que podemos realizar ações a distância, de forma até ubíqua (em vários lugares ao mesmo tempo) e em tempo real. De fato, uma das principais características do mundo virtual é a de nos fornecer o sentido de imersão, que pode ser realçado com a exploração sensório-motora das interfaces computacionais. O pesquisador Oliver Grau14 esclarece que o termo imersão diz respeito ao encurtamento da distância entre o que é exibido e o nosso envolvimento emocional com o que está acontecendo, o que, em nosso uso cotidiano do computador, corresponde à sensação física de pertencer a uma “realidade virtual”, como nos é dada pelo teclado e o mouse. A arte contemporânea é rica em exemplos que envolvem o uso de vários tipos de mídias digitais em diversos tipos de instalações. Explorações que procuram reorganizar e reestruturar nossa percepção e cognição em busca de novos horizontes estéticos. Esses projetos colocam o corpo na função ativa de interferência; é ele que informa as mídias utilizadas para reagir a um determinado estímulo.15 Por isso, o dado corporal na mídia digital tem atraído a atenção de tantos pesquisadores. Houve aumento da complexidade da informação com a utilização do meio digital, que tem estimulado pesquisas em diversas áreas do conhecimento. Os estudos das neurociências, por exemplo, que atualmente utilizam modernas tecnologias de ressonância magnética, têm feito a revisão de conceitos atualmente considerados reducionistas a respeito do cérebro.16 Estamos deixando de considerar o cérebro mecanismo de entrada e saída de dados, de estímulo e resposta, para considerar todo o corpo um sistema sensível, capaz de novo olhar suscetível a englobar um incrível jogo de relações físicas e culturais.

a tecnologia é fonte de diversas considerações

sobre o processo de criação.

Dados podem ser organizados matematicamente

de maneiras infinitas. Impulso elétrico e pausa –

um e zero; é simples a configuração de um bit

(binary digit), menor unidade de informação

digital. A combinação desses bits serve para a

codificação de dados para diversos fins, como

a configuração de imagens através dos pixels

na tela de um computador. O pixel é a menor

unidade visual de geração de imagens; essa

codificação torna fácil armazenar e manipular

as imagens. De fato, a facilidade de criação e

alteração das imagens digitais tem sido possível

pelas interfaces gráficas, que tornam o uso

do computador mais intuitivo, mais fácil de ser

manipulado. O significado da palavra interface

envolve não só a maneira de representar zeros e uns,

mas também toda uma cultura que se desenvolve

através das formas criadas para a interação com

o ciberespaço. Talvez por isso não seja apropriado

referir-se às interfaces apenas como ferramentas

digitais. O termo ferramenta, quando aplicado à

informática, remete a um elemento do programa

de computador (como uma aplicação gráfica) que

ativa e controla uma determinada função. Porém,

mais do que facilitar uma tarefa, a interface se

relaciona à tecnologia, envolve técnica (artefatos

eficazes), cultura (a dinâmica das representações)

e sociedade (as pessoas, seus laços, suas trocas,

suas relações de força).8 Um logos específico se

estabelece para favorecer o aparecimento de

novas formas culturais: permite que realizemos

outras maneiras de pensar o mundo.

O mundo está conectado em rede, e suas interfaces

relacionam um complexo intrincado de relações,

passam a se assemelhar a um ambiente que

possui ecologia própria, na qual tempo e espaço –

instantaneidade e virtualidade – permitem muitas

possibilidades de conhecimento. O espaço físico

é substituído por ininterrupto fluxo de dados.

O tempo, instantâneo, permite não apenas a

emissão de mensagens, mas a troca de conteúdos,

possibilitando atuação e intervenção.

Dados circulam sem perda de conteúdo e

podem ser reconstituídos ou manipulados de

várias maneiras. Essa afirmação traz ao debate

importantes considerações que indicam que

está ocorrendo mudança em nossa maneira de

representar o mundo. “Agora a imagem digital

pode ter mais aura do que o original”, afirma

W.J.T. Mitchell,9 aludindo à mudança de percepção

da obra de arte quando o original é multiplicado

pelas tecnologias de reprodução, observada em

1936 por Walter Benjamin:10 a cópia do original

perde sua “aura”, a sensação quase mágica que a

obra transmite de exclusividade, de ter sido feita

por um artista em determinado momento. W.J.T.

Mitchell adverte que, no modo de reprodução

biocibernética (computação de alta velocidade,

imagem digital, realidade virtual, internet,

engenharia genética), novas considerações devem

ser feitas, como, por exemplo, o fato de a cópia

digital não ser mais inferior ou imperfeita em

relação ao original.

O debate sobre a natureza da circulação e

reconstituição de dados tem possibilidade de ser

ampliado quando observamos que as interfaces

gráficas podem ser acrescidas de acoplamentos

de diferentes recursos às entradas (inputs)

e saídas (ouputs) de dados do computador,

proporcionando enorme expansão das

possibilidades de exploração sensorial. A natureza

do código binário, porém, não se restringe às

considerações que envolvem a transmissão e

a circulação dos dados. O próprio modo de

representação da realidade digital favorece campo

ainda maior de discussão teórica, como apresenta

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011100 101ARTIGOS | MANO VIANNA

externos para ser percebida e ganhar significação. De acordo com Ron Burnett,17 o conceito da imagem como portadora de significado único e estável foi deslocado para o de mediação: “Um campo intermediário entre espectadores e criadores para intervenção e interpretação”. Burnett observa que, no ambiente digital estabelecido pela web, o conceito de imagem tem deixado de significar apenas o enquadramento de um assunto, pois não há a representação do real através de uma imagem, como um signo para a comunicação.

A Era Analógica sentia-se confortável com a representação, com a habilidade em relacionar o real às marcações e aos signos que os homens poderiam converter de uma experiência à próxima. Na Era Virtual temos poucos desses interesses, pois muitas das imagens criadas são produtos da interação entre os homens e complexos dispositivos.19

A imagem configurada pelas novas mídias de comunicação está relacionada a complexo contexto no qual são costurados e rearranjados diferentes discursos. Televisão, jornais, rádio e as novas formas dentro da web produzem um conjunto de discursos visuais, orais e textuais diferentes que se interligam de diferentes maneiras, ou seja, uma mesma imagem pode ter diferentes conotações de acordo com a página da web em que está sendo vista. Dentro desse continuum de informações, as imagens se tornam um ‘ambiente’ que nos influencia temporariamente e nos conduz, remete ou dirige a outros espaços e lugares. Essa noção, que difere da visão de uma imagem responsável direta pelo significado, explora o aspecto do entendimento das múltiplas entradas de informação numa rede virtual e o modo como somos afetados por essa convergência das mídias que permite a combinação de diferentes modos de comunicação, através de estímulos visuais, sonoros, textuais e discursivos.

As discussões teóricas sobre as novas formas semióticas na web trazem à luz, entretanto, outras importantes questões. A relação imagem e texto é uma delas. A proposição poética Sob palavras e imagens, ao combinar texto e imagem, faz alusão a um campo de pesquisa que tem provocado amplo debate: existe uma nova relação de predominância na leitura e na cultura visual entre imagem e texto? A pesquisadora Yvonne Hansen19 observa que, entre as diversas abordagens existentes, muitas relatam um “retorno ao visual” (pictorial turn), seja ele ocasionado pela convergência de mídias realizada pelo computador, que esvazia o sentido da existência de mídias puras, como pretendia o modernismo,20 ou pelo fato de que na web as imagens estão no topo de uma estrutura de linguagem que reúne diversos elementos.

Propostas em artemídia: desafios de recriação e armazenamento

Fato observado no desenvolvimento do trabalho aponta as manifestações artísticas que utilizam tecnologia digital se realizando através de parâmetros não contemplados pela classificação tradicional da arte. O que se torna um problema quando se pensa na conservação, no armazenamento, na remontagem e até mesmo na recuperação de dados de eventos realizados na web. Trabalhos em artemídia podem fazer uso de diversas mídias dentro de diferentes contextos de comunicação. O processo peculiar de criação dessas obras tem possibilidade de envolver características comuns a essas manifestações, como serem baseadas em algoritmo, dirigidas por processos ou baseadas em tempo; ou serem participativas, colaborativas e performativas; tanto quanto podem ser modulares, gerativas ou customizáveis21 – características, porém, encontráveis em diferentes combinações nesses trabalhos. O que torna ainda mais crítica essa situação é o fato de que, embora

Spi 2011. Arte digital (jpg), 8,99 x 18,3cm, 300 dpi

se encontrem dois trabalhos com as mesmas características de produção, seus resultados estéticos podem ser bastante diferentes, pois experiências interativas realizam processos entre artista e observador, tornando-se dependentes dos contextos em que foram criadas. Em vista disso, um trabalho em artemídia pode variar substancialmente de resultado apenas com a mudança de público, dependendo, naturalmente, do grau de abertura estabelecido pelo artista, visto que é sua a prerrogativa de aumentar ou diminuir a qualidade da contribuição do participante. Devemos adicionar ainda, às dificuldades apresentadas, a questão do suporte material e técnico da construção de muitos projetos, fato tantas vezes decisivo para a remontagem de uma obra. Afinal, como concretizar uma exposição na qual a experimentação artística foi realizada por equipamento há mais de dez anos fora do mercado ou utilizava um programa específico de um sistema operacional já obsoleto? Recuperar essas obras exige também que os equipamentos em que elas foram realizadas estejam disponíveis na ocasião de sua remontagem − sem dúvida um grande desafio quando se observa que grandes instituições de arquivamento de obras, como os grandes museus, ainda estão desenvolvendo projetos que permitam criar uma taxonomia22 para esses trabalhos.

Os problemas para a criação de uma taxonomia, entretanto, não impedem que divisões dentro da artemídia já se estejam configurando naturalmente, de acordo com a similaridade das aplicações. Sendo assim, podemos identificar área que se constitua como um grupo bastante definido – a generative art – em que a proposição Sob palavras e imagens possa ser incluída. Essa nomenclatura, cada vez mais utilizada para se referir à arte realizada por programas de computador que desenvolve processos com algum grau de autonomia, pode ser encontrada como palavra-chave (tag) para localização de trabalhos

Imagem na web: corrente de signos

Uma imagem gerada por um programa de computador, como na proposição poética Sob palavras e imagens, relaciona-se a uma rede de conexões de informação, necessitando, por isso, de um conjunto de critérios diferentes da imagem analógica, dependente de referenciais materiais

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011102 103ARTIGOS | MANO VIANNA

em websites de grandes instituições voltadas para a pesquisa de arte e tecnologia. Como campo ainda em processo de estabelecimento, a própria definição para esse conjunto de obras é encontrada de diferentes maneiras, sempre procurando ampliar sua abrangência para desenvolver uma noção que possa conter um grande número de manifestações artísticas.

A experimentação poética

Sob palavras e imagens é projeto aberto à participação pública desde sua publicação na web em outubro de 2010. Desde então, diversos tipos de mensagens foram recebidos, configurando um mesmo número de diferentes imagens. A página inicial do website hospedeiro contém painel em que estão expostas diversas imagens já produzidas, revelando a individualidade de cada manifestação: única e pessoal. Mas, devo confessar, minha primeira expectativa quando pensei nesse projeto estava relacionada à geração de imagens. Pensava num futuro em que as imagens técnicas poderiam ser geradas por programas independentes, soltos na grande nuvem de dados que está sendo formada pela computação. Teriam a capacidade de emocionar da mesma forma que o pôr de sol cheio de nuvens e cores, sem nosso controle, um novo processo ‘natural’. Porém, no decorrer dessa pesquisa, o projeto tomou outro rumo, voltando-se para um caminho que agora me parece bastante evidente. Enquanto focava as possíveis conformações da imagem, estabelecia comandos e diretrizes que permitiriam uma futura grande composição – massas de cor e ritmo – como na arte tradicional. Ao participante caberia a função de realizar uma proposta pronta, sem muita possibilidade de real interação na construção de um sentido poético. Em determinado momento, porém, ficou evidente um desvio, mais tarde corrigido. Como o objetivo desse trabalho era investigar a chamada

artemídia, não bastaria apenas criar um software gerador de imagens e disponibilizá-lo na web para investigar as peculiaridades do ambiente digital. Era preciso estabelecer um ponto de vista que relacionasse tempo e contexto – seus principais paradigmas – para servir de estímulo poético, para divagação, para favorecer novas percepções. A expressão escolhida, sob palavras e imagens, que serviu como título desse trabalho, foi amplamente debatida e corresponde à expectativa de se imaginar quais mensagens foram ‘soterradas’ pelos outros apelos através do tempo. “Estou aqui!”. Talvez seja o que todos queiram dizer de diversas formas e movidos por diferentes motivos.

Os usos, porém, que podem ser feitos com a tecnologia digital são muitos, e, mesmo num projeto que estabelece limites técnicos de utilização, são as atitudes inesperadas as que mais chamam a atenção. Como no caso do participante que tentou estabelecer contato com outro usuário através das mensagens em tempo real, ou de outro que tentou ‘dominar’ o programa compondo uma imagem através da repetição de sinais de pontuação e acentuação. São resíduos bem-vindos numa experimentação poética, pois há a intenção de escapar do programado, ir além do estabelecido. Dessa forma, essa produção artística, adjetivada como variável, inconstante ou efêmera por diferentes autores, diferentemente da arte tradicional direcionada à criação de objetos, resultou num evento no qual considerações como

sucessão, comparação, expectativa e resposta

tiveram peso decisivo.

NOTAS

1 Media Art, como em Grau, Oliver. MediaArtHistories, Cambridge: The MIT Press, 2007.

2 Para o autor, vivemos “numa sociedade em que a componente comunicacional torna-se cada dia mais evidente, simultaneamente como realidade e

problema”. Lyotard, Jean-François. O pós-moderno. Rio de Janeiro: J.Olympio, 1988:29.

3 Cauquelin, Anne. Teorias da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2005b:13.

4 Nunes, Benedito. Hermenêutica e poesia. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999:107.

5 Kant (na Terceira crítica) estabelece como fundamento a ideia de gênio ou daquele que é “capaz de produzir artisticamente, ou seja, produzir de tal modo que a obra resultante parecesse, afetando a espontaneidade da natureza, inventar a sua regra de gosto e transmitir uma intuição superior, suprassensível, da realidade, que chamamos ‘ideia estética’”. Apud Nunes, op. cit.:108.

6 “The practice of making viewers aware of the means of production by incorporating them into the content of the cultural product was often a feature of modernism”. Ken, Marita; Cartwright, Lisa. Practices of Looking. New York: Oxford University Press Inc., 2001:254.

7 Plaza, Júlio. Arte e interatividade: autor-obra-recepção. Concinnitas, n. 4, março de 2003. Disponível em: <http://www.concinnitas.uerj.br/resumos4/plaza.htm>. Acessado em setembro de 2011.

8 Lévy, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999:22.

9 “Now we have to say that the copy has, if anything, even more aura than the original.” Mitchell, W. J. T. What do pictures want? The lives and loves of images. Chicago: University of Chicago Press, 2005:320.

10 Benjamin, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Walter Benjamin. São Paulo: Ed. Abril, 1975:9-35. Coleção Os pensadores XLVIII.

11 Flusser, Vilém. O mundo codificado. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.

12 Idem, ibidem:130.

13 Idem, ibidem:94.

14 Grau, Oliver. Arte visual: da ilusão à imersão. Cambridge: MIT Press, 2007.

15 Hansen, Mark B. N. New Philosophy for New Media. Cambridge: MIT Press, 2004.

16 Burnett, Ron. How Images Think. Cambridge: MIT Press, 2005:118.

17 Idem, ibidem:40.

18 “The analogue era felt comfortable with representation, with the ability to relate the real to markers and signs that humans could translate from one experience to the next. The virtual era will have few of those concerns because so many of the images that will be created will be the products of human interaction with complex digital devices”. Idem, ibidem:72.

19 Hansen, Yvonne M. Writing with images. Universidade de Washington. Disponível em: <http : / / courses .wash ington.edu/hyper tx t /cgi-bin/12.228.185.206/html/wordsimages/wordsimages.html#digilog>. Acessado em setembro de 2011.

20 “...cada arte deveria tornar-se ‘pura’, e em sua ‘pureza’ encontrar a garantia de seus padrões de qualidade, bem como de sua independência”. Greenberg, Clement. A pintura moderna. In: Battcock, Gregory (Org.). A nova arte. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1986:97.

21 Paul, Christiane. The myth of immateriality: presenting and preserving new media. In: Grau, Oliver (Org.). Media Art Histories. Cambridge: MIT Press, 2007:251.

22 Várias estratégias de preservação estão sendo elaboradas por diferentes instituições internacionais como: Rhizome.org, Capturing Unstable Media e o Variable Media Network.

Mano Vianna, como é conhecido Marcelo D.

M. Viana, é artista (manovianna.com), mestre

em poéticas interdisciplinares pelo PPGAV/UFRJ,

graduado em gravura pela EBA/UFRJ e designer

gráfico da Fundação Oswaldo Cruz.

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011104 105COLABORAÇÕES | KIM PAICE

Em 1968, quando Robert Smithson discutia

o “fim do estúdio”, destacou “os métodos e

procedimentos irrestritos” de Robert Morris em um

“mundo de não contenção”.1 Convenientemente

referindo-se à amplidão do trabalho do amigo,

Smithson convocava os artistas a livrar-se das

amarras dos ateliês.2 Em vez disso, explicava, era

hora de se interessar por coisas “enfadonhas”,

falar com admiração de buracos, valas, montes,

pilhas, caminhos, fossos e estradas − que ofereciam aos artistas nova linguagem poética desconstrutiva

contra a arquitetura e a pintura, até o ponto em que, observava Smithson, “em vez de pincel para fazer arte,

Robert Morris gostaria de usar uma escavadeira”.3 Embora frequentemente considerado um dos pioneiros do

“pós-estúdio”, o próprio Morris nunca escreveu sobre a prática no estúdio em si e muito menos a abandonou.

Já ocupou diversos espaços convencionais, incluindo ateliês nas ruas Great Jones, Grand, Mulberry e Greene,

em um loft no qual havia morado. Não obstante, criou numerosas obras que lidam com as noções de

deslocamento e destruição do estúdio. Assim como seus prolixos tratados sobre esculturas, as chamadas

obras de “estúdio” trazem publicidade às maneiras como Morris conceitua seu trabalho.

Neodadaísmo

Durante seus primeiros anos na cidade de Nova York, Morris realizou uma série de obras neodadaístas

lidando com noções de expropriação do estúdio e estendendo a ideia de performance a objetos

ROBERT MORRIS E O ESTÚDIO DO ARTISTA*

Kim Paice

Robert Morris minimalismoestúdio de artista

A problematização sobre a morte do estúdio é central na museologia, na arte

contemporânea e na crítica. Assim, na era pós-estúdio o lugar institucionalizado da

obra persiste com base na informação. Abordando/lendo de perto trabalhos e escritos

de Robert Morris, a autora explora os índices das performances em seu estúdio e

preocupações com a construção no neodadaísmo, no minimalismo e na performance.

I-Box, 1962 (foto) Dorothy Zeidman

Robert Morris e o estúdio do artista| Speculation about the death of the studio is central in museology, contemporary art, and criticism. Thus, the institutionalized workplace persists in the information-based ‘post-studio’ era. Closely reading Robert Morris’ works and writings, the author explores indices of his studio performances and concern with built spaces in Neo-Dada, Minimal art, and performance.| Robert Morris, Minimal art, performance, artist’s studio.

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011106 107COLABORAÇÕES | KIM PAICE

híbridos, que podem ser usados, manipulados

por interruptores, escutados, fechados e abertos.

Transferindo simbolicamente a propriedade

tradicionalmente privada (do estúdio do artista)

para o domínio público e deixando à mostra tanto

o estúdio como o fazer artístico, Morris abriu

espaço para encontros sociais com essas obras.

Seu aparente interesse em turvar as fronteiras

entre os gêneros e os lugares tinha relação

com sua prática de escultor e dançarino, e a

partilha do estúdio com outros dançarinos, cujas

práticas se caracterizam como multidisciplinares

e altamente criativas. Sem dúvida inspirou-se

em Simone Forti e Yvonne Rainer, colegas com

quem dividiu o espaço no último andar de um

prédio na Rua Great Jones. O estúdio em questão,

lembra Rainer, “era completamente aberto,” e

“Morris fez pequenas esculturas em um canto,

como a Box with the Sound of its Own Making.

Simone ensaiava See Saw conosco de um lado. Eu

ensaiava meu primeiro solo, Three Satie Spoons”.4

O ambiente devia ser excitante!

Uma análise superficial das fotografias de Morris

fazendo sua performance com, em e sobre as

obras desse período revela como as performances

em estúdio caracterizam muitas das obras

neodadaístas.5 A constatação mais famosa a esse

respeito ocorre em Box with the Sound of its Own

Making (1961).6 Uma homenagem direta às fitas

magnéticas de John Cage, a caixa de madeira

guarda uma gravação “de seu próprio fazer”, que

está contida nela mesma e é tocada quando a

obra é exposta; uma composição auditiva que traz

o espaço do estúdio e o trabalho nele realizado

para o âmbito do público e da exibição. A obra

consegue arrastar o estúdio, metaforicamente,

a um dado espaço de exposição, e de maneira

nenhuma declara sua obsolescência. Em cartas,

Morris pediu a aprovação de Cage para a caixa,

entre outras obras, escrevendo ao compositor que

ele estava tentando criar condições para a “morte

do processo (...) uma espécie de extensão da

ideia somente”.7 Embora se possa concluir que a

atitude dadaísta do artista valorize a inércia, essa

mesma ideia de dreno de energia foi frutífera para

Morris, fazendo trocadilhos com a impotência e

a importância de si, mais obviamente na risível

I-Box (1962). É digno de nota como dessa porta

cor-de-rosa de um pequeno armário em forma

de I se revela um retrato fotográfico do jovem

artista em seu estúdio, sorrindo maliciosamente,

incontritamente nu e com seu pênis parcialmente

ereto completamente exposto.

Antecipando sintomas relacionados com a

desmaterialização da arte, como a substituição

do estúdio tradicional, Morris usou a principal

sala de leitura da Biblioteca Pública de Nova York

como local de produção de Card File (1963).8

Essa obra inexpressiva também parece exibir o

selo de aprovação de Cage. Consistindo em fichas

de arquivo organizadas em ordem alfabética

e marcadas com a data e a hora de diversos

eventos, as fichas de arquivo documentam

ações aleatórias referentes à criação de Card File;

sua “composição” abrange cabeçalhos como

“Interrupções” (“18.7.62, 14h45 No caminho

para o arquivo encontrei Ad Reinhardt na esquina

da Rua 8 com a Broadway. Falei com ele até as

17h30 quando então ficou tarde para continuar

o percurso”), “Períodos de Trabalho” (“Contam-se

17”) e “Concepção” (“11.7.62, 15h15 enquanto

tomava um café na Biblioteca Pública de Nova

York”). O arquivo nos tira do tempo em que

o objeto foi feito para um presente no qual o

encontramos e o manipulamos, o tempo todo,

possibilitando que Morris conte histórias banais

sobre o processo. Embora “ostente sua própria

suposta autocontenção”, exibindo a história de

sua produção em fichas de arquivo, Card File

também transforma “a presumida privacidade

do pensamento no meio partilhado que é o

discurso e na lógica das proposições”, como

registrou Rosalind E. Krauss em 1994.9 Podemos

extrapolar afirmando que, ao dar atenção a essas

trivialidades, Morris também expõe a categoria

da publicidade e o desejo de exibir a qualidade

“trabalhada” da obra. O relato de encontros

casuais é feito com detalhes absurdos, ainda

que burocráticos; simplesmente dar de cara

com Ad Reinhardt foi costurado no tecido da

obra mediante a menção na ficha.10 Tanto o Box with the Sound of its Own Making

I-Box, 1962 (foto) Dorothy Zeidman

Card file, 1962 (ficha) (foto) Philippe Migeat

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011108 109COLABORAÇÕES | KIM PAICE

arquivo como a caixa demonstram a fluidez com

a qual Morris concebia o que está dentro e fora

da criação – e do estúdio. Além de insistir na

recepção do trabalho – com aparente indiferença

em relação a quem ou o que o público possa ser,

acima do prestígio de Cage ou Reinhardt –, essas

obras neodadaístas nos contam que para Morris o

estúdio é lugar que pode ser redefinido e no qual

a criação artística pode ser encenada.

Arte minimalista

A arte minimalista levou Morris a concentrar-se nos

significados da percepção enquanto performance

em si e a reconsiderar os propósitos do ambiente

arquitetônico e do estúdio. Espaços delimitados

e ambientes construídos, nem explicitamente

estúdios, nem espaços para exposição, eram

física e conceitualmente esqueletos para os

objetos, poliedros cinza e obras de metal e fibra

de vidro realizadas pelo artista. A importância da

intimidade foi parcialmente perdida à medida

que fabricantes industriais, tal como a Aegis,

produziam algumas de suas obras, enquanto ele

próprio atuava como projetista. Ao mesmo tempo

em que a temática desenfatizando a biografia do

artista poluía seus escritos, as práticas de fabricação

ajudavam a entender que sua contribuição física

mal era relevante em alguns trabalhos feitos dessa

maneira.11 Ainda assim, essa obra tridimensional

fala intensamente ao mundo de espaços fechados

construídos, incluindo o estúdio e os locais de

exposição. Embora o curador Martin Friedman

tenha achado a obra de Morris “puritana” e

“atópica”, em 1966 ele apreciou o “ambiente

como fator crítico” da obra, “pois essas formas

densas consomem espaço de maneira vigorosa e

se relacionam fortemente com as paredes, pisos

e tetos”. Em cartas a Friedman, Morris afirmou

que “o contato físico com uma superfície pode

tanto ser um uso da superfície como maneira de

reconhecer que ali há um limite, coexistindo com

a obra”.12

Não é difícil perceber a ambiguidade com que a

obra reconhece os lugares físicos, mas nega sua

especificidade. Conforme explica o historiador da

arte James Meyer, a situação na arte minimalista

foi um momento crítico na concepção da

escultura como instalação.13 A transição dos

tijolos minimalistas, colunas, pilares e portais para

contextos arquitetônicos e sociais e lugares reais,

incluído o estúdio do artista, foi modesto salto

conceitual que, para artistas como Michael Asher,

se demonstrou imensamente rico. Foi a percepção

de uma relação assíntota dessa arte com artigos

do dia a dia e com lugares − não o estúdio do

artista,mas supostamente outros − que contribuiu

para posicionar Clement Greenberg na oposição à

arte minimalista: “Independentemente de quão

simples é o objeto, permanecem as relações e as

inter-relações da superfície, contorno e intervalo

espacial”; e, por esses motivos, Greenberg

continua, “obras minimalistas são lidas como

arte, assim como quase tudo hoje em dia,

incluindo uma porta, uma mesa, ou uma folha

de papel em branco”.14

“Suprimida” foi como a historiadora Barbara Rose

descreveu a “impessoalidade mecânica” da arte

minimalista em 1965.15 “A frequente afinidade

com o mundo das coisas” (e com o dadaísmo)

dessa escultura a fez compará-la às unidades

básicas de linguagem ou informação, mas nunca

à mão do artista ou a seus espaços pessoais.

Como Annette Michelson, que perspicazmente

chamou a obra minimalista de Morris de

“apodíctica”, Rose considerou sua escultura uma

série de afirmações simples e factuais envolvendo

a permutabilidade.16

Sem dizer literalmente “estúdio”, Morris acaba

depreciando o minimalismo e a “total separação

de meios e fins na produção de objetos, bem

como a preocupação de tornar manifestas imagens

mentais idealizadas”, que ele afirmava “lançar

dúvida na alegação de que uma atitude pragmática

permeia a arte minimalista nos anos 60”.17 É como

se ele lamentasse que as imagens mentais do

artista nunca tivessem tido um lugar próprio e que

tal lugar teria que ser o estúdio do artista.

Performance

Este ensaio culmina com breve discussão sobre as

danças e performances de Morris, relacionadas

com as práticas de estúdio. Na obra-performance

Site (1964-67) e na exposição performática

Continuous Project Altered Daily (1969, dora-

vante Continuous Project), Morris realizou de

maneira criativa a possibilidade de desempenhar

o deslocamento do estúdio e de suas práticas.

Essas obras têm o efeito peculiar de criar um

espetáculo ou melhor seria dizer uma celebração

do fim do estúdio. Elas sugerem distinções entre

o uso que o artista faz do estúdio como habitat

versus um espaço do qual se apropria para sua

própria utilização. Dando-nos acesso a esses

espaços operacionais sincronicamente, ele viola

a economia dualista do estúdio e do espaço de

exposição e coloca à mostra o valor de troca que

é produzido no trânsito do estúdio para a galeria.

A conhecida coreografia Site, realizada pela

primeira vez no Stage 73, em Nova York,

entremeava a presença visível de um ambiente

arquitetônico abstrato, um ambiente implícito

na escultura minimalista, e planos abstratos de

tinta branca da pintura moderna de Edouard

Manet, Olympia (1863). Vestido inteiramente

de branco, mas ainda identificado como artista-Untitled (box for standing), 1961 (foto) Robert Morris Archives

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011110 111COLABORAÇÕES | KIM PAICE

operário pelas luvas de trabalho e pela trilha

sonora de construção, audível no decorrer

da performance, Morris usava uma estranha

máscara feita com base em seu próprio rosto

– contribuição de Jasper Johns – que escondia

suas expressões faciais. Como autômato,

ele carregava retângulos de compensado de

madeira pintados de branco como se estivesse

mudando seu estúdio, parede por parede. Como

complemento, Carolee Schneeman posava como

Olympia em uma pequena cama branca, nua e

coberta de talco, enquanto, de dentro de um

cubo branco, ecoava uma gravação, feita da

janela do estúdio de Morris, de uma britadeira

dolorosamente barulhenta.

Em 1969, Morris já havia emplacado a noção

de que até mesmo a matéria-prima poderia ser

considerada informação a ser percebida, como

em fotografias e outros tipos de linguagem,

especialmente itens organizados em listas e

conjuntos. O convite para o show Continuous

Project era, correspondentemente, apenas

informativo: bastante reduzido, fonte preta em

fundo branco, só indicando o nome do artista,

dois locais, a galeria de Leo Castelli na Rua 77 e

o número 103 na Rua 108 West, bem como uma

lista avulsa de materiais: alumínio, asfalto, argila,

cobre, feltro, vidro, grafite, níquel, borracha, aço

inoxidável, linha e zinco.

Morris escrevera no ano anterior em seu

ensaio divisor de águas Anti Form, que o lócus

do estúdio do artista e de seu fazer artístico

havia sido historicamente crucial para a

dubiedade na nomenclatura da matéria-prima

e na transformação, por qualquer que fosse o

processo, de “materiais” em objetos de consumo.

A arte contemporânea (a dele incluída), insistia,

deveria depender da materialidade que seria

capaz de evocar novos modos perceptivos e em

contrapartida solapar restrições linguísticas e

imagísticas ao fazer artístico.18 Na derradeira

e quarta parte da série de ensaios Notes on

Sculpture, ele declara que objetos minimalistas

haviam “fornecido a base imagística a partir da

qual a arte dos anos 60 se materializou”.19 A arte

minimalista se havia aproximado perigosamente

da nomenclatura, isto é, havia tornado “imagens

mentais idealizadas visíveis e afirmado as formas

antes das substâncias”.20

Para lidar com esses elementos, negações e

inversões, e por curto período, Morris fez da

percepção, do processamento da informação

e da transformação do material suas prioridades e

deixou de lado a produção de objetos. Canteiros

de obra o atraíam de imediato pela crueza e

dessemelhante relação com o ambiente urbano

manufaturado em que dominava o princípio da

gestalt.21 Chamando-os de “pequenas arenas

teatrais”, Morris dizia que esses locais eram

o oposto de um refúgio. Nem seguros nem

protegidos como abrigos, essas arenas eram “os

únicos lugares em que as substâncias brutas e

seus processos de transformação eram visíveis,

e a distribuição ao acaso, tolerada”.22 Esses

locais proporcionavam os tipos de experiências

sensoriais que ele desejava que estimulassem

o aparato perceptivo atrofiado dos habitantes

(e espectadores) urbanos, constantemente

entorpecido pela cidade construída e

compartimentalizada.

O Continuous Project de Morris foi ação de trabalho

artístico em situação de estúdio completamente

transitório, em que a obra performativa do

artista ao vivo entrecruzava um depósito da

Castelli Gallery e um efêmero canteiro de obras.

Continuos project altered every day, 1969 (foto) Leo Castelli Gallery, NY

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011112 113COLABORAÇÕES | KIM PAICE

Com mais de uma tonelada de materiais a sua

disposição, o esforçado artista intencionalmente

se despojou dos resultados tradicionais, como

objetos ou estruturas, ou seja, categorias ou itens

relacionados a sistemas ou nomeáveis, e registrou

esse procedimento deliberado, criando uma teoria

idiossincrática de alienação no que diz respeito

aos produtos da obra.

Continuous Project não era o pão de cada dia de

uma galeria ou de um espaço de performance,

ainda que os parâmetros que distinguiam as obras

de portas fechadas e aquelas ao ar livre estivessem

sendo destruídos na época. De fato, Morris

conseguiu incorporar ao Continuous Project o

solo de obra recém-exibida na Dwan Gallery.

Intimamente, Morris guardava cadernos sobre

o trabalho contínuo em Continuous Project,

de 28 de fevereiro a 22 de março de 1969,

descrevendo processos em que misturava água

e graxa com argila, pendurava e arrancava

pedaços de tecido de algodão e musselina,

empilhava e escavava amianto e terra,

rasgava tiras de feltro, martelava madeira e

construía plataformas, tão somente para fazê-

las desintegrarem sob o peso da terra. Esses

cadernos que registram o processo sugerem que

Yvonne Rainer foi responsável por lembrar Morris de

que brincar deveria ser parte do processo, embora

ela não o associe a esse tipo de envolvimento.23

Morris remói: o processo o deixou frio, frustrado,

desgostoso e “entediado”.24 Foi-lhe difícil resistir

às preconcepções da obra que surgiam a cada dia:

“Eu não tinha ideia do que eu faria ou colocaria

lá, eu só sabia que trabalharia todo dia”. Talvez

suas prioridades anticomposicionais universais

fossem mais composicionais do que ele entendia.

Portanto, envolveu-se em uma atividade nebulosa

que começou com a manipulação de materiais

convencionais enquanto tentava encontrar

combinações despropositadas ou inesperadas.

Esses esforços eram direcionados ao formalmente

interessante e ao temporalmente persistente:

“Comecei com uma tonelada de argila. Eu tinha

uns restos de linha da peça Thread. Barris, não

lembro o que havia neles. Comecei a tirar o

plástico. Eu tinha 400 libras de graxa. Comecei a

construir mesas e trouxe o feltro, a argila endureceu.

Estiquei o feltro, criando camadas ou coisas.

No final de cada dia eu tirava uma foto, que era

revelada à noite. No dia seguinte eu a pendurava.

Então começa a formar-se um registro do passado.

No último dia eu limpei tudo e fiz uma gravação,

a escavação, essa coisa toda. Então o que sobrou

foi a gravação da limpeza e as fotografias. Essa é a

natureza dessa peça, sempre em processo.”25

Deixar o gravador emitindo esse som no galpão

vazio da Castelli no final do mês concretiza

a importância de Continuous Project nos

deslocamentos de estúdio que estão tão

silenciosamente entranhados em suas obras,

que podem passar despercebidos ou ser mal

interpretados, como um conjunto de obras

temáticas. Nessa ação de utilizar o som e as fitas

magnéticas, percebemos o desejo contínuo de

Morris de proporcionar informações e de usar

meios como linguagens. No entanto, vale a pena

considerar por que ele ainda contava com tal

aparato em uma obra antiformal. O paradoxo foi

nunca parar de trabalhar para criar e exibir o valor

de troca. A repulsa que descreveu em seu diário

não era em relação ao processo físico de fazer ou

manipular os materiais, mas à própria ideia de criar

algo a partir dos materiais e de seu trabalho. Vale

ressaltar que de maneira nenhuma ele se opôs à

criação desse projeto como obra para a venda.

Chegou até a transformar as fotografias do projeto

em um múltiplo – uma dobradura de papel em

estilo acordeom com os estágios e os detalhes do

projeto – que foi publicado pela Multiples, Inc. de

Marian Goodman, em 1970. De certa maneira, o

sentido da abordagem era oposto ao daquela que

Rainer buscou através da linguagem no trabalho

de título semelhante, Continuous Project-Altered

Daily (1969) (doravante CP-AD).

Na época em que eu estava trabalhando

em CP-AD [ela observa], a fala estava

relacionada com o comportamento

espontâneo dos dançarinos e a leitura

entre os não dançarinos. Antes disso, a

fala aparecia na forma de declamações

em movimento. Nos primórdios do CP-

AD, tentei encontrar equilíbrio entre

configurações de dança “refinadas” e

“comportamento”. Nem sempre era fácil.26

Diretamente inspirado pela leitura dos escritos

de Anton Ehrenzweig, Morris reconheceu haver

Continuos project altered every day, 1969 (foto) Leo Castelli Gallery, NY

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011114 115COLABORAÇÕES | KIM PAICE

sido Continuous Project a primeira ocasião em

que ele quis usar os processos de criação artística

para trabalhar níveis e aspectos de sua própria

personalidade. Essa posição aparentemente nova

no que diz respeito ao papel do “eu”, em torno

de 1967-1971, estava relacionada a seu interesse

por materiais que resistiam à unificação formal.27

Morris descreveu a importância de se fazer uma

varredura visual e mental em materiais variáveis,

como Ehrenzweig o fez, em vez de concentrar-se

e fixar-se em coisas familiares, nomes próprios ou

formas reconhecidas. Morris esperava transmitir

a sensação de indeterminação aos espectadores,

para que eles se tornassem mais unificados em

face das sensações oceânicas do poder opressivo

do mundo a nossa volta; conforme Ehrenzweig,

sugeriu, esse poderia ser um dos resultados desses

encontros com a ecceidade do mundo material.28

Entretanto, era primeiramente a fim de unificar

a si próprio que Morris continuava seu diário.

Publicamente ele escreveu que queria romper com

orientações habituais e valer-se da “concretude

física da matéria” na arte, orientada para o

processo a fim de criar “uma mudança no perfil

da arte tridimensional como um todo”, indo de

“formas particulares a maneiras de organização,

métodos de produção e finalmente, à relevância

perceptiva”.29 Para desenvolver maneiras de fazer

arte que pudessem assegurar sua relevância para

as pessoas que a experimentam, Morris contava

com a noção de que “a percepção tem história”.30

Adotando esse entendimento ou maneira de

organização, ele esperava afastar-se ainda mais

do que chamava de “arte mercadoria produzida

por estúdios e fábricas”.31 Em 1971 ele teorizou

sobre as vias de escape possíveis para o beco sem

saída potencialmente tóxico criado pela troca na

materialidade orientada para processos. Além

disso, Morris expressou seu interesse por materiais

manualmente manipulados que permaneciam

sendo não mercadorias, porém não brutos, e

que poderiam ser usados em obras de escala

ambiental que exploram “o mais ou menos ‘não

feito’”, “suprimem o incidente visual”, e localizam

o processo “naquele que participa” dessa

arte.32 Portanto, Morris deixou os anos 60 com

o estúdio e o eu a tiracolo. Não mais um lugar

para produção, o estúdio era para ele redefinível,

encenável, portável, vazio e excessivamente

pleno de informações sobre o ser, muito mais do

que o fazer.

Uma primeira versão deste artigo foi publicada

com o título Continuous Project Altered Daily:

Robert Morris. In Davidts, Wouter; Paice, Kim

(eds.). The Fall of the Studio: The Artist at Work.

Amsterdam: Valiz Press, 2009:43-61.

NOTAS

* Constam da pesquisa para este artigo entrevistas

pessoais e um estudo pormenorizado do Arquivo

Robert Morris, no Museu Solomon R. Guggenheim,

em Nova York, que abriga muitos documentos não

publicados, arquivos, correspondência e parte da

biblioteca de Morris.

1 Robert Smithson. A Sedimentation of the Mind:

Earth Projects. In Jack Flam (ed.). Robert Smithson:

The Collected Writings, Berkeley: University of

California Press, 1996:100-113.

2 Idem, ibidem:102.

3 De fato, o ruído da demolição do prédio e das

escavadeiras desempenhou mais tarde importante

papel no final de uma seção do They, de Morris,

que era parte da instalação de som e escultura Voice

(1974). Robert Smithson. Towards the Development

of an Air Terminal Site. In Flam (ed.), op. cit.:56.

4 Yvonne Rainer, correspondência com o autor, 16

de outubro de 2007.

5 Paice, Kimberly. Catalogue. In Robert Morris: The

Mind/Body Problem (exh. cat.), New York: Solomon

R. Guggenheim Museum, 1994.

6 Partituras orientadas por regras foram usadas em

trabalhos de Morris ainda em 1974, com a junção

de textos – The Four, We, They, Cold/Oracle, He/She,

Scar/Records e Monologue – na obra auditiva Voice

(1974). Ver Paice, Kimberly. Voice (1974). In Paice,

1994:256-261.

7 Ver, de Branden W. Joseph, a apresentação de Bob

Morris Letters to John Cage, October 8, Summer

1997:70-79 (71, 74). Em carta datada de 27 de

fevereiro de 1961, Morris se refere a Box with the

Sound of its own Making e afirma ter mencionado

a obra a Cage.

8 Lucy R. Lippard e John Chandler inter-relacionam

a “desmaterialização da arte” com a nova ênfase

conceitual em arte americana. Mais do que isso,

entretanto, estou interessada em como eles identificam

o duplo colapso da feitura e do estúdio particular. Ver

Lucy R. Lippard e John Chandler, The Dematerialization

of Art. Art International, 12, 2, February 1968:31-36.

9 Rosalind E. Krauss in Paice, 1994:4.

10 Morris, ‘Letters to John Cage’ (78), a carta de

Morris a Cage, datada de 12 de janeiro de 1963,

revela que Cage ainda não havia visto Card File,

exposta na Green Gallery, na Rua 57, de 15 de

outubro a 2 de novembro de 1963.

11 Pesquisadores buscaram recuperar a biografia

relacionada à obra. Ver a entrevista a Pepe Karmel,

Robert Morris: Formal Disclosures, Art in America,

83, 6, June 1995:88-95, 117-19; Anna C. Chave,

Minimalism and Biography, Art Bulletin, 82, 1, March

2000:149-163.

12 Martin Friedman, Robert Morris: Polemics and Cubes, Art International, 10, 10, December 1966:23-7 (23); Robert Morris, carta a Martin Friedman, 24 de agosto de 1966. Daqui, a distância conceitual parece pequena para o decalque de livros e de tomadas, entre outros itens, que Morris fez em estúdio na Rua Mulberry em 1972. Ver Kimberly Paice, Rubbings (1972), in Paice, 1994:240-243. Eugene C. Goossen também foi tocado pelas formas como a arte minimalista se integrava à arquitetura e dela se desvencilhava. Não é difícil acompanhar seu pensamento no tocante à decisão de incluir pinturas como Lake George Window (1929), de Georgia O’Keeffe, e Window: Museum of Modern Art, Paris (1949), de Ellsworth Kelly, ao lado de esculturas minimalistas em The Art of the Real: USA 1948-1968. Examinando essa exposição, Gregory Battcock criticou Goossen por “academizar” o minimalismo e limitar o potencial da obra de contestar instituições e lugares reais (museus e universidades). Gregory Battcock, The Art of the Real: The Development of a Style: 1948-68, Arts Magazine, 42, 8, Summer 1968:44-47.

13 James Meyer. Minimalism: Art and Polemics

in the Sixties. New Haven/London: Yale University

Press, 2001:166.

Portrait, 1963 (foto) Diane Nilsen

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011116 117COLABORAÇÕES | KIM PAICE

14 Clement Greenberg, Recentness of Sculpture.

In American Sculpture of the Sixties (exh. cat.),

Los Angeles: Los Angeles County Museum of Art,

1967:25.

15 Barbara Rose, ‘A B C Art’, Art in America, 53, 5,

October/November 1965:57-69; também publicado

em Battcock, Minimal Art: A Critical Anthology, New

York: E.P. Dutton & Co., Inc., 1968:274-297 (274).

16 Annette Michelson, Robert Morris: An Aesthetics

of Transgression, in Robert Morris (exh. cat.),

Washington D.C.: Corcoran Gallery of Art, 1969:13.

Rose vincula ABC Art a Lectures in America (1935)

de Gertrude Stein, obras do poeta-pintor Kasimir

Malevich e Marcel Duchamp, e Understanding

Media: The Extensions of Man (1964), de Marshall

McLuhan. O poeta David Antin enfatiza as técnicas

de isolamento na obra de Morris, que, em sua

opinião, torna alienígena o contexto para as obras.

Ver ‘Art & Information, 1 Grey Paint, Robert Morris’,

Art News, 65, 2, April 1966:23-24, 56-58. Com

raciocínio semelhante, Hal Foster registrou que as

obras minimalistas eram feitas, em conformidade

com o modo de produção do capitalismo tardio,

para “significar do mesmo modo que objetos em

sua qualidade cotidiana, ou seja, em sua sistemática

latente”. Hal Foster, The Crux of Minimalism, in

Individuals: A Selected History of Contemporary Art

(exh. cat.), Los Angeles: Museum of Contemporary

Art, 1986:162-183 (179). Ver também Jean

Baudrillard, For A Critique of the Political Economy

of the Sign, Charles Levin (trans.), St. Louis: Telos

Press, 1981:104. A composição a priori e o uso de

elementos prontos estavam implícitos no foco do

design da arte minimalista e se abriam logicamente,

para Morris, à fabricação industrial. Esse fator tornou

o minimalismo vulnerável às críticas dos marcuseanos,

como Ursula Meyer nos anos 60, que diziam que

essas obras não resistiam ao racionalismo nem se

afastavam da lógica das mercadorias. Ursula Meyer,

De-Objectification of the Object, Arts Magazine, 43,

5, Summer 1969:20-22. Mais tarde historiadores

tentaram ressuscitar a dança e a arte minimalista de

Morris pela explicação freudo-marxista de trabalho

dessublimado de Herbert Marcuse.

17 Aqui Morris se refere a um artigo recente

de Barbara Rose, Problems of Criticism VI, The

Politics of Art, Part III, Artforum, 7, 9, May

1969:46-51. Ver Morris, Notes on Sculpture,

Part 4: Beyond Objects, Artforum, 7, 8, April

1969:50-54; republicado em Continuous Project

Altered Daily; The Writings of Robert Morris,

Cambridge/London/New York: MIT Press/Solomon

R. Guggenheim Museum, 1993:51-70 (67).

18 Robert Morris, Anti Form, Artforum, 6, 8, April

1968:33-35; republicado em Continuous Project

Altered Daily: The Writings of Robert Morris:41-49.

19 Morris, Notes on Sculpture, Part 4:64.

20 Morris, Notes on Sculpture, Part 4:67.

21 Quando Morris se mudou para Nova York com

sua parceira de dança Simone Forti, eles se chocaram

com as características excessivamente construídas

do ambiente urbano. Essa experiência tornou-

se relevante para a apresentação que Morris fez

do estúdio do artista em Site. Forti escreveu: “Na

primavera de 1959, Bob Morris e eu nos mudamos

para Nova York. Eu não podia acreditar nesse

lugar. O que mais me chocou foi estar imersa em

um ambiente que parecia ter sido completamente

desenvolvido e criado por pessoas (...). Eu me lembro

de como era alentador e consolador saber que a

gravidade ainda era gravidade. Eu me sintonizei com

meu próprio peso e volume como uma forma de

oração”. Simone Forti, Handbook in Motion, Halifax/

New York: Press of the Nova Scotia College of Art and

Design/New York University Press, 1974:34.

22 Morris, Notes on Sculpture, Part 4:69.

23 Os cadernos não publicados de Morris registram

que “Yvonne [Rainer], Ted e Joanne” estavam

envolvidos com o fazer dessa obra e que membros

do Pulsa passaram no depósito um dia. Rainer

salienta, no entanto, que não havia colaboração

entre ela e Morris e que seu trabalho de mesmo

título, que foi realizado em seu próprio estúdio, era

independente do projeto de Morris. Yvonne Rainer,

correspondência com o autor, 27 de agosto de 2007.

24 Deixando a mente fluir, ele escreveu sem

escamotear seus sentimentos em relação a

compromissos profissionais futuros e planos de

obras que poderia vir a criar, incluído um filme sobre

levantamento de peso que nunca se concretizou.

25 Entrevista gravada em 1977 com Thomas Krens,

Fita 4.2, no Arquivo Robert Morris do Museu

Solomon R. Guggenheim, em Nova York.

26 Yvonne Rainer, correspondência com o autor,

16 de outubro de 2007. O título igual dos projetos

de Rainer e de Morris, segundo ela, devia-se apenas

ao fato de que “ambos estavam envolvidos com

estruturas indeterminadas” na época. A preferência

de Rainer pelo jogo e empatia em seu trabalho não

eram metas que tinha em comum com Morris. Para

o papel desses termos na obra de Rainer, ver Carrie

Lambert, On being Moved: Rainer and the Aesthetics

of Empathy, in Yvonne Rainer: Radical Juxtapositions

1961-2002 (exh. cat.), Philadelphia: Rosenwald-Wolf

Gallery, 2002.

27 Morris informou Thomas R. Krens que

Continuous Project era diretamente relacionado ao

permutado Untitled (1967), em forma de estádio,

que faz atualmente parte da Panza Collection,

adquirida pelo Museu Solomon R. Guggenheim,

em Nova York. Entrevista gravada em 1977 com

Thomas Krens, Fita 4.2, no Arquivo Robert Morris

do Museu Solomon R. Guggenheim em Nova

York. O próprio Morris se refere à obra como “em

forma de estádio” A maioria das obras sem título

de Morris recebem essa nomenclatura casual, cuja

fonte é ele mesmo. Essa obra é a de número 67.172

no Arquivo Robert Morris.

28 O nome de Ehrenzweig não aparece em Anti

Form, mas figura em Notes on Sculpture, Part 4:

Beyond Objects. Anton Ehrenzweig, The Hidden

Order of Art, A Study in the Psychology of Artistic

Imagination, Berkeley: University of California Press,

1967. O método desse autor advinha da escola de

psicologia profunda, conforme desenvolvida na

Inglaterra, e Ehrenzweig reconhecia a influência

crucial em sua obra do livro de Marion Milner,

An Experiment in Leisure, London: Chatto and

Windus, 1937, publicado pela primeira vez

sob o pseudônimo ‘Joanna Field’. As ideias de

Milner sobre o jogo não parecem ter encontrado

repercussão na obra de Morris, que continuamente

se orienta em torno de tratados, declarações e traduções

consagradas de obras para novos trabalhos.

29 Morris, Notes on Sculpture, Part 4:67-68.

30 Morris, Notes on Sculpture, Part 4:61.

31 Robert Morris, The Art of Existence. Three Extra-

Visual Artists: Works in Process, Artforum, 9, 5,

January 1971:28-33; republicado em Continuous

Project Altered Daily: The Writings of Robert

Morris:95-117 (95).

32 Morris, The Art of Existence:95, 97.

Kim Paice é doutora em história da arte pela Cuny,

NY, professora de história da arte na Universidade

de Cincinnati, EUA.

Tradução Mirna Soares Andrade

Revisão da tradução André Alves

Revisão técnica Martha Telles

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011118 119COLABORAÇÕES | GABRIELA LÍRIO GURGEL MONTEIRO

Refletir sobre o uso de imagens na cena

contemporânea significa repensar o estatuto da

imagem em seus modos de criação, interlocução

e apreensão da realidade. Não é de hoje que

assistimos a um crescente interesse em utilizar o

material audiovisual como potente dispositivo

de engendramentos de sensações e percepções,

ora estabelecendo diálogo direto com a obra em

questão, ora se desviando dos sujeitos e temas em

curso para desconstruir o lócus da encenação. A invasão das novas mídias acelera o processo de recepção

de imagens; se, na modernidade, tais imagens estavam ligadas à percepção lógica da narrativa, tornam-

se na contemporaneidade cada vez mais fragmentadas e desconectadas ao negar-se como espelho

prefigurado do que as antecede. As imagens teatrais, alicerçadas em poética baseada na liberdade

de escolha, contaminadas pelas artes performáticas, pelo cinema e pelas novas mídias, constroem um

terreno fértil e híbrido de articulação entre as artes, intensificado pela especificidade teatral, através do

jogo entre a presença do ator, da materialidade de seu corpo e sua voz, e a virtualidade produzida.

“Teatro high-tech”,1 “teatro de imagens”,2 “teatro narrativo-performático,3 “teatro performativo”4

são alguns dos nomes desse novo teatro, fundamentado em cenas que refletem campos de pesquisa

interdisciplinar, “(...) um campo de mediações intertextuais, intertemporais, intersemióticas, interartísticas

e/ou intermídias, que a vertente teatral abordada parece priorizar como seu território preferencial, um

TEATRO DE IMAGENS E AUTOBIOGRAFIA: espetáculo?

Gabriela Lírio Gurgel Monteiro

teatro cinemaimagem autobiografia

O artigo investiga o uso de imagens em espetáculos contemporâneos e sua relação

com dramaturgias criadas a partir de relatos autobiográficos. “Teatro high-tech”,

“teatro de imagens”, “teatro narrativo-performático, “teatro performativo” são alguns

dos nomes desse novo teatro, fundamentado em cenas que refletem campos de

pesquisa interdisciplinar.

Teatro de imagens e autobiografia: espetáculo?| The article investigates the use of images in contemporary entertainment and its relation to a play created from autobiographical reports. “High-tech theater,” “theater of images”, “narrative theater performing,” performative theater” are some of the names of the new theater that is based on scenes that reflect interdisciplinary research fields. |Theatre, cinema, image, autobiography.

I - Box, 1962. (foto) Dorothy Zeidman

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011120 121COLABORAÇÕES | GABRIELA LÍRIO GURGEL MONTEIRO

território limítrofe e intersticial”.5 As fronteiras

artísticas tornam-se tênues e colocam em foco a

questão que me parece primordial na discussão

sobre as relações da cena contemporânea e o

uso do audiovisual: o teatro, arte da presença,

estaria reinaugurando outros modos de interação

à medida que se deixa contaminar pelas imagens

não apenas produzidas na cena, mas sobretudo

existentes para além dela? Quais os limites entre

imagens da corporalidade do ator que compõem

partituras cênicas e as imagens captadas e

projetadas desse mesmo corpo ou de outros

corpos, paisagens e objetos presentificados na

cena ou não? As imagens audiovisuais recriam o

espaço, inauguram uma espécie de duplo lugar,

um desdobramento da cena que pode variar de

acordo com os dispositivos e suportes utilizados.

Lehmann cita Barthes e Muller na tentativa de

definir a especificidade do teatro e sua diferença

com relação às novas mídias. “O que é o teatro?

Uma espécie de máquina cibernética”,6 diria

Barthes prevendo a relação que o teatro iria

estabelecer com as novas mídias. Lehmann, porém,

chama a atenção para o contexto no qual Barthes

estava inserido e sua perspectiva semiológica que

compreendia o processo cognitivo do espectador

ao decifrar as informações. Citando Muller, para

quem o teatro “é o moribundo em potencial”, e

observando que a informação está para além da

morte, Lehmann discorre sobre o espaço-tempo

teatral constituído pela experiência presencial,

direta, entre espectadores e atores, transformada

e vivenciada no presente da encenação. E, por

esse motivo, não mais passível de ser reproduzida.

Em contrapartida, as imagens audiovisuais podem

ser reproduzidas e, no encontro com teatro,

permitem ao espectador experimentar duas

realidades espaçotemporais: o espaço-tempo da

interação, “comum da mortalidade”, e o espaço-

tempo das imagens audiovisuais que acenam

para um encontro que existe a priori. Isso porque

tais imagens foram captadas e realizadas antes de

ser projetadas, ou seja, sua existência antecede à

cena, ainda que sejam manipuladas e editadas,

como em alguns casos, in loco, no momento de

sua projeção. Nesse sentido, o espectador vivencia

a duplicidade espaçotemporal, dois tempos e dois

espaços que, juntos, em sua interseção, criam uma

terceira relação espaçotemporal, experimentada

através do cruzamento de elementos da cena e da

virtualidade produzida.

Abre-se vasto campo de pesquisa na análise desta

terceira relação espaçoteatral que recria o espaço-

tempo do teatro, espaço de signos por natureza.

O espaço teatral, ao receber o espaço virtual,

abre-se a novas perspectivas que redimensionam

a cena. Josette Féral afirma que, no teatro

performativo, o real desperta no espectador a

vontade de reagir de forma inteligente, e isso

se torna possível por um olhar duplo que vai

do real à ficção ou do espaço cotidiano ao da

cena. Há, portanto, no espaço cênico, uma

divisão: o real material e o que é criado na cena.

No teatro contemporâneo, a desconstrução do

real torna os signos instáveis, faz com que o

espectador passe de uma representação à outra,

de um sentido ao outro, buscando articulação em

um espaço fragmentário e plural. A inserção de

imagens evoca também a duplicidade do tempo

– o tempo da cena e o da imagem. O tempo

da presença do ator e a imagem que traz em si

mesma a referência do tempo de sua captação.

Nesse sentido, o espectador é lançado em um

espaço-tempo híbrido, fruto do que vê e do que

é visto, uma vez que sua leitura depende desse

movimento duplo a que se refere Féral.

Encontramos as noções de desconstrução,

disseminação e deslocamento, de Derrida.

A escrita cênica não é aí mais hierárquica

e ordenada; ela é desconstruída e caótica,

ela introduz o evento, reconhece o risco.

Mais que o teatro dramático, e como a arte

da performance, é o processo, ainda mais

que produto, que o teatro performativo

coloca em cena.7

Phillippe Dubois define como “efeito cinema” a

presença cada vez mais intensa das imagens no

universo da arte contemporânea. Analisando a

questão do dispositivo e do espectador, aponta

para uma mudança na própria ideia de cinema

e de arte, uma vez que ambos se encontram

relativizados pelo terreno híbrido de suas

apreensões. Quando o cinema entra em um

museu, que imagem é vista? “O que sentimos

quando se troca a duração standart imposta pelo

desenrolar único e contínuo das imagens do filme

por modos de visão mais aleatórios e muitas vezes

fragmentados e repetitivos (em loop) de imagens

que estão sempre aí, podendo ser abandonadas

ou retomadas da maneira que se quer?”.8 É fato

que o “efeito cinema”, ao qual se refere Dubois,

não se restringe apenas à arte contemporânea,

mas inaugura espaços importantes de enunciação,

como o teatro contemporâneo, a dança, a

performance, a música.

Imagens autobiográficas: documentos

cênicos na dramaturgia contemporânea

Analisar a produção teatral contemporânea pelo

viés da autobiografia nos remete a uma rede

de tangenciamentos e reflexões oriunda das

experiências do sujeito diante da imersão em

novas formas de representação, atravessadas

pelo relato virtual ou pelo que nomeio aqui

“documento cênico”. Atualmente, assistimos

ao que Arfuch aponta como “exercícios de

ego-história”:9 autoficções, testemunhos on-

line ou o diário em blogs, filmes realizados a

partir e/ou com “personagens reais”, reality

paintings, reality shows e todo documento que

possa ser considerado um fragmento da vida

real são incorporados a processos artísticos. A

autobiografia, antes circunscrita aos cânones

literários e presente em importantes estudos de

Arendt, Lejeune, Ricoeur, entre outros, é hoje

exaustivamente investigada como fenômeno do

mundo globalizado, alicerçada pelas novas formas

midiáticas e pelos novos horizontes tecnológicos.

O efeito de real traduz-se no sujeito

contemporâneo pelo desejo de consumo de

imagens que possam conceder-lhe uma espécie

de garantia de sobrevivência. Seu relato, balizado

pela transmissão midiática, o faz imagem de

um Outro, enquanto o consumo de sua vida

e de sua imagem projetada realimenta as

expectativas de pertencimento a uma rede virtual

complexa. Desse modo, não ter acesso às novas

tecnologias de informação elimina a sensação

de pertencimento ao real a que nos referimos; o

real que se caracteriza não somente pela inscrição

do sujeito na vida cotidiana e nas relações que

ele estabelece, mas pela percepção de ser parte

de uma rede complexa de informações, da qual

só se enxerga parte, nunca o todo. O sentido

do global é percebido tão somente através do

local. Assim, as noções de público e privado

confundem-se posto que toda e qualquer pessoa

pode barganhar seu espaço no que chamo de

“rede”.10 O novo estatuto de visibilidade do

sujeito redimensiona o status de persona pública

versus homem comum, invertendo a proposição

dos espaços: o espaço da intimidade é partilhado

e objeto de interesse público, enquanto o que

antes por seu caráter impessoal (de preservação

do privado) tinha sua divulgação socialmente

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011122 123COLABORAÇÕES | GABRIELA LÍRIO GURGEL MONTEIRO

aceita perde continuamente interesse se não

estiver conectado a impressões, apontamentos,

detalhes que humanizam o biografado,

expondo suas fragilidades e idiossincrasias na

tentativa de provocar identificação com os

consumidores/espectadores.

“Se a morte preside na casa da autobiografia”,11 o

teatro, arte que mais se aproxima da morte, uma

vez que é apresentado ao vivo para o público,

quando se utiliza de material autobiográfico

duplica o efeito do real, esvaziando o sentido

da representação, e potencializando a presença

física do ator ao lidar com o material de sua vida

privada como dramaturgia cênica. Diante da

exposição, o espectador percebe o movimento

de desnudamento, o tom confessional, e passa a

se questionar sobre a veracidade dos fatos, sobre

o que é da ordem do real e o que é da ordem

do ficcional, como se fosse possível separá-los

na encenação. “O que poderia ser chamado

de crise da ficção ou estética da realidade

consistiria não no abandono da primeira em

detrimento da segunda, mas em um processo

(...) de hibridização”.12

A dramaturgia contemporânea baseada em

relatos autobiográficos promove assim a

identificação direta da plateia movida pela

curiosidade e pelo desejo de desvendar o

enigma da verdade da presença do ator, não

se interessando apenas pelo que é dito, ou pelo

modo como é dito, mas pelo desdobramento da

palavra-testemunho que deflagra a crise da imagem

do sujeito. “O que fazer com as ruínas”13 – questão

levantada por Nestor García Canclini – é o que

interessa a essa discussão porque inaugura uma linha

de fuga, um percurso possível para o “sujeito fora de

si”,14 focado na exterioridade e no autocentramento.

O uso de novos dispositivos de captação do real

através do depoimento/relato contribui para

aguçar a crise da imagem do sujeito, reverberando

suas fraturas ao evocar memórias suas e de outros

que compõem sua biografia. Ao utilizar imagens

projetadas, fotos, vídeos, slides, imagens de

computadores, trechos de filmes, reprodução

de espaços de intimidade, entrevistas, a vida

como produto da narração vê-se transformada

em espetáculo imagético, em “efeito cinema”.15

Um efeito presente não só nas artes cênicas, mas

nas artes de modo geral, e que no espaço do

teatro, foco da discussão, modifica a percepção

do espectador, ampliando as possibilidades de

interação à obra apresentada. O espetáculo

mediatizado/atravessado pelas imagens passa

a apresentar dois espaços complementares e

dialógicos: o espaço do ator e sua interação

direta com o público e o espaço da imagem,

aberto a deslocamentos, porque introduz por si

só outros espaços, em uma lógica de acumulação

e, em alguns casos, de excesso. Palavra e imagem

conjugam-se em uma sintaxe confluente no corpo

do ator, ora mediatizado por novos dispositivos,

ora agente da ação.

Otro, do grupo Coletivo Improviso, dirigido por

Enrique Diaz e Cristina Moura, é, segundo Diaz,

uma investigação sobre alteridade, em que o Outro

aparece como objeto e, especialmente, como

relação”.16 O olhar transforma-se em “material do

espetáculo, assim como a suposta objetividade da

imagem do outro”.17 Nesse sentido, o relato e a

entrevista foram ferramentas para a construção

dramatúrgica no desejo não de buscar a verdade

dos fatos e das sensações vividas, mas de partilhar

e conhecer fragmentos da história de vida dos

outros. Partindo da ideia do documentário,

ampliando a percepção dos espaços, o espaço

da cidade/o espaço do corpo, Diaz buscou o

documentarista Felipe Ribeiro para juntos criarem

imagens na tentativa de ampliar a percepção

visual do espectador para a proposta. “O que I - Box, 1962. (foto) Dorothy Zeidman

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011124 125COLABORAÇÕES | GABRIELA LÍRIO GURGEL MONTEIRO

acontece é uma espécie de poetização da imagem

dentro do espetáculo, que é um processamento

do que foi visto/vivido para a formatação final, a

dramaturgia das imagens…”.18

Parte do processo de criação do espetáculo deve-se ao uso de dispositivos de interação e de convivência. Os dispositivos são enquadramentos e levam ao acaso. “O dispositivo nunca é garantia, ele só ajuda a estar aberto para o mundo”;19 ele deflagra trajetos. O material autobiográfico surge desses trajetos dos atores pela cidade. No bairro da Taquara, no Rio de Janeiro, o grupo encontra um personagem cuja história desperta piedade: havia sido abandonado pela namorada, estava triste. Ao conhecê-lo melhor, a impressão se modifica: tratava-se de “um baita colonialista, queria falar inglês, superdestacado do lugar onde mora”.20 O dispositivo leva a uma composição complexa e ao aprofundamento dos personagens não apenas por possibilitar encontros reais, no sentido de que as histórias presentes na encenação surgem do relato de um sujeito inserido em determinado contexto. O encontro se dá ao acaso, não precede alguma decisão ou característica determinante. A escolha deve-se, por exemplo, à coloração de uma camisa. Os atores saem de ônibus, descem no terceiro ponto e precisam interagir com alguém de camisa vermelha. Dessa forma, tais relatos foram sendo incorporados à dramaturgia e articulados às imagens documentais projetadas na cena. Imagens reveladoras do processo de criação e do próprio dispositivo, e que trazem uma impressão de realidade ao espectador, potencializando o material autobiográfico em sua relação híbrida com as ações provenientes da interação/jogo dos atores e público na cena.

Percebe-se, portanto, duplo estatuto da imagem:

por um lado, imagens provenientes de relatos

de outros sujeitos, encontrados na cidade e

que fizeram parte do processo de criação do

espetáculo; sujeitos revelados através do uso

do vídeo como documento da criação e como

documento da interação dos atores com a cidade;

por outro lado, imagens dos atores diante de

situações já vivenciadas e que são ficcionalizadas

nos espaços da cidade (barca Rio-Niterói). A

performatização de tais imagens constrói um

terreno híbrido para a vivência da cena: o ator

relata o que viveu, as imagens ora tornam

explícitos lugares e impressões, ora desconstroem

o imaginário do relato do ator ao se fixar em

detalhes ou trazer elementos que buscam ativar

um estado de contemplação do espectador.

O espaço teatral despojado de objetos cênicos,

apenas algumas cadeiras e mesas, é transformado

ora por imagens realistas, da barca Rio-Niterói ou

do restaurante árabe do Largo do Machado, ora

por imagens poéticas, como as imagens do céu,

das nuvens, de um pássaro que passa; imagens que

buscavam, segundo Felipe Ribeiro, aproximação

com o espectador através da contemplação.

Coloco a imagem do céu, nuvem, deixo

a imagem em movimento, é a nuvem se

movendo levemente, é um pássaro que

passa… ficava meio tonto, se eu focasse

o olhar na nuvem, me dava uma certa

tonteira, a nuvem parece que não está se

movendo e está. Estava interessado em

brincar com essa sutileza. A contemplação

faz ir para outro lugar, um trampolim para

criar outra coisa.21

Foram três processos de captação de imagens:

cenas da pesquisa refilmadas; imagens originais

assimiladas ao trabalho e, por último, imagens

produzidas pelo documentarista a partir da

observação do material de ensaio. O jogo entre

real e ficção/memória e invenção percorre todo

o processo de criação do Otro. Há imagens de

I - Box, 1962. (foto) Dorothy Zeidman

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011126 127COLABORAÇÕES | GABRIELA LÍRIO GURGEL MONTEIRO

cenas da cidade, originárias da pesquisa, que Diaz

sugeriu a Ribeiro incorporar às demais existentes

pela percepção de que o espectador se desligava

da narrativa, da história contada, fixando-se na

experiência trazida pelas imagens.

Festa de separação, espetáculo dirigido por Luiz

Fernando Marques e criado e encenado por

Janaína Leite e Felipe Teixeira Pinto, o Fepa –

ela atriz, ele músico –, é classificado pela dupla

como “documentário cênico” da experiência

de separação dos atores. Em determinado

momento, após uma viagem que não ocorreu

(o casal terminou o relacionamento via skype,

Janaína estava em turnê na Inglaterra, e Fepa iria

ao seu encontro), e ambos decidiram transformar

a separação em processo de criação, “em um

espetáculo”.22 Na impossibilidade de lidar com

a perda da relação e do outro, inicialmente

promoveram festas para a família e para os amigos

para, além de anunciar a separação, elaborar o

luto. As festas foram filmadas, assim como os

depoimentos de pessoas que conviviam com o

casal e serviram de material para o espetáculo

que pretendeu ser uma reflexão sobre o amor

na contemporaneidade, ultrapassando apenas a

exposição/discussão de sua história.

Assisti a Festa de separação, no Teatro Sesc-

Copacabana, quando esteve em cartaz no Rio

de Janeiro. O espaço, dividido em dois, o dela

e o dele, apresentava como pano de fundo um

telão. Objetos familiares criavam identidade,

referenciais pertinentes ao universo individual

de cada um, revelavam a história pregressa do

casal: livros, cds, caixas, garrafas, cadernos,

dicionário, instrumentos musicais, câmera, bichos

de pelúcia. A ideia foi transferir para o palco os

vestígios do que restou para cada um da relação,

reconfigurando um espaço-casa ambíguo porque

visivelmente transitório, um espaço fronteiriço

porque suspenso, não reconstruído, em ruínas,

híbrido por se configurar como espaço do

presente, mas náufrago de um passado em

elaboração, espaço que não é senão o lugar do

luto proveniente da ruptura.

Ao escolher um lugar na plateia, o espectador percebe que tal escolha interferirá na recepção do espetáculo, porque ele assiste a dois discursos em forma de depoimento, ocorrendo simultaneamente, salvo em alguns momentos em que um silencia para dar voz ao outro e quando se está diante de material audiovisual e iconográfico projetado no telão. Na impossibilidade de ouvir dois discursos ao mesmo tempo, o espectador percebe que se encontra em situação monológica, ainda que dupla, interativa. Na perda da palavra do outro, tem-se a dimensão de que se opera um corte não apenas espacial, mas transversal, um corte na narrativa, reflexo da divisão que se estabeleceu na vida do casal. As imagens projetadas – “efeito cinema” – têm como

objetivo reconstruir a vivência do passado, incluindo

o momento em que o casal decide transformar a

separação em obra artística. Assistir no telão às

imagens de intimidade, de um tempo passado e

feliz, aos depoimentos emocionados dos familiares

e amigos nas festas de separação, promovidas e

documentadas pelo casal, reitera o lugar da falta/

da dor. A imagem é documento do que a palavra-

testemunho não consegue representar; a imagem

é dialógica, une os discursos e o espaço cindido

da representação. Em determinado momento o

espectador é convidado a dar seu depoimento

contando uma história pessoal que também é

filmada, evidenciando-se23 que pode ser projetada

em outra apresentação. Na possibilidade de vir-a-

ser imagem, o espectador inaugura ele mesmo um

luto de outra natureza: a morte de sua “presença”

é enigma da representação porque se transforma

em registro que pode ou não ser utilizado.

NOTAS

1 Lehmann, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São

Paulo: Cosac Naify, 2007:368.

2 Picon-Vallin, Béatrice. Deux arts en un? Le film du

théâtre. Arts du spectacle. Coleção organizada por

Élie Konigson. Paris: CNRS Éditions, 2001:17.

3 Da Costa, José. Teatro contemporâneo no Brasil.

Rio de Janeiro: 7Letras/Faperj, 2009:29.

4 Féral, Josette. Por uma poética da performatividade:

o teatro performativo. Sala Preta, revista do Programa

de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Eca/USP, São

Paulo, n. 8, 2008.

5 Da Costa, op. cit.:33.

6 Barthes, Roland. Essais critiques. Littérature et

signification. Paris: Point Seuil, 1981 (1963), p.258.

7 Féral, op. cit..

8 Dubois, Philippe. Um “efeito cinema” na arte

contemporânea. In Dispositivos de registro na arte

contemporânea. Rio de Janeiro: Contra Capa/Faperj,

2009:184.

9 Arfuch, Leonor. O espaço biográfico. Dilemas da

subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: Eduerj,

2010:60.

10 Refiro-me à rede pensando em duas conotações:

a rede de sentidos barthesiana e a rede tal como nos

referimos hoje quando nos dispomos a falar sobre

internet e seus agenciamentos.

11 Arfuch, op. cit.:67.

12 Cardoso, Bruno de Vasconcelos. Voyeurismo

digital: representação e (re)produção imagética

do outro no ciberespaço. In Devires imagéticos. A

etnografia, o outro e suas imagens. Rio de Janeiro:

7Letras, 2009:154.

13 Canclini, Nestor García. Diferentes, desiguais e

desconectados. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2009:192.

14 Birman, Joel. Mal-estar na atualidade. A

psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2005:171.

15 Dubois, op. cit.:179.

16 Entrevista, por e-mail, à autora em 8.10.2010.

17 Idem.

18 Idem.

19 Entrevista à autora e à bolsista Pibic-UFRJ Isadora

Malta Rezende, na Escola de Comunicação da UFRJ,

em junho de 2011.

20 Idem.

21 Idem.

22 Palestra de Janaína Leite e Fepa no Fórum de

Ciência e Cultura em junho de 2010.

23 Isso não é dito, mas compreendido por

associação, uma vez que depoimentos de

espectadores são exibidos.

Gabriela Lírio Gurgel Monteiro é professora

adjunta de direção teatral na Escola de

Comunicação da UFRJ. Possui graduação em

comunicação social (jornalismo), mestrado

em letras, doutorado em letras pela Pontifícia

Universidade Católica do Rio de Janeiro (Teatro

e cinema na obra de Peter Brook, co-orientada

por Georges Banu, no prelo) e doutorado

sanduíche na Université Paris III Sorbonne-

Nouvelle. Publicações: A procura da palavra no

escuro (7Letras, 2001) e Interseções: Cinema e

Literatura (7Letras, 2010). Pesquisadora do CNPq,

desenvolve atualmente a pesquisa A teatralidade

cinematográfica e o uso de novos dispositivos na

produção de imagens (bolsas Pibic/Piabic/Faperj).

Acaba de iniciar nova pesquisa: Autobiografia na

cena contemporânea: entre a ficção e a realidade.

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011128 129COLABORAÇÕES | LETICIA SQUEFF

Uma história das Exposições Gerais − Egbas já foi traçada, em suas linhas gerais, por alguns autores. Apesar disso, pode-se afirmar que se conhece pouco a respeito desses eventos, o que chama atenção, tendo em vista, em primeiro lugar, sua longevidade. Entre 1840 e 1884 a Academia Imperial de Belas Artes − Aiba promoveu 26 Exposições Gerais, apresentando 3.315 obras de 516 artistas,1 em média, portanto, mais de uma exposição por ano. Talvez se possa aventar que aconteceu aqui o que se passou na historiografia europeia: durante muito tempo os Salões e exposições organizadas no âmbito acadêmico foram desprezados pelos pesquisadores, mais interessados em reconstituir a trajetória dos refusés e dos que construíram as bases para o surgimento das vanguardas.2 Também no Brasil a arte oitocentista foi durante longo tempo pouco estudada, e as Egbas foram objeto de algumas enumerações e crônicas, mas raramente atraíram análises mais profundas.3

Vale lembrar que o interesse pelas exposições ganha sentido quando iluminado por perspectiva historiográfica que ultrapassa o objetivo de discutir apenas o “conteúdo” das obras. Alguns historiadores vêm mostrando como os critérios artísticos, bem como o maior ou menor valor atribuído a um ou outro

artista, são afetados por contextos mais amplos: o mercado, o museu, padrões de gosto que funcionam

AS EXPOSIçõES GERAIS DA ACADEMIA DE BELAS ARTES: teatro de corte e formação de um mercado de artes no Rio de Janeiro

Leticia Squeff

Exposições Gerais da Academia de Belas Artes ColecionismoMercado de artes no Rio de Janeiro do século 19

A intenção deste artigo é discutir o lugar das Exposições Gerais da Academia de Belas

Artes na vida cultural do II Reinado. Trata-se de mostrar como se articulavam essas

exposições ao teatro de corte de dom Pedro II e, por outro lado, de destacar seu papel

no incipiente mercado de artes do Rio de Janeiro.

As exposições gerais da academia de belas artes: Teatro de corte e formação de um mercado de artes no Rio de janeiro| The aim of this article is to discuss the place of the General Exhibitions of the Academy of Fine Arts in the cultural life of 19th century Rio de Janeiro. I intend to show their relationship with the “teatro de corte” around d. Pedro II and also to point the role of these Exhibitions in the incipient art market of Rio de Janeiro. | Exposições gerais da academia de belas artes colecionismo mercado das artes no rio de janeiro do sec XIX

Ilustração para Salão caricatural de 1884Fonte: Revista Ilustrada, 1884, ano 9, n. 396. Arquivo Edgard Leuenroth – IFCH/ Unicamp.

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011130 131COLABORAÇÕES | LETICIA SQUEFF

muitas vezes de maneira independente daqueles que

regem a apreciação das artes visuais. Desse ponto

de vista, interessa entender também a trajetória

das obras, o contexto em que foram expostas, suas

relações com imagens e modos de ver próprios a

determinada época, entre outros aspectos.4

Meu objetivo é apontar como as Egbas

articulavam-se ao que já foi chamado por mais

de um pesquisador de “teatro de corte” de dom

Pedro II,5 bem como a importância desse evento

para o surgimento de um incipiente mercado de

artes no Rio de Janeiro.

As exposições e o teatro de corte

Praticamente desde sua fundação a Academia

promovia exposições − indício de que havia

interesse, já por parte dos mestres franceses,

em fazer da instituição criada no Rio de Janeiro

mais do que simples escola de artes. Já em

1829, apenas três anos após a inauguração

da Academia Imperial de Belas Artes, Debret

promoveu sua primeira exposição de alunos. Em

1840 o diretor Felix-Émile Taunay conseguiria

emplacar uma ideia sobre a qual vinha falando em

discursos e artigos de jornal: ampliar a exposição

da Academia, tornando-a acessível a todos os

interessados. As Exposições Gerais de Belas Artes

teriam, a partir de então, papel fundamental

tanto no funcionamento da Academia quanto na

vida cultural do Império. Algumas das principais

obras de arte do período monárquico foram

apresentadas, justamente, durante essas mostras.6

A primeira, em 1840, contava com dez expositores,

sendo seis professores da Academia. A exposição

de 1843 já incluía 28 participantes. O número de

pessoas que expunham obras, entre artistas locais

e estrangeiros, cresce de modo impressionante a

partir de então. Em 1849, na décima edição do

evento, seriam 23 expositores. Dez anos depois,

94, sendo três mulheres e 68 estrangeiros. Outra

prova do sucesso da iniciativa é que na década

de 1860 começam a ser publicados os catálogos

independentes de cada Exposição Geral.7 Não

por acaso, em 1868 o secretário João Maximiano

Mafra escrevia ao diretor Tomás Gomes dos Santos

que era preciso exigir a apresentação dos convites

na abertura da exposição, para evitar a entrada de

penetras.8 De tal forma esses eventos entraram no

calendário da corte, que já em 1839 um cronista

observava: “A visita à Academia das Belas Artes

entrou este ano a ser da moda.”9

As Exposições Gerais entraram rapidamente

no calendário de eventos dos mais influentes

personagens da corte de dom Pedro II:

políticos, funcionários, ricos comerciantes

e visitantes estrangeiros: “Presentemente a

corte e a cidade afluem com ativa curiosidade

às salas do palácio das artes, e o belo sexo

afronta os raios de um sol perpendicular em

romaria ao templo do gosto.”10

No dia 10 de dezembro de 1843, às 10 horas da

manhã, o casal imperial foi recebido na Academia

pelo ministro do Império, o diretor da instituição

e a congregação de professores. “Estavam já

reunidos vários convidados da corte e corpo

diplomático.” O cronista descreve a visita dos

monarcas e faz questão de mencionar diante de

quais obras o imperador ficou mais tempo. O final

do pequeno texto dá uma ideia da importância

que as exposições estavam ganhando: os

monarcas se demoraram por duas horas na

Academia. Antes de ir, dom Pedro teria garantido

ao diretor o quanto estava “(...) satisfeito com a

exposição deste ano.”11 As visitas do imperador à

Academia acabariam tornando-se um hábito.

A ideia de que visitar as Exposições Gerais era

passatempo de um grupo seleto e refinado de

pessoas se manteria nas décadas seguintes:

“Visitamos a academia das Belas Artes, que abriu

ontem as portas à turba dos amadores, que

esperavam ansiosos por esta época do ano, em

que podem ir maravilhar-se das criações do gênio

dos apóstolos da arte divina.”12

Na edição de 1859, o diretor expediu ofício

solicitando que a Guarda de Honra, vestida

em grande gala, estivesse presente no dia da

inauguração. Também requisitou da polícia do

Rio de Janeiro guardas para cuidar das salas e

evitar “danos às obras”. Finalmente, expediu

solicitação para “mandar pelo Jardim Botânico

de Lagoa Rodrigo de Freitas [riscado] fornecer

flores e folhas de canela e mangueira para ornar o

edifício desta Academia no dia 15 de março, em

que S.M. o Imperador se digne honrar a abertura

da Exposição Geral.”13

No romance Mocidade morta (1899), escrito pelo

crítico Gozaga Duque, já caracterizado como

roman à clef por mais de um pesquisador, o

sistema composto por artistas, público e críticos

que viviam ao redor da Academia em finais do

século 19 seria descrito com grande minúcia.14

É esse texto poético que fornece uma pista de

como eram utilizadas essas folhas de mangueira

e canela:

Um cheiro acre de folhagem esparzida,

desgalhada de fresco, infiltrava-se no ar,

saturando-o, como se boiasse em torno do

bojo, suspenso na claridade, turibulando

à sua grandeza os aromas capitosos

dos antigos festivais de triunfo, cheios

de pandorga épica de campânulas e

trombetas ao escaldar hosânico das

recepções aos bravos, sob a agitação

farfalhenta de palmas e florear de tirsos

(...)15

Com notável argúcia, o romancista detecta os

efeitos simbólicos da decoração sobre os visitantes

da Academia. Folhas, palmas e tirsos não apenas

perfumavam e decoravam os ambientes, como

também evocavam as festas da Antiguidade. A

referência ao universo clássico aliava-se à pompa que

cercava o imperador, dotando de ‘tradição’ instituição,

monarca e nação, que eram ainda bastantes novos se

comparados aos do contexto europeu.

Ao sediar as exposições, a Academia tornava-se

local de encenação de ritual em que se afirmavam

os valores monárquicos. Dom Pedro era recebido

com pompa, o que atraía também as principais

figuras da corte carioca. A esse ‘teatro de corte’

Ilustração para Salão caricatural de 1884Fonte: Revista Ilustrada, 1884, ano 9, n. 396. Arquivo Edgard Leuenroth – IFCH/ Unicamp.

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011132 133COLABORAÇÕES | LETICIA SQUEFF

responsável pela “(...) colocação de todas as obras

expostas; trabalhos de armador, e aluguel das

respectivas fazendas”17

A rápida descrição dá ideia de como devia parecer-

se a Exposição Geral aos visitantes. A Academia

carioca seguia o exemplo dos Salões europeus de

decorar as paredes com fazendas e tecidos finos

e, sobre eles, pendurar o quadros. Nesse aspecto,

os douradores eram mais do que necessários, pois

cabia-lhes preparar as molduras dos quadros.

Em contraste com os tecidos de cores fortes, o

dourado das molduras sobressaía, delimitando os

espaços entre os quadros. A Revista Ilustrada traz

representação notável da aparência desses eventos.

Na imagem de Ângelo Agostini, veem-se embaixo

os quadros menores – aparentemente, paisagens

– e, em cima, obras maiores, em meio às quais

é possível reconhecer telas de Pedro Américo,

como A Carioca, A Noite com os gênios do

estudo e do amor, Judite rende graças a Jeová

por ter conseguido livrar sua pátria dos furores

de Holofernes, entre outros. Os bancos no centro

da sala também evocam a estrutura dos Salões

franceses, cujos espaços para repouso serviam a

um tipo de fruição artística muito característico:

permitiam a contemplação lenta e meticulosa

das obras, a comparação entre os diversos

quadros expostos, bem como a troca de opiniões

entre os espectadores.

As obras eram dispostas bem próximas umas das

outras, muitas vezes cobrindo toda a extensão

da parede, do teto ao nível do olhar. Ocupando

todos os centímetros disponíveis, os quadros

ficavam quase colados uns aos outros, o que só

era possível porque cada obra era vista como

entidade independente, fechada em seu próprio

esquema perspético, isolada de sua vizinha pelas

pesadas molduras.18

Nos salões franceses, esse padrão expositivo

herdado dos antigos gabinetes de curiosidades

cedo começa a se revestir de hierarquias.19 Em

primeiro lugar, tratava-se de solucionar um

problema de espaço. Além disso, a organização

das obras obedecia àquela dos gêneros de pintura.

No alto, ficavam os quadros maiores, geralmente

as cenas bíblicas ou mitológicas, ou de grandes

feitos históricos. Esses quadros dificilmente

eram compreendidos, pois só uma parte do

público possuía cultura suficiente para entender

as refinadas alusões históricas e mitológicas

que continham, motivo pelo qual, aliado a suas

grandes dimensões, geralmente ocupavam a

região mais alta da parede. A seguir, vinham os

retratos e os quadros considerados “melhores”.

E por último, a pintura de gênero, a natureza-

morta, as paisagens.20 A imagem de Agostini

revela que a Academia carioca organizava sua

exposição segundo os princípios expográficos e os

valores artísticos dos salões franceses.

As exposições gerais e o surgimento de um

mercado de artes no Rio de Janeiro

Nem tudo na Academia carioca, porém, seguiu

o caminho trilhado pelo modelo francês. Na

verdade, uma análise comparativa indica que,

pelo menos no que se refere às exposições

gerais, a experiência acadêmica no Rio de Janeiro

teve desdobramentos peculiares. Para examinar

a questão, vale retomar a história dos Salões

franceses até finais do século 19.

A Academia francesa começou em 1699 a pro-

mover os chamados Salões, que passaram a

acontecer de forma sistemática a partir de 1737,

tendo papel fundamental na história da arte

europeia. Até então, o público só entrava em

contato com arte de alto padrão secundariamente, Ilustração para Salão caricatural de 1884Fonte: Revista Ilustrada, 1884, ano 9, n. 396. Arquivo Edgard Leuenroth – IFCH/ Unicamp

vinham associados, porém, valores próprios à

nação independente: o hino nacional sempre

abria o cerimonial. Finalmente, o evento era

reverberado pelos jornais da corte, criando o que

Benedict Anderson já chamou de “comunidade

imaginada” que, nesse caso, associava as artes

à vida cortesã e essas às práticas próprias a uma

“nação” independente.16

Organização dos quadros e formas de

apreciação

A inauguração de uma Exposição Geral era objeto

de longos preparativos e muitos gastos. Para

organizar a de 1879 foram chamados pintores,

douradores, carpinteiros, ferreiros, lustradores,

servidores que cuidassem da lavagem da casa e

da arrumação de ferragens e esculturas. A relação

menciona Luiz de Castro Teixeira, que teria ficado

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011134 135COLABORAÇÕES | LETICIA SQUEFF

em festas religiosas ou cívicas, quando aristocratas

e burgueses abastados expunham suas posses

em pátios de igrejas e praças públicas.21 Com

o advento do Salão, o homem comum podia

ter acesso aos quadros, experimentando prazer

antes reservado apenas a uma exclusiva elite de

mecenas e seus amigos íntimos. O Salão é, assim,

a primeira experiência de arte totalmente pública

da Europa.22

Tradicionalmente a pintura histórica era gênero de

grande prestígio, mas, assim como a estatuária,

dependia das encomendas estatais para ser

realizada. Os custos envolvidos na preparação

e realização de grandes telas, assim como dos

monumentos, eram elevados. O objetivo inicial

dos Salões era, por isso, mostrar ao público as

grandes obras de história comissionadas pelo

Estado aos membros da Academia.

O destino e os objetivos do Salão mudam para

sempre com a Revolução Francesa. Em 1791, a

Commune des Arts propõe que o Salão passe a ser

aberto, expondo não apenas as obras dos membros

da Academia, mas de todos os artistas julgados

aptos para tal. Alguns anos mais tarde, Vivant

Denon convence Napoleão de que era mais rentável

para o Estado comprar quadros que já estavam em

exibição.23 Como resultado, por volta de 1870 o

dinheiro oferecido pelo governo para quadros de

história tornara-se tão pouco, que só os iniciantes

se dedicavam aos assuntos históricos. A maioria,

incluindo artistas acadêmicos, sobrevivia da venda

de quadros menores para colecionadores privados.

Lentamente o mercado de artes passa a funcionar

fora do Salão. E pinturas de paisagem e retratos –

mais acessíveis ao grande público, nem sempre culto

ou abastado o suficiente para consumir a pintura de

história – passam a ocupar cada vez mais espaço nas

paredes do Salão. E a Academia, que antigamente

detinha o monopólio não apenas sobre a formação

artística, através da École, mas também sobre o que

deveria e podia ser mostrado, através dos Salões,

começa a perder importância.

Todo o processo gerou diversos movimentos de

revolta não apenas entre artistas que rompiam, em

alguma medida, com os valores tradicionais, mas

também entre os acadêmicos, descontentes com

a perda de privilégios e clientes – consequência da

ampliação do número de artistas e de gêneros de

pintura. Tornando-se pouco atrativos tanto para

os que desde meados do século, com Courbet,

começam a procurar espaços alternativos para

expor suas obras quanto para os demais artistas,

os Salões acabaram suprimidos no final do século.

Pode-se dizer, assim, que o desenvolvimento e

ampliação desses espaços resultaram, na França, no

enfraquecimento da Academia e seus dispositivos.

Já no caso do Rio de Janeiro a história reveste-

se paulatinamente de contornos próprios. Como

sede da corte e principal porto do Império, a cidade

concentraria crescente comércio de luxo. Quadros

e livros misturavam-se a objetos de decoração e

móveis em leilões e lojas.24 Sabe-se de alguns lei-

lões promovidos por comerciantes, geralmente

estrangeiros, que incluíam a venda de obras de

arte, caso do que foi realizado, em 1840, por Luiz

A. Boulanger, incluindo a venda de “Riquíssima

coleção de painéis a óleo, pertencentes às

escolas italianas, flamenga, alemã e francesa”.

O leiloeiro acrescentava que os amantes das

belas pinturas encontrariam diferentes “gêneros

reunidos: paisagens, combates, tableaux de genre

et mythologiques, retratos, panoramas, muitos

quadros da história sagrada, o nascimento de

Nosso Senhor Jesus Cristo, descida da cruz (...)”,

além de aquarelas, objetos e vestimentas de

luxo.25 Na década de 1850, o comércio de luxo

receberia impulso ainda maior graças à liberação

de capitais antes comprometidos com o tráfico de

escravos. A cidade foi invadida por novos hábitos

de consumo: cavalos árabes, jóias, relógios,

‘roupas feitas’, produtos manufaturados com as

mais diferentes funções foram introduzidos no

dia a dia da ‘boa sociedade’.26 Nesse contexto,

também objetos de arte passam a ser cada vez

mais comercializados.

Araújo Porto-Alegre faz referência a pelo menos

dois colecionadores ativos no período: “Na galeria

de quadros do Sr. Manoel José Pereira Maia, um

dos homens mais curiosos e que tem maiores

preciosidades em todo o gênero de Belas Artes,

existe um painel de Manoel Dias representando a

caridade romana.”27

Menciona também José de Oliveira Barbosa, que

teria, em sua coleção, alguns camafeus feitos por

Mestre Valentim.28 O representante do Brasil na

Rússia, José Ribeiro da Silva, ofereceu à Academia

quatro quadros de Jean-Baptiste Debret.29 Em

1877 Henrique Diniz da Silva Faria vendeu dois

retratos a óleo feitos por Henrique José da Silva

para a Academia.30 Outras referências encontradas

no Museu dom João VI indicam que a prática de

colecionar ou, pelo menos, de comprar obras

de arte não era tão incomum no Rio de Janeiro

oitocentista como em geral se pensa.

Em diversas exposições gerais não apenas dom

Pedro II, mas também colecionadores particulares

aproveitavam para apresentar obras de suas

coleções.31 A de 1859 exibia obras de nada

menos do que seis colecionadores privados,

além do imperador. A Noticia do Palacio da

Academia daquele ano traz, a respeito disso,

algumas informações interessantes. Havia três

homens como o título de comendador entre os

colecionadores, e pelo menos um estrangeiro.32

O catálogo também é significativo do lugar

que esses homens ocupavam no âmbito da

exposição geral: “N.B.: as descrições dos quadros

e a designação de seus autores e escolas foram

ministradas pelos seus possuidores, e exaradas no

catálogo sem alteração; excetuam-se os quadros

de S. Majestade o Imperador.”33

O texto sugere que já circulavam em determinados

meios diversos termos e conceitos próprios

à atribuição de valor na tradição da história

e da apreciação artística. Os apreciadores

e proprietários de obras de arte da corte já

possuíam, em alguma medida, noções próprias

ao mercado de arte no Ocidente, tais como

autoria, título, escola, entre outros. Esses valores

eram informações importantes, pois situavam o

lugar das obras na história da arte, destacando

os artistas considerados “mestres” dos simples

membros de uma ou outra “escola artística”.

Além disso, como o autor do catálogo faz questão

de enfatizar, eram os próprios colecionadores que

informavam a Academia a respeito da atribuição

de suas obras. Afinal, o nome do artista, a

“escola” à qual se filiava, o nome da obra, eram

fundamentais para lhe atribuir valor. Desse

modo, os catálogos de exposições das Egbas

informam sobre a existência não propriamente

de um mercado de artes, mas de um ambiente

em que obras de arte eram encomendadas e/

ou compradas.

As Exposições Gerais funcionaram não apenas

para os artistas da Academia. Nem simplesmente

eram momento em que se desenrolava mais uma

cena do teatro de corte, tão importante para a

manutenção da monarquia em terras tropicais.

Funcionavam também a serviço de particulares

que as usavam para negociar: expor e, quem

sabe, vender, trocar, ou comprar obras de outros

colecionadores. Desse ponto de vista, a experiência

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011136 137COLABORAÇÕES | LETICIA SQUEFF

carioca transcorreu em sentido radicalmente

oposto ao que ocorreria nos Salões franceses. As

Exposições Gerais foram importante instrumento

para o funcionamento da corte e também para a

estruturação de um incipiente mercado de artes

no Rio de Janeiro do Império.

NOTAS

1 Levy, Carlos Roberto Maciel. Exposições Gerais da

Academia de Belas Artes. Catálogo de artistas e obras

entre 1840 e 1884. Rio de Janeiro: Pinakotheke,

1990:13.

2 Para uma discussão dessa questão no contexto

francês, ver Mainardi, Patricia. The end of the

Salon: art and the State in the early Third Republic.

Cambridge: Cambridge University Press, 1994.

3 Dos autores que reconstituíram as Exposições

Gerais podem-se citar Rios Filho, O ensino artístico:

subsídios para sua história. In: Anais do Terceiro

Congresso de História Nacional, IHGB, 1938. Rio de

Janeiro, Imprensa Nacional, 1942. Mello Jr, Donato.

As Exposições Gerais na Academia Imperial das Belas

Artes no Segundo Reinado, Revista do Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro/Anais do Congresso

de História do Segundo Reinado (Comissão de

História Artística), v.1, Brasília/Rio de Janeiro: IHGB.,

1984:204-352; e Levy, op. cit.

4 Dos que trataram desses ou de assuntos correlatos,

podem-se mencionar Haskell, Francis (La norme et le

caprice. Paris: Flammarion, 1986; Mecenas e pintores

na Itália Barroca. Arte e sociedade na Itália Barroca. São

Paulo: Edusp, 1997; Passado y presente en el arte y en

el gusto. Madrid: Alianza Editorial, 1989); Gaethgens,

Thomas W. Versailles – de la résidence royale au musée

historique. Antwerpen: Mercatorfonds, 1984; Crow,

Thomas. Painters and public life in Eighteenth-century

Paris. Yale: Yale University Press, 1991; Mainardi, op.

cit., entre outros.

5 O termo é utilizado por pesquisadores como

Carvalho, J. M. de. A construção da ordem; teatro de

sombras. 3. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

2003; e Schwarcz, L.M. As barbas do imperador: dom

Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia

das Letras, 1998, entre outros, para descrever as festas,

cerimônias e rituais do governo imperial.

6 Os artistas costumavam preparar obras

especialmente para apresentar nas exposições

coletivas, fossem promovidas pela Academia ou,

mais tarde, na República, pela Escola Nacional de

Belas Artes. Ver Cavalcanti, Ana Maria Tavares. A

relação entre o público e a arte nas Exposições

Gerais da Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro

na segunda metade do século X. Anais do XXII

Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte.

Rio de Janeiro: Comitê Brasileiro de História da Arte,

2004:49-58.

7 Fato também observado por Fernandes, Cybele

Vidal Neto. Os caminhos da arte. O ensino artístico

na Academia Imperial das Belas Artes. 1850-1890,

tese de doutorado, UFRJ, 2001.

8 “Cartas de João Maximiano Mafra a Tomás Gomes

dos Santos, sugerindo medidas a serem tomadas

na solenidade e premiação de artistas. Acompanha

carta aprovando as sugestões.” 1868, Arquivo do

Museu D. João VI:1275.

9 Correio das Modas, 1839, apud Marques dos

Santos, Francisco. “Subsídios para a história das

belas artes no Segundo Reinado – as belas artes na

Regência”, Estudos Brasileiros, v. 9, ano V, Rio de

Janeiro, 1942:16-149 (101).

10 “Comunicado. Academia das Belas Artes,

exposição pública de 1842”, Jornal do Commercio,

18 de dezembro de 1842.

11 “Visita de SS.MM. Imperiais à Exposição Geral da

Academia das Belas Artes”, Jornal do Commercio, 10

de dezembro de 1845.

12 M. A. “Academia das Belas artes”, Jornal do

Commercio, 18 de dezembro de 1852.

13 “Minutas de ofícios da AIBA, solicitando

designação de uma guarda de honra em virtude da

presença do imperador na abertura da Exposição

Geral, como também flores e folhas de canela e

mangueira do Jardim Botânico, que era Lagoa

Rodrigo de Freitas, para ornar, e uma guarda

de 12 homens do corpo policial da corte para

vigilÂncia da exposição” (11.3.1859) Arquivo do

Museu D. João VI:1575.

14 Eulálio, Alexandre. Sobre Mocidade Morta. In

Sobre o pré-modernismo. Rio de Janeiro: Fundação

Casa de Rui Barbosa, 1988:183-89.

15 Gonzaga Duque, A arte brasileira, São Paulo/

Campinas, Mercado de Letras, 1995, p.:16.

16 Anderson, B. Comunidades imaginadas: relexiones

sobre el origen y la difusión del nacionalismo. México:

Fondo de Cultura Económica, 1993.

17 “Relações das contas das despesas efetuadas

com a Exposição Geral de Belas Artes, inaugurada

em 15.3.1879” Arquivo do Museu D. João VI: 3019.

18 “A pintura de cavalete é como uma janela portátil

que, colocada na parede, cria nela a profundidade

do espaço”, O´Doherty, Brian. No interior do cubo

branco: a ideologia do espaço da arte. Rio de Janeiro:

Martins Fontes, 2002:8.

19 Schaer, Roland. L´Invention des Musées. Paris:

Gallimard/Réunion des Musées Nationaux, 1993.

20 Crow, op. cit.

21 Há excelente descrição em Haskell, 1997, op. cit.

22 “But the Salon was the first regularly repeated,

open, and free display of contemporary art in Europe

to be offered in a completely secular setting and for

the purpose of encouraging a primarily aesthetic

response in large number of people”, Crow, op. cit:3.

23 “In this gesture, the Salon became a store,

and artists became free-market small producers”,

Mainardi, op. cit:14.

24 Sobre o assunto ver, por exemplo, Marques dos

Santos, op. cit.

25 Marques dos Santos, op. cit:119. Sobre o assunto

ver também Cavalcanti, op. cit.

26 Alencastro, L.F. Vida privada e ordem privada no

império. In Alencastro, L.F. (org.)., História da vida

privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia

das Letras, 1997.

27 Porto-Alegre. Manoel Dias, o Romano. Revista

do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1848,

suplemento.

28 Porto-Alegre. Iconografia brasileira. Revista do

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,1856:371.

29 Apud Levy, op.cit.:131.

30 “Minuta de ofício da AIBA ao ministro do Império

remetendo a conta da aquisição de dois retratos

a óleo de Henrique José da Silva e vendidos por

Joaquim Diniz da Silva”. Arquivo do Museu D. João VI:

1329.

31 Sobre o assunto ver Rios Filho, op. cit.

32 Noticia do palacio da Academia Imperial das

Bellas Artes do Rio De Janeiro e da exposicao de

1859. Rio de Janeiro, Typographia Imparcial J.M.N.

Garcia, 1859.

33 Idem, ibidem.

Leticia Squeff é professora de arte ocidental

do séculos 18 e 19 no Departamento de História

da Arte da Unifesp (Guarulhos, São Paulo). Vem

desenvolvendo pesquisas sobre arte no Brasil e na

América Latina nos séculos 18 e 19.

139REEDIÇÃO | THEON SPANUDIS

Theon Spanudis (Esmirna, Turquia, 1913 – São

Paulo, 1986) desempenhou funções bastante

definidas no ambiente cultural paulistano, desde

sua chegada em 1950.

Depois da independência da Turquia, sua família

retornou a Atenas, em 1922. Lá Theon Spanudis

cursou o ensino fundamental e entrou em

contato com o ambiente de cultura frequentado

por seus pais, que encaminharam sua atenção

para a literatura e as artes. Médico formado na

Universidade de Viena em 1940, especializou-se

em psicanálise no Instituto de Psicanálise de Viena.

Chegou a São Paulo em resposta ao convite da

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo,

ARTE DAS FORMAS E ARTE DAS FORMAçõES

Theon Spanudis

arte não figurativa crítica de arte neoconcretismo participação ativo-criativa

Martin KippenbergerCandidature à une rétrospective (Candidatura a uma retrospectiva), 1993Primeira versão, foto de grupo, Martin Kippenberger 40º aniversário - Litografia offset27 16/09 x 19 11/16 polegadas (70 cm x 50 cm)© Propriedade de Martin Kippenberger, Galerie Gisela Capitain, Colônia

“Arte das Formas e Arte das Formações” foi escrito por Theon Spanudis (1915-1986),

médico psicanalista, de origem grega, que se mudou para o Brasil em 1950. Era

também poeta e crítico de arte, e foi um dos primeiros a valorizar obras de artistas

como Volpi e Mira Schendel, formando uma importante coleção que foi doada ao

MAC-USP em 1979. Esse texto, trata-se de uma reflexão, e para o pesquisador um

documento de grande interesse por ser um testemunho de época assinado por alguém

com envolvimento pessoal nos acontecimentos em curso, com preferências estéticas

definidas e posicionamentos teóricos assumidos, porém disposto a transpor barreiras

e colocar em debate tendências artísticas.

| “Arte das Formas e Arte das Formações” foi escrito por Theon Spanudis (1915-1986), médico psicanalista, de origem grega, que mudou-se para o Brasil em 1950. Era também poeta e crítico de arte, e foi um dos primeiros a valorizar obras de artistas como Volpi e Mira Schendel, formando uma importante coleção que foi doada ao MAC-USP em 1979. Esse texto, trata-se de uma reflexão, e para o pesquisador um documento de grande interesse por ser um testemunho de época assinado por alguém com envolvimento pessoal nos acontecimentos em curso, com preferências estéticas definidas e posicionamentos teó arte não figurativa crítica de arte neoconcretismo participação ativo-criativa |

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011140 141REEDIÇÃO | THEON SPANUDIS

como analista didata. Logo se aproximou de

artistas e escritores, começou a colecionar obras

de arte, a reunir vasta biblioteca e a escrever seus

primeiros textos sobre arte. Até 1957 clinicou e

lecionou, sendo indiscutível sua contribuição para

o percurso da psicanálise no Brasil. A partir de

então fechou o consultório definitivamente, para

se dedicar ao que considerava sua verdadeira

vocação: a literatura e as artes.

O gosto por escrever, principalmente pela poesia

concreta, a partir do final dos anos 50, aproximou

Spanudis das ideias do suíço Eugen Gomriger, a

quem creditava os caminhos abertos em relação

ao uso mais limpo e econômico da palavra e ao

emprego do som mais próximo à música e da

imagem ao desenho, sem contudo excluir as

possibilidades sensíveis do radicalismo racionalista.

Abraçou conceitos da fenomenologia, relacionados

ao entendimento do tempo e das relações artista/

público/processo criativo, que o afastaram das

posições tomadas pelos artistas concretistas de

São Paulo e o aproximaram dos integrantes do

Grupo Frente, do Rio de Janeiro. O ano de 1959

foi marcado por aspectos significativos em seu

percurso: a assinatura do Manifesto Neoconcreto,

colaboração em eventos do grupo, participação

no Congresso Internacional Extraordinário de

Críticos de Arte da Aica (Brasília, São Paulo e Rio de

Janeiro) em que defendeu a ação dos artistas como

criadores e agentes incentivadores do público

como co-criadores, entendendo a experiência

estética como educação.

Poeta concreto, amante de estruturas, autor de

hinos, tradutor de autores gregos, Spanudis

era frequentador assíduo de ateliês, galerias e

exposições. Apreciava a convivência com artistas

e obras de arte, descrevia-se como colecionador

apaixonado, e em seus escritos transparecem o

gosto pelo papel do crítico introdutor do artista e

da arte a seu público. Deixou um grande número

de apresentações em catálogos de exposições e

artigos em periódicos. São textos sobre os grandes

temas da arte, sua história, os acontecimentos

do momento. Autodidata, detentor de vasto

conhecimento, Spanudis tinha visão bastante

particular das questões da arte, empregava

terminologia própria para a discussão de tópicos

que lhe eram caros e, se considerado diletante por

alguns, era bastante respeitado por outros.

Seu pensamento sobre arte está disperso. Suas

preferências em arte, de maneira mais eloquente

do que em palavras, estão manifestas nas 453 obras

de arte doadas ao Museu de Arte Contemporânea

da USP. Além dos muitos artigos publicados, seu

arquivo legado ao IEB-USP reúne quantidade

ainda maior de originais: alguns esboços para

futuros livros, outros artigos completos, algumas

ideias a desenvolver, conferências proferidas e

cursos já ministrados ou planejados.

“A arte das formas e a arte das formações”

é um desses originais, provavelmente de

princípios dos anos 60. Não há indicações de

suas intenções quanto a ter sido escrito para

publicação em catálogo de artista, em coleção

de ensaios, como esboço para um futuro livro,

como texto de palestra. Para o pesquisador

é documento de grande interesse por ser

testemunho de época assinado por alguém

com envolvimento pessoal nos acontecimentos

em curso, com preferências estéticas definidas

e posicionamentos teóricos assumidos, porém

disposto a transpor barreiras e colocar em

debate tendências artísticas, em muitos

momentos convertidas em arenas de combate.

Trata-se de reflexão de época, sobre duas das

muitas tendências de arte de seu tempo, que, no

primeiro parágrafo, apresenta como sendo então

foco de debate apaixonado.

Com habilidade, denomina as correntes analisadas

arte das formas e arte das formações. Por arte

das formas abrange as tendências que operam

“com ideias e elementos formais de antemão

controláveis, ou seja, ideias e formas matemáticas

e geométricas”. Por arte das formações, descreve

a intenção “de atingir na obra de arte a suposta

naturalidade do acaso, evitando sistematicamente

qualquer manifestação que demonstre controle

ou a vontade de um controle consciente” em sua

elaboração. Evidencia existirem diversos ramos de

uma e outra tendência, localizando nos extremos

os radicalismos dos debates.

Seu tom é conciliador, uma vez que se propõe a

verificar se as duas tendências seriam realmente

tão antagônicas como postulado por “seus

representantes e não menos pelos seus críticos

partidários”. Propunha-se a avaliar a existência

de “pontos de interferência, aproximação e

convergência” que não justificassem, “em última

análise, toda essa turbulência polêmica”.

É peculiaridade do texto o modo a que se refere

às duas tendências abordadas, discutindo

contribuições e associações, sem estabelecer

polaridades. Cumpre também observar sua análise

do embate de tais manifestações como fruto do

presente e, citando a alusão feita por Herbert Read,

das ideias de Wörriger, por considerar anacrônicas

quaisquer tentativas de interpretação do confronto.

Na verdade, Spanudis propõe reflexão bastante

pessoal sobre questões relacionadas à formação das

estruturas, suas superações e a participação de artistas

e público no processo de constituição das obras de

arte, ou seja, os caminhos do Neoconcretismo.

Maria Izabel Branco Ribeiro é doutora e mestre

em história da arte pela ECA-USP, tendo defendido

a tese Construtivismo fabulador: uma proposta

de análise da coleção Spanudis, e graduada em

educação artística pela FAAP-SP, onde leciona

história da arte; diretora do Museu de Arte

Brasileira – FAAP- SP; curadora de exposições de

arte e pesquisadora em história da arte.

Arte das formas e arte das formações

Theon Spanudis

Dentro das inúmeras manifestações da arte

contemporânea, duas são as tendências principais

que tomam posições de extremo antagonismo. Essas

demarcam as fronteiras entre as quais se desenrola

o panorama da arte contemporânea com as suas

múltiplas orientações, às vezes intermediárias entre as

duas correntes opostas. E em volta dessas tendências

de extrema oposição é que se desenvolve o debate da

crítica contemporânea. Frequentemente tão violento

e apaixonado como há anos atrás quando dos

debates em torno da arte figurativa e não figurativa.

O objetivo deste artigo é examinar de fato se essas

duas tendências são assim tão antagônicas como

apresentadas pelos seus representantes e não menos

pelos seus críticos partidários. Ou, ainda, se existem

pontos de interferência, aproximação e convergência

que não justificam, em última análise, toda essa

turbulência polêmica.

As duas correntes em exame, ora apresentadas, são

as seguintes:

1ª) aquela que parte de e opera com

ideias e elementos formais de antemão

controláveis, ou seja, ideias e formas

matemáticas e geométricas. Característica

desta tendência é o exercício do controle

consciente, ou a vontade de controlar

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011142 143REEDIÇÃO | THEON SPANUDIS

conscientemente a produção artística

excluindo ao máximo possível (ou ao

quanto for possível) o fator acaso.

2ª) aquela que tem como objetivo atingir

na obra de arte a suposta naturalidade

do acaso, evitando sistematicamente

qualquer manifestação que demonstre

controle ou a vontade de um controle

consciente na elaboração da obra. Neste

segundo caso, poderíamos dizer que todo

controle consciente (que naturalmente

existe e opera tanto quanto no caso da

primeira corrente) gasta-se durante a

preparação da obra para então atingir a

sua própria extinção. O objetivo ideal da

primeira corrente seria a autodeterminação

e a demonstração do poder da

vontade humana em autocontrolar-se e

autodeterminar-se; uma manifestação

ativa, diríamos. O objetivo ideal da

segunda corrente seria a demonstração do

oposto; de que o homem não difere dos

processos da natureza. Esses processos,

embora regidos por leis, sugerem em nós

a vontade própria e consciente que os cria

e controla. Ainda esta segunda corrente

proclamaria a passividade do homem

(como a suposta passividade da natureza)

como o seu ideal de naturalidade. São

duas atitudes psicológicas opostas –

e aqui gasta toda a sua atividade de

controle consciente para atingir a ilusão

do acaso, e, na primeira corrente (quando

de fato criativa), toda a elaboração

ativa e consciente da obra pressupõe

os estados passivos da inspiração. São

dois temperamentos diferentes, com

distribuições e acentuações nas escalas de

valores bem diferentes, se não opostas.

Assim, em vez de chamarmos arte concreta

ou neoconcreta, proporíamos chamá-las de

arte das formas; em vez de tachismo, arte

informal, action painting, etc., proporíamos

chamá-las de arte das formações. Mas

quando falamos de arte das formas, seria

bom frisar, temos em mente somente

aquele tipo de arte em que é feito uso dos

elementos formais geométricos vivenciando-

os apenas como elementos formais, e não

como símbolos. Pois é bem conhecido o

fato de que várias manifestações da arte

contemporânea utilizam-se das formas

geométricas principalmente pelas suas

possibilidades simbólicas.

Apesar de todas estas diferenças de objetivos e

também de temperamentos, achamos que ambas

essas correntes têm muita coisa em comum. Eis

porque propomos, em seguida, tentando um

primeiro levantamento, fixar os pontos de contato

entre elas.

Ao contrário do surrealismo que opera em geral

principalmente pela exploração de assuntos

literários e conteudísticos, ambas as correntes

em questão operam só e unicamente por meios

formais, excluindo toda e qualquer alusão ao

assunto. Elas trabalham com meios estritamente

formais, que são os seus únicos conteúdos Ambas

se restringem em fixar acontecimentos internos

na sua realização formal, evitando qualquer

exploração secundária de alusão conteudística

(imagens, signos, símbolos, etc.). Por assim dizer,

ambas são antiliterárias e antisentimentais e

tendem a uma objetivação formal que é, ao mesmo

tempo, sua única expressão, seu único conteúdo.

As alusões à visão do mundo exterior, do mundo

dos objetos, tornam-se inexistentes na obra,

dado o seu caráter de criação interna, da fixação

e realização objetiva de dados e acontecimentos

internos. Então, as semelhanças com a realidade

exterior são meramente ocasionais (isso, quando

as obras de ambas as correntes forem realmente

criativas), e de nenhum modo propositais.

Os pontos em comum acima enumerados já

poderiam claramente recomendar mais cautela aos

críticos nas suas aventuras polêmicas. Naturalmente,

cada crítico, como todo ser humano, deve ter

suas preferências temperamentais, mas em casos

extremos (de estrutura psicológica marcadamente

unilateral) podem elas transformar-se em graves

empecilhos aos seus possíveis leitores, a ponto

de impedir mesmo o vivenciar das produções de

corrente contrária à sua. Neste caso seria preferível o

crítico se limitar ao campo com o qual ele consegue

ter contato vivencial e evitar opiniões sobre outras

correntes alheias, nisso demonstrando, sempre e

somente, as suas próprias limitações. Acusar a arte

das formações de uma suposta facilidade na sua

produção é um típico exemplo de política partidária,

que carece de qualquer objetividade e conteúdo

crítico. Não resta dúvida que a mesma acusação

poderia ser levantada contra a arte das formas.

Assim, ao artista dessa corrente que fosse fraco,

imitador e não bastante criativo, qualquer livro, por

exemplo, de geometria plana forneceria “ideias”

para a fabricação em série de obras desse tipo.

Não menos paradoxais são também os

argumentos de defesa dos críticos de ambas

as correntes. Assim, por exemplo, favorecer

a arte das formas por motivos alheios à arte, –

digamos – por motivos político-sociais (a arte que

ponha em “ordem”, que cultive a “ordem”, que

consequentemente favoreça o “pôr em ordem”

dos males político-sociais). Tais pontos de vista

significam um abuso da arte para com outras

finalidades (uma exorbitância da arte dentro de

outros terrenos), criativa, como no caso das artes

politicamente dirigidas que são mais propaganda

ou “engenhos” de influenciar e manobrar a

opinião pública.

Não menos estranhos são os argumentos

interpretativos em favor da arte das formações.

Uns veem nela a continuação do expressionismo;

outros, manifestações e proclamações de

desespero existencial e atitudes suicidas, e assim

por diante, explorando várias vezes expressões

abstratas e, à maioria das vezes, gratuitas dos

próprios artistas.

Assim vemos que todas estas tentativas de

interpretação pecam pelo seu anacronismo.

São escritos de críticos fixados no antigo que se

projetam no novo. Nem a arte das formas nem

a das formações têm relação alguma tão estreita

com a arte do passado para permitir este tipo

de interpretações. Dado o caráter estritamente

pragmático de sua realização por meios formais,

apenas de dados e acontecimentos internos da

obra, excluem-se de antemão as interpretações

somente válidas para as formas antigas de arte.

No seu livro History of Modern Art, (I959),

Herbert Read utiliza-se das ideias de Worringer,

numa tentativa interpretativa, para caracterizar

a diferença das duas correntes em exame.

Expandindo a hipótese da angústia metafísica que

Worringer levantou para uma angústia existencial

generalizada, típica do homem contemporâneo,

Read acha que a arte das formas representa uma

tentativa de sublimação, e a arte das formações,

a aceitação crua e realística desta angústia

existencial, daí o caráter dramático dos seus

produtos. Read parece esquecer que as ideias de

Worringer não passam de mera hipótese útil, sem

dúvida para facilitar a aceitação, naquele tempo,

de uma arte não figurativa. Típico produto da

mentalidade ocidental que, enraizada nos ideais

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011144 145REEDIÇÃO | THEON SPANUDIS

naturalísticos de séculos de arte, precisava levantar

hipóteses psicológicas para explicar as possibilidades

de uma arte não-naturalística. Não resta dúvida

de que as hipóteses de Worringer não resistiriam,

hoje em dia, ao menor exame sério e objetivo. Pode

ser que Read se utilize dessas ideias com o mesmo

objetivo de Worringer: para facilitar a aceitação

da arte não-figurativa. Por outro lado, ele facilita

também toda essa avalanche. de interpretações à

base de psicologismos gratuitos e anacrônicos de

uma crítica que ora vê na arte das formas expressões

monumentais, ora vê na arte das formações dramas

de desintegração, suicídios e sabe-se lá o que mais.

Na verdade ambas as correntes, nos seus momentos

de boa criatividade, apresentam as características

da criatividade em geral: o vivo, com toda a

complexidade e dinâmica do mesmo.

Existem, entretanto, em ambos os campos

algumas demonstrações, ao nosso ver, possuidoras

de uma tal convergência, pelo menos nos seus

efeitos finais, que merecem uma atenção toda

especial. Temos em mente aquele ramo da arte

das formações que, desinteressado no resultado

formal final e numa exploração secundária do

mesmo (seja no sentido decorativo, simbólico,

literário, etc.), limita-se ao ato da formação,

apenas ganhando com isso aspectos dinâmicos de

uma ação perpétua (que tende a uma finalização

mas que nunca se finaliza).

Como exemplo típico desta tendência,

consideraríamos o japonês Shiryû Morita que,

embora vindo da tradição caligráfica, na maioria

dos seus trabalhos expostos na V Bienal de São

Paulo, não demonstrava mais o ideograma

como ponto de partida. Mas, mesmo que o

demonstrasse (como no caso de Nankoku Hidai),

não teria a menor importância, uma vez que o

ideograma não é mais vivido e preservado como

tal (ou seja: com toda a sua carga de significações)

mas apenas utilizado como mero ponto de partida

formal e, às vezes, até ocasional. O essencial neste

tipo de arte é o próprio ato formativo e o seu

tempo perpétuo, dado que a formação não chega

a um resultado formal final.

E algo semelhante parece-nos acontecer no

campo da arte das formas, a saber: aquele ramo

que, partindo do concretismo, superou a noção

racionalística de estrutura e que corresponderia

ao resultado formal último da arte das formações.

Trata-se da arte neoconcreta. O movimento

neoconcreto surgiu em fins de 1958, principalmente

pela iniciativa e insistência da artista Lygia Clark.

O movimento, em seu manifesto, tomou posição

somente contra o ramo racionalista da arte

concreta e a favor daquele ramo da arte concreta

que, embora não menos sistemático e controlável,

conseguiu produções com a expressividade

do vivo. Por isto o movimento incluiu também

artistas essencialmente concretos que sempre

alcançaram em sua obra a expressividade do vivo.

Naturalmente, essa tomada de posição somente

não justificaria chamar o movimento de neo-

concreto, uma vez que sempre existiu uma arte

concreta expressiva ao lado de uma arte concreta

inexpressiva, que se limitava em concretizar

realidades matemáticas, muitas vezes até de

origem externa à obra. Quando nas reuniões

neoconcretas, tínhamos em mente justamente

o “novo” que esses artistas trouxeram na sua

obra (por exemplo: a superação da racionalística

de estrutura em arte) e esperávamos que, mais

cedo ou mais tarde, esse “novo” fosse se definir

teoricamente, mesmo para justificar o nome de

“neo”. Infelizmente isso não se deu.

Em todas as obras plásticas e literárias

neoconcretas encontramos, como denominador

comum, a superação da noção de estrutura

(como racionalisticamente definida) e, com isso,

Luiz SacilottoSem título,1956 esmalte sintético sobre madeira 29,7 x 50,1cmDoação Theon Spanudis Foto: Romuo FialdiniColeção Museu de Arte Cintemporânea da Universidade de São Paulo

Luiz Sacilotto“Retângulo Eventual”, 1954

esmalte sintético sobre madeira 22,3x 50,3Doação Theon Spanudis

Foto: Sérgio Guerini Coleção Museu de Arte Cintemporânea da Universidade de São Paulo

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011146 147REEDIÇÃO | THEON SPANUDIS

a libertação e manifestação plena do tempo

orgânico, interior, vivencial, que é, ao mesmo

tempo, criativo e que se tornou, por assim dizer, o

conteúdo principal da arte neoconcreta.

É neste ponto que vemos a sua convergência

com aquele ramo da arte das formações, de que

falávamos anteriormente. Em ambos os casos,

o que acontece é a captação e realização do

tempo interior, do tempo de um acontecimento

interior, do tempo de um acontecimento interior-

vivencial, do tempo orgânico-criativo. Daí o

caráter dinâmico destas obras, que supera o

momento estático das estruturas e dos resultados

formais finais, o dinamismo tempórico perpétuo

que nunca se finaliza e que obriga o espectador

a uma participação ativo-criativa no processo de

tentar finalizar a ação que nunca se finaliza. A

finalização seria a estrutura acabada e, por isto,

estática; seria o resultado formal final.

A única diferença, em ambos os casos, é o ponto

de partida. O neoconcretismo parte dos elementos

formais controláveis, e o ramo da arte das formações

em questão parte dos elementos formais ocasionais.

O momento da convergência ou até identidade

é o caráter tempórico-dinâmico da captação e

realização do tempo de formação, do tempo

orgânico-vivencial-criativo. Idêntica é, também, a

exigência absoluta da participação ativo-criativa do

espectador na sua tentativa perpétua de finalizar o

ato permanentemente em ação.

Achamos justo terminar estas constatações

examinando o novo desenvolvimento da artista

Lygia Clark, que a nosso entender conseguiu

fundir estas duas tendências convergentes em algo

novo e inédito até agora. Da fase das superfícies

moduladas (que era ainda pintura), passou à fase

das superfícies sobrepostas (relevos) em que os

problemas plásticos da fase anterior entraram em

plena e real tridimensionalidade, desvirtuando-se

em parte com esta medida (a obra então realiza

na realidade aquilo que nas obras da fase anterior

o espectador tinha de realizar mentalmente)

e enriquecendo-se em parte com novos tipos

de participação ativo-criativa do espectador.

Participações não mais do tipo visual-mental

como anteriormente, mas mesmo do tipo tátil. Da

fase das superfícies sobrepostas a obra de Lygia

Clark chegou à fase atual de esculturas polifásicas

e politempóricas. Tais peças requerem novas

formulações teóricas devido ao seu caráter inédito

até agora. A nossa formulação do neoconcretismo

como superação da estrutura não bastaria para

explicar teoricamente estas suas novas realizações.

A participação ativo-criativa do espectador passou

do plano visual-mental para o plano manual

também. Mas, considerando a multiplicidade

das fases e dos possíveis desenvolvimentos

tempóricos que cada obra contém (isto dentro

de certos limites, naturalmente), como também

a reversibilidade desses processos (a participação

ativo-criativa do espectador fica desnorteada por

ela não ser mais condicionada, como numa obra

neoconcreta, para agir somente numa direção

determinada) é que entra realmente em jogo o

fator acaso em meio a essa participação ativo-

criativa do espectador. Mas, neste caso a obra

de arte ganha uma independência em relação

ao espectador que a transforma num ser vivo,

independente de nós. Se a característica de uma

obra neoconcreta é a exigência absoluta de uma

participação ativo-criativa do espectador para que

a obra fosse criada nas novas obras de Lygia Clark

a participação é necessária somente para revelar

as várias possibilidades de desenvolvimentos

formais e tempóricos (mesmo assim pelo fator

acaso), mas não é mais a conditio sine qua

non da criação da obra. A obra como tal, com

toda esta riqueza de possibilidades virtuais e

reais, existe como um ser independente de

nós, como um ser vivo e misterioso diante do

espectador. Somente nessas modernas máquinas

computadoras eletrônicas, que funcionam quase

que independentes de nós e do nosso controle,

é que veríamos um paralelo com as novas obras

de Lygia Clark. Tais obras deixaram nesta última

fase, a nosso ver, a fundir as duas correntes

convergentes. As suas esculturas são ao mesmo

tempo arte das formas e arte das formações, além

do fato (inédito até agora na arte contemporânea)

de uma independência, quase que completa da

obra de arte para com o espectador e que não

se baseia na atemporalidade estática, típica

das artes plásticas tradicionais, porém numa

atemporalidade dinâmica que provém da soma

de tantas possibilidades “tempóricas” contidas

dentro da obra de arte.

Sem título,1953 óleo sobre tela 53,5 x 64,6cm Doação Theon SpanudisFoto: ???????Coleção Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo

Sem título, 1953óleo sobre tela 50 x 60,2cmDoação Theon Spanudis Foto: Romulo FialdiniColeção Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo

149TEMÁTICAS | ISABELLE GRAW

Introdução

A própria decisão de colocar um conceito como

“crítica institucional” na pauta de discussão

do segundo SoCCAS (Simpósio do Los Angeles

County Museum of Art) em junho de 2005 já

defronta tanto o apresentador quanto o público

com inumeráveis problemas. Isso não se deve

apenas ao fato de os termos, conceitos e territórios

da crítica institucional serem historicamente

carregados e calorosamente disputados, mas

também porque eles funcionam como designação

para um tipo de arte que em geral se supõe ter

função epistemológica. A crítica institucional

supostamente “critica” (sinônimos relacionados

na literatura, nesse sentido, incluem “analisa”,

“revela” e “expõe”) tanto um lugar institucional,

literalmente (um museu ou espaço de galeria,

ALÉM DA CRÍTICA INSTITUCIONAL

Isabelle Graw

Isabelle Graw instituiçãocrítica cânone

Neste texto, Isabelle Graw pontua separadamente os problemas das terminologias

“crítica” e “instituição” e como ambas compõem uma expressão engessada e mal

compreendida historicamente. Interroga-se, então, como essa junção leva a uma

diluição de sentido na contemporaneidade – sobretudo a crítica prefere canonizar o

termo, bem como os artistas que foram por ele rotulados, como Daniel Buren, Hans

Haacke, Michael Asher e Marcel Broodthaers. Tal atitude afasta novas possibilidades

de questionar o âmbito institucional e de permitir que essas mesmas instituições

atuem criticamente.

Martin KippenbergerCandidature à une rétrospective (Candidatura a uma retrospectiva), 1993Primeira versão, foto de grupo, Martin Kippenberger 40º aniversário - Litografia offset27 16/09 x 19 11/16 polegadas (70 cm x 50 cm)© Propriedade de Martin Kippenberger, Galerie Gisela Capitain, Colônia

etc.) quanto algum outro aspecto mais amplo de confinamento institucional. Poderíamos colocar de outra forma. O conceito de crítica institucional tal como aplicado à arte é baseado na suposição

BEYOND INSTITUTIONAL CRITICS | In this text, Isabelle Graw points out separately the problems of the terms “critics” and “institution” and how both comprise a historically misunderstood and hidebound expression. So she asks how this combination leads to a diluted meaning in contemporaneity – especially the critics prefer to canonize the term, and the artists that were labeled by it, namely Daniel Buren, Hans Haacke, Michael Asher and Marcel Broodthaers. This atitutde distances new possibilities of questioning the institutional sphare and permitting these same institutions to act critically. | Isabelle Graw, institution, critics, canon.

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011150 151TEMÁTICAS | ISABELLE GRAW

de que a arte é capaz de fazer alguma coisa. A dificuldade desse termo reside, portanto, em ser descritivo e normativo ao mesmo tempo. Enquanto nos permite pensar sobre o potencial da arte, ele tende, também, a confinar a arte à função supostamente crítica. Quero sugerir que um resultado da dupla ação dos pressupostos e contextos da crítica institucional seja ficar a arte sobrecarregada e, em certa medida, esgotada.

Até mesmo as origens da expressão crítica institucional são controversas. Terá aparecido pela primeira vez num texto de Andrea Fraser sobre

Louise Lawer escrito em 1985, no qual ela sugeriu

que as abordagens de artistas como Marcel

Broodthaers, Daniel Buren ou Hans Haacke, ainda

que diferentes em estilos e materiais, estavam

todas em débito com a “crítica institucional”?1

Ou foram os escritos de Benjamin Buchloh os

principais responsáveis pelo estabelecimento dos

parâmetros dessa expressão, que ele usou no título

− e como tema − de um importante ensaio sobre

a arte conceitual, “Da estética da administração

à crítica institucional”? Buchloh certamente

contribuiu para a construção das figuras canônicas

associadas ao movimento ou, melhor, ele ajudou

a garantir que a crítica institucional estivesse

associada a seus suspeitos usuais − Daniel Buren,

Hans Haacke, Michel Asher e Marcel Broodthaers.2

Testemunhas oculares questionadas a respeito de

quais artistas tiveram seus trabalhos arrolados sob

esse rótulo em sua maior parte não se lembrariam

de quando exatamente ouviram a expressão pela

primeira vez, ou quem em particular a colocou

em circulação. Talvez Christopher Williams esteja

certo. Entrevistado num filme recente de Renée

Green, ele deu a seguinte explicação, levemente

temperada com teoria da conspiração: a expressão

foi propagada primeiro pelo Whitney Independent

Studies Program e começou a conquistar o

mundo desde então – a partir de Nova York

(…) e daí em diante. Embora essa teoria tenha

méritos como especulação histórica, a expressão

foi reapropriada no início da década de 1990 por

uma geração mais jovem de artistas, cujo trabalho

pode ser lido como uma série de diferentes

tentativas no sentido de continuar a rever algumas

das premissas da crítica institucional.3

A questão será tratada em três partes.

Primeiramente, considerarei as dificuldades

terminológicas contidas na expressão crítica

institucional, apontando para os limites desse

conceito/prática, insistindo simultaneamente nas

ideias e realizações históricas que ele mediou.

Em segundo lugar, discutirei a institucionalização

da crítica institucional, abordando a violência

estrutural do rígido, e naturalmente excludente,

cânone que ela gerou. Opto, sempre, pela

necessidade de considerações situacionais, porque

certamente há momentos e locais, como na esfera

comercial do mundo da arte, em que se torna

absolutamente necessário insistir nas ideias mais

fundamentais da crítica institucional. Devo ressaltar

algumas delas: a de que o valor não é intrínseco

à obra de arte, sendo-lhe antes atribuído através

de operações financeiras; a de que a produção

e outros contextos de uma obra de arte são

necessariamente interiorizados e expressados como

parte de sua significação ou, mais simplesmente,

que faz diferença o fato de museus públicos serem

geridos por administradores.

É claro que existem outros tempos e circunstâncias

− digamos, nos circuitos internacionais com

base em projetos das Manifestas e Bienais −

em que as coisas ficam mais complicadas. Aqui

muitos curadores, instituições, teóricos e artistas,

implicitamente ou não, se identificaram com as

várias premissas da crítica institucional. Basta

pensar no modo como as investigações “críticas”

são aceitas por certos curadores − ou por

todas as publicações em que a “criticalidade” é

apresentada de forma esquemática e atribuída,

como se fosse quase autoevidente, a este ou

aquele trabalho de arte.4 Como, porém, essa

criticalidade é geralmente afirmada, em vez de

ser definida, e assumida, em vez de ser criado um

modo operacional específico, o resultado costuma

ser a neutralização das próprias possibilidades

de prática artística realmente crítica – crítica no

sentido de levantar objeções e gerar questões em

uma situação particular.

Ao confrontar tal neutralização, parece necessário

analisar como as competências artísticas

geralmente associadas à crítica institucional

(pesquisa, trabalho de equipe, assunção pessoal

dos riscos, e assim por diante) alimentam, às vezes

bastante perfeitamente, aquilo que os sociólogos

Luc Boltanski e Ève Chiapello descreveram como

“o novo espírito do capitalismo”.5 Por outro

lado, simplesmente insistir no potencial da crítica

institucional ou apontar seus limites não é o

suficiente. Sob a luz do novo poder de definição

do mercado de arte e as atuais mudanças

estruturais no que antes era chamado de “mundo

da arte”, proponho deixar ambas as dificuldades

terminológicas e o cânone para trás a fim de

− na última seção, adiante − tentar formular

uma redefinição do que “instituição” e “crítica”

poderiam e podem significar hoje.

Dificuldades terminológicas

No Dicionário Dumont de Termos da Arte

Contemporânea,6 crítica institucional é descrita

por Johannes Meinhardt como atitude a favor

da arte. De acordo com Meinhardt, essa atitude

pode ser encontrada em “trabalhos de arte

e procedimentos estéticos que investigam

analiticamente as condições de enquadramento

institucionais e sociais”.7 Tal definição lança luz

sobre os problemas inerentes ao conceito e suas

realizações. Ao assumir a capacidade de investigar

ativamente algo, quando definida dessa maneira,

a crítica institucional implica a funcionalização

da arte. É certo que as funções epistemológicas

têm sido frequentemente projetadas, de forma

bastante estereotipada, sobre as práticas artísticas

classificadas sob a rubrica crítica institucional.

“Arte” ou “obra de arte” são rotineiramente

substituídas por “intervenção” ou “proposição”,

descrições que pressupõem orientação funcional.

Essa renomeação, entretanto, é faca de dois

gumes. Há, por um lado, a vantagem inegável

de permitir que nos livremos de uma noção de

arte idealista, substancialista e restritiva por

insistir numa legibilidade inscritível da arte − na

relação atual da arte com as condições sociais e

na possibilidade concomitante de renegociá-las.

Essa é uma visão à qual sou bastante ligada e que

considero necessidade histórica e política que não

se pode abandonar.

Por outro lado, há certo reducionismo

operando quando as funções críticas, tais como

“investigação” ou “análise” são reivindicadas para

as obras mediante generalizações infundadas

e sem o exame de como e quando a suposta

“investigação” ou “análise” ou “negociação”

tomam o lugar do trabalho. Seguir essa questão

sugere que mesmo o readymade, essa vaca

sagrada, se torna inconsistente, entendido, como

geralmente é, como a cena primária da crítica

institucional e por consequência interpretada,

nos termos de Meinhardt, como um “exame das

condições de enquadramento institucional ou

discursivo”8. Olhando melhor, se o readymade

é um mecanismo de delimitação de tipos, ele

também manifesta aspectos específicos da

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011152 153TEMÁTICAS | ISABELLE GRAW

sensibilidade artística de Duchamp, apresentando-

se como o resultado de uma escolha que é pessoal

e específica – e não simplesmente arbitrária, como

muitas vezes se alega. Elementos do processo do

readymade até mesmo se aproximam da ideia de

uma assinatura artística. Da mesma forma, não

poderia o trabalho Measurement room (1967), de

Mel Bochner, ser considerado não apenas análise

da “realidade material das paredes da galeria

como dispositivo de enquadramento”, como

Miwon Kwon argumentou, mas também literal

intensificação de seus parâmetros, uma espécie

de “homenagem” às condições materiais e às

proporções do espaço da galeria?9

Contudo, talvez certa dose de reducionismo seja o

preço necessário a pagar quando se quer romper

com um sistema dominante de crenças que ainda

insiste em que só as qualidades supostamente

intrínsecas da arte justificam seu valor. Um

trabalho como Manet Projekt (1974), de Hans

Haacke, é mais atual do que nunca quando

demonstra o processo de construção de valor

como uma sucessão de operações financeiras

entre uma sequência de proprietários. Tão

importante quanto isso é insistir sobre a relevância

de fatores externos que se anexam às obras e

através delas são negociados, essa necessidade

estratégica que passou por transformação e agora

serve com frequência como licença para reduzir

proposições artísticas complexas a uma função

epistemológica ou significado aparentemente

inequívocos. A arte supostamente deveria

“negociar” questões, “investigar” ou “intervir”

− e essas funções epistemológicas são sobre ela

projetadas de maneira esquemática como assunto

de fato abordável. Mais uma vez, é só dar uma

olhada em alguns dos inúmeros exemplos de

publicações distribuídas por galerias, museus e

outras instituições para aprender a lição de que,

quanto mais as funções da crítica atribuídas ao

trabalho de arte parecem autoevidentes, melhor

será seu valor promocional.

Há trabalhos que facilitam tais rotulagens críticas

– basta pensar na atual popularidade de Santiago

Sierra. Esse problema está longe de ser novo – tem

sido amplamente discutido desde o final dos anos

90, por artistas e por críticos. Os críticos reagiram

levando mais em conta o vocabulário estético-

formal. Argumentaram a favor de significados

móveis, o que causou novos problemas, dados o

alto nível de abstração dessa escolha e a sintonia

com o interesse geral do mercado por uma segunda

ordem, um quase sublime neoformalismo. Os

artistas reagiram tornando suas proposições mais

poéticas, multifacetadas ou obscuras, o que traz a

desvantagem de às vezes deixar o trabalho quase

fora de contexto e sem conteúdo.

A instituição dentro de nós

A expressão crítica institucional é, em si, uma

construção paradoxal já que sugere a crítica de

uma instituição que é em si institucional – uma

crítica não apenas dirigida às instituições e seus

críticos, mas também uma crítica da natureza

institucional, por assim dizer. O duplo panorama

dessa crítica nos faz lembrar duas coisas – o

entrelaçamento profundo entre artistas e

instituições, e o grau em que as instituições têm

determinado a forma ou o sentido das obras

feitas especialmente para ou sobre elas. Pode-se

até chegar a dizer que as instituições apresentam

o caminho aos artistas.

A institucionalização progressiva de obras

identificadas com a crítica institucional é

questão que com frequência tem preocupado

os artistas. Buren apresentou incisiva reflexão

em 1980, em que o problema não consistia no

fato de a instituição impedir o acontecimento de

experimentações, mas, antes, incentivar os artistas

a produzir obras que com ela se assemelhassem

ou se conformassem, sendo assim facilmente

aceitas.10 Quando o curador Yves Aupetitallot

pediu a alguns artistas que produzissem obras

para um local específico, o Firminy Project na

“Unité d’habitation” de Le Corbusier, em Firminy,

na França (1993), lembro-me de várias discussões

entre artistas e críticos sobre o que significava ser

bem acolhido pela instituição e educadamente

convidado (e pago) para examinar criticamente

um local e interagir socialmente com ele. Uma das

perspectivas pressupunha abrangente cooptação,

uma totalização que levaria à paralisia total.

(Uma observação: o termo “cooptação” é em si

problemático, pois implica a existência de um

estado puro ou inocente “antes” da cooptação –

o que é, naturalmente, ficção.) Em outra parte,

as tentativas mais produtivas caminharam no

sentido de renegociar as novas restrições e novas

liberdades que resultaram do avarento mercado

por conhecimento e informação – um mercado

que, às vezes coexiste, às vezes se sobrepõe, e

quase sempre não tem nada a ver com o que

acontece na esfera comercial.

Na década de 1990 surgiu um novo tipo de

instituição de arte, incluindo Depot em Viena ou

Kunstraum Lüneburg – claramente identificadas

com alguns dos princípios associados à

crítica institucional. Ao optar por “pesquisa”,

“documentação”, “trabalho em equipe”,

“ausência de hierarquia”, “transparência” ou

“discussão”, seus métodos de trabalho foram,

ao mesmo tempo, completamente coniventes

com os valores neoliberais. Esse foi especialmente

o caso, com essa ênfase na comunicação, que

correspondeu à tendência da indústria cultural de

transformar a “capacidade comunicativa humana

em mercadoria”, como observa Paolo Virno.11

Recordo meu crescente ceticismo sobre o potencial

crítico da chamada “prática pós-ateliê”. Comecei

a olhar para modelos artísticos mais tradicionais,

aparentemente conservadores, como o pintor

obcecado no ateliê, que recusa explicações, não

se relaciona, nunca viaja, raramente aparece

em público e, portanto, recusa o espetáculo do

acesso direto a suas competências cognitivas e

emocionais. Diante da tendência do capitalismo

de englobar todas as pessoas e ao mesmo tempo

incentivar a investigação crítica, parecia-me uma

estratégia valiosa novamente produzir obras

altamente mediadas pelo ateliê, que, pelo menos

teoricamente, não admite acesso direto.

Embora seja verdade que algumas instituições de

arte adotaram a crítica institucional, eu certamente

não chegaria a ponto de sugerir que isso seja

completamente inútil para qualquer “exercício

crítico” dentro delas, como Olafur Eliasson

colocou de forma bastante condescendente em

recente conversa com Daniel Buren.12 Destaco

que simplesmente não é esse o caso em que “não

há um ‘lá fora’” ou que até mesmo a proposição

mais ultrajante, inevitavelmente, será absorvida

pelas instituições, conforme Buren e Eliasson

parecem acreditar. Pelo contrário, há algumas

proposições que permanecem “fora”. A fim de

construir uma instituição (o termo “instituição”

deriva etimologicamente de “instalação”, o que

significa montar ou colocar em) um exterior

constitutivo não é apenas necessário, mas

inevitável. Algumas coisas vão ser sempre deixadas

de fora, muitas vezes, de modo deliberado:

estruturalmente falando, cada centro produz sua

periferia. Além disso, se levarmos em conta que as

instituições de arte têm praticamente transmitido

a autoridade para o novo mercado de arte e que

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011154

é raro artistas associados à crítica institucional

alcançarem posições importantes na esfera

comercial, chegamos à conclusão de que não há

nenhuma razão para despejar o bebê junto com

a água da banheira. Eu optaria pela seguinte

abordagem: insistir no potencial investigativo da

crítica institucional, especialmente em face da

nova entidade empresarial do museu, enquanto

se trabalha em novas e mais adequadas definições

de “instituição” e “crítica”.

Outro cânone

A história e as realizações da crítica institucional

devem ser consideradas neste momento

canonizadas de forma bem-sucedida. Ela possui

uma lista de nomes-chave − os suspeitos de

costume que mencionei − que constam como

seus principais representantes: Daniel Buren,

Michael Asher, Marcel Broodthaers, e Hans

Haacke. Mesmo que eu entenda perfeitamente

a necessidade estratégica de se estabelecer esse

cânone, me parece um tanto surpreendente que a

lista seja quase inconscientemente reproduzida e

raramente modificada pelos jovens historiadores

da arte. Na verdade, esse rol de protagonistas

tem sido iterado e petrificado em detrimento

de muitos artistas cujos métodos de trabalho −

independente da forma que suas investigações

possam tomar − também poderiam ser descritos

como métodos de questionamento ou mesmo

de ataque à instituição de arte, especialmente

se contêm todo um sistema de crenças. Por

exemplo, parece ser uma regra não definida no

cerne da narrativa histórica da arte dominante,

pelo menos, que a crítica institucional não possa

se manifestar na pintura.

Gostaria de propor, ao contrário, que os

primeiros trabalhos de Jörg Immendorff sejam

bons candidatos para inclusão no cânone, já

que expõem a falência da tradição da “arte” ou

do “artista”. Sua própria ambição desesperada

para ser ao mesmo tempo bem-sucedido e

politicamente responsável foi impiedosamente

tematizada em seu livro de artista Hier und Jetzt:

Das tun, was zu tun ist.13 Ele estava tão envolvido

com a luta política quanto irremediavelmente

comprometido com o sistema de galerias.

Podemos também considerar algumas das

proposições de Martin Kippenberger, atualmente

o sujeito de quase santificada canonização

como o pai da pintura figurativa no mundo

inteiro. Quando convidado para expor no Centre

Pompidou, em 1993, ele intitulou sua exposição

Candidature à une retrospective, desafiando

diretamente e zombando da instituição de arte

e sua política de reconhecimento. Em vez de

esperar até ser considerado suficientemente

importante para uma retrospectiva de grande

porte, optou por uma estratégia mais agressiva e

discreta. Sua ousada iniciativa questionou o papel

regulador da instituição de arte, sua ambição de

recompensar “bons” artistas que “mereceram”

e “trabalharam arduamente”, e em simultâneo

atacou a grande illusio do mundo da arte − termo

de Pierre Bourdieu para o investimento coletivo e

crença em todo um sistema de valores de uma

estrutura.14 Kippenberger propôs que algo mais,

de modo geral, poderia estar em jogo, uma vez

que ele insistiu em um conjunto de outros − não

menos duvidosos − critérios de valorização, que

costumam permanecer ocultos. O convite trazia

a imagem de seu círculo de amigos íntimos e

admiradores reunidos por ocasião de seu 40º

aniversário. Embora ele se apresente como uma

espécie de “artista dos artistas” que não precisa

de reconhecimento institucional, esse convite

exibe as redes informais e leis de proteção que Capa do livro:Jörg Immendorff, Hier und Jetzt: Das tun, was zu tun ist (Materialien zurDiskussion: Kunst im politischen Kampf. Auf welcher Seite stehst Du,Kunstschaffender?), Colônia/Nova York: König, 1973228 páginas 21 x 30cmFonte: http://www.flickr.com/photos/desingel/4203026541/

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011156 157TEMÁTICAS | ISABELLE GRAW

definem a vida como um “mundo de conexões”.15

Tais acordos informais são raramente expostos,

embora muitas vezes legitimem a política

cultural oficial. (Outra observação: o próprio

Kippenberger foi profundamente influenciado

por artistas como Louise Lawler e Andrea

Fraser, cujos trabalhos podem ser considerados

lembrete constante do fato de que não são

apenas as supostas qualidades intrínsecas da arte

que levam a seu reconhecimento institucional,

mas uma interação de atividades promocionais,

sociais e institucionais).

Quando o antigo mundo da arte se transfor-

ma em indústria visual

As dificuldades certamente não param por aqui.

A expressão crítica institucional coloca novos

problemas, pois os dois conceitos que se fundem

têm, um e outro, sua própria carga histórica:

“instituição”, por um lado, e “crítica”, por outro.

Consideremos o breve histórico das inflexões do

termo “instituição” em apenas um segmento

social, o mundo da arte. Correndo o risco de

simplificar demais, gostaria de esboçar o que

se segue. Dois entendimentos convergentes de

“instituição” atravessaram os anos formadores

da crítica institucional na década de 1970:

primeiro, uma designação bastante limitada de

instituição como instituição de arte (museus,

galerias) exemplificada nas abordagens de Buren

e Asher. Lendo os textos de Buren, por exemplo,

percebe-se que para ele “instituição” sempre

foi sinônimo de “museu”. Essa noção restritiva

implica compreensão topográfica, que tem a

inegável vantagem de permitir intervenções muito

concretas e precisamente circunscritas. Quando

Buren refletiu sobre a “função do museu”, como

denominou, ele analisou a forma como o museu

define, valida, enquadra, isola, exclui e naturaliza.

Útil com esse sentido, tal noção limitada facilitou

a fixação sobre o mecanismo da arte, ignorando

o fato de que não só se mudou a natureza do

termo, mas também que ele perdeu muito

de sua antiga autoridade. Essa fixação sobre

o mecanismo da arte parece estranhamente

nostálgica hoje, de modo especial em relação ao

novo poder de definição do mercado de arte, que

tomou o comando dos museus como principais

gestores de valor em rede cujas transações globais

nos mercados primário e secundário são quase

sempre invisíveis.16

Por outro lado, de forma não tanto topográfica,

noções mais expansivas de instituição estão em

circulação desde os anos 70, como evidenciado

pelo trabalho Journal Series (1976), de John

Knight, por exemplo. Nesse projeto, o artista

enviou assinaturas gratuitas não solicitadas para

membros da comunidade artística, antecipando a

maneira pela qual a lei da cultura de celebridades

e as regras da indústria de entretenimento

se alojam no mundo da arte atualmente No

momento, somos confrontados com uma situação

em que o modelo do sistema de galerias com sua

estrutura de comércio varejista foi substituído

por fusões globais de grande porte, como a

“Houses & Wirth & Zwirner” ou a “Gagosian”. O

antigo mundo da arte tornou-se o que podemos

denominar “indústria visual” vagamente similar a

outras indústrias culturais, como a de Hollywood

ou o mundo da moda, que parece cada vez

mais imitar. O programa da indústria visual

implica a visualidade e seus significados já não

serem produzidos por protagonistas singulares

(artistas, galeristas, curadores). Em vez disso, a

responsabilidade pela produção e distribuição de

imagens e seu conteúdo está nas mãos de entidades

maiores, incluindo franquias internacionais

e conglomerados multinacionais. Estruturas

corporativas não podem mais ser localizadas, já

que atuam no espaço transnacional. Da mesma

forma, as transações no mercado secundário −

decisivas para o valor comercial de uma obra de

arte, ao menos − são pouco compreensíveis. O

novo poder do mercado de arte se manifesta,

então, na substituição de critérios artísticos por

imperativos econômicos. Um artista que se mostre

economicamente bem-sucedido será quase

automaticamente considerado “importante” ou

“interessante” − por galerias, curadores e muitos

críticos. Em contraste com a situação em 1960,

quando o papel das instituições de arte podia ser

decisivo no processo de validação, estamos vivendo

o paradoxo de uma proliferação de instituições

de arte que continuam a organizar e acolher a

experiência da arte, caracterizada, segundo Buren,

pela “incrível fraqueza”. Museus são dirigidos por

curadores que tendem a reproduzir o consenso

reinante no mercado de arte − como é constatado

pela coleção de arte contemporânea no Museu de

Arte Moderna de Nova York. Talvez devêssemos

parar de chamá-los de “museus”, já que essa

palavra conota, etimologicamente, sua atribuição

a alguma forma de produção de conhecimento, e

encontrar novo termo.

A palavra “crítica” sofreu mudanças semânticas

semelhantes e reconceituações orientadas para

a prática. Aos olhos de uma geração anterior,

como Hans Haacke, o conceito de crítica parecia

depender de um ideal de distanciamento crítico.

Artistas mais jovens, incluindo Andrea Fraser,

Christian Phillip Müller, Renée Green e Fareed

Armaly (eu mesma estou reproduzindo um

cânone, agora), basearam seu trabalho, em parte,

na consciência de que essa suposição de distância

ou separação entre o agente de entrega da crítica

e seu suposto objeto sempre foi ficção que não

pode e não deve ser reproduzida nas atuais

circunstâncias. Sua obra propõe uma noção

de crítica renegociada com base na admissão

de que a “distância crítica” é comprometida a

priori. Além disso, o que a princípio parece ser

“crítico” pode ser gesto totalmente inofensivo

em circunstâncias diferentes. Se refletir sobre

os parâmetros institucionais já foi algo que a

instituição considerou preocupante, hoje é algo

aceito, bem-vindo e mesmo apoiado por muitas

instituições, que ativamente convidam artistas

para os investigar. Crítica, em suma, pode tornar-

se uma prática reificada que alimenta o apetite

voraz do capitalismo.

Fareed Armaly(re)Orient exhibition, 1989Galerie Lorenz, Paris

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011158 159TEMÁTICAS | ISABELLE GRAW

Novas formas de convergência entre crítica e

capitalismo foram analisadas pelos sociólogos

Ève Chiapello e Luc Boltanski em seu poderoso e

ambicioso estudo The New Spirit of Capitalism.17

Sua narrativa, porém, postula novamente uma

visão bastante pessimista e totalizante de um

capitalismo abrangente capaz de absorver

qualquer tentativa de questioná-lo. Correndo o

risco de soar ainda mais prescritiva ao final de

minha discussão, eu gostaria de contrariar essa

visão fatalista, com um apelo para considerações

situacionais. Em determinados momentos e

contextos, se perguntarmos ao cânone dominante,

ou atacarmos o consenso atual, ou insistirmos em

critérios outros que não os interesses econômicos,

ou recusarmos noções subdesenvolvidas de

criticalidade, ou mostrarmos como a crítica se

pode tornar instrumentalizada, ou afastarmo-nos

do que Pierre Bourdieu chamou de “espaço de

possibilidades”(...) podemos expandir e deslocar o

horizonte de constituição daquilo que é possível.

Certamente, tais intervenções não impedirão

o funcionamento da máquina capitalista, mas,

insisto, podemos romper com um sistema de

crenças, enquanto participantes – se isso implica

a crença na economia, ou uma crença não menos

duvidosa, mas enfática, na arte. Ambas tendem

a desviar-nos do fato de que algo realmente

está em jogo em certas obras de arte em um

determinado momento. Dessa forma, ao insistir

em “outros critérios”, parece-nos mais adequado

observar a arte da maneira como circula nesse

meio − seja no mercado secundário ou no

mercado do conhecimento − “sem ilusões” (como

Walter Benjamin expôs às vésperas da Segunda

Guerra Mundial, enquanto se empenhava para

compreender a obra de Charles Baudelaire).18 Ao

mesmo tempo, no entanto, parece ser necessário

manter uma noção de arte que seja crítica no

sentido de que levanta questionamentos ou

coloca problemas.

Não tenho certeza se crítica institucional é a

expressão correta para tal esforço, já que sua

canonização é tão profunda até agora, que é

difícil imaginar como seus preceitos podem ser

regenerados, e suas formas e seus significados,

reformulados. Talvez o legado da crítica

institucional se encontre em sua exigência de que

levemos em consideração suas lições, a fim de

deixá-las para trás.

Tradução Ana Luísa Flores e Isabel Carneiro

Revisão técnica Dalila Santos

NOTAS

Texto publicado originalmente em:

Isabelle Graw (org.), Institutional Critique

and After (SoCCAS Symposia vol. 2), Zurique:

JRP|Ringier, 2006: 137-151.

1 Andrea Fraser. “In and out of Place”, in Reesa

Greenberg, Bruce W. Ferguson e Sandy Nairne (eds.),

Thinking about Exhibitions, Nova York: Routledge,

1996:437-449; publicado originalmente em Art in

America, junho de 1985:122-129.

2 Benjamin H.D. Buchloh. “From the Aesthetics

of Administration to Institutional Critique”, L’art

conceptuel, une perspective, Muses d’Art moderne

de la Ville de Paris, 1990.

3 “Jugend forscht (Armaly, Dion, Fraser, Müller)”, in

Texte zur Kunst, v. 1, n.1, outono 1990:163-175.

4 Daniel Buren identificou esse desdobramento em

1980: “O problema hoje não é identificar em que

medida a instituição funciona como amortecedor

[literalmente, “pastilha de freio”] sobre as

experiências e trabalhos mas, sim, como conduz

a produção de obras com que tem afinidade,

e que, compreensivelmente, aceita”, in “Rund

um‘Punktesetzen’”, Achtung! Texte 1967-1991,

Dresden/Basileia: Verlag der Kunst, 1995:340.

5 Ver Luc Boltanski e Ève Chiapello. The New Spirit

of Capitalism, trad. Gregory Elliott, Nova York: Verso,

2005, publicado originalmente como Le Nouvel

Esprit du Capitalisme, Paris: Gallimard, 1999. [O

Novo Espírito do Capitalismo, São Paulo: Martins

Fontes, 2009.]

6 Hubertus Butin (ed.), DuMonts Begriffslexikon

zur zeitgenössischen Kunst, Colônia: Dumont,

2002. [N.T.]

7 Ver o verbete de Johannes Meinhardt

“Institutionskritik” [crítica institucional] in

Hubertus Butin (ed.), DuMonts Begriffslexikon

zur zeitgenössischen Kunst, Colônia: Dumont,

2002:126-130.

8 Ver também Frazer Ward, que caracteriza o

readymade como um “gesto epistemológico” em

“The Haunted Museum: Institutional Critique and

Publicity”, October, v. 73, verão 1995:71-89.

9 Miwon Kwon, “Genealogy of Site Specificity”, One

Place After Another: Site-Specific Art And Locational

Identity, Cambridge: MIT Press, 2004:14.

10 Ver Daniel Buren. “On Institutions in the art

system” in Isabelle Graw (org.), Institutional Critique

and After (SoCCAS Symposia vol. 2), Zurique:

JRP|Ringier, 2006: 340-341.

11 Ver Paolo Virno. A Grammar of the Multitude,

Nova York: Semiotext(e), 2004:61.

12 Daniel Buren, Olafur Eliasson. “Conversation: Daniel

Buren & Olafur Eliasson”, ArtForum, v. XLIII, n. 9, maio

2005: 208-214. [N.T.]

13 Jörg Immendorff. Hier und Jetzt: Das tun, was zu

tun ist (Materialien zur Diskussion: Kunst im politischen

Kampf. Auf welcher Seite stehst Du, Kunstschaffender?),

Colônia/Nova York: König, 1973. [N.T.]

14 Ver Pierre Bourdieu. “The Illusio and the Work of

Art as Fetish”, in Rules of Art: Genesis and Structure

of the Literary Field, Stanford: Stanford University

Press, 1999:227-230. [As Regras da Arte: Gênese e

estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia

das Letras, 1996.]

15 Ver nota 5. [N.T.]

16 Em sua contribuição para “O Novo MoMA”,

discussão de quatro críticos sobre o novo edifício

para o Museu de Arte Moderna de Nova York

(Artforum, v. 43, n. 6, fevereiro 2005), Benjamin

H.D. Buchloh expressa apenas pena para as obras

de arte contemporânea que “refletem a confiança

ingênua de seus criadores em um mecanismo do

mundo da arte e do museu que aparentemente

pretendem habitar, como se os tempos não tivessem

mudado e como se seu estatuto privilegiado de

criadores de ‘arte moderna’, continuasse a ser

incondicionalmente garantido”.

17 Ver nota 5.

18 Walter Benjamin observou “o reconhecimento

precoce do mercado, sem ilusões” de Baudelaire,

em “The Paris of the Second Empire in Baudelaire”,

Charles Baudelaire, A Lyric poet In the Era of High

Capitalism, trad. Harry Zohn, Nova York: Verso,

1989. [Obras Escolhidas III – Charles Baudelaire:

Um Lírico no Auge do Capitalismo. São Paulo: Ed.

Brasiliense, 2004.]

Isabelle Graw é crítica de artes visuais e

cofundadora da revista Text zur Kunst, professora

de teoria e história da arte na Universidade de Belas

Artes (Städelschule), em Frankfurt, Alemanha,

onde também criou o Instituto de Crítica de Arte.

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011160 161TEMÁTICAS | CRAIG OWENS

Este ensaio apresenta duas abordagens bastante

diferentes da questão da representação – que vem

sendo proposta como de interesse pela arte da

última década, apesar de mal compreendida pela

crítica. Tudo o que tem sido celebrado (e com

rara frequência denunciado) como um retorno à

representação, após a longa noite da abstração

modernista, acaba por ser, em muitas instâncias,

crítica à representação, uma tentativa de usar a

representação contra ela mesma, a fim de desafiar

sua própria autoridade, seu desejo de alcançar

alguma verdade ou valor epistemológico.

A crítica, contudo, tem tributado esse impulso

à ambígua bandeira de um revival das práticas

figurativas de expressão; assim, para uma discussão teórica sobre as questões apontadas pela arte

contemporânea a esse respeito, precisamos perscrutar outras paragens – por exemplo, o campo europeu

da crítica conhecido como pós-estruturalista, cuja produção também vem sendo identificada como

crítica à representação.

REPRESENTAçÃO, APROPRIAçÃO E PODER

Craig Owens

Representação pós-estruturalismocontemporaneidade Craig Owens

Reflexões críticas sobre duas abordagens a respeito da representação: a revisionista,

que coloca em questão a figuração, e a tradicional, que a resgata. Propõe

encaminhamento pós-estruturalista da questão, com base em Foucault, Marin e

Derrida. Esses pensadores desautorizariam as duas abordagens mencionadas, por

entendê-las circunscritas à busca da verdade e ao historicismo, valores epistemológicos

considerados ultrapassados pela crítica pós-estruturalista, pois reforçam o poder e a

propriedade no modo característico de a sociedade ocidental representar o mundo.

Diego Velázquez, As meninas, detalhe, reflexão no espelho, 1656, óleo sobre tela, Prado, fonte MITlibrary

REPRESENTATION, APPROPRIATION AND POWER | Critical reflections on two approaches to representation: the revisionist, which questions figuration, and the traditional, which redeems it. He proposes a post-structuralist focus on the issue, based on Foucault, Marin and Derrida. These scholars would discredit the two aforementioned approaches since they understand them as circumscribing the search for truth and historicism, epistemological values considered obsolete by post-structuralist critics, since they reinforce power and property in the way characteristics of how Western society represents the world. | Representation, post-structuralism, contemporaneity, Craig Owens.

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011162 163TEMÁTICAS | CRAIG OWENS

A objeção pós-estruturalista à representação está

em desacordo com ambos os tratamentos dados

ao problema no âmbito da história da arte: o da

tradição e o do revisionismo. Nas páginas que se

seguem, discutirei essas duas abordagens a fim de

exemplificar a diferença entre a disciplina (história

da arte) que toma a representação como atividade

desinteressada e, portanto, politicamente neutra;

e um corpo crítico (pós-estruturalista) que

demonstra ser a representação parte inextricável

do processo social de dominação e controle. Em

nenhum momento quero mediar ou reconciliar

essas duas posições; na verdade, espero antes

demonstrar sua incompatibilidade. Portanto,

minha hipótese de trabalho propõe que a crítica

pós-estruturalista não pode ser absorvida pela

história da arte sem uma sensível redução de seu

vigor polêmico, ou sem uma total transformação

na própria história da arte.

Historiadores da arte e pós-estruturalistas

A devoção à verdade e o método de precisão

científica nascem da paixão de estudiosos,

da recíproca aversão que têm entre si, de

suas fanáticas e intermináveis discussões,

bem como do espírito de competição

existente entre eles – do conflito pessoal que

gradativamente apaga as armas da razão.

Michel Foucault. Nietzsche, genealogy, history

Meu objeto será uma rede específica de imagens

e textos, pinturas e os comentários que lhes dão

coesão, por articular o vínculo entre representação

e poder em nossa cultura, tanto quanto o

problema que essa vinculação apresenta para a

pesquisa da história da arte. Essa rede não foi

proposição minha; emergiu durante o painel “A

aplicabilidade da metodologia da crítica literária

à análise da pintura”, que ocorreu, em dezembro

de 1981, na reunião da Modern Language

Association [MLA] (organização profissional de

pesquisadores e professores de estudos literários

de certo modo equivalente à College Association).

Esse evento proporciona pretexto para minhas

reflexões, embora a ele eu não vá limitar-me.

Dois dos comentários que levarei em consideração

não foram feitos por historiadores da arte, mas

por críticos que explicitamente rejeitavam a ideia

de haver separação entre diferentes disciplinas,

no que concerne ao trabalho intelectual: a

famosa análise de Michel Foucault sobre As

meninas, no capítulo de abertura de As palavras

e as coisas e a análise complementar de The

Arcadian Shepherds, proposta por Louis Marin

no artigo Towards a theory a of reading in visual

arts.1 Esses comentários se relacionam não apenas

devido à contemporaneidade das pinturas que

discutem – Velázquez pintou As meninas em

1656; e Poussin produziu duas versões de The

Archadian Shepherds, tendo a que nos concerne

sido datada por Anthony Blunt como posterior

a 1655 – mas também devido a seu método e

intenção. Foucault e Marin interpretaram esses

trabalhos como “representações de representação

[clássica, isto é, do século 17],” e isto eles fazem

para demonstrar não apenas a singularidade das

obras mas também a conformidade delas com

as regras anônimas e impessoais que regulam o

sistema clássico de representação.

Foucault e Marin não estiveram na MLA: seu

argumento, no entanto, foi defendido lá por

dois historiadores da arte, Svetlana Alpers e

Michel Fried, que observaram seu valor para

estudos de história da arte. Embora Alpers e

Fried orientem sua produção inicialmente para

público afeito a estudos literários – seus estudos

recentes aparecem em periódicos como Critical

inquiry e New literary history – e não objetem,

pelo menos não em princípio, a transferência de

análises textuais para o campo das artes visuais,

ambos mencionam os perigos decorrentes desse

deslocamento, citando como exemplos as análises

de Foucault sobre Velázquez e de Marin sobre

Poussin. Alpers critica Foucault por negligenciar

a tradição pictórica, da qual, segundo ela

entende, As meninas teria sido constituída; e

Fried descarta como a-histórico e reducionista o

uso que Marin faz da distinção linguística para

definir a estrutura da pintura histórica. A despeito

Jean-Baptiste Greuze, Fils ingrate, 1777, óleo sobre tela, 130 x 1.162cm, Louvre, fonte MITlibrary

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011164 165TEMÁTICAS | CRAIG OWENS

do fato de que nem Alpers nem Fried professam

afeição particular pela disciplina em que atuam,

ambos introduzem suas reflexões declarando-se

distanciados da história da arte – o julgamento

de valor negativo que eles conferem a Foucault e

Marin, em última análise pronunciado em nome

do teor de verdade da história da arte, confirma

as premissas de Freud, em seu escrito de 1925 a

respeito da negação na origem da psicologia do

julgamento intelectual:

Negar alguma coisa em favor do próprio

julgamento é o mesmo que dizer: ‘Isto

é algo que eu preferiria reprimir’. Um

julgamento negativo é o substituto

intelectual para a repressão; o ‘não’ com o

qual ele se expressa é a marca registrada da

repressão, um certificado de origem, como

algo teria sido, como ‘made in Germany’.2

O trabalho de Foucault e Marin é certamente

algo que a história da arte (uma disciplina como

se sabe ‘made in Germany’) preferiria reprimir.

Pois, apesar de a análise de Alpers de As meninas

parecer, como veremos, defender mais do que

refutar a leitura que Foucault faz da pintura, e a

discussão de Fried sobre o papel do espectador

em finais do século 18 e início do 19 relativa à

pintura francesa apresentar dialética de afirmação

e negação igual à empregada por Marin no

tratamento do mesmo problema no século 17,

a questão de ambos, Foucault e Marin, relativa

à convenção em obras de arte, a sua tendência

de sempre se conformarem a certa especificidade

institucional, permanece em conflito direto com

o interesse de Alpers e Fried (e da maioria de

seus colegas) a respeito da individualidade ou da

singularidade de obras e períodos da arte. Assim,

os argumentos de Foucault e Marin em última

instância desacreditam a iniciativa de Alpers

de tributar a Velázquez um desempenho de

originalidade, bem como a reinvindicação de Fried

do reconhecimento da especificidade histórica em

seu próprio argumento.

A questão com a qual nos deparamos, então,

não é, como Alpers propõe, se Foucault terá

interpretado corretamente As meninas (a resposta

dela é que “ele interpretou bem a pintura, mas

não verdadeiramente”), mas se Alpers e Fried

interpretaram adequadamente Foucault e Marin. E

a resposta é que eles não o fizeram; de fato Foucault

e Marin foram mal compreendidos naquela ocasião

ao menos em dois diferentes aspectos.

Apesar de o trabalho deles ter sido aceito

na academia americana inicialmente como

“crítica literária” e permanecido restrito ao

departamento de literatura inglesa comparada,

nem a obra de Foucault nem a de Marin referem-

se principalmente ao texto literário; como seus

colegas Jacques Derrida e Roland Barthes,

ambos têm escrito (Marin o faz extensivamente)

a respeito de artefatos da cultura visual. O

método que usam, além do mais, é híbrido,

combinando na prática análise filosófica, literária,

científica e histórica. Apresentar seus trabalhos

num painel dedicado à aplicabilidade da crítica

‘literária’ à pintura sem reconhecer seu caráter

multidisciplinar seria desconsiderar a vitalidade

polêmica de suas observações. Pois a crítica pós-

estruturalista é adversária da crítica estabelecida,

concebida em oposição à ordem dominante que

isola o conhecimento em vários campos, cada

qual dotado de seu próprio objeto de estudo

e instrumentos metodológicos3 (tanto é que

Foucault fazia palestras sobre ‘história e sistemas

de pensamento’ enquanto Marin lecionava no

campo multidisciplinar da semiótica.)

Mais ainda, nem Alpers nem Fried alcançaram

compreender o mais importante – e mais radical –

Nicolas Poussin, The arcadian shepherds, c. 1638, óleo sobre tela, 87 x 120cm, Louvre, fonte MITlibrary

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011166 167TEMÁTICAS | CRAIG OWENS

aspecto do trabalho de Foucault e de Marin sobre

a representação: seu esforço, nas palavras de

Marin, “em explorar os sistemas de representação

como aparatos do poder”. Ambos trabalham

para desmascarar os interesses particulares com

os quais todas as representações compactuam,

suas afiliações a classes, ofícios, instituições. Por

exemplo, em Fantasia of the library, Foucault

discute a arte de Manet como uma “pintura

de museu” – pintura como “manifestação da

existência de museus e da realidade particular

e interdependência que pinturas adquirem em

museus”.4 E em seu mais recente trabalho,

Le portrait du roi, Marin trata a produção

artística da corte de Luís XIV, da arquitetura ao

entretenimento, como manifestações do poder

absoluto e ilimitado do rei.

Investigar sistemas de representação como

aparatos de poder não é estudar sua apropriação

por aqueles que estão no poder, com propósitos

políticos ou de propaganda – apesar do fato de as

histórias da arte e da arquitetura serem compostas

basicamente por tais monumentos à autoridade.

Também não é decifrar as mensagens ideológicas

que ali estão codificadas; Foucault e Marin devem

ser distinguidos daquela crítica ideológica marxista

ou assemelhada – que se dedica a interpretar as

características implícitas de uma obra. Foucault e

Marin não interpretam obras de arte se interpretar

significa atribuir-lhes um significado. Estão menos

interessados no que as obras de arte dizem

e mais naquilo que elas fazem; eles possuem

visada performativa da produção cultural. Assim,

Foucault e Marin investigam a representação não

simplesmente como manifestação ou expressão

de poder, mas como parte do problema social de

diferenciação, exclusão, incorporação e regulação.

Ambos trabalham para expor os modos pelos

quais a dominação e a sujeição estão inscritas

nos sistemas de representação do Ocidente.

Representação, então, não é – nem poderia ser –

neutra; ela é um ato – na verdade, o ato fundante

– do poder em nossa cultura.

A segunda parte deste ensaio será dedicada à crítica da representação pós-estruturalista e sua relevância para a produção artística contemporânea. Por ora, entretanto, quero considerar as implicações da resistência da história da arte ao pós-estruturalismo. Historiadores da arte deveriam dispor-se a aceitar Foucault e Marin, uma vez que eles contribuíram imensamente para nossa compreensão dos modos pelos quais a produção artística participa dos grandes processos sociais e históricos. Nos últimos anos tem havido crescente interesse na história da arte não apenas devido ao problema da representação visual per se, mas também à análise contextual ou circunstancial de obras de arte, em tópicos como iconografia Médici ou mecenato real, nos quais a arte está explicitamente vinculada ao poder. Por que, então, Foucault e Marin têm sido ignorados? Por que o trabalho deles é considerado “denso”, “difícil”, “irrelevante”? Seria, talvez, porque a história da arte – tomada, na perspectiva da frase de Panofsky, como disciplina humanística – está implicada na crítica pós-estruturalista?

Embora toda tentativa de caracterizar movimentos intelectuais esteja condenada de início a uma desoladora superficialidade, algumas palavras a respeito do impulso que motiva a crítica pós-estruturalista podem auxiliar a elucidar o grande divisor que a separa da história da arte. O pós-estruturalismo emergiu em clima social e político – a França após 68 – de grande recusa aos termos e condições do discurso humanista. A noção humanista de “homem universal” está calcada na imagem do homem europeu ocidental e sua civilização. No Ocidente toda diferença,

não conformidade, divergência da norma foi confinada ou expelida, todas as demais raças e culturas ficam marginalizadas.

A atual crise política e econômica do Ocidente – a emergência das nações do Terceiro Mundo, o movimento feminista, as crescentes restrições na vida socioeconômica, a catástrofe ecológica geral... – começou a expor o caráter excludente do discurso humanista; os críticos pós-estruturalistas trabalham para articular seu pressuposto básico e, ao mesmo tempo, para desarticulá-lo, para desmascarar suas contradições internas e sua cumplicidade com a ordem cultural e social dominante.

Assim, todos os pós-estruturalistas examinaram em vários graus sua própria implicação no sistema acadêmico que submete, e desse modo confina, o intelectual a uma disciplina. Se eles negam o valor de se manter vinculados aos limites de uma só área de competência, é porque veem as “humanidades” como produto de uma atividade sistemática de restrição engenhosamente criada para controlar a produção de conhecimento em nossa sociedade. Apesar de alegarem ser desinteressadas, as humanidades na verdade trabalham para legitimar e perpetuar a hegemonia da cultura ocidental europeia: a história da arte, por exemplo, é a história da arte da Europa ocidental, de sua origem na antiguidade a sua culminância nesse continente. Essa não é, como poderemos ver, a única maneira de a história da arte colaborar com o poder; na verdade, ela sinaliza a necessidade de reavaliação completa dos princípios humanistas sobre os quais a história repousa.

História da arte como disciplina humanista

As humanidades (...) não se confrontam com a tarefa de resgatar aquilo que de

outra feita foi embora, mas de reviver

aquilo que de outro modo estaria morto.

Erwin Panofsky, História da arte como

disciplina humanística

A história da arte é disciplina altamente

controversa, caracterizada por destrutivo debate,

competição e conflito pessoal; a veemência com

a qual historiadores da arte se digladiam só é

sobrepujada pelo entusiasmo com que eles se

unem para defender seus direitos de propriedade.

Assim, apesar das diferenças no que se refere

a sua produção (centrada principalmente no

debate a respeito da história), Alpers e Fried se

apresentam no MLA como uma frente unida. O ar

de congratulação mútua que impregnou o painel

não era, entretanto, primariamente questão de

decoro acadêmico, mas função do propósito que

tinham em comum naquela ocasião: apoiar os

fundamentos da história da arte contra a invasão

do pós-estruturalismo.

Essa reação é característica da recepção da

história da arte a escritos a respeito da arte, e não

apenas àqueles dos pós-estruturalistas, mas ao

de todos os não especialistas. Para citar apenas

um exemplo: no começo de seu trabalho crítico

[Art in America, mar.-abr. 1979] sobre a coletânea

de Schapiro a respeito da arte moderna, Linda

Nochlin apresentou, como prova da precedência

de ambos (do autor e da própria história da arte)

o debate de Schapiro com o filósofo existencialista

Martin Heidegger tendo como foco a pintura de

Van Gogh realizada por volta de 1886 ou 1887

(geralmente referida como Old Shoes [sapatos

usados]). A pintura em questão apresenta duas

botas bem surradas, senão descartadas, com

cadarços desfeitos e solas furadas. Em A origem

da obra de arte (1935-36) – que pode ser

considerada no mesmo patamar que A crítica do

juízo, de Kant, e Estética, de Hegel, como uma

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011168 169TEMÁTICAS | CRAIG OWENS

das três grandes reflexões sobre a arte na história

da filosofia moderna – Heidegger identifica essas

botas como um par de sapatos de camponesa,

propondo, em certa medida sentimentalmente,

que “na escura abertura do interior gasto dos

sapatos, fita-nos a dificuldade e o cansaço

dos passos do trabalhador”.5 Numa réplica a

Heidegger, publicada em 1968, Schapiro rejeita

essa interpretação considerando-a “fantasiosa”

e sugere que a pintura não representa de modo

algum um par de sapatos de uma camponesa, mas

os sapatos do próprio artista, e deve, portanto,

ser interpretada como (deslocado e metonímico)

autorretrato (o texto de Schapiro, On the still life

as self portrait as personal object é, desse modo,

nova proposição à teoria da natureza-morta

como autorretratismo, desenvolvida a partir de

seus escritos sobre Cèzanne).6

Em sua crítica, Nochlin crê ver no texto polêmico

de Schapiro não apenas a evidência de sua rara

coragem intelectual – qual outro historiador da arte

poderia desafiar o maior filósofo de nosso século? –,

mas também uma vitória da história da arte sobre

a filosofia. Descartando o que considera ser jargão

metafísico, ele registra que, “em empreendimento

para dotar a arte de poder metafísico, Heidegger

perdeu contato com aquilo que torna a arte

importante mais do que com o objeto que ela

representa (grifos meus). O grande serviço de

Schapiro a seu campo, então, terá sido advogar

em favor de dar a arte para a história da arte e ao

mesmo tempo afastá-la das mãos do filósofo.

Existe aqui, entretanto, uma ironia, pois Nochlin

supõe que Schapiro possui a última palavra

nesse debate, ignorando o fato de que o caso

Heidegger-Schapiro fora reaberto dois anos

antes, por outro crítico pós-estruturalista, Jacques

Derrida, em conferência proferida em Columbia

e publicada no ano seguinte em seu livro de

ensaios sobre a pintura.7 No texto intitulado

Restitutions/De la vérite en peinture, grosso modo

Restituições/Sobre a verdade na pintura, Derrida

não toma o partido de Heidegger contra o ataque

de Schapiro; nem propõe um julgamento com

relação às vozes conflitantes. Por outro viés, ele

demonstra não existir, na verdade, contestação

alguma. Dado o fato de Heidegger e Schapiro

estarem de comum acordo, confrontados com a

pintura, ambos questionam: “De quem são esses

sapatos?” “A quem eles fazem referência?” “Quem

eles representam?” Ambos supõem que, se for

para interpretar a pintura, eles devem atribuir as

botas a um ser humano específico, ao qual elas

devem pertencer. Assim, as duas interpretações

incorrem em substituição inicial: de uma pessoa

por uma coisa, do animado pelo inanimado, do

orgânico pelo inorgânico. Essa substituição não é,

entretanto, preliminar à interpretação da pintura –

ela é a interpretação da pintura. Uma vez que a

identidade do dono dos sapatos ficou estabelecida,

tudo o mais, forçosamente, volta para o lugar.

Por essa via Heidegger e Schapiro atingiram o

objetivo humanista definido por Panofsky para a

história da arte: ambos avivaram aquilo que de

outra forma teria permanecido morto, inerte, sem

sentido – apesar (ou talvez mesmo por essa razão)

do fato de que é precisamente essa inércia, essa

ausência de sentido que a pintura parece retratar.

Ambos procedem não apenas de acordo com o

princípio do humanismo, mas do historicismo

humanista, que deseja não só reconstruir o

passado, mas reanimá-lo e, em última instância,

revivê-lo.8 Tratando a obra de arte como algo

inerte, até que o historiador lhe dê um sopro

de vida – sentido –, Heidegger e Schapiro

exemplificam o que Derrida identifica como a

relação compensatória fundamental da história

da arte com seu objeto, sua tendência de sempre

Vincent van Gogh, A Pair of Shoes [ou Old Shoes] 1886, óleo sobre tela, 37,5 x 45cm, Museu Van Gogh, fonte Museu Van Gogh

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011170 171TEMÁTICAS | CRAIG OWENS

responder àquilo que se acredita ser a deficiência básica ou ausência existente na obra, que deve, portanto, ser suplementada pela interpretação.

Mais ainda, ambos os casos desta restituição – da “verdade” da pintura – efetuam-se de acordo com igual processo de atribuição (dos sapatos a seu dono). Um atributo é sempre uma propriedade. Na pintura e na escultura, atributos são objetos (usualmente inanimados) que pertencem a um sujeito específico e nos permitem estabelecer sua identidade; por essa via, nos permitem alcançar o papel do atributo na análise iconográfica (Panofsky: “se a faca que nos permite identificar São Bartolomeu não é uma faca, mas um saca-rolhas, a figura não é São Bartolomeu”). A análise estilística ou formal, porém, refere-se também à atribuição: não é apenas endereçada àquilo que se acredita serem as propriedades intrínsecas das obras; os peritos tratam as próprias obras de arte como atributo que nos permite identificar o artista (ou, menos frequentemente, o período histórico ao qual a obra pertence). No princípio, a história da arte foi concebida como a ciência da atribuição cuja função era resgatar as obras de arte medievais tardias e da renascença vinculando-as a seus autores. Apesar de as obras de arte em sua maioria já terem, até o momento, sido vinculadas aos respectivos autores, a resposta de Schapiro a Heidegger indica que o debate a respeito da atribuição – seja ele de pinturas a seus autores ou de objetos representados a seus supostos donos, mas em ambos os casos a uma pessoa específica – permanece ainda sendo o ponto central da especulação no campo da história da arte.

Em outro momento, Schapiro formula os princípios sobre os quais repousa sua atribuição dos sapatos de Van Gogh, e toda sua teoria de natureza-morta como autorretrato; seu vocabulário nos alerta para o que está em jogo

aqui (grifei as frases relevantes):

Natureza-morta (...) consiste em objetos

que (...) sejam artificiais ou naturais, estão

subordinados ao homem como objetos de

uso, manipulação e deleite; esses objetos

são menores do que nós, ficam ao alcance

da mão, devem sua presença e lugar a uma

ação humana ou propósito. Eles exprimem

o sentido humano de exercer poder sobre

as coisas ao lidar com elas ou utilizá-las.9

Nessa passagem, representação se comunica

com o poder por meio da posse. Assim,

podemos identificar os motivos da história

da arte, pelo menos enquanto ela é praticada

como disciplina humanística: um desejo pela

propriedade, que exprime o sentido do homem

de possuir ‘poder sobre as coisas’; um desejo de

probiedade, um compromisso com o respeito às

relações de propriedade; um desejo do “nome

próprio”, designando uma pessoa específica

que invariavelmente é identificada como objeto

da obra de arte: definitivamente um desejo de

apropriação. Pois o debate Heidegger-Schapiro é

basicamente uma contestação sobre a propriedade

da imagem. Como Derrida observa, ao atribuir as

botas a uma camponesa ou ao artista, Heidegger e

Schapiro estão na verdade propondo interpretá-las

segundo a perspectiva de cada um, pela própria

identificação de um deles com o camponês e do

outro com o homem cosmopolita.

Dizer “Esta (esta pintura ou estas botas) refere-se

a X” é dizer “isto se refere a mim” pela retomada

de “isto se refere a um self [mim mesmo]”. Não

só isto é propriedade de alguém, mas também

“isto é minha propriedade”. Pois entre as muitas

identificações de obras de arte aqui mencionadas,

não podemos deixar de atentar para a identificação

de Heidegger com a camponesa e de Schapiro com o

cidadão urbano, o primeiro com o nativo enraizado,

o último com o desenraizado imigrante”.10

Representação

Toda arte é “produção de imagem” e

toda produção de imagem é criação de

substitutos. E. H. Gombrich, Meditações

sobre um cavalinho de pau.

O que a apropriação da pintura em Heidegger

e Schapiro sanciona é uma perspectiva da

representação como substituição: a imagem é

tratada como dublê ou substituto de alguém que

por alguma razão não aparece. Os historiadores

da arte sempre tenderam a definir representação

desse modo, apesar da asserção de Alpers

relativa à falta de um conceito operativo de

representação, sendo, assim, incapazes de lidar

com obras como As meninas – obras que ela crê

serem “autoconscientes e ricas no que se refere

a aspectos representacionais para os quais os

estudos literários têm estado mais afinados”. Ela

atribui essa deficiência – que propõe suprir – ao

projeto de história da arte iconológico como

formulado por Panofsky na introdução ao Estudos

de iconologia, especialmente, à distinção que ele

faz entre conteúdo pictórico ou significado de um

lado e forma de outro:

Quando um conhecido me encontra

na rua e tira o chapéu, o que eu vejo

de um ponto de vista formal nada mais

é do que a troca de certos detalhes no

interior de uma configuração formal que

faz parte de um padrão geral de cor, linhas

e volumes que constitui o meu campo de

visão (...) No entanto, minha compreensão

de que tirar o chapéu tem relação com um

cumprimento está relacionado a um campo

de interpretação de outra natureza11

Alpers discorda quando Panofsky transfere o

resultado desse encontro para a pintura: “O que

Panofsky escolhe para ignorar é que o homem

não está presente, mas representado na pintura.”

Mesmo se nessa passagem Panofsky falha em

tratar o problema da representação, não se pode

concluir por essa razão, que ele não possua

uma teoria da representação. Como seu ensaio

Perspectiva como forma simbólica evidencia,

Panofsky define representação como atividade

simbólica, em oposição à cópia da experiência

visual (representação como imitação ou ilusão).

Alpers atribui essa segunda perspectiva a

Gombrich, alegando que sua famosa frase

“Fazer vem antes de combinar” indica que ele

compreende representação como ilusão e, por

essa razão, sobretudo como questão de destreza

imitativa. No entanto, a citação no início deste

texto indica que ele também compreende a

representação como atividade simbólica, a criação

de substitutos (é isso o que na verdade “fazer antes

de combinar” significa). Em Meditações sobre um

cavalinho de pau, Gombrich opõe sua própria

visão de representação àquilo que ele identifica

como a “visão tradicional”: representação como

imitação. Ilusão, segundo Gombrich, é algo

apenas secundário, que deve ser acrescido ou

ultrapassado pela representação, não llhe sendo,

porém, de forma alguma essencial.

Pode-se demonstrar que a história da arte sempre

definiu representação em relação a estas duas

atividades – substituição ou imitação – e que

elas correspondem perfeitamente ao que em

idioma alemão se designa como Vorstellung –

representação no sentido de atividade simbólica

– e Darstellung – apresentação no sentido de uma

apresentação teatral. (Assim, a distinção poderia

ser primariamente linguística.) A primeira, ou a

relativa ao modo simbólico, é a que se refere à

substituição; a imagem é concebida como algo

que ali está em lugar de outro, ou de algo que

foi ali colocado e por essa razão ali permanece

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011172 173TEMÁTICAS | CRAIG OWENS

como compensação da ausência. A segunda, ou

aquela da modalidade teatral, é a que se refere

à repetição; a imagem é definida como réplica

da experiência visual, nela o artista trabalha para

promover a ilusão do tangível, presença física dos

objetos que ele representa. Assim, os historiadores

da arte sempre situaram a representação em

termos de polos de ausência e presença, os quais,

como Derrida demonstrou, constituem a oposição

fundamental sobre a qual a metafísica ocidental

está baseada.12 Necessita-se, então, não de um

conceito de representação (pois já possuímos

dois), mas de uma crítica a ele.

Como Gombrich testemunha, esses dois modos de

representação estão longe de chegar a conciliar-

se; os historiadores da arte só têm introduzido

o conceito de imitação para rejeitá-lo como não

essencial, suplementar, ou até mesmo errôneo.

Desse modo, Wolfflin prefacia sua discussão em

The Most General Representational forms com

a indicação: “Constitui erro para a história da

arte trabalhar com a tosca noção de imitação

da natureza, como se isso fosse meramente um

processo de obter mais perfeição.”13 A imagem

ilusionista é suspeita de fraude, de tentar passar

por algo que não é (a experiência visual direta);

motivados por platônica desconfiança, os

historiadores da arte tendem a deixar em suspenso

ou colocar sob questão o referente; eles trabalham

para distinguir as imagens dos objetos que elas

representam, de modo a restringi-las àquilo que

lhes é específico, próprio da representação em si.

(Desse modo, Schapiro declara: “Eu não encontro

nada na ingênua descrição de Heidegger sobre os

sapatos que Van Gogh representa que pudesse

ser imaginado a partir de um verdadeiro par de

sapatos camponês.”)

Estamos tão habituados a essa formulação do

problema da representação – através de obras

de arte que chamam nossa atenção para suas

propriedades materiais e através de uma história

da arte que nos ensina a enxergá-las como

combinações mais ou menos harmônicas ou

dissonantes de linhas e cores –, que podemos ter

dificuldade em apreciar o que Foucault e Marin

identificam como a condição absolutamente

fundamental da representação, pelo menos como

foi concebida no século 17: sua transparência

(que não é o mesmo que ilusionismo). No sistema

clássico de representação como foi formulado

pelos lógicos de Port-Royal, o signo é inteiramente

orientado e dependente daquilo que ele significa.

“Ele é característico”, observa Foucault, “tanto

que o primeiro exemplo de signo oferecido pela

Lógica de Port-Royal não é a palavra ou o grito, ou

o símbolo, mas a representação gráfica e espacial

– o desenho como mapa ou imagem. Isso porque

a imagem não possui nenhum conteúdo além

daquele que ela realmente representa.”14

Alegar que a representação é transparente para

com seu objeto não é defini-la como mimética ou

ilusionista – mapas, por exemplo, não estimulam

a experiência visual. Antes, isso significa que

cada elemento da obra de arte é significante,

isto é, refere-se a alguma coisa que existe,

independentemente da representação. Assim,

“transparência” designa perfeita equivalência

entre a realidade e sua representação; significante

e significado espelham-se um no outro, um

simplesmente é o duplo do outro. No entanto,

essa transparência só pode ser alcançada através

da estratégia da ocultação: por exemplo, a

lendária transparência do plano pictórico tal

como prescrito em Da pintura, de Alberti, era

alcançada pelo apagamento do suporte material

da imagem. Assim, Marin escreve a respeito de

uma tradição pictórica específica, que vigora

da Renascença pelo menos até o século 17,

expressa na instituição da perspectiva monocular

(a perspectiva é, literalmente, ver através, per-

specere, ‘trans-parência’): “Os elementos

materiais da representação – e precisamente os

traços deixados pelo trabalho do pintor, devido a

sua atividade transformadora na pintura – devem

ser apagados ou ocultados por aquilo que o pintor

representa, por sua ‘realidade objetiva’”. Assim,

quando Foucault e Marin cuidam do problema da

representação visual, eles trabalham para articular

– tornar visível – aquelas estratégias implícitas,

invisíveis e táticas pelas quais a representação

alcança sua putativa transparência; nenhum dos

dois está interessado no que a representação

revela, mas naquilo que ela oculta.

O lugar do observador

Um texto é feito por muitos escritos,

desenhado por muitas culturas e lançado

por mútuas relações de diálogo, paródia,

contestação, mas existe um lugar no qual

essa multiplicidade está focada e esse lugar é

o leitor, e não, como até aqui foi dito, o autor.

Roland Barthes, A morte do autor

O homem de Panofsky na rua de fato nos alerta

para aquilo que a representação clássica ocultaria,

aquilo pelo que alcança a transparência essencial:

o fato de pinturas serem mensagens endereçadas

ao espectador com a intenção de influenciar suas

crenças ou modificar seu comportamento de

um modo ou de outro. Elas possuem o que em

linguística se denomina um polo de emissão e um

polo de recepção; esses dois polos constituem o

“aparato representacional” da pintura. Embora

esse modelo representacional da prática pictórica

não deixe de ter problemas (em parte porque

parece ressuscitar a desacreditada categoria da

intencionalidade), nos sensibiliza para o fato

de que a relação do observador com a obra de

arte é prescrita, apontada antecipadamente pelo

sistema representacional.

Em razão de as obras de arte tenderem,

frequentemente, a apagar esses dois polos em

favor da mensagem que apresentam, a pesquisa

em história da arte os tem frequentemente

negligenciado; Alpers e Fried, entretanto, devem

ser incluídos entre os poucos historiadores da arte

que recentemente começaram a prestar atenção

não aos problemas de estilo ou iconografia, mas

ao lugar do espectador diante da obra de arte,

movendo-se dessa forma para o território do

desconhecido, seja ele no terreno dos estudos

literários ou da estética da recepção.

Existe, entretanto, pelo menos um precedente

no campo da história da arte em razão de sua

atenção ao papel do espectador, que é o trabalho

de Leo Steinberg. A sensibilidade de Steinberg em

relação ao espectador transparece em toda a sua

produção. Em The philosofical brothel, no qual ele

traça a evolução da obra Demoiselles d’Avignon,

de Picasso, o tratamento dado à relação que a

pintura causa no espectador repousa no que é,

em última instância, uma metáfora linguística: o

modo de endereçamento do pintor. Os esquetes

iniciais da obra mostram um homem jovem

entrando num bordel pela direita; na pintura

final, Steinberg comprova, o papel dessa figura,

que aparece comandando a cena, foi transferido

para o espectador. Assim, o momento decisivo da

criação de Demoiselles, o ponto no qual sua mise

en scène se arranja, é resultado de uma mudança

da narrativa, ou de um modo de endereçamento

na terceira pessoa para outro na segunda pessoa,

no qual a pintura ela mesma confronta, na

verdade, proposições ao espectador.

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011174 175TEMÁTICAS | CRAIG OWENS

“Nenhuma outra pintura”, Steinberg registra,

“(excetuando As meninas) trata o espectador

com comparável intensidade”.15 E, retomando

a discussão de Alpers a respeito de As meninas,

descobrimos que ela apresenta a mesma

metáfora linguística, ainda que tenha procurado

demonstrar, contra Foucault, que elas foram

planejadas a partir de tradições pictóricas

específicas. Em sua visão, As meninas engaja dois

tipos de representação visual, “cada um deles

estabelece um modo diferente de relação entre o

espectador e a visão de mundo ali expressa”. A

caracterização inicial de Alpers desses dois modos

é tributária das polaridade há muito existentes

na história da arte. O primeiro modo está no Sul,

exemplificado pelas convenções de perspectiva

de Alberti: “O artista se presume no lugar do

espectador na frente do mundo pintado” – isto

é, tanto fora quanto antes dele. O segundo modo

está no Norte, é descritivo; o mundo oferece

imagens dele mesmo (como num espelho ou

câmera escura) “sem a intervenção da mão

humana”, e assim “é concebido como se existisse

antes do artista-espectador”.

Quando, porém, Alpers reitera a diferença entre

esses dois modos numa só frase, a metáfora

linguística vem à superfície: “O artista diante

do primeiro tipo de pintura declara ‘eu vejo o

mundo’; diante do segundo, antes de tudo,

mostra que ‘é visto’.” A distinção de Alpers

corresponde perfeitamente à distinção que Émile

Benveniste faz entre enunciado discursivo e

histórico (ou narrativo) (discours/histoire) em sua

obra Problems of General Linguistics [Problemas

de linguística geral]. Benveniste divide a linguagem

em dois “sistemas enunciativos”. O primeiro, da

ordem do discurso, é caracterizado pelo uso de

pronomes na primeira e segunda pessoas, além

de formas adverbiais como ‘aqui’, ‘lá’, ‘agora’, e

‘então’, que se referem a situações espaciais e

temporais em que os atos discursivos ocorrem.

Enunciados discursivos então pressupõem

um falante e um ouvinte, além de apresentar

situações nas quais “o primeiro busca de algum

modo influenciar o último”.16

Enunciados históricos (ou narrativos), por outro

lado, são caracterizados pela supressão de toda

referência a ambos, falante e ouvinte, como também

a situações de elocução espacial e temporal.

Para que haja narração [Benveniste

escreve], é necessário e suficiente que o

autor permaneça fiel a sua intenção como

historiador e abandone o que é exterior à

narração dos eventos (discurso, reflexões

pessoais, comparações)... Os fatos são

descritos do modo que ocorreram,

da maneira como vão gradualmente

aparecendo no andamento da história.

Ninguém está falando aqui. Os eventos

parecem narrar a si mesmos.

Embora Alpers não reconheça essa correspondên-

cia, ela prossegue lendo As meninas como combi-

nação – “de uma forma encantadora, porém fun-

damentalmente instável e insolúvel” – desses dois

modos de representação-enunciação. Assim ela

propõe que a relação do observador com a cena

representada é profundamente paradoxal.

O mundo observado que é anterior a

nós é precisamente o que, ao olhar para

fora (e aqui o artista se junta à princesa

e a parte de seu séquito) nos confirma

ou reconhece. Mas se nós não chegamos

a nos posicionar diante desse mundo e

perscrutá-lo, a antecedência do mundo

visto não terá sido definida em primeiro

lugar. Na verdade, para fechar-se, o mundo

visto está diante de nós porque nós (da

mesma maneira que o rei e a rainha estão

refletidos no espelho distante) somos

aqueles que comandam sua presença.

Essa circularidade, conclui Alpers, consiste no que

torna tão “extraordinário” As meninas.

Posto isso, onde a interpretação repousa? Será

essa circularidade entre observador e observado

o que verdadeiramente define a originalidade que

Velázquez alcança em sua pintura? Isso dá conta

adequadamente da especificidade de As meninas?

E se se pudesse demonstrar que essa combinação

de dois modos antitéticos de representação-

enunciação não fosse peculiar a As meninas ou

ainda a Velázquez, mas existisse também em

outras pinturas do século 17? E se isso não fosse

peculiar só à pintura, mas também compartilhada

pela literatura? (De fato, Marin demonstra

que as regras da gramática e da lógica, como

formuladas no século 17, atribuem a coexistência

desses dois modos aparentemente incompatíveis

em qualquer elocução.) E se, finalmente, essa

circularidade que Alpers encontra em As meninas

definisse em última instância o que Foucault

chama de episteme clássica – o horizonte no

qual todo o conhecimento está encerrado, o

limite que circunscreve aquilo que foi possível

dizer, representar, e mesmo pensar no século 17?

Então a conquista de Velázquez não poderia mais

ser descrita como combinação original de dois

modos distintos de representação, mas como

o desdobramento, na superfície de sua tela, do

próprio sistema clássico de representação – que é

o que Foucault lhe tem atribuído todo o tempo.

Representação e propriedade

Tomando o povo como sua propriedade

privada, o rei está apenas declarando que

o dono da propriedade privada é o rei.

Marx, A contribution to the Critique of

Hegel’s Philosophy right17

Em Outros critérios, Steinberg descreve As

meninas como um “inventário das três possíveis

funções que se pode distinguir em relação ao

plano pictórico” – janela, espelho e superfície

pintada –, exibidas em sequência na parede de

fundo do estúdio de Velázquez no palácio. Esses

três elementos – o primeiro e o último deles

reiterados na janela implícita e tela invertida que

figuram na cena teatral – representam as múltiplas

funções apresentadas na própria superfície de As

meninas: uma janela através da qual percebemos

a cena e o espelho através do qual ela é percebida

(pelo pintor representado dentro dela). Steinberg

nos lembra, entretanto, que “os interiores do

séulo 17 em geral justapõem o vão de uma porta

aberta ou visada de uma janela com a moldura

de uma pintura e, próximo a elas, um espelho

preenchido por algo que está ali refletido.”18 Essa

caracterização da pintura como “inventário”,

desse modo, contradiz a qualificação que

Alpers atribui a Velázquez “encantadora porém

fundamentalmente instável e insolúvel”. O que

Alpers identifica como específico dessa pintura

Steinberg toma como aquilo que em geral é típico

da pintura do século 17.

Segundo Marin, a coincidência numa única obra

de arte dos mesmos dois modos aparentemente

incompatíveis – pintura como janela e como

espelho – não é apenas típico, mas o próprio

fundamento sobre o qual o sistema clássico de

representação foi erigido. Assim, ele define seus

“axiomas contraditórios”:

(1) A superfície representacional é uma janela

transparente através da qual o espectador,

homem, contempla a cena representada na tela

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011176 177TEMÁTICAS | CRAIG OWENS

como se visse uma cena real representada no

mundo; (2) mas, ao mesmo tempo, a superfície –

na realidade uma superfície e um suporte material

– é também um aparato refletor no qual objetos

reais são pintados.

O primeiro axioma, pintura-como-janela

(equivalente ao que Benveniste denomina nível

discursivo), atribui a imagem a um tema humano

específico – o “olho/eu” que ocupa o ponto

de vista privilegiado no sistema de perspectiva

monocular – que tem sido substituído por coisas;

sua representação desse sujeito pode então

tomar a representação como sua, como um

dos modos de sua visão, de seu pensamento.

Entretanto, no segundo axioma, pintura-como-

espelho (equivalente ao nível histórico) esse

sujeito observador desaparece, e o mundo,

por essa razão parece representar a si próprio

sem a intervenção de um artista. O segundo

axioma, então, postula perfeita equivalência

entre realidade e representação, de modo que

as representações “possam ontologicamente

aparecer de modo semelhante às coisas que elas

representam, ordenadas num discurso racional e

universal, o discurso da realidade em si”. É através

da supressão de toda evidência do aparato

de representação, então, que é assegurada a

reivindicação do clássico status autoritário da

representação, de possuir alguma verdade ou

valor epistemológico.

(O papel do espelho em estabelecer valor de

verdade da representação pictórica é também

discutido por Steinberg numa conferência sobre

As meninas, escrita em 1965 e apresentada

muitas vezes, porém só recentemente publicada:

“Descobrimos que o plano de visão cumulativo de

Velázquez configura duas coisas distintas como

uma única: o que o rei e a rainha enxergam do

lugar em que se encontram e o que nós vemos

do nosso – a coisa real e a sua pintura – o espelho

revela como idênticas, como se fosse patente o

fato de que a obra de arte na tela espelhasse a

verdade que a capacidade de reflexão de nenhum

espelho pode ultrapassar. Nesse sentido, As

meninas pode ser considerada responsável por

celebrar a verdade da arte do pintor”).19

A fim de exemplificar como esses axiomas

contraditórios podem coexistir numa única

pintura, Marin sintetiza a observação de Benveniste

de que elocuções históricas são caracterizadas

pela supressão de todos os indícios de emissão

e de recepção com a hipótese de Freud de que

toda negação na verdade constitui uma (forma

mascarada de) afirmação. Quando um paciente

diz “você me perguntou quem poderia ter sido

essa pessoa no sonho. Não era minha mãe”,

Freud comenta, “nós emendamos: ‘Então ela era

sua mãe’”.20

Assim, Marin deduz aquilo que ele chama de

“estrutura-negação” da representação clássica:

A tela como suporte e como superfície não

existe. Pois pela primeira vez na pintura

[Marin está discutindo a construção da

perspectiva em Brunelleschi] o homem

encontra o mundo real. Mas a tela

como suporte e sua superfície existem

para operar a duplicação da realidade:

a tela como tal é simultaneamente

pressuposta e neutralizada, ela tem de ser

técnica e ideologicamente aceita como

transparente. Invisível e ao mesmo tempo

a condição necessária da visibilidade;

refletir a transparência em teoria define o

plano de representação.

Essa simultânea afirmação e negação do aparato

representacional assegura a transparência da

representação clássica e, ao mesmo tempo, define

o status (ontológico e epistemológico) do objeto

de representação. Pois se, no primeiro axioma, a

representação é atribuída a uma pessoa específica

que “se apropria de coisas, da realidade como algo

seu, sua realidade”, o segundo axioma demonstra

que “essa pessoa não está situada no tempo e

no espaço com toda as suas determinações, mas

atua como um espírito universal e abstrato cuja

única função é fazer juízo das coisas e afirmá-las.”

(Na teoria política clássica, é claro, essa função era

atribuída somente ao rei, o juiz imparcial e universal.)

No sistema clássico de representação, então,

o objeto da representação é suposto como

absolutamente soberano. Em outras palavras, a

pessoa que representa o mundo foi transformada,

pelo ato da representação, de um ser subjetivo

enredado no espaço e no tempo – pelos quais é de

certo modo possuído – em Mente transcendente

e objetiva que se apropria da realidade para si

mesma e, por apropriar-se dela, a domina. Assim

Marin descreve essa operação:

Podemos compreender esse processo como aquele no qual um sujeito inscreve-se a si mesmo como o centro do mundo e transforma-se em coisas pela transformação de coisas em sua própria representação. Tal pessoa tem o direito de possuir as coisas legitimamente porque substituiu por coisas os seus signos, que a representam adequadamente – portanto, dessa maneira, a realidade equivale exatamente a seu discurso.

A representação é, então, definida como

apropriação e, desse modo, se constitui como

aparato de poder. A análise de Marin acaba

aqui; o tratamento que ele dá à representação

clássica pode, entretanto, estar delimitado à

vida social e econômica do século 17, a fim de

evidenciar a função essencialmente política à

qual a representação serve. Não devemos supor que apropriação equivale automaticamente à propriedade apesar da famosa definição de Locke de 1960: “Qualquer um que retire do Estado algo que a natureza proveu e tome para si acrescentando-lhe algo que seja seu, por meio disso, torna-o sua propriedade.”21 Antes de Locke, entretanto, os conceitos de apropriação (Labor) e propriedade eram mutuamente exclusivos: propriedade era adquirida através de herança, conquista ou divisão legal, mas nunca através de trabalho (associado não à propriedade, mas à pobreza).22 A ideia de Locke de que o homem tem direito natural à propriedade criada por seu trabalho foi assim uma formulação radical e certamente não corresponde à realidade econômica e política do século 17.

No modo feudal de produção, o trabalhador não tinha nenhum direito legal de usufruir de seu próprio trabalho, o que cabia ao dono da terra. Ter a propriedade da terra equivalia a ter poder político; a economia e a política eram inextricavelmente entrelaçadas.23 Entretanto, nas monarquias absolutas que emergiram do modo feudal de produção para dominar a Europa do século 18 – e eram por isso contemporâneas ao sistema clássico de representação – os interesses políticos e econômicos eram, pelo menos teoricamente, distintos.24 A principal característica do estado absolutista foi ter restabelecido a lei romana, que rigorosamente distinguia os direitos econômicos determinados pela propriedade privada da autoridade absoluta investida pelo Estado. A lei civil romana (jus) que regulava as transações econômicas entre os homens, era baseada no caráter absoluto e incondicional da propriedade privada; a lei pública romana (lex), entretanto, que regia as relações políticas entre o Estado e seus súditos, contrabalançava o caráter incondicional da propriedade privada com a natureza formalmente absoluta da soberania imperial.

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011178 179TEMÁTICAS | CRAIG OWENS

Ao reviver a lei romana, os Estados absolutistas

do início da Europa moderna reintroduziram a

separação entre as esferas econômica e política:

o poder foi consolidado numa monarquia central,

cuja soberania era absoluta; ao mesmo tempo,

títulos de propriedade da aristocracia feudal

ganharam força. O mesmo processo histórico

que reduziu o poder político da aristocracia

então, compensou essa perda garantindo-

lhe ganhos em propriedade sem precedente.

Essa foi a contradição principal sobre a qual a

estrutura social do Estado absolutista se assentou

– contradição que em última instância o levou

à queda. A soberania absoluta do rei deu-lhe

o poder de anular os privilégios medievais e

ignorar os direitos de propriedade tradicionais;

paradoxalmente, foram esses privilégios e direi-

tos que ganharam força com a ascensão do

absolutismo. Como consequência, a história do

Estado absolutista é acima de tudo a história

do conflito entre a monarquia e a aristocracia

pelo poder político.

Em Tristes trópicos Claude Lévi-Strauss propõe

que as obras de arte possam ser interpretadas

como soluções imaginárias de contradições

sociais reais;25 o sistema clássico de representação

é de fato constituído dessa forma, de modo a

precisamente facilitar essa solução. Contraditórios

entre si, seus dois axiomas reproduzem os dois

polos antitéticos – propriedade/soberania – o que

define as contradições sociais que atravessam o

Estado absolutista. Na representação clássica,

essa autonomia é resolvida através da dialética da

afirmação e negação, pela qual as reinvindicações

conflitantes por propriedade e soberania são

forçadas a coincidir. Pois o axioma que define

representação como propriedade de um indivíduo

específico depende, para sua legitimação, daquilo

que qualifica representação como a expressão do

abstrato, verdade universal. E não existia verdade

mais universal do que o fato, indiscutível na

ideologia da regra absolutista, de que a supremacia

absoluta do soberano é conferida por Deus.

É importante mencionar que os princípios feudais

de domínio territorial e, com eles, o poder político

investido na propriedade da terra persistiram

mais fortemente durante a época do absolutismo

na Espanha, onde, em última instância, eles

contribuíram para o colapso da dinastia dos

Habsburgo.26 E, agora, talvez possamos começar

a compreender as implicações das colocações

de Foucault a respeito de As meninas bem no

início de sua análise da episteme clássica, tanto

quanto de sua enigmática asserção de que a

pintura de Velázquez representa a ausência de

um sujeito na representação – “da pessoa com a

qual a imagem se assemelha e da pessoa em cujos

olhos a imagem é apenas uma semelhança”. Em

As meninas esses dois objetos tornam-se invisíveis

para coincidir.

A pintura, claro, está focada num ponto central

– definido pela arquitetura dos gestos e dos

olhares que atravessam e tornam implícita a

construção perspectivada do espaço –, que é

claramente ocupado pela pessoa para a qual a

cena existe, que pode tomar essa representação

como sua (essa pessoa é também o modelo cuja

imagem Velásquez presumivelmente traçou na

tela antes de pintar). Esse ponto focal da pintura,

no entanto, não está propriamente inserido na

pintura, mas lhe é externo – como deve ser se as

observações de Marin sobre a posição do objeto

de representação clássica estiverem corretas.

Pois se, através da representação, o objeto é

transformado em algo abstrato, uma mente

transcendente “cuja única função é julgar as coisas

e afirmá-las”, então ele nunca pode aparecer

em sua própria representação (essa ausência do

sujeito da cena de representação é reconhecido,

Foucault supõe, dentro da própria pintura pelo

fato de que só pelo lado reverso da tela, no qual

seu retrato presumivelmente aparece, é visível

pelo espectador de As meninas”.

Além disso, seguindo a hipótese de negação-

estrutura de representação clássica, a elisão do

objeto de representação deve também significar

sua afirmação. Pois apesar de a pessoa em razão

da qual a representação existe nunca poder ser

encontrada na própria representação, Foucault

acredita que ela de qualquer modo ali se reconhece

de modo deslocado, na forma de uma imagem ou

reflexo”.27 E de fato, em As meninas a figura que

ocupa a posição de observador privilegiado – e

cujo olhar portanto precede o do pintor – está

refletida na própria pintura pelo espelho que

rompe a continuidade da parede do fundo da

pintura de Velázquez do estúdio no Palácio. O

espelho não apenas estabelece a identidade da

pessoa que ali está; ele também define o ponto

que ele ocupa como soberano absoluto. Pois ali

está, como indica o subtítulo de um dos capítulos

seguintes de Foucault, “O lugar do rei”.

Embora esse ponto central do quadro também

pudesse ser ocupado pelo pintor, posicionado

na frente de As meninas para pintá-la, e pelo

espectador que contempla a imagem, nem o

artista e nem o espectador poderiam usurpar

o privilégio e o poder que pertencia somente

ao soberano. Pois a pintura não representa a

visão do pintor e sim a do rei; Velázquez parece

ter abdicado de seu próprio papel de autor da

imagem, em favor da autoridade superior que o

sustenta e sua arte. Na realidade, não precisamos

identificar Filipe IV como derradeiro “autor” de

As meninas, tanto quanto Marin, no caso de The

Arcadian Shepherds, conferiu não a Poussin, mas

ao cardeal Rospigliosi, que comissionou a pintura e

criou seu programa junto à frase “Et in Arcadia ego”

(a autoria de Rospigloisi é reconhecida, argumenta

Marin, dentro da própria pintura pelo fato de o dedo

indicador do pastor que tenta decifrar a inscrição da

tumba apontar para a letra “r” na palavra Arcadia”

que é também a letra central da inscrição e está

localizada no exato centro geométrico da pintura.)

Tampouco o espectador de As meninas usurpou o

lugar do rei; para isso nós teremos que esperar até

o final do século 18, quando as regras absolutistas

serão dissolvidas e o homem, como nos fala

Foucault na mais audaciosa hipótese apresentada

em A ordem das coisas, fará sua primeira aparição

no palco da história. O que nos é oferecido a

contemplar em As meninas está delimitado,

circunscrito pela visão do rei; nós vemos nem mais

nem menos do que ele vê (é isso, eu acredito,

que Foucault quer dizer quando declara que As

meninas descreve os limites da representação

clássica.) De fato, a pintura atua como armadilha

para o olhar do espectador, o qual é convocado

pelos olhares do pintor e da princesa, apenas para

ser sujeitado, através deles, ao olhar do rei.

Modernidade lamuriante

O princípio de realidade, ao demonstrar

que o objeto do desejo não existe mais,

requer que doravante toda a libido seja

afastada de sua ligação com esse objeto.

Contra essa pretensão um conflito ocorre

observa-se de modo universal que o

homem nunca abandona voluntariamente

a posição-libido, nem mesmo quando um

substituto já o convida.

Freud, Mourning melancolia

A discussão de Marin sobre a estrutura-negação

da representação clássica não foi introduzida

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011180 181TEMÁTICAS | CRAIG OWENS

no MLA por Alpers, mas por Michael Fried, cujo

trabalho recente também foi dedicado às relações

pintura/espectador – mas em ciscunstâncias

históricas radicalmente diferentes. Em seu livro

Absortion and theatricality Fried investiga o

papel do espectador no final do século 18, isto é,

precisamente no momento em que a transparência

da representação clássica e, com ela, sua pretensão

à verdade foram perdidas. Como observa Jean

Clay em seu livro recente Romanticism, no

final do século 18 a “transparência [do plano

pictórico] começou a tornar-se opaca, a superfície

[representacional] se consolidou, o véu [de Durer]

contraiu sua malha.28 Como observa Foucault, “O

limiar entre o classicismo e a modernidade (...)

foi definitivamente cruzado quando as palavras

deixaram de se remeter às representações e

proporcionar um quadro espontâneo para o

conhecimento das coisas”.29

Entretanto o tratamento que Fried oferece ao

problema do espectador no limiar da modernidade

é bastante similar à discussão de Marin sobre esse

problema no século 17:

O reconhecimento de que as pinturas são

feitas para ser vistas [escreve Fried] e por

essa razão pressupõem a existência de um

observador leva a buscar a atualização de

sua presença (...) Ao mesmo tempo (...)

será sempre pela negação da presença do

observador que isso poderá ser alcançado:

só quando se estabelece a ficção de sua

ausência ou não existência é que o lugar

dele diante da pintura e de encantamento

com relação a ela pode ser assegurado.30

Fried argumenta, entretanto, que foi apenas “por

volta do final do século 18’’ e só na França que “a

existência do observador − a principal condição

de as pinturas terem sido feitas para ser vistas −

emergiu como problemática para a pintura como

nunca tinha ocorrido antes”. Não surpreende,

então, que ele pudesse acusar de “a-histórica”

a hipótese de Marin, alegando que seu uso

da distinção estruturalista história/discurso de

Benveniste seria indicativo de busca de um

operador trans-histórico [transhistorical operator]

que viria a definir a “essência” da pintura histórica.

(Aqui, Fried apenas reitera a agora tão familiar

acusação de que o estruturalismo é a-histórico;

entretanto, a análise da estrutura social do Estado

absolutista demonstra o caráter histórico da

análise de Marin.)

Fried questiona a suposição de Marin de que,

quando uma figura ou grupo de figuras numa

pintura olha para o observador, como se percebesse

sua presença diante da tela (como em As meninas),

é o aparato representacional que está sendo

reconhecido. Esse reconhecimento, argumenta

Fried, também é historicamente determinado;

cita como evidência a análise da recepção da obra

Fils ingrat (1777), de Greuze, como realizada pela

crítica contemporânea, na qual a presença de um

menino, que parece olhar para fora da tela em

direção ao espectador, não foi interpretada como

algo que interrompe a continuidade narrativa da

pintura. Mas quando Marin observa que, em The

Arcadian Shepherds, de Poussin, ninguém parece

se dirigir diretamente ao espectador – “exceto pela

existência da pintura e o fato de estarmos olhando

para ela, nada na mensagem icônica adverte sobre

sua emissão ou recepção; ou seja, nenhuma figura

está nos olhando como espectadores, ninguém se

remete a nós como representante do emissor da

mensagem” – Fried objeta que Marin não dá atenção

ao que Marin enxerga como “a condição primordial

de que pinturas são feitas para ser contempladas”.

Como, porém, essa “condição principal”

difere do operador trans-histórico que Fried

categoricamente rejeita? A resposta de Fried sem

dúvida seria que mesmo essa condição só se

torna “primordial” quando concebida no final

do século 18 (a reflexão de Benjamin a respeito

do valor de culto das obras de arte primitivas, que

não eram destinadas à exibição, em seu trabalho

A obra de arte na época da reprodutibilidade

técnica, poderia embasar esse argumento.) Mas

como pode uma convenção ser ao mesmo tempo

primordial e histórica, e por que o tratamento

que Fried confere às convenções representativas

do século 18 seria mais histórico do que a

discussão dessas mesmas convenções como eram

concebidas no século 17?

O ceticismo de Fried com relação à existência de

todas essas constantes pode ser remetido àqui-

lo que ele esboçou em suas críticas do final dos

anos 60, especificamente às notas de rodapé

que complementam o texto “Arte e objetidade”,

um ataque à escultura minimalista recorrente-

mente citado.

Nessas notas de rodapé, Fried emenda a asserção

de Clement Greenbereg de que “a essência

irredutível da arte pictórica consiste em apenas

duas convenções constitutivas ou normas: a

planaridade e a delimitação da planaridade”.

Admitindo que “em termos gerais isso é

indubitavelmente correto”, Fried continua:

(...) a planaridade e a delimitação da

planaridade não devem ser pensados como

‘essência irredutível da arte pictórica’ mas

antes como algo semelhante a condições

mínimas para que algo possa ser visto

como pintura (...) a questão crucial não é

o que essas condições mínimas e, pode-

se dizer, atemporais são, mas o que, em

determinado momento, é capaz causar

convicção, de triunfar como pintura.

Isso não significa dizer que a pintura

não tenha essência; é propor que essa

essência, isto é, aquilo que compele à

convicção, é de modo geral determinado,

e as mudanças estão aí sempre para

comprová-lo, pelas principais obras do

passado recente. A essência da pintura

não é algo irredutível.31

A busca de Fried de um historicismo radical

parece, pelo menos inicialmente, coincidir com

a percepção de Nietzsche – que tem sido crucial

para o trabalho de Foucault desde 1970 – de

que aquilo que permanece por trás das coisas

“não é uma linha do tempo ou essência secreta,

mas o segredo de que as coisas não possuem

essência ou a essência delas foi fabricada

como colcha de retalhos a partir de formas

exteriores”.32 Enquanto ambos, Nietzsche

e Foucault, apresentam a essência como

“invenção das classes dominantes”, ou seja,

como instrumento de poder, Fried os neutraliza

quando alega que ela só se transforma em

“relação às obras importantes do passado”.

Embora os três autores, ao que parece, partam

da mesma hipótese, então, a tentativa de Fried

de preservar a categoria de essência tentando

historicizá-la é o antípoda do esforço de

Foucault em destruí-la.

Na verdade, o recente projeto histórico de Fried

tem caráter de restauração, preocupada em

traçar a genealogia de sua posição crítica

dos anos 60 – desenvolvida para embasar a

obra de pintores como Frank Stella e Morris

Louis (e escultores como Anthony Caro) e

para repudiar como teatral o trabalho dos

escultores minimalistas, os quais Fried via como

representativos de um abandono, na verdade,

uma perda dos ideais modernistas de pureza e

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011182 183TEMÁTICAS | CRAIG OWENS

presentificação. Alienado dos desenvolvimentos

subsequentes no campo da arte, Fried abrigou-se

na história; e uma das principais características de

seu trabalho recente é a tentativa de proclamar

Diderot – que também condenava como teatral

muitas das obras de seu tempo – moderno.

Em A ordem das coisas, entretanto, Foucault de

modo convincente encerra Diderot na ordem

clássica, oferecendo como evidência disso

seu projeto de uma Enciclopédia de todo o

conhecimento existente. Assim, a pretensão

de Diderot, nesses escritos críticos e teóricos

sobre arte, em virtude da simultânea afirmação

e negação da presença do observador diante da

obra de arte, permanece como talvez o último

grande argumento da teoria da representação

clássica. Surgindo no crepúsculo da ordem clás-

sica, essa pretensão aparece como tentativa

conservadora de tornar a contemplação, nas

palavras de Fried, “uma vez mais, uma forma de

alcançar a convicção e a verdade”.

A própria posição de Fried no crepúsculo da

modernidade é equivalente à de Diderot relativa

ao fim da ordem clássica; assim, não é de

surpreender que o conservadorismo de Diderot

fosse algo que Fried preferiria reprimir. Pois

conforme seu próprio trabalho prossegue – Fried

passou de Diderot e David a Courbet – mais e

mais se assemelha ao trabalho do luto tal como

descrito por Freud:

A tarefa é levada à frente passo a passo, com

grande empenho de tempo e concentração

de energia, enquanto durante todo o tempo

a existência do objeto perdido continua

na mente. Cada uma das memórias e

esperanças que vinculam a libido ao objeto

afloram e são fortalecidas, e o afastamento

de sua libido é consumado.33

Post script: Pós-modernismo

O que o trabalho de Fried lamenta, na verdade,

é a morte do modernismo. O pós-modernismo

– como o pós-estruturalismo – é uma crítica

à representação, especialmente porque foi

concebido a partir do modernismo. “A formulação

modernista ao problema da representação”,

pondera Frederic Jameson, “[foi] emprestada da

terminologia religiosa que define representação

como ‘figuração’, uma dialética da letra e do

espírito, uma ‘linguagem pictórica’ (Vorstellung)

que encarna, expressa e transmite verdades de

outro modo inexpressáveis”. O pós-modernismo,

por outro lado, é caracterizado por sua “decisão

de usar a representação contra ela própria, de

modo a destruir o vínculo ou o status absoluto

de qualquer representação.” Assim, Jameson

distingue obras modernistas das não modernistas

precisamente tendo em conta “a relação delas

para com aquilo que ele chama de ‘verdade-

contenciosa’ da arte, sua alegação de possuir

alguma verdade ou valor epistemológico”.34

Jameson está distinguindo os filmes

(modernistas) de Syberberg dos filmes (pós-

modernistas de Godard. Nas artes visuais,

a crítica pós-modernista da representação

trabalha usando procedimento similar para

minar o status referencial do imaginário

visual e, desse modo, sua alegação de que

representa a realidade como de fato é, quer

seja a face aparente das coisas (realismo)

ou alguma ordem ideal existente escondida

sob ou além da aparência (abstração). Os

artistas pós-modernistas demonstram que essa

“realidade”, concreta ou abstrata, é ficção,

produzida e sustentada exclusivamente por sua

representação cultural.35

A maioria das obras de arte lida com imagens,

transmitidas pela mídia, que exploram o status

documental dos modos de representação

fotográfico ou cinemático. A fotografia e o filme,

baseados como o são na perspectiva com único

ponto de vista, são meios transparentes; sua

derivação do sistema clássico de representação

é óbvia, e ainda estão por ser investigados

criticamente. Os artistas que lidam com essas

imagens trabalham para desmascará-las como

instrumentos de poder; investigam as mensagens

ideológicas ali codificadas, mas também, o que

é ainda mais importante, as estratégias e táticas

pelas quais essas imagens asseguram seu status

autoritário em nossa cultura. Pois, se essas imagens

se apresentam como instrumentos efetivos de

persuasão cultural, então sua materialidade e

suporte devem ser apagados para que, nelas, a

própria realidade pareça tomar a palavra. Por meio

da apropriação, da manipulação e da paródia,

esses artistas trabalham para tornar visíveis os

mecanismos invisíveis pelos quais essas imagens

asseguram sua suposta transparência – uma

transparência que deriva, como na representação

clássica, da aparente ausência de um autor.

Portanto, quando Fried – e Alpers – tentam

repudiar a obra de escritores como Marin e

Foucault, eles também atestam a distância

existente entre a história da arte e a prática

artística contemporânea. Isolados não apenas do

mais significativo corpo da crítica presente, mas

em grande medida também de sua arte, a história

da arte tem negado a si mesma qualquer conexão

com os dias de hoje – o que constitui, como

Walter Benjamin entendia, pré-requisito absoluto

para qualquer investigação histórica. Perdendo

essa conexão, a história da arte cai no estudo da

antiguidade – o que pode ser, enfim, o destino da

história da arte na pós-modernidade.

Tradução Cíntia Moreira

Revisão técnica Cezar Bartholomeu

NOTAS

1 Marin, Louis. Towards a Theory of Reading in the

Visual Arts: Poussin’s The Arcadian Shepherds, in

The Reader in the Text, org. Suleiman and Crosman.

Princeton: Princeton University Press, 1980:293-324.

Todas as demais citações de Marin foram retiradas

dessa fonte.

(Outro tabalho de Marin foi publicado em português:

Sublime Poussin. trad Mary Amazonas Leite de

Barros. São Paulo: Edusp, 2000. Clássicos 20[N.T])

2 Freud, Sigmund. Negation. Trad. Joan Riviere, in

General Psychological Theory. New York: Collier,

1963:214. Primeira edição 1925.

(Em português: Freud, Sigmund. A negativa, 1926.

v. XIX. In Edição Standard Brasileira das Obras

Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,

1996 [N.T.]).

3 A informação mais esclarecedora das implicações

políticas da crítica de Derrida e Foucault pertence

a Said, Edward. The Problem of textuality: two

examplary positions, Critical Inquiry n.4 (Verão

1978), reimpresso in Aesthetics Today, org. Philipson

and Gudel. New York: NAL, 1980:89.

4 In Foucault, Michel. Language, Counter-memory,

Practice, org. Donald F. Bouchard. Ithaca: Cornell

University Press, 1977:92.

5 Heidegger, Martin, The origin of the Work of Art, in

Poetry, Language, Thought, trad. A. Hofstadter. New

York: Harper & Row, 1971:33-34.

(Em português: Heidegger, Martin. A origem da obra

de arte. Lisboa: Edições 70, 1990:25-7. Coleção:

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011184 185TEMÁTICAS | CRAIG OWENS

Biblioteca de Filosofia Contemporânea [N.T.])

6 Schapiro, Meyer. The still life as personal object : a

note on Heidegger and Van Gogh. In: The reach of

mind: essays on memory of Kurt Goldstein. org. M.L.

Simmel. New York: Springer, 1968:206-208.

7 Derrida, Jacques. La vérité en peinture. Paris:

Flamarion, 1978:291-436.

8 Apesar de Walter Benjamin, em seu trabalho Teses

sobre filosofia da história, caracterizar o método

com o qual o materialismo histórico rompeu, “A

historiadores que desejavam reviver uma época,

Fustel de Coulanges recomenda que apaguem

tudo o que sabem sobre a fase da história que lhes

precede.” Illuminations. Trad. Harry Zohn. New York:

Schocken, 1969:256.

9 Schapiro, Meyer. The apples of Cézanne. In Modern

Art: Selected Papers. New York: Braziller, 1978:19.

10 Derrida, op. cit.:297.

11 Panofsky, Erwin. Studies in Iconology. New

York:Harper & Row, 1962. (Em português: Panofsky,

Erwin. Estudos de iconologia: Temas humanísticos na

arte do renascimento. Lisboa: Estampa, 1995 [N.T.])

12 Derrida não só apresenta essa oposição; ele

propõe sua dissolução. Ver Derrida, Jacques.

Grammatology, Trad G.G. Spivak. Baltimore: Johns

Hopkins University Press, 1976. Pasim.

(Em português: Derrida, Jacques. Gramatologia, São

Paulo: Perspectiva, 1973 (1. ed. 1967) [N.T]).

13 Wölfflin, Heinrich. Principles of Art History.

Reimpresso em Spencer, org., Readings in Art History.

New York: Scribners, 1969, v.II:157.

(Em português: Conceitos fundamentais da história

da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2006 [N.T.])

14 Foucault, Michel. The order of things. New York:

Pantheon, 1971:64. (Em português: A ordem das

coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2000 [N.T.])

15 Steinberg, Leo. The philosophical brothel.

Artnews, set. 1972:20

16 Benveniste, Émile. Problèmes de linguistique

générale. Paris: Gallimard, 1966:242.

(Em português: Problemas de linguística geral II.

Tradução de Eduardo Guimarães et al. Campinas:

Editora Pontes, 1989 [N.T.])

17 Crítica da Filosofia do Direito, de Hegel, introdução

disponível em português em http://www.marxists.

org/portugues/marx/1844/criticafilosofiadireito/

index.htm [N.T.].

18 Steinberg, Leo. Other criteria. In Other criteria.

New York: Oxford University Press, 1972:73-74.

(Em português: Outros critérios. Tradução Célia

Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2008 [N.T.])

19 Steinberg, Leo. Velazquez’s Las Meninas. October,

v. 19, Cambridge: The MIT Press, Winter 1981:52.

20 Freud, Sigmund. Negation. Trad. Joan Riviere,

in General Psychological Theory. New York: Collier,

1963:213. Primeira edição 1925.

(Em português: Freud, Sigmund. A negativa, 1926.

v. XIX. In Edição Standard Brasileira das Obras

Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,

1996 [N.T.]).

21 Locke, John. Two treatises of Government. New

York: NAL, 1963:329 (1a. ed. 1689).

22 Ver Hannah Arendt. The Human condition.

Chicago: University of Chicago, 1958:109ss.

23 Ver Karl Marx. Economic and Philosophical

Manuscripts. In Early Writings Trad. Livinsgstone and

Benton, New York: Vintage, 1975:279-400.

(Em português: Manuscritos economico-filosóficos

de 1844. Trad. Maria Antônia Pacheco. Lisboa:

Avante, 1993 [N.T.]).

24 Esse parágrafo e o seguinte são baseados em

Perry Russell. Lineages of the absolutism state.

Londres: NLB, 1974.

25 Lévi-Strauss, Claude. Tristes tropiques. Trad.

John Russell. New York: Atheneum, 1971:176-180.

Recentemente, Frederic Jameson propôs aplicar o

esquema de Lévi-Strauss à produção cultural em

geral; ver The political unconscious. Ithaca: Cornell

University Press, 1981:77ss. (Em português: Tristes

trópicos, trad. Rosa Freire de Aguiar, São Paulo:

Companhia das Letras, 1996 [N.T.]).

26 Anderson, Perry. Lineages of absolutist state. N.J.

London: Atlantic Highlands, Humanities Press, Fall

1974:60-84.

27 Foucault, Michel. The order of things: 308.

A citação completa: “No pensamento clássico, o

personagem para o qual a representação existe, e

que se representa lá, reconhecendo-se como imagem

ou reflexo, aquele que amarra tudo com o laço da

representação na forma de uma imagem ou mesa,

nunca será encontrado na própria mesa.

28 Clay, Jean. Romanticism. Trad. Owens e Wheller.

New York: Vendome, 1981:25.

29 Foucault, Michel. The order of things:304.

30 Fried, Michael. Absorption and Theatricality.

Berkeley: University of California Press, 1980:103.

31 Fried, Michael. Art and objecthood. Artforum, New

York, 1967. Reedição in Philipson e Gudel, orgs., Aesthetics

today. New York: New American Library, 1980:235. (Em

português: Arte e objetidade, Arte&Ensaios, n.9, Rio de

Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Artes visuais /

Escola de Belas Artes, UFRJ, 2002 [N.T.]).

32 Foucault, Michel. Nietzsche, Genealogy, History.

In Language, Counter-memory, Practice, op. cit.:142.

33 Freud, Sigmund. Mourning and melancholia. In

General psychological theory, op. cit.:166.

(Em português: O luto e a melancholia. In Obras

Completas. Rio de Janeiro: Imago, v. XIV [N.T.]).

34 Jameson, Frederic. In the destructive element

immerse: Hans-Jürgen Syberberg and Cultural

Revolution. October, v.17, Cambridge, Summer,

1981:99-118.

35 A respeito da realidade como efeito de

significação, ver Jean Baudrillard, For a critique of the

political economy of the sign Trad. Rosen. St Louis:

Telos, 1981.

Craig Owens foi teórico no campo da

cultura contemporânea, editor de periódicos

especializados em arte, professor e historiador da

arte nas universidades de Yale e Bernard. Esteve

ligado ao movimento pós-modernista nas décadas

de 1970 e 1980, período em que publicou artigos

sobre fotografia, alegoria, feminismo, política

homossexual, mercado de arte e psicanálise.

Depois de falecer de Aids aos 39 anos, em 1990,

alguns de seus escritos foram publicados em forma

de coletânea. O texto é capítulo do livro Beyond

recognition: representation, power and culture.

Org Scott Bryson et al. California: University of

California Press, 1994.

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011186 187TEMÁTICAS | DANIEL BUREN

De todos os enquadramentos, embalagens e

limites – em geral não percebidos e certamente

nunca questionados – que compartimentam e

“fazem” a obra de arte (o quadro, a moldura, o

pedestal, o castelo, a igreja, a galeria, o museu,

o poder, a história da arte, a economia de mercado

etc.), um nunca é mencionado, menos ainda

questionado, embora, de todos que circundam e

condicionam a arte, seja o primeiro, o que precede

todos os demais: o ateliê do artista.

Na maioria dos casos, o ateliê é mais importante

para o artista do que a galeria ou o museu.

Incontestavelmente, ele preexiste a ambos. Além disso, como veremos, ateliê e galeria estão inteiramente

vinculados. Constituem os dois pilares de um só edifício e de um só sistema. Pôr em questão um (o museu

ou a galeria, por exemplo), sem se referir ao outro (o ateliê) é, de fato, não questionar absolutamente

nada do todo. Desse modo, todo questionamento do sistema de arte terá inevitavelmente que passar por

uma reavaliação do ateliê como lugar único em que o trabalho se faz, assim como do museu como lugar

único em que o trabalho se mostra. Ambos devem ser questionados também em termos de hábitos,

hábitos de arte hoje esclerosados.

A FUNçÃO DO ATELIÊ*

Daniel Buren

Daniel Buren ateliê Brancusimuseu espaço público

Conhecido por seus trabalhos feitos especialmente para espaços públicos, Daniel

Buren desenvolve análise histórica, geográfica e simbólica do ateliê e reflete sobre

sua importância como local exclusivo de produção. As adaptações operadas na obra

quando de seu deslocamento para o espaço público (museus e galerias) levam o

artista a interrogar as condições de aparecimento da arte frente à necessidade de

aproximação de arte e vida, e à consequente desmaterialização do ateliê.

Edward SteichenAteliê de Constantin Brancusi, 1920fotografia 24,4 x 19,4cm; Met Museum, NY Fonte: Wikimedia Commons in http://atelierdespassages.blogspot.com/

THE FUNCTION OF THE STUDIO | Daniel Buren is well known for his work done especially for public spaces. He develops a geographic, historical and symbolic analysis of the studio and reflects upon its importance as an exclusive production place. The adaptations to the work when moving to the public space (museums and galleries) cause the artist to question the conditions of appearance of art with regard to the need to bring art and life closer and the consequent “extinction” of the studio. | Daniel Buren, studio, Brancusi, museum, public space

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011188 189TEMÁTICAS | DANIEL BUREN

Mas, afinal, qual é a função do ateliê?

1. É o lugar de origem do trabalho.

2. É um lugar privado (na maioria dos casos);

pode ser uma torre de marfim.

3. É um lugar fixo de criação de objetos

obrigatoriamente transportáveis.

Um lugar extremamente importante, como já se

pode ver. Primeira moldura, primeiro limite, do

qual todos os outros irão depender.

Em primeiro lugar, como um ateliê se apresenta

física, arquitetonicamente? Na verdade, o ateliê do

artista não é qualquer compartimento, qualquer

cômodo1. Distinguiremos aqui dois tipos:

1. O do tipo europeu, exemplificado pelo ateliê

parisiense do final do século passado2, costuma

ser local bem amplo e caracterizado sobretudo

por elevado pé-direito (4m, no mínimo), às

vezes com mezanino para aumentar a distância

de visualização da obra. Os acessos permitem

a entrada e a saída de trabalhos de grandes

dimensões. Ateliês para escultores ficam no

térreo, para pintores nos últimos andares.

Por fim, a iluminação é natural e geralmente

distribuída por vidraças orientadas na direção

norte a fim de receber luz mais suave e ao

mesmo tempo homogênea.3

2. O ateliê do artista americano4 tem origem

mais recente. Em geral não é especialmente

construído para essa finalidade, nem obedece

a determinadas normas mas, na maioria das

vezes, é bem maior do que o ateliê europeu:

não necessariamente mais alto, mas muito

mais longo e mais largo, e situado em antigos

lofts recuperados. A luz natural tem aqui papel

bem menor (quase nulo) do que a superfície

e o volume. A eletricidade clareia o ambiente

dia e noite, se necessário. Disso, aliás, decorre

certa adequação entre os produtos originários

desses lofts e seu “posicionamento” em paredes

e pisos dos museus modernos, também eles

artificialmente iluminados dia e noite.

Acrescentaria ainda que esse tipo de ateliê

influencia igualmente os lugares que servem de

ateliês hoje na Europa e que podem ser, para

quem os encontra, um antigo celeiro no campo,

uma velha garagem ou outros estabelecimentos

comerciais na cidade. Em ambos os casos, já

podemos perceber as relações arquitetônicas

que atuam entre ateliê e museu, um inspirando

o outro e vice-versa, assim como ocorre entre

um tipo de ateliê e outro.5 Não falaremos, no

entanto, a respeito dos que transformam parte

de seu ateliê em galeria, nem de curadores que

sonham com museus como ateliês permanentes!

Depois de termos visto algumas das características

arquitetônicas do ateliê, vejamos agora o que em

geral nele se passa.

Como local privado, o ateliê é espaço para

experiências que só o artista-residente poderá julgar,

já que nada dali sairá sem que ele assim decida.

Esse lugar privado permite também outras mani-

pulações indispensáveis ao bom funcionamento

de galerias e museus. Por exemplo, é o espaço no

qual a crítica de arte, o organizador de exposi-

ções, o diretor ou o curador do museu poderão

tranquilamente escolher das obras presentes (e

apresentadas pelo artista) aquelas que participa-

rão de determinada exposição, coleção, galeria

ou contexto. O ateliê é, portanto, uma comodida-

de para qualquer organizador, que, assim, pode

“compor” uma exposição a seu modo (e não ao

modo do artista – que está muito contente em

expor e, em geral, se deixa gentilmente manipu-

lar nessas situações) com o mínimo de risco, pois

não só já selecionou o artista participante como

seleciona, em seu próprio ateliê, as obras que

deseja. Nesse sentido, o ateliê é também uma

butique, e é nela que se encontra o prêt-à-por-

ter para uma exposição.

O ateliê é ainda o espaço para o qual, antes que

a obra seja publicamente exposta (museu ou

galeria), o artista pode convidar críticos e outros

especialistas na esperança de que suas visitas

favoreçam a “saída” de algumas obras desse local

privado – um tipo de purgatório – para frequentar

alguma parede pública (museu/galeria) ou privada

(coleção) – espécies de paraísos das obras!

Desse modo, o ateliê cumpre o papel de lugar

de produção de um lado e de sala de espera do

outro, e finalmente, se tudo correr bem, de local

de difusão. É, portanto, um centro de triagem.

O ateliê, primeira moldura da obra, é na

verdade um filtro que irá servir a (uma) dupla

seleção, a primeira, feita pelo artista longe de

olhares estranhos, e aquela feita por galeristas

e organizadores de exposições justamente

para a visualização de outros olhares. O que é

imediatamente evidente é que, para existir, a

obra produzida passa de um abrigo a outro.

Portanto, ela deve ser minimamente transportável

e, se possível, manipulável sem muitas restrições

por quem (além do próprio artista) ganha o

direito de “removê-la” de seu local original para

acomodá-la no espaço promocional. Desse modo,

como é produzida em ateliê, a obra só pode ser

concebida como objeto manipulável ao infinito

e por qualquer um. Para se fazer, e desde o

momento em que é produzida no ateliê, a obra

se encontra isolada do mundo real. Entretanto, é

naquele momento, e somente naquele momento,

que está mais próxima de sua própria realidade,

da qual, em seguida, ela se irá afastar cada vez

mais. Ela também poderá tomar emprestada

Anton LefterovAteliê de Constantin Brancusi no Musée National d’Art Moderne, Centre George Pompidou, 2010Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Atelier-brancusi-2

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011190 191TEMÁTICAS | DANIEL BUREN

outra realidade, que ninguém, nem quem a

criou, poderia imaginar e que poderá ser-lhe

completamente contraditória – geralmente para

grande lucro dos comerciantes e da ideologia

dominante. É, portanto, no ateliê – e só então –

que a obra está em seu lugar. Isso é (uma) mortal

contradição para a obra de arte, da qual jamais

se irá recuperar, dado que sua finalização implica

o desvitalizante deslocamento em relação a sua

própria realidade, a sua origem.

Se, por outro lado, a obra de arte permanece

nessa realidade – o ateliê –, é o artista que corre o

risco de morrer… de fome! A obra que podemos

ver é, portanto, totalmente estranha ao lugar que

a acolhe (museu, galeria, coleção…), daí o fosso

cada vez maior entre as obras e seus lugares (e não

seu posicionamento): um abismo aberto que, se o

víssemos (e o veremos mais cedo ou mais tarde),

jogaria a arte e suas pompas (ou seja, a arte como

a conhecemos hoje e como é feita em 99% dos

casos) na lata de lixo da história. Esse abismo, no

entanto, é parcialmente preenchido pelo sistema,

que faz com que nós, público, criador, historiador,

crítico, entre outros, aceitemos a convenção do

museu (e da galeria) como inevitáveis molduras

neutras, lugares únicos e definitivos da arte.

Lugares eternos em função da eternidade da arte!

Desse modo, a obra é feita em lugar muito

específico, do qual, entretanto, ela não se dá

conta, posto que, por vários aspectos, esse

espaço não só a orienta e forja, como é o único

em que a arte tem lugar. Chegamos, assim, à

seguinte contradição: é impossível por um lado

– e por definição – ver uma obra em seu lugar e,

por outro, é o lugar que lhe serve de abrigo e onde

poderá ser vista, que a irá marcar e influenciar

bem mais do que o lugar no qual foi feita e de

onde foi excluída.

Podemos então afirmar que estamos diante da

seguinte inadequação: ou a obra está em seu

próprio espaço, o ateliê, e não tem lugar (para

o público), ou se acha em espaço que não é seu, o

museu, quando então tem lugar (para o público).

Excluída da torre de marfim em que é produzida,

a obra vai parar em outro lugar que, ainda que

lhe seja estranho, só vem reforçar essa impressão

de conforto que ela já tinha adquirido ao se

abrigar num reduto fortificado, o museu, a fim

de sobreviver a tal deslocamento. Desse modo, a

obra passa (e só assim pode existir, uma vez que

a isso foi predestinada pela marca de seu local de

origem) de um lugar/quadro fechado – o mundo

do artista – para outro lugar paradoxalmente

ainda mais fechado – o mundo da arte. Daí talvez

a impressão de cemitério que o alinhamento das

obras nos museus produz. Independentemente

do que digam, de onde venham e do que

quiseram significar, é no museu que acabam, e

é lá também que se perdem. A perda, aliás, é

parcial, em comparação à perda total das obras

que nunca deixam seus ateliês. Daí a indescritível

vulnerabilidade das obras manipuláveis.

A obra que chega ao museu tanto está em “seu

lugar”6 quanto em “um lugar” que nunca é o

seu. Em “seu lugar” porque lá pretendia estar no

momento em que foi concebida, mas que nunca

é o “seu”, pois assim como esse lugar não foi

definido pela obra que lá se encontra, tampouco

a obra foi feita precisamente em função de um

lugar lhe é, forçosamente e a priori, concreta e

praticamente desconhecido.

Para que a obra esteja em seu lugar sem ter sido

especificamente posicionada7, é necessário que

seja idêntica a todas as outras existentes, todas

indênticas entre si. Nesse caso, circularia (e se

posicionaria) por toda parte e em qualquer lugar

(como todas as outras obras idênticas). Ou, então,

seria necessário que a moldura que acolhe a obra

original, e todas as outras obras originais – e

portanto fundamentalmente diferentes umas das

outras –, fosse removível, ou seja, que o museu (e

a galeria) fosse um passe-partout que se adaptasse

perfeita e milimetricamente a cada obra.

Se, entretanto, estudamos separadamente esses

dois casos extremos, deles só podemos deduzir

formulações extremas e idealizantes, mas ainda

assim interessantes; por exemplo:

a) todas as obras de arte são rigorosamente

idênticas entre si, independentemente de sua

época, seu autor, seu país e assim por diante,

o que explica seu idêntico posicionamento em

milhares de museus pelo mundo, de acordo

com a moda e os curadores;

b) ou então, todas as obras são absolutamente

diferentes umas das outras e têm suas

diferenças respeitadas – portanto ao mesmo

tempo implícita e explícitamente legíveis

–, de modo que cada museu, cada sala em

cada museu, cada parede em cada sala, cada

metro quadrado de cada parede se adapte

Daniel Buren Les deux plateaux (conhecido como Colunas de Buren), 1985-1986 Trabalho in situ Palais-Royal, Paris Fontes: http://www.photos-galeries.com/colonnes-de-buren-palais-royal e http://www.artfacts.net/en/institution/lisson-gallery-190/news/daniel-buren-les-deux-plateaux-palais-royal-5201.html

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011192 193TEMÁTICAS | DANIEL BUREN

perfeitamente, a cada obra, a cada lugar e a

cada momento.

O que podemos observar nas duas formulações é

sua assimetria sob a aparente simetria. Na verdade,

ainda que não possamos aceitar logicamente que

todas as obras de arte, quaisquer que sejam, são

idênticas entre si, somos forçados a constatar que,

quaisquer que sejam as obras, elas são (de acordo

com a época), instaladas do mesmo modo.

Se, por outro lado, podemos aceitar que cada

obra tem sua singularidade, somos também

forçados a observar que nenhum museu se adapta

exatamente a isso e age – paradoxalmente, já que

pretende defender a singularidade da obra – como

se essa afirmação da obra, sua singularidade, não

existisse, e a manipula à vontade.

Para reforçar o raciocínio, dois exemplos entre

milhares: os responsáveis pelo Jeu de Paume,

em Paris, apresentam as obras impressionistas

sobre paredes pintadas de determinada cor que

as emolduram diretamente. Simultaneamente, a

8 mil quilômetros de distância, no Art Institute

of Chicago, outras obras da mesma época e dos

mesmos artistas são apresentadas enfileiradas e

em enormes molduras esculpidas.

Será que isso significa, para retornar aos

dois exemplos, que as obras em questão são

absolutamente idênticas e que finalmente

adquirem sua expressão própria e diferenciada

graças à inteligência daqueles que as apresentam?

E isso ocorreria justamente para fazê-las dizerem de

outro modo aquilo que, por definição, escondiam

sob um mesmo aspecto – a neutralidade absoluta

de obras idênticas umas às outras –, à espera de

uma moldura que lhes desse expressão?

Ou significa, de acordo com o segundo exemplo, que cada museu se adapta o máximo possível ao

caráter das obras em questão? Mas quem, agora, poderá nos explicar onde estava explícito na obra de Monet que, 70 anos após sua criação, algumas telas deveriam ser penduradas e envolvidas por uma suave cor salmão em Paris, e outras cercadas por enormes molduras e justapostas a outras obras impressionistas, em Chicago?

Se excluirmos os dois casos extremos (a) e (b)

mencionados, nos encontraremos frente a um

terceiro, que é, obviamente, mais comum e que

implica relação sine qua non entre ateliê e museu

tal como a conhecemos hoje.

De fato, como é pouco provável que a obra

criada no ateliê lá permaneça – e ela sabe

que acabará em outro lugar (museu, galeria,

coleção) –, é necessário não apenas que seja

feita, mas também que possa ser vista em

outro lugar e, consequentemente, em qualquer

lugar. Para que essa transferência ocorra, duas

condições são necessárias:

1. O lugar definitivo da obra é a própria obra. Essa é uma crença ou filosofia largamente difundida nos meios artísticos, posto que permite escapar de qualquer questão sobre o lugar físico de sua visibilidade e, por conseguinte, sobre o sistema – e, portanto, sobre a ideologia dominante que a governa, assim como sobre a ideologia específica da arte. Teoria reacionária (se realmente for), pois, sob pretexto de escapar, ou melhor, de não estar a ele vinculada, permite a todo o sistema fortalecer-se sem sequer se justificar, já que, por definição (definição dada pelos defensores dessa teoria), o lugar do museu não tem relação com o lugar da obra.

2. O criador “imagina” onde sua obra vai acabar, o que o leva a tentar imaginar todas as situações possíveis para cada obra (o que é

simplesmente impossível), ou (como é o caso) imaginar um possível local-padrão. Nesse caso, teremos o banal espaço cúbico, neutro ao extremo, com a luz suave e uniforme que já conhecemos: isto é, o espaço de museus e galerias atuais. Isso obriga o artista no ateliê, conscientemente ou não, a produzir para um lugar banalizado e, consequentemente, a banalizar seu próprio trabalho a fim de melhor o adaptar a esse lugar.

Ao produzir para um estereótipo, acabamos

evidentemente por fabricar um estereótipo; daí

o surpreendente academicismo das obras hoje,

ainda que dissimuladas sob formas aparentemente

as mais diversas.

Para encerrar, gostaria de dar sustentação a

minhas “suspeitas” sobre o ateliê e suas funções

simultaneamente idealizantes e esclerosantes,

com dois exemplos que me influenciaram, um

pessoal, outro histórico.

1. Pessoal

Ainda muito jovem (tinha 17 anos), iniciei

um estudo sobre a pintura na Provence, de

Cézanne a Picasso (focalizando as influências

do local geográfico nas obras). Para levar o

trabalho a conclusão satisfatória não só percorri

de ponta a ponta o sudeste da França, como visitei

o ateliê de grande número de artistas. Minhas

visitas conduziram-me a artistas dos mais jovens

aos mais velhos, dos mais desconhecidos aos mais

célebres. Surpreenderam-me na época sobretudo

a diversidade, depois, a qualidade, a riqueza e

especialmente a realidade – a “verdade”, portanto

– dos trabalhos, independentemente de seu autor

ou sua reputação. “Realidade/verdade” não só em relação ao autor e a seu local de trabalho, mas também em relação a seu entorno, à paisagem.

Bernard BoyerDaniel Buren Affichage sauvage, abril de 1968 Trabalho in situ, ParisFonte: http://catalogue.danielburen.com/fr/oeuvres/1944.html

Daniel BurenHommes-Sandwichs, abril/maio de1968Madeira, papel com listras brancas e verdes, tachinhas, correias.Cada estandarte 80 x 60,9 cm.Trabalho in situ, Paris, FrançaFoto © Daniel BurenFonte: www.danielburen.com

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011194 195TEMÁTICAS | DANIEL BUREN

Pouco tempo depois, visitei uma a uma as exposições dos artistas que havia conhecido e meu encantamento desbotou-se, às vezes desaparecendo por completo – como se as obras que eu vira nos ateliês não fossem as mesmas, nem tivessem sido feitas pelas mesmas pessoas. Arrancadas de seu contexto e, pode-se dizer, de seu ambiente, elas perdiam seu sentido, sua vida; tornavam-se “falsas”. No entanto, não compreendi isso de imediato (longe disso), nem o que exatamente se passava, nem o motivo dessa desilusão. Uma coisa apenas ficou clara para mim: a decepção. Revi várias vezes alguns desses artistas, e a cada vez o hiato entre seus ateliês e as paredes parisienses se acentuava a tal ponto, que se tornou impossível continuar a visitar seus ateliês e suas exposições. A partir desse momento, algo irremediável, embora por razões ainda confusas, se rompeu.

Mais tarde, repeti a desastrosa experiência com

amigos de minha geração, ainda que dessa vez

a “realidade/verdade” profunda do trabalho me

parecesse bem mais clara. Essa “perda” do objeto,

esse desinteresse pela obra fora seu contexto – como

se a energia essencial a sua existência desaparecesse

assim que a porta do ateliê fosse ultrapassada –,

começava realmente a me preocupar. Essa sensação

de que o essencial da obra se havia perdido em

algum lugar entre o espaço de sua produção (o

ateliê) e de seu consumo (a exposição) levou-me a

questionar o problema e a significação do lugar da

obra. Compreendi mais tarde que o que se perdia,

o que certamente desaparecia, era a realidade da

obra, sua “verdade”, ou seja, a relação com o local

de sua criação, o ateliê: local em que geralmente

estão misturados trabalhos acabados, trabalhos em

andamento, trabalhos nunca acabados, esboços

etc. Todos esses vestígios, simultaneamente visíveis,

permitem uma compreensão do processo da obra

que o museu definitivamente exclui em seu desejo de

“instalar”. Não se fala cada vez mais em “instalação”

em vez de “exposição”? E o que se instala não é o que está próximo de se estabelecer?

2. Histórico

Constantin Brancusi foi o único artista que sempre me pareceu demonstrar real inteligência frente ao sistema museal e a suas consequências, e o que mais tentou combatê-lo − ele tentou evitar que sua obra nele se cristalizasse e assim ficasse vulnerável ao capricho de qualquer curador de plantão.

De fato, ao legar grande parte de sua obra com a expressa recomendação de que fosse conservada como no ateliê que a viu nascer, Brancusi eliminou definitivamente a dispersão do trabalho, assim como toda especulação sobre a obra. Além disso, ofereceu ao visitante exatamente o seu ponto de vista no momento em que produzia. Foi o único artista que, mesmo trabalhando no ateliê e consciente de que lá o trabalho estava mais próximo de sua “verdade”, assumiu o risco – a fim de preservar essa relação entre a obra e seu local de criação – de “confirmar” ad vitam8 sua produção no próprio lugar em que foi concebida. Entre outras coisas, ele também produziu um curto-circuito no desejo do museu de classificar, embelezar, selecionar e assim por diante. A obra fica visível tal como foi produzida, para o bem e para o mal. Assim, Brancusi foi o único a saber preservar na obra esse lado cotidiano – que o museu se apressa em retirar de tudo o que exibe.

Podemos afirmar igualmente – mas isso exigiria estudo mais longo – que a fixação operada na obra pela visibilidade adquirida em seu lugar de origem não tem nada a ver com a “fixação” que o museu exerce sobre tudo o que expõe. Desse modo, Brancusi prova que a chamada pureza de suas obras não é menos bela nem menos interessante entre as quatro paredes de um ateliê de artista entulhado de utensílios diversos,

de outras obras, algumas inacabadas, outras terminadas, do que entre as paredes imaculadas de museus assépticos9.

Posto que toda a produção da arte, tanto ontem quanto hoje, é não só marcada, mas provém do uso do ateliê como local essencial (às vezes único) da criação, todo o meu trabalho deriva de sua abolição.

dezembro de 1970-janeiro de 1971

Tradução Analu Cunha

Revisão técnica Livia Flores

NOTAS

* Este primeiro texto de Daniel Buren dedicado ao atelier

só foi publicado em francês e em inglês em setembro de

1979, em Ragile, Paris, tomo III: 72-77. Esta tradução

baseou-se na versão encontrada em Daniel Buren,

Fonction de l´atelier (1971), Ecrits, v.1, Bordeaux: LAPC -

Musée d´art contemporain, 1991: 195-205

1 Descrevemos adiante o ateliê como arquétipo,

sabendo de antemão que todo artista que se inicia

na vida artística (e alguns deles por toda a vida)

deve contentar-se com barracos miseráveis ou um

cômodo ridiculamente pequeno; todavia, gostaria de

acrescentar que aqueles que conservam, apesar das

dificuldades, os lugares sórdidos em que trabalham

são evidentemente aqueles para quem a ideia de

possuir um ateliê para o trabalho é uma necessidade

– e que, consequentemente, sonham com um

lugar que, se tivessem condições, provavelmente se

aproximaria do arquétipo do qual falamos.

2 Século 19 (NT).

3 Já podemos observar que a exposição de um ateliê de artista requer mais cuidados, da parte dos arquitetos, com relação à iluminação, ao posicionamento, etc., do que aqueles que o próprio artista toma para controlar a exposição de suas obras quando saem de seu ateliê!

4 Falamos aqui do estúdio nova- yorkino, pois, assim

como esse vasto país, em seu desejo de aniquilar

e superar a École de Paris, de triste memória, tem

reproduzido todos os seus defeitos, incluindo o

principal: forçada centralização que, já ridícula

na escala da França e mesmo na da Europa, é

absolutamente grotesca na escala americana e

certamente nefasta ao desenvolvimento artístico.

5 Aos museus americanos, em geral artificialmente

iluminados, opomos os museus europeus, geralmente

iluminados pela luz do dia por meio de uma série de

vidraças. Percebemos também que isso cria o que

alguns entendem como antagonismo e que, muito

frequentemente, não passa de diferença de estilo entre

os ambientes de produção europeu e americano.

6 No original “place” e “une place” (NT).

7 No original “en place” e “exactement placée” (NT).

8 Para sempre (N.T.).

9 Devemos observar que se o ateliê de Brancusi

tivesse podido ficar no Impasse Roussin [n. 11,

endereço do ateliê] ou ainda em sua própria casa

(mesmo transportada para outro lugar), a exibição

teria sido mais feliz. (N.D.L.R. de Ragile. Esse texto

escrito em 1971 refere-se à reconstituição do ateliê

de Brancusi no Museu de Arte Moderna. Desde

então, o conjunto de prédios foi reconstruído na

esplanada do novo museu, o Centre Beaubourg, o

que torna obsoleta esta nota.

Daniel Buren nasceu em 1938 em Boulogne-

Billancourt. Em 1960 graduou-se na École Nationale

Supérieure des Métiers d’Art, em Paris. Foi um dos

fundadores do grupo BMPT (iniciais dos artistas-

membros: Daniel Buren, Olivar Mosset, Michel

Parmentier e Niele Toroni), de influência situacionista.

A partir da década de 1960, se apropria das listras

verticais do tecido industrial francês, que utiliza em

intervenções no espaço público e em instituições de

arte. Vive e trabalha em Paris.

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011196 197TEMÁTICAS | JONATHAN CRARY

O termo “espetáculo” tornou-se de uso

corrente entre o final dos anos 50 e o início

dos 60, graças aos diversos tipos de atividades

atualmente designadas como pré-situacionistas

e situacionistas,1 independentemente de ter sido

ou não originalmente tomado de Critique de la vie

quotidienne, de Henri Lefebvre. Seja no campo de

crítica radical à prática da arte modernista, seja na

discussão política da vida cotidiana ou na análise

do capitalismo contemporâneo, sua influência

intensificou-se claramente com a publicação,

em 1967, de A sociedade do espetáculo, de Guy

Debord.2 Vinte e dois anos depois, a palavra

“espetáculo” não apenas persiste como se tornou

lugar-comum no vasto campo dos discursos críticos e não tão críticos assim. Acreditando que não

se tenha desgastado completamente como explicação da operação contemporânea de poder, cabe

ESPETáCULO, ATENçÃO, CONTRAMEMÓRIA

Jonathan Crary

espetáculo atençãosituacionismo práticas surrealistas

Neste artigo de 1989, exatamente quando deslocamentos sistêmicos significativos

começam a tornar-se evidentes, Jonathan Crary indaga em que medida o uso do

termo espetáculo, que ganha força com a emergência do situacionismo nos anos

60, pode ainda contribuir para nossa compreensão sobre modos não coercitivos

de funcionamento do poder. A partir dessa perspectiva, Crary discute indicações

fornecidas por autores como Baudrillard, Benjamin, T.J. Clark e pelo próprio Guy

Debord, localizando no final da década de 1920 desenvolvimentos históricos cruciais

que transformam a natureza da atenção exigida do sujeito moderno e informam tanto

a noção de espetáculo quanto as tentativas de resistência a seus poderes.

Montagem de imagens capturadas dos filmes de Fritz Lang: Dr. Mabuse, The Gambler (1924) e The Testament of Dr. Mabuse (1931), Livia Flores, 2011 (Dr Mabuse-Livia copy.jpg)

SPECTACLE, ATTENTION, COUNTER-MEMORY | In this article from 1989, precisely when significant systemic movements were becoming more evident, Jonathan Crary questions to what extent the use of the term show, which gained force with the emerging Situationism in the 1960s, can still contribute to our understanding of the non-coercive ways of how power functions. From this viewpoint, Crary discusses indications by authors such as Baudrillard, Benjamin, T.J. Clark and Guy Debord himself, positioning in the late 1920s crucial historical developments that transformed the nature of attention required for the modern subject and informed both the notion of show and attempts to resist its powers. | Show, attention Situationism, surrealist practices.

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011198 199TEMÁTICAS | JONATHAN CRARY

entretanto indagar se o atual sentido do termo

mantém o significado do início dos anos 60. Que

conjunto de forças e instituições ele designa?

E, se elas sofreram transformações, que tipos

de prática são hoje necessários para resistir aos

efeitos do espetáculo?

Pode-se ainda questionar em que medida o

conceito de espetáculo não impõe unidade

ilusória sobre um campo por demais heterogêneo.

Trata-se de conceito totalizante e monolítico,

inadequado para representar incomensurável

pluralidade de instituições e eventos? Para

alguns, um aspecto problemático do termo

“espetáculo” é a presença quase que ubíqua

do artigo definido que o precede, sugerindo

um sistema de relações único, global e sem

fissuras. Para outros, implica mistificação do

funcionamento do poder, nova explicação do tipo

“ópio do povo”, apontando para uma formação

cultural e institucional vaga, com autonomia

estrutural suspeita. Ou um conceito como o de

espetáculo é ainda ferramenta necessária para se

compreender o deslocamento radical e sistêmico

na maneira como o poder funciona de forma

não coercitiva na modernidade do século 20?

É um meio indispensável para revelar relações

entre fenômenos que de outra forma pareceriam

disparatados e sem conexão? Não serviria para

evidenciar como, à maneira de uma colcha de

retalhos, um mosaico de técnicas pode ainda

constituir um efeito homogêneo de poder?

Característica surpreendente do livro de Debord

é a ausência de qualquer tipo de genealogia

histórica do espetáculo, e essa ausência deve ter

contribuído para a impressão de que o espetáculo

surgiu totalmente do nada. Então, a questão que

me interessa é a seguinte: considerando que o

espetáculo de fato designa um certo conjunto

de condições objetivas, quais são suas origens?

Quando podemos dizer que começou a vigorar

efetivamente? E não pergunto isso apenas como

exercício acadêmico. Para ter qualquer eficácia

prática ou crítica, o termo depende, em parte,

de como é periodizado; isto é, “espetáculo” irá

assumir significados bem diferentes dependendo

de como for historicamente situado. É algo mais

do que mero sinônimo para capitalismo tardio?

Ou para o crescimento dos meios e tecnologias

de comunicação de massa? É mais do que uma

versão atualizada da indústria cultural ou da

consciência, delas cronologicamente distinta?

O trabalho “inicial” de Jean Baudrillard fornece

alguns parâmetros gerais para o que podemos

chamar de pré-história do espetáculo (que

Baudrillard considera ter desaparecido em

meados da década de 1870). Segundo esse

autor, que escreve no final dos anos 60, uma das

consequências cruciais das revoluções político-

burguesas foi a força ideológica que deu vida aos

mitos dos direitos do homem: o direito à igualdade

e à felicidade. O que ele vê acontecer no século

19 é que, pela primeira vez, provas concretas

se tornaram necessárias para demonstrar que a

felicidade, de fato, havia sido obtida. Felicidade,

diz ele, “tinha que ser mensurável em termos de

signos e objetos”, signos que fossem evidentes

ao olho como “critérios visíveis”.3 Algumas

décadas antes, Walter Benjamin também

descrevera a “fantasmagoria da igualdade” no

século 19 em termos de uma transformação

do cidadão em consumidor. O relato de

modernidade de Baudrillard é o de crescente

desestabilização e mobilidade de signos que, até

a Renascença, ainda se encontravam firmemente

enraizados em posições relativamente seguras

dentro de hierarquias sociais fixas.4 Assim, de

acordo com Baudrillard, a modernidade está

ligada à luta das novas classes de poder para

tentar superar essa “exclusividade dos signos” e

iniciar a “proliferação de signos sob demanda”.

Imitações, cópias e falsificações desafiam tal

exclusividade. Logo, o problema da mímese não

é de estética mas de poder social, e a emergência

do teatro italiano e da perspectiva na pintura são

o começo dessa capacidade sempre crescente

de produzir equivalências. Obviamente, porém,

para Baudrillard e muitos outros, é no século

19, junto com novas técnicas industriais e formas

de circulação, que um novo tipo de signo aparece:

“objetos potencialmente idênticos produzidos em

série indefinidamente”. No entender do autor, “a

relação de objetos em tais séries é de equivalência e

indiferença... e é no nível da reprodução, da moda,

da mídia, da publicidade, da informação e da

comunicação (setores não essenciais do capitalismo,

segundo Marx)... que o processo global do capital

se mantém coeso”. O espetáculo coincidiria então

com o momento em que o valor simbólico ganha

precedência sobre o valor de uso. A questão

da localização desse momento na história da

mercadoria, entretanto, continua em aberto.

T.J. Clark oferece periodização muito mais

específica na introdução de seu livro The Painting

of Modern Life. Caso se concorde com Clark, as

origens do modernismo e do espetáculo não

apenas coincidem; são indissociáveis. Escrevendo

sobre as décadas de 1860 e 1870, Clark usa o

espetáculo para explicar a íntima solidariedade

entre a arte de Manet e a emergência dessa nova

configuração social e econômica. Essa sociedade

do espetáculo, escreve ele, está ligada a uma

“massiva expansão interna do mercado capitalista

– a invasão e reestruturação de áreas inteiras

de tempo livre, vida privada, lazer e expressão

pessoal... isso indica nova fase da produção de

mercadorias – o marketing, a transformação em

mercadoria de grandes áreas da prática social,

antes casualmente referidas como vida cotidiana”5.

Na cronologia de Clark, o espetáculo coincide com

a fase inicial do imperialismo moderno ocidental,

com duas expansões paralelas do mercado global,

uma interna e a outra externa.

Apesar de considerar impossível a ideia de

“temporalidade pura”, ele localiza o começo do

espetáculo no final das décadas de 1860 e 1870,

citando a comercialização de aspectos da vida e

do lazer como consequência do deslocamento de

Labbe, Edmond. Exposition internationale des arts et des techniques, Paris : Ministère du commerce et de l’industrie, 1941, via: http://bei-necke.library.yale.edu (1110275.jpg)

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011200 201TEMÁTICAS | JONATHAN CRARY

um tipo de produção capitalista para outro. Esse

deslocamento, observa, “não foi mera questão de

reformulação ideológica e cultural, mas de total

transformação econômica”. Quais são, contudo,

segundo Clark, os exemplos dessa avassaladora

modificação? “Uma mudança para o mundo dos

grands boulevards e grands magasins, indústrias

correlatas, turismo, recreação, moda e exibição”.

Surpreendentemente, Clark lembra seus leitores

de que o espetáculo foi projetado “antes de mais

nada como uma arma de combate” na década

de 1960.6 Estaria ele sugerindo que a estrutura

política e econômica desse mundo de avenidas

e lojas de departamentos é, em sua essência,

contínua ao que Debord descreveu como lugar

de contestação em 1967? E que as lutas culturais

[cultural politics] dos anos 60 ocorreram em

condições semelhantes àquelas de 1870? A

insinuação de que a noção de espetáculo seria a

mesma na Paris de Manet e na de Debord é, no

mínimo, problemática.

Ao referir-se à reconstrução de Paris por Hauss-

mann, um dos exemplos mais familiares de mo-

dernização do século 19, Clark apresenta-a como

parte da transformação do capitalismo de peque-

nos empreendimentos em formas crescentes de

monopólio. E a Paris pós-Haussmann torna-se

para ele a expressão visível de um novo alinha-

mento de classes. Essa maneira de dispor o espe-

táculo, porém, pressupõe que ele seja uma forma

de dominação imposta de fora a uma população

ou indivíduo. O tipo de mudanças que o autor

descreve permanece essencialmente exterior à

constituição de um sujeito individual, reservando-

lhe posição distanciada, a partir da qual o espe-

táculo poderia ser rememorado e representado,

ainda que de forma imperfeita. Ao periodizá-lo

dessa maneira, Clark desconsidera a possibilidade

de que o espetáculo tanto signifique uma reorga-

nização fundamental do sujeito quanto a cons-

trução de um observador;7 este último é o pré-

requisito para a transformação da vida cotidiana

que então se iniciava. Ao fazer da sociedade do

espetáculo quase um equivalente da sociedade de

consumo, Clark dilui sua especificidade histórica e

negligencia alguns aspectos do espetáculo que fo-

ram cruciais para a prática política do situacionis-

mo nos anos 60: o espetáculo como nova forma

de poder de recuperação e absorção, capacidade

de neutralizar e assimilar atos de resistência ao

convertê-los em objetos ou imagens de consumo.

O próprio Guy Debord datou de maneira

surpreendentemente precisa o início da sociedade

de espetáculo. Em texto publicado em 1988, ele

registra que em 1967, data de seu livro original,

o espetáculo mal completara 40 anos.8 Não

um número arredondado, como 50, mas 40 –

portanto, 1927 ou, pelo menos, final dos anos

20. Infelizmente, ele não fornece indicação do

motivo pelo qual destaca esse momento. Isso

me deixou curioso sobre o que Debord tinha em

mente ao designar o final dos anos 20 como limiar

histórico, situando a origem do espetáculo quase

meio século mais tarde do que Clark. Ofereço

então algumas especulações fragmentárias sobre

eventos muito dispersos que poderiam estar

implícitos na observação de Debord.

1. O primeiro é tão simbólico quanto concreto.

O ano de 1927 assistiu ao aperfeiçoamento

tecnológico da televisão. Vladimir Zworikin,

nascido na Rússia e formado físico e engenheiro

nos EUA, patenteou seu iconoscópio – o primeiro

sistema eletrônico de tubo contendo uma pistola

de elétrons e uma tela formada por um mosaico de

células fotoemissivas, cada uma delas produzindo

carga proporcional à intensidade variável de luz da

imagem exibida na tela. Justamente no momento

em que a consciência sobre a era da reprodução

mecânica aumentava, apareceu um novo modelo

de transmissão e circulação que iria ultrapassar

essa época, dispensando sais de prata ou suporte

físico permanente.9 O espetáculo estava prestes a

se tornar inseparável desse novo tipo de imagem,

de sua velocidade, ubiquidade e simultaneidade.

Igualmente importante, porém, foi o fato de que, no

final dos anos 20, quando ocorreram as primeiras

transmissões experimentais, estava sendo implantada

vasta rede interligando formas de controle

corporativas, militares e estatais sobre a televisão.

Até então nenhuma técnica de regulamentação

institucional havia sido planejada e repartida com

tamanha antecipação. Assim, em certo sentido,

grande parte do território do espetáculo, o domínio

intangível de seu espectro, já havia sido diagramado

e padronizado antes de 1930.

2. Talvez a estreia do filme The Jazz Singer, em

1927, seja ainda mais imediatamente significativa,

assinalando a chegada do filme sonoro, e

especificamente, do som sincronizado. Isso não

foi apenas uma transformação na natureza da

experiência subjetiva; foi também acontecimento

que trouxe consigo completa verticalização de

produção, distribuição e exibição na indústria do

filme e seu amálgama com os conglomerados

corporativos que detinham as patentes sonoras

e forneciam capital à onerosa mudança para a

nova tecnologia.10 De novo, como no caso da

televisão, a nascente infraestrutura institucional e

econômica do espetáculo se estabelecia.

Especificar o som aqui torna evidente que o poder

do espetáculo não pode ser reduzido a modelo

óptico; ao contrário, ele é inseparável de uma

organização mais ampla do consumo perceptivo.

É claro que o som fez parte do cinema desde

o início através de formas variadas que a ele se

somavam, mas a introdução do som sincronizado

transformou a natureza da atenção que era exigida

do espectador. Talvez essa seja a ruptura que faz

com que as formas anteriores de cinema fiquem

de fato mais próximas dos aparelhos ópticos do

final do século 19. A plena coincidência entre

som e imagem, voz e figura, não foi apenas nova

e crucial maneira de organizar espaço, tempo e

narrativa, mas de impor maior autoridade sobre o

espectador, obrigando-o a novo tipo de atenção.

Claro indício desse deslocamento pode ser visto

nos dois filmes de Fritz Lang da série Mabuse.

Em Dr. Mabuse, o jogador, filme mudo de

1924, o protofascista Mabuse exerce o controle

através de seu olhar com poder hipnotizante; já

em O Testamento do Dr. Mabuse (1931), uma

encarnação do mesmo personagem domina seus

subalternos apenas através de sua voz, que emana

por trás de uma cortina (que, como se descobre,

não esconde uma pessoa, mas um aparelho de

gravação e alto-falante).

E desde a década de 1890 até a de 1930, um dos

Television Spy, 1939, via: www.tvhistory.tv

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011202 203TEMÁTICAS | JONATHAN CRARY

problemas centrais da psicologia tradicional foi

a natureza da atenção: a relação entre estímulo

e atenção, problemas de concentração, foco e

distração. A quantas fontes de estímulo alguém

podia prestar atenção simultaneamente? Como

estimar a influência da novidade, da familiaridade

e da repetição sobre a atenção? Era um problema

cuja proeminência no discurso psicológico

estava diretamente relacionado à emergência de

um campo social cada vez mais saturado com

informações sensoriais. Algumas dessas questões

foram tratadas no trabalho de James McKeen

Cattell, cujos experimentos com estudantes da

Universidade de Columbia forneceram dados hoje

clássicos para a noção de limiar de atenção. Grande

parte dessa pesquisa estava inicialmente ligada à

necessidade de informação sobre a atenção no

contexto da produção racionalizada, mas antes

mesmo de 1910 já haviam sido feitas centenas de

estudos em laboratórios experimentais voltados

especificamente para a variação da atenção na

publicidade (incluindo títulos como O valor da

atenção em anúncios periódicos, Atenção e

os efeitos da dimensão na publicidade de rua,

Publicidade e as leis da atenção mental, Medição

da atenção a valores de cor na publicidade, este

último, uma dissertação de 1913 da Universidade

de Columbia).

Foi também em 1927 que Walter Benjamin

começou seu projeto das Passagens, obra na

qual pretendia apontar para uma “crise da

própria percepção”, resultante da avassaladora

reconfiguração do observador por uma calculada

tecnologia do indivíduo derivada de novo

conhecimento do corpo. No decorrer da escrita

das Passagens, o próprio Benjamin interessou-se

pela questão da atenção e de suas relações com

os temas do choque e da distração, buscando em

Matéria e Memória, de Henri Bergson, saída para o

que ele considerava percepção “desnaturalizada e

padronizada” das massas. Bergson havia lutado para

resgatar a percepção de seu estatuto de puro evento

psicológico; em sua opinião, atenção era questão de

engajamento do corpo, de inibição do movimento,

estado de consciência preso ao presente. A

atenção, porém, só podia ser transformada em algo

produtivo se estivesse vinculada a alguma atividade

mais profunda da memória.

A memória recria a percepção presente...

fortalecendo-a e enriquecendo-a... Se

depois de termos fixado o olhar sobre um

objeto, desviamos abruptamente nossos

olhos, obtemos uma “pós-imagem” [image

consécutive] dele. É verdade que estamos

lidando aqui com imagens fotografadas

no próprio objeto, e com recordações que

se seguem imediatamente à percepção,

da qual são apenas o eco. Mas por trás

dessas imagens idênticas ao objeto, há

outras guardadas na memória que apenas

se lhe assemelham...11

O que Bergson procurava descrever era a vitalidade

do momento em que se produzia uma separação

consciente entre memória e percepção, momento

no qual a memória permitia reconstruir o objeto

da percepção. Deleuze e Guattari descreveram

efeitos similares da entrada da memória na

percepção, por exemplo, na percepção de um

rosto: ele pode ser visto como um vasto conjunto

de micromemórias e uma rica proliferação de

sistemas semióticos, ou, o que é bem mais

comum, em termos de tristes redundâncias de

representações; é nelas, dizem, que as conexões

com as hierarquias das formações de poder

podem sempre ser efetivadas.12 Esse tipo de

redundância da representação que a inibição

e o empobrecimento da memória acarretam

era o que Benjamin via como padronização da Estréia do filme The Jazz Singer, 1927

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011204 205TEMÁTICAS | JONATHAN CRARY

percepção ou o que podemos chamar de efeito

do espetáculo.

Apesar de considerar Matéria e Memória “obra

imponente e monumental”, Benjamin reprovava

Bergson por circunscrever a memória ao quadro

isolado da consciência individual; as pós-imagens que

interessavam a Benjamin eram as da memória histórica

coletiva, imagens fantasmagóricas do obsoleto com

capacidade de promover novo despertar social.13 A

apreensão benjaminiana da atual crise da percepção

é assim filtrada por pós-imagem ricamente elaborada

em meados do século 19.

3. Dado o conteúdo do trabalho de Debord, podemos supor outro desenvolvimento crucial em finais dos anos 20: a escalada do fascismo e, logo depois, do stalinismo, e a maneira pela qual deram corpo a modelos de espetáculo. Importante,

por exemplo, foi o uso inovador e sinérgico que

Goebbels fez de qualquer meio de comunicação

disponível, sobretudo o desenvolvimento da

propaganda audiovisual e sua desvalorização da

palavra escrita, porque ler implicava tempo para

reflexão e pensamento. Numa campanha eleitoral

de 1930, Goebbels enviou pelo correio 50 mil

gravações fonográficas de um de seus próprios

discursos para eleitores especialmente escolhidos.

Goebbels também introduziu o avião na política,

transformando Hitler no primeiro político a

voar para diferentes cidades no mesmo dia.

Viagens aéreas funcionavam como instrumento de propagação da imagem do líder, produzindo inédita sensação de ubiquidade.

Como parte dessa tecnologia mista da atenção, a televisão desempenharia papel crucial. Estudos recentes mostraram que o desenvolvimento da televisão na Alemanha estava mais adiantado do que em qualquer outro país.14 A televisão

Triumph of the Will, filme de Leni Riefenstahl, 1934

Triumph of the Will, filme de Leni Riefenstahl, 1934

In girum imus nocte et consumimur igni, filme de Guy Debord, 1978

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011206 207TEMÁTICAS | JONATHAN CRARY

alemã iniciou suas transmissões regulares em 1935, quatro anos antes dos EUA. Fica claro que os nazistas não se deram conta de sua eficácia como instrumento de controle social, mas os primórdios de sua história na Alemanha lançam luz sobre os diferentes modelos de organização espetacular que estavam sendo propostos nos

anos 30. Logo surgiu grande cisão entre as forças

corporativas monopolistas e o partido nazista

em relação ao desenvolvimento da televisão na

Alemanha. O partido queria centralizar e tornar

a televisão acessível em salas de exibição pública,

ao contrário do uso descentralizado do rádio

em casas particulares. Goebbels e Hitler tinham

em mente a recepção coletiva acreditando que

essa era a forma mais eficaz. Para esse fim,

foram designadas salas públicas de televisão,

com capacidade variável de 40 a 400 lugares, de

forma não muito diferente da que promoveu o

desenvolvimento posterior da televisão na URSS,

onde também se favoreceram os ambientes de

recepção massiva. Segundo o diretor nazista

de radiodifusão, em texto de 1935, a “missão

sagrada” da televisão era “incutir de forma

indelével a imagem do Führer no coração do povo

alemão”.15 Por outro lado, o poder corporativo

visava à recepção domiciliar para maximizar os

lucros. Um modelo queria fazer da televisão uma

técnica a serviço das demandas do nazifascismo

em geral – um meio de mobilizar e incitar as

massas – enquanto os agentes do capitalismo

pretendiam privatizar e dividir para impor um

modelo celular.

É fácil esquecer que em A sociedade do espetáculo

Debord distinguiu dois modelos diferentes de

espetáculo; um que chamou de “concentrado”

e o outro de “difuso”, evitando assim que a

palavra espetáculo se tornasse simples sinônimo

de capitalismo tardio ou de consumo. Espetáculo

concentrado era o que caracterizava a Alemanha

nazista, a Rússia stalinista e a China maoísta; o

modelo mais proeminente de espetáculo difuso

era o dos EUA:

Onde quer que o espetáculo concentrado

domine, a polícia também domina... ele é

acompanhado de violência permanente.

A imagem imposta do bem inclui em

seu espetáculo a totalidade de tudo

que existe oficialmente e em geral se

concentra em um só homem, garantia de

coesão totalitária. Todos devem identificar-

se magicamente com essa celebridade

absoluta – ou desaparecer.16

O espetáculo difuso, por outro lado, deixa-se

acompanhar pela abundância de mercadorias. E

é certamente a esse modelo que Debord dedica a

maior parte de sua atenção em seu livro de 1967.

A propósito, menciono o famoso repúdio de

Michel Foucault ao espetáculo em Vigiar e punir:

“Nossa sociedade não é a sociedade do espetáculo,

mas a da vigilância; sob a superfície das imagens,

investe-se a fundo nos corpos.”17 O espetáculo,

entretanto, é também um conjunto de técnicas

de administração dos corpos, de administração

da atenção (estou parafraseando Foucault)

“para assegurar a ordenação das multiplicidades

humanas”, “seu objetivo é fixar, é uma técnica

antinomádica”, “usa procedimentos de divisão e

celularidade (...) nos quais o indivíduo é reduzido

enquanto força política”.18 Suspeito que Foucault

não tenha passado muito tempo vendo televisão

ou pensando a respeito, pois não teria sido difícil

enxergá-la como aperfeiçoamento suplementar da

técnica do panóptico. Nela, vigilância e espetáculo

não são termos opostos, como ele insiste, mas

que se eclipsam reciprocamente em favor de um

aparato disciplinar mais efetivo. Desenvolvimentos

recentes confirmam de forma literal esse modelo

de imbricação: aparelhos televisivos que contêm

tecnologia avançada de reconhecimento da

imagem servem para monitorar e quantificar o

comportamento, a atenção e o movimento do

olho do espectador.19

Em 1988, porém, Debord vê seus dois modelos

originais de espetáculo – o difuso e o concentrado

– tornarem-se indistintos, convergindo para

o que ele chama de a “sociedade integrada do

espetáculo”.20 Em seu livro, profundamente

pessimista, ele descreve um alinhamento mais

sofisticado de elementos oriundos dos modelos

anteriores, um arranjo flexível do poder global

que se adapta a necessidades e circunstâncias

locais. Em 1967 ainda havia marginalidade e

periferias que escapavam a esse domínio. Hoje,

porém, insiste, o espetáculo se infiltrou em

tudo e tem controle absoluto sobre produção,

percepção e, principalmente, sobre a forma do

futuro e do passado.

Mais do que qualquer outro aspecto isolado,

Debord vê instalar-se no âmago do espetáculo

a aniquilação do conhecimento histórico – em

particular, a destruição do passado recente. Em

seu lugar, impera o presente perpétuo. História,

pondera, sempre foi a medida pela qual a novidade

era avaliada, mas qualquer um que esteja nesse

negócio de vender novidade tem interesse em

destruir os meios pelos quais ela pode ser julgada.

Dessa forma, produzem-se incessante aparência

do importante e, quase imediatamente, sua

aniquilação e substituição: “Aquilo sobre o que o

espetáculo para de falar durante três dias já não

existe mais.”21

Para concluir, gostaria de comentar brevemente

duas diferentes respostas à nova textura da

modernidade que toma forma a partir dos anos

20. O pintor Fernand Léger escreve em 1924 um

ensaio intitulado O espetáculo, publicado logo

após a realização de seu filme Balé mecânico.

O ritmo da vida moderna é tão dinâmico,

que uma fatia de vida vista da varanda de

um café é um espetáculo. Os mais diversos

elementos se chocam e empurram uns aos

outros. O jogo de contrastes é tão violento,

que há sempre um exagero no efeito

daquilo que se vislumbra. Na avenida,

dois homens estão carregando umas

letras douradas imensas num carrinho

de mão: o efeito é tão inesperado,

que todo mundo para e olha. Aí está

a origem do espetáculo moderno (...) no

choque do efeito surpresa.22

Léger passa então a detalhar como a publicidade

e as forças comerciais tomaram a dianteira na

produção do espetáculo moderno e cita a loja

de departamentos, o mundo da moda e os

ritmos de produção industrial como formas

que conquistaram a atenção do público. O

objetivo de Léger é idêntico: quer conquistar

aquele mesmo público. Naturalmente, ele está

escrevendo num momento de incerteza sobre

os rumos de sua própria arte, quando encara o

dilema do que pode significar uma arte pública.

O confuso programa que ele lança com esse

texto, no entanto, é uma instância inicial das

manobras de todos aqueles – de Warhol aos

assim chamados simulacionistas atuais – que

acreditam ou pelo menos reivindicam estar

ganhando a partida contra o espetáculo em

seu próprio campo. Léger resume esse tipo de

ambição: “vamos levar o sistema a seu limite”,

propõe; e oferece sugestões vagas de pintar o

exterior de fábricas e prédios de apartamentos

de várias cores, usar novos materiais e colocá-

los em movimento. Essa tentativa ineficaz de

superar a sedução do espetáculo, porém, torna-

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011208 209TEMÁTICAS | JONATHAN CRARY

se cúmplice de sua aniquilação do passado e do

fetichismo do novo.

Também em 1924, o primeiro Manifesto surrealista

sugere estratégia estética bem diferente de enfren-

tamento da organização espetacular da cidade mo-

derna. Refiro-me ao que Walter Benjamin chamou

de dimensão “antropológica” do surrealismo23 − es-

tratégia de virar ao avesso o espetáculo da cidade

pelo recurso à contramemória e a contraitinerários.

Tais percursos revelariam a potência dos espaços

abandonados, fora das principais vias de circulação,

e dos objetos antiquados excluídos de suas superfí-

cies polidas. Essa estratégia encarnava uma recusa

ao presente imposto; ao recuperar fragmentos de

um passado arruinado, esboçava-se implicitamente

uma imagem alternativa de futuro. E, apesar da na-

tureza equívoca de muitos desses gestos surrealistas,

não é por acaso que eles reapareceriam, sob novas

formas, nas táticas situacionistas dos anos 60, na

noção de deriva ou perambulação, de desvio (dé-

tournement), de psicogeografia, de ato exemplar e

de situação construída. Se hoje essas práticas têm

ainda alguma vitalidade ou mesmo relevância, isso

depende em larga medida do que uma arqueolo-

gia do presente tem a nos dizer. Estamos ainda em

meio a uma sociedade organizada como aparência?

Ou entramos em um sistema global não espetacular

organizado principalmente em torno do controle e

da circulação de informações – um sistema cuja ad-

ministração e regulação da atenção exigiria formas

totalmente novas de resistência e memória?25

Tradução Livia Flores Lopes

Revisão técnica Tadeu Capistrano

NOTAS

Este artigo foi originalmente publicado na revista October, v. 50, Outono, 1989:96-107.

1 Este artigo foi apresentado originalmente no VI

International Colloquium on Twentieth Century

French Studies, “Revolutions 1889-1989”, na

Universidade de Columbia, em 30.3-1.4 1989.

2 Guy Debord, A sociedade do espetáculo, Rio de

Janeiro: Contraponto, 1977

3 Jean Baudrillard, La societé de consommation: ses

mythes, ses structures, Paris, Gallimard, 1970 :60.

4 Uma passagem bem conhecida do Baudrillard

“tardio” amplia essa referência: “Não existe nada

parecido com moda numa sociedade de castas e

estamentos, onde cada um tem seu lugar assinalado

de forma irrevogável. Assim, a mobilidade de classes

é inexistente. Uma proibição protege os signos e

assegura-lhes total clareza; cada signo se refere

inequivocamente a um status (…) Nas sociedades

de casta, feudais ou arcaicas, os signos são

numericamente limitados e de difusão restrita (...)

Cada signo é uma obrigação recíproca entre castas,

clãs ou pessoas.” Simulations, trad. Paul Foss, New

York, Semiotexte, 1983:84.

5 T. J. Clark, The Painting of Modern Life: Paris in the

Art of Manet and His Followers, Princeton: Princeton

University Press, 1984:9.

6 Idem, ibidem:10.

7 J. Crary justifica o uso do termo observador em

detrimento de espectador por suas ressonâncias

etimológicas que remetem à conformação a usos e

códigos (observar uma regra, por exemplo). Enquanto

o termo espectador “designa uma testemunha que

assiste a um espetáculo sem participar, tanto numa

galeria de arte quanto no teatro”, o observador

se inscreve na trama histórica como “efeito de um

sistema irredutivelmente heterogêneo de relações

discursivas, sociais, tecnológicas e institucionais”.

Ver Crary, Jonathan. Techniques of the Observer:

on Vision and Modernity in the Nineteenth Century.

Cambridge: MIT, 1990. (NT)

8 Guy Debord, Commentaires sur la société du

spectacle, Paris: Editions Gerard Lebovici, 1988:13.

9 O historiador da ciência Francois Dagognet assinala

o caráter revolucionário desse advento em seu livro

Philosophie de I’image, Paris: J. Vrin, 1986:57-58.

10 Ver Steven Neale, Cinema and Technology: Image,

Sound, Colour, Bloomington: University: 1985:62-

102; e Douglas Gomery, Toward an Economic History

of the Cinema: The Coming of Sound to Hollywood,

in Teresa de Lauretis and Stephen Heath (eds.), The

Cinematic Apparatus, London: Macmillan, 1980:38-46.

11 Henri Bergson, Matter and Memory, trad. N.

M. Paul and W. S. Palmer, New York: Zone Books,

1988:101-103.

12 Ver, por exemplo, Félix Guattari, Les machines

concretes, in La revolution moleculaire, Paris: Encres,

1977:364-376.

13 “Pelo contrário, ele [Bergson] rejeita qualquer

determinação histórica da memória. Ele consegue

assim antes de mais nada se distanciar da experiência

da qual se originou sua própria filosofia, ou

melhor, da experiência contra a qual sua filosofia

reagia. Tratava-se da inóspita e ofuscante era do

industrialismo em grande escala.” (Walter Benjamin,

Illuminations, trad. Harry Zohn, New York: Schocken,

1969:156-157).

14 Baseei-me na valiosa pesquisa de William

Uricchio, Rituals of Reception, Patterns of Neglect:

Nazi Television and its Postwar Representation, Wide

Angle, v.10, n.4:48-66. Ver também Robert Edwin

Herzstein, The War That Hitler Won: Goebbels and

the Nazi Media Campaign, New York: Paragon, 1978.

15 Apud Uricchio, op. cit.:51.

16 Debord, Society of the Spectacle, sec. 64.

17 Michel Foucault, Discipline and Punish, trad. Alan

Sheridan, New York: Pantheon, 1976:217.

18 Idem, ibidem:218-219.

19 Ver, por exemplo, Bill Carter, TV Viewers, Beware:

Nielsen May Be Looking, The New York Times, June

1, 1989:Al.

20 Debord, Commentaires, op. cit.:17-19.

21 Idem, ibidem:29.

22 Fernand Léger, Functions of Painting, trad.

Alexandra Anderson, New York: Viking, 1973:35.

23 Walter Benjamin, One Way Street, trad. Edmund

Jephcott and Kingsley Shorter, London: New Left

Books, 1979:239. Christopher Phillips sugeriu-me

que o final da década de 1920 teria sido igualmente

crucial para Debord como o momento em que o

surrealismo foi cooptado, isto é, no qual seu potencial

revolucionário original foi anulado por uma instância

espetacular inicial de recuperação e absorção.

24 Sobre essas estratégias, ver os documentos em

Ken Knabb (ed.), Situationist International Anthology,

Berkeley: Bureau of Public Secrets, 1981.

25 Ver meu texto Eclipse of the Spectacle, in Brian

Wallis (ed.), Art After Modernism, Boston: David

Godine, 1984:283-294.

Jonathan Crary é professor de história e teoria da arte moderna na Universidade de Columbia desde 1989. É cofundador e editor de Zone Books e autor dos livros Techniques of the Observer: On Vision and Modernity in the Nineteenth Century (MIT Press, 1990) e Suspensions of Perception: Attention, Spectacle and Modern Culture (October Books, 2000). Tem inúmeros artigos publicados em revistas como Art in America, Artforum, October, Assemblage, Cahiers du cinéma, Film Comment, Grey Room e Domus, além de ensaios críticos em mais de 30 catálogos de exposição.

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011 ARTIGOS | CYBELE VIDAL NETO FERNANDES210 211

Analu CunhaCinema mudo, 2011

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011212 213RESENHAS

RESENHAS

Heloisa Schneiders da Silva obra e escritos

Zielinsky, Mônica (org.)Porto Alegre: MARGS, 2010Glória Ferreira

Merecedor do V Prêmio Açorianos de Artes Plásticas de 2011, o livro Heloisa Schneiders da Silva obra e escritos, com impecável organização de Mônica Zielinsky, nos introduz ao potente universo da produção de uma artista que, embora ainda pouco reconhecida no resto do Brasil, conta com ampla estima no meio de arte do Rio Grande do Sul.

Morta em 2005, aos 50 anos, após árdua luta contra enfermidade degenerativa desde muito jovem, a artista vem tendo sua obra catalogada e difundida pelo Projeto Heloisa Schneiders da Silva, formado por iniciativa de familiares, amigos e profissionais da área. Depois de realizar, entre outras atividades, sua exposição monográfica em 2009, no MARGS, o projeto, com o apoio desse museu, através da Lei Rouanet, é responsável pela publicação em pauta, com extensa apresentação de sua obra pictórica e suas fotografias.

Além dos esclarecedores textos de Mônica Zielinsky e do crítico Gaudêncio Fidelis, e de abrangente cronologia organizada por Beatriz Kessler Fleck e Ricardo Schneiders da Silva, são trazidos a público inúmeros escritos da artista. Reproduzidos de seus Cadernos de Anotações e apresentados em seções − Sobre arte, Sobre pintura, Outros escritos, Sobre arte postal −, eles permitem apreender suas reflexões a respeito de seu processo de trabalho e sua visão sobre a arte.

Surpreende a densidade de sua pesquisa pictórica para quem praticamente desconhece seu trabalho, como é o meu caso, salvo por uma exposição na Galeria Macunaíma, em 1985, relatos de seus

parceiros, como Karin Lambrecht, e, agora, esse livro. Heloisa parece buscar os limites possíveis da pintura, como nos trabalhos dos anos 80, em que associa superfícies em que predomina a cor, estiradas, porém, como “peles no espaço”, perfuradas por caules, bastões de madeira ou troncos retorcidos. Nessas “pinturas-objetos”, assim nomeadas pela artista, “as telas”, assinala Mônica Zielinsky, “subvertem seu emprego tradicional e discutem os planos ortogonais que acolhem a pintura, enquanto esta passa a ocupar muitas vezes o espaço circundante”.

Formada pelo Instituto de Artes da UFRGS, no qual ingressa em 1974, tendo como colegas e amigos, entre outros, Karin Lambrecht, Mara Alves, Simone Michelin, Regina Coeli, Renato Heuser, compartilha ativamente atividades acadêmicas e experimentais dos alunos, como na elaboração coletiva dos álbuns Relinguagem (1978) e Relinguagem (1979). Aluna de Carlos Pasquetti, desenvolve louvada pesquisa e produção na área do desenho, que se inscreve em momento singular de investigação em Porto Alegre e que leva, segundo a organizadora do livro, “a uma reavaliação do substrato construtivo e ideológico da produção artística local”. Durante breve período foi professora do Instituto de Artes e orientou artistas como Elida Tessler. Participou igualmente de diversas ações coletivas de caráter experimental e dos debates sobre os caminhos da arte e de sua circulação pública, algumas realizadas no Espaço N.O. “Em meio a essas escolhas”, ainda de acordo com Mônica Zielinsky, “a artista salienta, desde os primeiros tempos de vida artística, a importância que atribui à experimentação e à multiplicidade de ações; compreende a arte como manifestação plural, que se estabelece como rede, ao referir-se, a título de exemplo, à arte postal”.

É conhecida sua relação com a natureza, tendo adotado, durante longo período, o lobo como

temática de muitos trabalhos. Simone Michelin, em breve conversa, informa que o lobo como símbolo revelava sua busca de certa pureza associada com a questão do animal. Em seu ensaio sobre a obra da artista no contexto dos anos 80, Gaudêncio Fidelis assinala que “a predisposição de conviver com um universo próximo à natureza foi, antes de tudo, uma posição política da artista que teve impacto direto na realização de sua pintura e que a diferencia conceitualmente dos novos selvagens ou expressionistas, com suas atitudes mais cínicas em relação à linguagem da pintura como uma tradição histórica e culturalmente definida”.

Enfim, se o livro Heloisa Schneiders da Silva obras e escritos tem o grande mérito de nos introduzir no universo dessa apreciada artista, ele aporta também amplo e necessário conhecimento sobre a relevante produção artística contemporânea no Rio Grande do Sul.

No contemporâneo: arte e escritura expandidas

Roberto Corrêa dos Santos; Renato RezendeRio de Janeiro: Ed. Circuito, 2011, 124p.

Ana Mannarino

Os autores de No contemporâneo: arte e

escritura expandidas enfrentam o desafio de

desenvolver livro acerca de uma produção artística

que é, ela própria, a um só tempo, proposição

estética e reflexão teórica: o trabalho de artistas

contemporâneos brasileiros que operam nas

fronteiras, dissolvidas, entre artes plásticas e

poesia, imagem e escrita, texto e visualidade.

Como refletir e produzir um livro acerca dessa

produção sem trair seu propósito de abertura, sem

reduzir sua força, sem limitar suas possibilidades

de aproximação e de leitura? Paralelamente, não

há como negar a necessidade dessa reflexão sobre

as obras, de debruçar-se sobre elas, provocando conexões que potencializem seu alcance e a produção de novos sentidos e relações. O caminho proposto pelos autores é fazer um “livro-de-artistas-pesquisadores” situando-o também na mesma difusa fronteira entre pesquisa teórica e produção artística em que se encontram as obras nele abordadas.

Na breve introdução ao livro, parte do Projeto para a Construção Adisciplinar de uma Teoria da Arte, do Instituto de Artes da Uerj, Santos e Rezende discorrem sobre algumas das principais questões que os nortearam no desenvolvimento do trabalho, dentre as quais se destacam o exame desconstrutivo de categorias relativas ao fazer artístico e à produção histórica e crítica; a célebre definição de campo ampliado de Rosalind Krauss; e a busca de uma teoria da arte ligada às práticas contemporâneas, evitando-se modelos totalizantes e limitadores – propondo a expansão da prática relacionada à produção e análise de obras que recorrem a escritos, grafismos, livros de artista.

A relação entre arte e escritura é profícua e estende-se por diferentes épocas e lugares. Os autores traçam um dos percursos possíveis no diálogo entre palavra e artes visuais, entremeando citações e referências críticas e históricas com conceituações próprias, em texto que transita entre a escrita teórica e a poética. Trata-se, contudo, de caminho sugerido, em que o leitor não é conduzido a direção definida, mas levado a passear por uma colagem de textos cujos “fios soltos” permitem diversos percursos. A escrita que embaralha versos e fragmentos constitui uma espécie de diálogo entre textos próprios e alheios, uma coleção de apontamentos e ideias.

O livro passa pela arte norte-americana das décadas de 1960 e 1970, pela poesia concreta brasileira, pelo Manifesto Neoconcreto, pelo Tropicalismo, pela poesia em contexto digital. O

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discurso videográfico, “impuro por natureza”, a confluência de mídias e o fim da especificidade do meio nas artes têm destaque na abordagem dos autores – assim como considerações acerca do momento contemporâneo, principalmente no que diz respeito ao fim das certezas estéticas e à fluidez entre os meios. As citações e referências de teóricos como Rosalind Krauss, Antonio Risério, Philadelpho Menezes, Giorgio Agamben, Jacques Rancière, Antonio Cícero – para mencionar apenas alguns – costuram uma trama de reflexões e interrogações sobre arte, palavra, filosofia, política, poesia e linguagem que repercute nos outros dois discursos que integram o livro de Santos e Rezende: o texto dos autores (formados por frases curtas, quase versos) e as imagens do trabalho dos artistas Adolfo Montejo Navas, Alberto Pucheu, Alberto Saraiva, Brígida Baltar, Laura Erber, Leila Danziger, Lena Bergstein, Lenora de Barros, Ricardo Basbaum e Rosana Ricalde.

No texto dos autores, entremeado pelas

referências, algumas palavras são pontos de

partida para séries de frases e reflexões sobre arte

e outras categorias caras à discussão proposta –

arte, escrever, ato, homenagem, modernidade,

contemporâneo, ideia, obra, pensamento,

conceito, ponto – em tentativas de esgotar seu

sentido, mas que não se esgotam, se multiplicam.

São afirmações, reflexões, contestações que

às vezes conferem ao livro ares de manifesto –

pensamento sobre arte, arte voltando-se para si

própria, arte conceitual.

O projeto gráfico, assinado por Lucas Osório, desempenha papel importante nesse entrelaçamento de discursos. Emprega diferentes pesos de texto, usando duas tipografias – uma para as citações e referências históricas e críticas, a outra para os versos e frases dos autores – e diversos tamanhos de letras, em manchas gráficas variadas de texto, explorando a dimensão espacial

da palavra. Não há relação direta entre texto e imagens; eles constituem discursos paralelos. Embora tratem do mesmo tema geral, um discurso não está submetido ao outro (apesar de se cruzarem em alguns momentos, como quando as reproduções de frames do vídeo Homenagem, de Lenora de Barros, aparecem lado a lado a algumas possíveis definições propostas para o termo que dá nome à obra). Textos e imagens têm igual peso na constituição do livro. A disposição dos elementos permite diversas possibilidades e níveis de leitura, tanto uma leitura linear, que siga o texto na sequência das páginas, como leituras não sequenciais, que se dão ao se folhear o livro, ao se lerem prioritariamente as imagens, os fragmentos de texto ao acaso. Se o texto às vezes recebe tratamento de imagem, destacado na página, cercado de amplos espaços em branco, também a imagem é às vezes tratada como texto – por exemplo, as imagens do vídeo de Brígida Baltar, que é reproduzido como uma série de frames disposta no espaço, a ser “lida” sequencialmente.

Repleto de referências artísticas e literárias, o livro constitui importante fonte para os que se interessam pela pesquisa sobre confluências de arte e escritura, sobre as complexas relações entre as mídias e a desconstrução das categorias artísticas no mundo contemporâneo. Ponto de conjunção de pensamentos, vertentes e caminhos, ele abre uma gama de possibilidades a serem percorridas. É livro para ser lido e relido, visto e revisto, estudado e fruído, bem-sucedido nos desafios a que se propõe.

Gerhard Richter, Sinopse

Pinacoteca do Estado de São Paulo,São Paulo, 23 jul.-21 ago. 2011

Alvaro Seixas

Na exposição Sinopse (Survey), Gerhard Richter (1932, Dresden, Alemanha) assume a figura de artista-curador para realizar um passeio resumido por sua própria produção. Constituída de 27 obras entre pinturas, fotografias e gravuras, exibiu-se na Pinacoteca do Estado de São Paulo depois de percorrer outras importantes cidades da América Latina e do Brasil.

No final da década de 1960, em mainstream artístico que começava a afirmar as chamadas “novas mídias” como sendo o mais novo degrau da ascensão a formas superiores de arte, o artista alemão persistiu – desse modo anacrônico – na pintura tradicional, tendo reativado criticamente certos aspectos de estilos que começavam a ser enfraquecidos pela crítica da época, como o expressionismo abstrato.

A opção por intitular sua mostra Sinopse a identifica como uma espécie de “retrospectiva precária”, sortilégio conceitual que se liga diretamente ao modus operandi do artista, que em sua produção não cessa de nos apresentar a um universo visual diversificado, fragmentado e lacônico. Desse modo, Richter opta por um passeio vago, assumidamente sintético e, assim, incompleto, por sua obra para rediscutir as ambições acadêmicas das tradicionais, grandes e pretensiosamente completas retrospectivas de artistas.

Para confeccionar muitos de seus trabalhos de pintura, o artista busca referências em registros fotográficos – pessoas, coisas e cenários reconhecíveis e desconhecidos –, imagens vindas de uma espécie de armazém aparentemente sem limites que é o mundo globalizado, articuladas pelo artista a outras obras de natureza supostamente “abstrata”.

A produção de Richter define uma estratégia “documental” pouco ortodoxa, comparável ao curioso Atlas de Imagens Mnemosine concebido

na década de 1920 pelo historiador alemão Aby Warburg,1 que consistia em uma série de painéis móveis, sobre os quais o historiador dispunha suas coleções de imagens da cultura visual universal, sob forma até então inconcebível segundo as normas acadêmicas, ajustadas em rígida linearidade e limitações geográficas. Warburg passa a identificar as imagens como possuidoras de uma espécie de “memória coletiva” ou “social”, passando a interligar tempos históricos não lineares e as artes visuais produzidas em partes do globo até então distantes e, para as tradicionais “Histórias da Arte”, de impossível associação.

A mostra em questão é composta em grande parte por obras que consistem em pequenas e médias reproduções fotográficas – impressas em off-set – e de pinturas representativas do artista que, aliás, originalmente tiveram como base a estética fotográfica e com ela mantiveram forte relação visual – é o caso dos retratos Betty (1991) e Tio Rudi (2000). Também estão presentes obras da série Pinturas Abstratas, mas em tamanhos modestos, adequando-se ao perfil das reproduções fotográficas em exposição. Há ainda uma fotografia com intervenções de pintura – da série Fotografias Pintadas –, uma única obra de grandes dimensões e um painel fotográfico datado de 1998, formado por 128 detalhes em tons de cinza de Halifax, pintura a óleo abstrata, de denso impasto, feita pelo artista em 1978. Resta mencionar curiosa linha do tempo em off-set, semelhante a uma página de enciclopédia, diagramada por Richter em 1998, na qual o artista nos apresenta seu resumo pessoal da história cultural ao destacar nomes de importantes artistas plásticos, arquitetos, escritores, músicos e filósofos.

Em sua Sinopse, Richter parece menos interessado em apresentar uma exposição de obras únicas ou de grande formato, que se poderiam encerrar em

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sua própria plasticidade, e mais em lançar um olhar sobre o caráter conceitual e heterogêneo de sua produção e nos desafiar a adentrar sua lógica difusa.

NOTAS

1 Para estudo da relação entre as produções de Gerhard Richter e Aby Warburg, ver Buchloh, Benjamin. Atlas de Gerhard Richter: o arquivo anômico. In: Arte & Ensaios, v.1. n.19. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Escola de Belas Artes, UFRJ, 2009: 194-209.

José Resende

Museu de Arte Moderna do Rio de JaneiroRio de Janeiro, 9 jun.-18 set. 2011

Felipe Scovino

Tomar contato com a recente produção de José Resende é refletir sobre questões universais da escultura (monumentalidade, forma, técnica e presença no espaço). A sentença soa como chavão, mas é nesse momento que se revela a diferença em seu trabalho e particularmente nessa exposição. Devemos partir do princípio de que o conjunto de cinco esculturas foi pensado para o Salão Monumental do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Sendo invadido por luz e natureza, formando uma espécie de continuidade com seu entorno e, portanto, expondo seu espaço a feixes externos de atravessamento, o próprio MAM-RJ não conhece seus limites, digamos, estruturais. É uma extensão desse panorama que sobrevoa a exposição de Resende. Compreender que o (suposto) limite da escultura não termina em sua apreensão formalista, mas que o campo de diálogo estabelece fruição inclusive com o meio em que está inserido. Apesar de sua grandiosidade, o resultado plástico nesse

conjunto de esculturas contraria a tendência à busca das manifestações espetaculares e sublinha original dimensão de sobriedade. Permanecem em território ambíguo porque tanto atuam como formulações de ficções individuais quanto formam uma rede de interlocuções de impossível desmembramento. Essa exposição também reflete a possibilidade de um trabalho tornar (ainda mais) específico um lugar. A conclamada sobriedade se faz no diálogo entre a escala das esculturas e a necessidade de percurso que elas invocam ao espectador − discursar sobre o corpo a partir não apenas da experiência física do percurso em torno das esculturas, mas singularmente expor uma visão de mundo, que passa pelo aspecto estabilizador (e potencialmente desestabilizador) da escultura. São obras que se condicionam como verbo de ação, na condição, portanto, de revelar a instabilidade da matéria e a situação de um corpo em permanente estado de desequilíbrio com o meio. Esta última característica também pode ser confundida com dúvida ou incerteza. Suas esculturas parecem duvidar de sua própria condição de imobilidade porque almejam o espaço e o diálogo. Parecem descontentes com sua qualidade de imagem ou forma de aparição no mundo. Há um desconforto pairando sobre aquele território.

Os elementos dessas esculturas são experimentados como estruturas físicas. Ora, suas vigas e estacas são dispostas a intervalos largamente espaçados sustentados como que por pernas. Ora, uma estrutura vertical em cobre e preenchida de forma intercalada por madeira nos remete tanto a uma magistral coluna vertebral quanto a uma manifestação totêmica. Assim, a forma de seu trabalho e a noção de totem convertem-se em duas metáforas interligadas e recíprocas, que apontam para um mesmo aspecto: o repertório de formas do cotidiano que, deslocadas de seu contexto e identidade,

criam coerente e contínuo discurso sobre o corpo e visão de mundo muito particular e instigante sobre a contemporaneidade. Uma terceira obra é formada pelo “diálogo” entre dois círculos de cobre fixados por duas espécies de sapatas e tendo em suas extremidades um conjunto de longos fios de aço. É surpreendente como de certo modo essa imagem congela um tempo e uma ação. Há um dado de velocidade sendo transmitido ainda que estejamos diante de uma escultura que, entretanto, no exato momento em que tomamos ciência dessa imagem, se transforma em corpo vibrátil. Essa ideia é reforçada pela relação totêmica que a obra também explora, nesse caso imagem que pode ser identificada com temas sexuais e canibalísticos.

A aparição dessas obras é sempre resultante de economia de gestos e materiais que se convertem harmonicamente em um corpo. Este vem à tona na obra de Resende porque sua presença no mundo é incondicionalmente necessária. Ademais, a ideia de corpo torna efetivas a inserção e a vontade do sujeito na produção escultórica. O tom confessional de Resende nos faz refletir a respeito de não sermos um conjunto de significados privados que podemos escolher entre tornar ou não público. Esses gestos são resultantes das convenções e do repertório do lugar que habitamos ao mesmo tempo em que se convertem (e logo se impõem) como discurso sobre nossa vontade de expor, organizar e modificar essa “ordem natural das coisas”.

Ana Linnemann, Cartoon

Galeria da Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro | 15 jun.-31 jul.2011 Curadoria de Fernando CochiaraleVera Beatriz Siqueira

A chegada à exposição Cartoon, de Ana Linnemann, é marcada pela presença bem-humorada de uma palmeira, plantada no canteiro em frente à Casa de Cultura Laura Alvim, na praia de Ipanema, no Rio – Os invisíveis no8. Ao lado da escultura de Franz Weismann, Quadrado em torção no espaço, que há anos identifica o espaço cultural, a palmeira não chamaria propriamente atenção, em meio a tantas outras da orla carioca, a não ser pelo fato de realizar, de tempos em tempos, rotações sobre si mesma. Após o que para de forma abrupta, mantendo a ondulação de suas folhas por instantes antes de reconquistar a quietude. Um leve sorriso se insinua no rosto do espectador que, curioso, sobe as escadas da galeria.

Ao entrar na sala, mais uma experiência inusitada: na parede lateral, estranhas protuberâncias se projetam, a intervalos regulares, em três leves manchas que parecem indicar infiltrações – Os invisíveis no9. A sutileza da obra e os intervalos longos entre uma aparição e outra fazem com que, a princípio, duvidemos do que vimos. Ilusão? Realidade? A surpresa traz novo sorriso. As folhas empilhadas de uma estante articulável e um par de xícaras cortadas como se fossem cascas de frutas – da série O mundo como uma laranja – convidam o visitante a participar de uma curiosa e instigante experiência estética.

Surpreendidos pela palmeira que gira, pela parede que se projeta ou pelas xícaras retalhadas, nos vemos imediatamente desarmados, destituídos das formas tradicionais de apreciação estética. As ideias mais corriqueiras que nos apoiam na experiência de visita às exposições de arte não parecem funcionar direito. Sequer há objetos, bases, molduras, etiquetas para nos auxiliar. A estante articulável vai escrevendo o roteiro da mostra, marcado antes por fissuras e interrupções do que pela continuidade.

Em cada obra vivemos a fragmentação. Logo à

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esquerda de quem adentra a sala central, duas pesadas pilhas de tiras retangulares de feltro são costuradas no centro de uma de suas bordas, ficando uma à frente da outra, com essas bordas para fora da prateleira interrompida que, por sua vez, avança sobre o vão de passagem para outro espaço da galeria. Entre as tiras que compõem cada pilha, é colocada uma pérola, detalhe caprichoso que reforça o sentido de intervalo e descontinuidade, além de contribuir para a instabilidade da peça, completada pelo fato de a linha de costura permanecer estendida pela agulha, apenas tensionada e enfiada na trama do feltro. Como o título da obra sugere – Inevitável –, ficamos suspensos no tempo, aguardando o momento em que o conjunto pode vir a se desmanchar.

Novamente é a descontinuidade e o sentido intervalar que surgem nos retângulos de azulejos iluminados frontalmente por spots, que devem ser vistos pela face posterior, na qual aparecem os traços, vertical ou horizontal, formados pela luz que vaza de intervalos na junção dos ladrilhos – Frestas de luz 1 e 2. Outros objetos da série O mundo como uma laranja – como o tênis All Star, o relógio que, nessa mostra, se conecta com a luminária acima, o globo ou os livros fatiados – ajudam a exacerbar a sensação de espacialidade fragmentada. Como se Ana Linnemann recusasse, antes de tudo, qualquer solução de continuidade, qualquer forma de inscrever a totalidade, qualquer possibilidade de estabelecer entre a arte e o mundo uma relação ausente de fricções e rupturas.

Como afirma em seu site: “Eu faço objetos que, sendo improváveis, criam novas situações para o que é possível”. O que a leva a trabalhar justamente com as fissuras do real. Cortes, incisões, vaivens de invisibilidade, instabilidades de sentido são algumas das estratégias de manifestação desse jogo de improbabilidades e possibilidades. Pois na afirmação da artista podemos perceber sua busca

deliberada por criar novos mundos, nos quais o elemento lúdico e a ilusão são essenciais para evitar que a arte se dissolva na realidade. Como se a artista lançasse, no limite, a pergunta sobre as condições de possibilidade da própria arte no contexto atual.

Empenhada em recuperar para a experiência da arte alguma ordem de autonomia com relação à realidade mundana da qual parte, a artista, porém, deve recusar as narrativas totalizantes, sejam as mais tradicionais, sejam as recentes. O que nos leva a outra dimensão de sua obra. Encontramo-nos igualmente incapazes de ordenar a experiência a partir dos temas mais correntes na arte contemporânea. Seus globos cortados – O mundo como uma laranja (globo) – ou esmagados nos nichos da estante em ziguezague – Ziguezague com globos – não falam, por exemplo, de identidades, multiculturalismo, hibridismo ou territorialidades. Os cortes e os achatamentos falam, sim, de uma realidade ambivalente, entre a imagem símbolo de nosso mundo e a matéria de que é feito. Novamente, ficamos desarmados e desassistidos diante do humor, que não deseja sequer reter a dimensão mais conceitual da ironia duchampiana.

Em XS, fatias de pedra-sabão são bordadas com fios coloridos de algodão e seda, seguindo os padrões florais em ponto-cruz de revistas de trabalhos manuais, executados caprichosamente pela artista. À pura fisicalidade da rocha ela opõe o trabalho com as linhas, forçando a matéria a perder sua autossuficiência e a se converter em suporte. Ao mesmo tempo, o gesto de bordar deixa de ser íntimo e delicado, para envolver furos na pedra resistente e uma artesania bruta. Curiosa reflexão sobre a natureza se impõe: a rocha perde sua materialidade autossuficiente, as flores nascem do trabalho da artista. O resultado, novamente, é o sorriso diante do inusitado. Também ao costurar zíperes em folhas secas, Ana Linnemann retoma

esse sentido dúbio e indefinido da natureza, entre matéria-prima e fluxo orgânico.

Em outras obras ela nos coloca diante da experiência da indecisão sobre a figura geométrica. É o caso de 1 nível/3 níveis, na qual três copos transparentes, com diferentes quantidades de água, dispostos em níveis distintos nas prateleiras articuladas, são unificados pela virtualidade da linha reta que se pode traçar a partir da superfície do líquido em cada recipiente. Ou dos delicados bordados em tira de feltro, nos quais o círculo e o quadrado são formados não apenas pela trama de linhas, mas também pelas agulhas (curva e reta) que, aliás, determinam o tamanho das formas. Sugere, assim, uma espécie de interioridade problemática ou dúbia da forma geométrica.

Todos esses dilemas surgem, entretanto, sem que a artista faça uso de outra ordem de totalização, valendo-se para tal da centralidade da dimensão do jogo. É preciso suspender os discursos por meio da surpresa, da ilusão e do riso. Destituir a miniatura da célebre performance de Joseph Beuys, I like America and America likes me, de toda profundidade cultural e histórica. Fazê-la girar sobre um cd, acionado por uma geringonça mecânica, ligada a uma tomada escancaradamente incrustada na lombada de livros escavados que, por sua vez, viram-se de costas para nós. Recupera, assim, o sentido bem humorado e improvável da própria performance citada, agora desprovida de toda aura e convertida em ação ininterrupta e sem direção, repetida como em uma caixa de música muda – Beuysiana.

A referência a Joseph Beuys volta a aparecer em Os invisíveis no2, obra na qual uma garrafa de coca-cola se desloca lateralmente sobre uma pilha de livros encimada por exemplar sobre o artista alemão. Aqui, Ana nos fazer experimentar vários níveis de encontros insólitos: entre o movimento motorizado da garrafa e a imobilidade silenciosa

dos livros; entre as elaboradas publicações de arte e a própria garrafa plástica de refrigerante – que se situam em polos opostos na hierarquia dos objetos produzidos pelo homem; – mas também entre os livros sobre Leonardo da Vinci e Bonnard, o minimalismo e Lucio Fontana, e o discreto, porém insidioso, exemplar de Dick Tracy: America’s most famous detective. Junto aos artistas renomados, esse herói de histórias em quadrinhos parece forçar um sorriso amarelo, promovendo o questionamento a respeito das frestas que separam realidade e ficção, cultura pop e erudição, valor estético e fama.

Talvez, porém, a presença desse livro seja ainda

mais significativa. Poderíamos pensar nela como

uma espécie de chave de compreensão de toda a

mostra, cujo título, aliás, refere-se ao universo dos

comic books. É Dick Tracy quem parece oferecer

a Ana Linnemann a possibilidade de criar novas

situações para a arte, sem descambar para as

soluções tradicionais ou para a discursividade

característica da contemporaneidade. É ele quem

vai permitir que ela se diferencie, por um lado,

da figura do artista como gênio, presente tanto

em Leonardo quanto na influência romântica em

Beuys, e, por outro, da exteriorização absoluta

das formas simples do minimalismo, a recusar

qualquer resquício de autoria. O detetive criado

em 1931 que, durante décadas, desvendou

mistérios e solucionou crimes, serve à artista

como contraponto necessário para seu empenho

em atualizar a tarefa artística de reconfigurar o

real. Projeto ambicioso e especialmente relevante

na contemporaneidade.

Não nos deixemos, portanto, iludir pela aparente facilidade de seus trabalhos – instância necessária de aproximação e contato. Suas obras querem nos pegar, pretendem atrair e prender o espectador pelo humor, pela ilusão, pelo desafio a nossos dispositivos perceptivos. Desejam mais do que

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isso, entretanto, ao nos envolver na experiência da fricção, da fissura, da indeterminação, sugerindo que cabe à arte contemporânea estabelecer uma relação nova (de descontinuidade) com o mundo. Rejeitando as narrativas tradicionais, mas também a afetação conceitual, a recusa de sentido pós-moderna, a negação da autoria ou o ceticismo pop, e recuperando uma ordem nova de autonomia da experiência estética, os jogos visuais propostos na mostra Cartoon criam um espaço fragmentário em que experimentamos a arte em sua natureza híbrida, simultaneamente extraordinária e comum, especial e corriqueira, grandiosa e ridícula.

Francis AlÿsA Story of Deception

MoMA Manhattan / MoMA PS18 mai.-1o ago. 2011

Doris Kosminsky

O título da mostra do artista belga Francis Alÿs, A

Story of Deception, fala do desejo de perseguir

o que sempre parece nos escapar. Trata-se de

conceito que o artista instala entre a poética e

a política. Alÿs vive no México desde a década

de 1980. Essa mudança de continente proveu-o

de ponto de vista único, embora problemático,

do intruso, do estrangeiro dono de olhar aguçado

ante a realidade naturalizada. Nesse contexto,

os ciclos de avanços e retrocessos nos campos

da política e da economia, tão frequentes nos

países da América Latina, são colocados como

repetições e tentativas de alcançar um futuro

nunca concluído ou plenamente realizado. Uma

miragem do que poderíamos ser, mas com

resultado sempre decepcionante. Essa descrença

na retórica moderna do desenvolvimentismo e do

progresso perpassa a obra que o artista apresenta

em instalações, vídeos, sketches preparatórios, desenhos, pinturas, colagens e fotografias.

O olhar estrangeiro mostra-se explícito na fotografia Turista (1994) em que o artista aparece identificado por uma placa com a palavra “turista”, ao lado de trabalhadores temporários com suas placas: “eletricista”, “bombeiro”, “pintor e gesseiro”, etc. A figura de Alÿs, mais alto e usando óculos escuros, destaca-se dos outros homens, de vidas precárias. De certa forma, com sua presença, o artista oferece seus serviços como turista para quem quiser ver o mundo através de seus olhos. Como essa imagem, a obra de Alÿs consiste fundamentalmente da documentação de ações e práticas poéticas. A natureza processual de seu trabalho é desdobrada em desenhos, pinturas, vídeos, filmes, fotografias e cartões-postais, além de objetos menos óbvios, preparatórios da ação artística, tais como cópias de e-mails e anotações. Se seus vídeos não são a obra em si, mas um meio para fixar e apresentar a obra, os recortes de jornais e desenhos que acompanham as instalações não buscam ser ilustrações explicativas dos processos. Parecem-se mais com enigmas ou fragmentos do pensamento do artista, envolvido em processos que muitas vezes requerem financiamento e minucioso planejamento, além da participação de voluntários e contratação de profissionais especializados (cinegrafistas, editores de imagem, etc.).

O entrelaçamento entre política e poética em jogo que nunca é concluído satisfatoriamente aparece claramente como metáfora no vídeo Rehearsal I (1999-2001). Nessa obra de 29 minutos, assistimos às inúmeras tentativas de um fusca vermelho em alcançar o topo de uma íngreme estrada de terra ao som do ensaio de um grupo de mariachis. A cada vez que os músicos interrompem o que estão tocando, seja para afinar os instrumentos

ou trocar comentários, o fusca desce a ladeira de ré até que a volta da música o encaminhe para nova tentativa. O ensaio que fazem, ao mesmo tempo, o grupo folclórico e o carro em sua repetida tentativa de alcançar o topo, sugere uma alegoria às frustradas tentativas das nações sul-americanas de alcançar o progresso. A sonoridade dos mariachis cria certa comicidade ao mostrar o empenho diante das sucessivas frustrações.

A obra Tornado (2000-10) documenta 55 minutos de ação que se desdobra em tentativas de alcançar o epicentro de redemoinhos de vento, frequentes nas regiões empoeiradas e secas ao sul da Cidade do México. O processo da ação consiste na aproximação em direção ao tornado. Ao adentrar a nuvem de poeira, a tela escurece. Ao fim de alguns segundos de escuridão, em que só se pode ouvir o ensurdecedor som do vento e a respiração ofegante do artista, temos a sensação de que Alÿs e seu aparato foram cuspidos para fora do redemoinho. O processo se repete sem conclusão, sugerindo a eterna e utópica luta entre dom Quixote e os moinhos de vento.

O vídeo Guards (2004-5) registra proposição

envolvendo os famosos guardas ingleses. De

início, eles marcham individualmente pelas ruas

de Londres. À medida que se encontram, entram

em formação e passam a marchar juntos. O ritmo

sincopado da marcha acaba por atrair e fixar um

número maior de soldados. Quando o grupo

atinge o número de oito por oito guardas, dirige-se

à ponte mais próxima. Ao alcançá-la, a formação

é desfeita, e o grupo se dispersa. A construção

da ação é documentada por tomadas precisas.

A edição reforça o enredo da proposta. O único

áudio da obra vem do marchar dos soldados, que

vai aumentando à medida que a ação avança.

O trabalho pode ser lido com uma parábola do

caminhar junto, do seguir os passos da maioria.

A surpresa da dispersão final desvela o estado

de suspensão do significado que se encontra na natureza do ato poético. Segundo Alÿs, a arte, através do ato poético de transgressão, pode nos fazer olhar as coisas de modo diferente. Ou, pelo menos, o absurdo da situação pode fazer-nos pensar que as coisas poderiam ser diferentes. Talvez seja esse o caso da obra Re-enactments (2000), constituída por dois canais de vídeo. O primeiro é a documentação de ação realizada pelo artista. Ele entra em uma loja, compra e carrega um revólver e sai caminhando pelas ruas com a arma em punho até ser detido pela polícia. No dia seguinte, e por isso as duas sequências de imagens, a ação é re-encenada com a cooperação da polícia. Ao apresentar, lado a lado, a ação dramática e sua simulação, o artista dissolve a fronteira entre documentação e ficção, questionando a autenticidade da obra. Ao mesmo tempo, discute a segurança da população mexicana diante da debilidade de sua polícia.

Uma de suas obras mais conhecidas e documen-

tadas, When faith moves mountains (2002), ope-

ra sobre uma inversão do princípio da eficiência

reinante no pensamento moderno: “Máximo es-

forço, mínimo resultado”. Em ação de proporções

épicas, Alÿs teve a participação de 500 voluntários

equipados com pás com o objetivo de deslocar

em alguns centímetros uma duna dos subúrbios

de Lima. A obra pode ser considerada uma me-

táfora da sociedade latino-americana, em que o

esforço e o sacrifício da população são solicitados

de forma a alcançar resultados que, ao final, se

mostram incipientes.

A extensa obra de Francis Alÿs parece repetir o

que captamos em seus atos poético-políticos:

a necessidade de seguir sempre, a resistência

ante a frustração mesmo diante de resultados

desanimadores. Algo que Samuel Beckett assim

resumiu: “Tente de novo. Fracasse novamente.

Fracasse melhor.”

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011222 223SUMÁRIO DAS EDIÇÕES ANTERIORES

SUMÁRIOS DAS EDIÇÕES ANTERIORESArte & Ensaios 22, 2011 Sucessão de fatos | Entrevista com Antonio Manuel

ARTIGOS

A história do cinema nas páginas da loucura: o espectador, a imagem e a dissociação | Tadeu Capistrano

A Fotografia Subjetiva, abertura ao contemporâneo | Celso Guimarães

O olhar e o tempo | Tiago Cotrim

Aleijadinho em carne viva: o gesto na escultura | Leonardo Etero

Processos de mediação | Beatriz Pimenta Velloso

O ‘lugar’ negociado no qual o trabalho se move, sabendo-o e sabendo-se parte de um mundo maior, ou, se quisermos, desconhecido | Hélio Branco

COLABORAÇÕES

Tempo alterado. O flashforward da linguagem na vida e na arte | Fernando Gerheim

Wols, pintor maldito, no acervo do Masp | Almerinda da Silva Lopes

Ghérasim Luca aos pedacinhos | Laura Erber

Tempo cego | Patricia Corrêa

DOSSIÊTunga

Uma vanguarda viperina | Carlos Basualdo

Cópula | Viviane Matesco

Um experimentador ocasional em equilíbrio instável | Suely Rolnik

REEDIÇÃO

Quasi-cinema | Ligia Canongia

TEMÁTICAS

Uma tradição negligenciada? A história da arte como Bildwissenschaft | Horst Bredekamp

O que se mostra. Da diferença icônica | Gottfried Boehm

Os cães e a cidade | Miwon Kwon

Sobre (não) pintura considerada (não) arte comunista. O caso de Otto Muehl | Éric Alliez

RESENHAS

Livro ou livro-me: os escritos babilônicos de Hélio Oiticica (1971-1978) | Ana Mannarino

A Série Negra | Gilton Monteiro

A constelação Didi-Huberman ou instruções para construir uma máquina de guerra visual | Hernán Ulm

Anticristo | Cristina Salgado

Arte & Ensaios 21, 2010

Eu nunca ensaio| Entrevista com Laura Lima

ARTIGOS

Lugares que habitam lugares | Luiza Peixoto Baldan

Inscrições contemporâneas: a palavra-imagem no projeto da visualidade pós-moderna | Julie Pires

Cena para um figurino: no corpo, no palco, na galeria | Desirée Bastos de Almeida

Brasilidades na obra de Calmon Barreto | Gisele L. Faleiros da Rocha

Etnografia e ficção: o documentário de Jean Rouch e o cinema brasileiro | Rogério Bitarelli Medeiros

História da arte e ficções num caderno de notas de Eliseu Visconti | Ana Cavalcanti

COLABORAÇÕES

Jochen Gerz: o monumento como processo e mediação| Leila Danziger

Queda do Solar de Smithson: ficção, disrupção e entropia | Tatiana Martins

Deslocamentos de Vergara | Renata Santini

Origem e permanência da crítica | Leandro Gama Junqueira

DOSSIÊ Navilouca | Organização Cezar Bartholomeu, Inês de Araujo e Ronald Duarte

TEMÁTICAS

Inscrever-se em falso | Jacinto Lageira

Transcendendo a fragmentação da experiência:o acousmêtre no ar nos filmes de Michael Snow| Randolph Jordan

A ficção documental: Marker e a ficção da memória | Jacques Rancière

Por uma meta-história do filme:notas e hipóteses de um lugar-comum | Hollis Fra

PÁGINA DUPLA | Cristina Salgado

RESENHAS

A pintura como arte | Clarice Ferreira de Sá

Cem, Sem, Imagens | Edith Magnan

Sergio Rodrigues. Um designer dos trópicos | Gloria Costa

Sobre o ofício do curador | Luiza Interlenghi

Arte & Ensaios 20, 2010

Não adianta procurar algo em sua transparência, porque o trabalho não está em lugar de nada | Entrevista com José Resende

ARTIGOS

Religião e estética: a arte como comunicação | Mariana Emiliano Simões

Ensaio sobre a perda do instante decisivo | Pollyanna Freire

O risco como poética artística | Leandro Furtado

O SDJB e as obras neoconcretas | Elizabeth Catoia Varela

Da suspensão à implosão no caminho da arte e tecnologia | Maria Luiza Fragoso

O objeto e a experiência material | Marcus Dohmann

COLABORAÇÕES

Robert Smithson: a memória e o vazio na paisagem entrópica contemporânea | Martha Telles

O arquivo e a busca de visibilidade – Pinturas de gênero histórico nos álbuns fotográficos dos salões de Paris | Pedro de Andrade Alvim

O ato poético como experiência estética no readymade de Marcel Duchamp | Renata Reinhoefer França

Cartografia da demarcação da terra que produz diamantes – cotidiano em suspensão | Fabíola Silva Tasca

DOSS IÊ Espaço Ar te B ras i l e i r a Contemporânea – ABC / Funarte | Organização Ivair Reinaldim

R E E D I Ç Ã O A n o v a t e o r i a d a representação | José Arthur Giannotti

TEMÁTICAS

Por uma oftalmologia do estético e uma ortopedia do olhar | Robert Morris

O que fazer da vanguarda? Ou o que resta do século 19 na arte do século 20? | Thierry de Duve

Expressão conceitual sobre gestos conceituais em pintura supostamente expressiva, traços de expressão em trabalhos protoconceituais e a importância de procedimentos artísticos | Isabelle Graw

Seis conceitos | Bernard Tschumi

PÁGINA DUPLA Duplicação/Repetição/Londres/Paris/ Patético/Trágico, 2008-201 | Cezar Batholomeu

RESENHAS

projetos [in]provados: visitação, texto e partilha | Maria Moreira

Forma em movimento: videoinstalações refletem sobre o tempo no MAC | Fernando Gerheim

Contra o encerramento do desejo. A poesia concreta no Espacio de Lectura 1: Brasil | Fernando Nogueira

Sophie Calle Cuide de você | Fernanda Pequeno

Arte & Ensaios 19, 2009

Em outra vida acho que fui arquivista | Entrevista com Paulo Bruscky

ARTIGOS

Uma prática urbana entre outras: Enquanto o artista bebe água, a obra acontece | Fabrício Carvalho

Espaços virtuais: cantos, no 4, de Cildo Meireles - estudo de caso de uma metodologia de conservação e restauro de arte contemporânea | Humberto Farias

A chama como experiência meditativa na cena teatral | Almir Ribeiro da S. Filho Emygdio de Barros: o poeta do espaço | Glória Chan

Cultura visual porta adentro e a construção de um olhar decorativo no século 19 | Marize Malta

Digitally Born ou de volta para o futuro | Simone Michelin

COLABORAÇÕES

A poética da memória e o efeito-arquivo no trabalho de Leila Danziger | Luiz Cláudio da Costa

C a m p o / e v e n t o / a r q u i v o , a s possibilidades do arquivo atual como exposição problemática de (algumas) obras contemporâneas | Cristina Ribas

Furor de arquivo | Suely Rolnik

O reviramento do sujeito e da cultura em Hélio Oiticica | Tania Rivera

DOSSIÊ Warburg | Organização Cezar Bartholomeu, Aby Warburg, Giorgio Agamben

REEDIÇÃO Introdução à leitura de Winckelmann | Gerd Bornheim

TEMÁTICAS

Um passeio pelos monumentos de

Passaic, Nova Jersey | Robert Smithson

“Eu não trabalho com símbolos.” Joseph Beuys, a experiência e a construção da lembrança | Jean-Philippe Antoine

Arquivos da Arte Moderna | Hal Foster

Atlas de Gerhard Richter: o arquivo anômico | Benjamin Buchloh

PÁGINA DUPLA Interface I, Janela no MNBA | Carlos Azambuja

RESENHAS

O projeto do Renascimento |Ana Cavalcanti

A filosofia de Andy Warhol | Louise D.D.

Arquivo contemporâneo | Ivair Reinaldim

Jardim da Oposição | Guilherme Bueno

2 em 1 | Kenny Neoob

Felipe Cohen – Colagens | Sérgio Bruno Martins

Arte & Ensaios 18, 2009

No território da fronteira | Entrevista com Dias & Riedweg

ARTIGOS

Imaginário Periférico: impasses, propostas e principais questões | Renata Gesomino

A arte de Konstantin Christoff: possibilidades do estudo de uma região do norte de Minas Gerais e sua relação com a estética do grotesco | Maria Elvira C. Christoff

Jeff Wall e a imagem quase transparente na fotografia contemporânea | Leonardo Ventapane

Cindy Sherman – retardo infinito | Cezar Bartholomeu

Na fronteira da pintura e do teatro: Tadeusz Kantor e Valère Novarina | Ângela Leite Lopes

As decorações carnavalescas cariocas, um breve histórico | Helenise Guimarães

COLABORAÇÕES

Limites do tempo | Vera Beatriz Siqueira

O desvio de Cildo Meireles: um modo de estar no mundo contemporâneo |Sylvia Ribeiro Coutinho

Vem cá minha Teresa... | Marta Lúcia Pereira Martins

A comunidade inventada da Puente México, Tijuana: participação e acolhimento no projeto de arte pública de Felipe Barbosa e Rosana Ricalde na fronteira entre dois mundos | Luiz Sérgio de Oliveira

HOMENAGEM Vida ativa | Glória Ferreira e Sonia Gomes Pereira

REEDIÇÃO Da Antropofagia à Tropicália | Carlos Zilio

TEMÁTICAS

Sucessos e fracassos quando a arte muda | Allan Kaprow

Refazendo passaportes: o pensamento visual no debate sobre multiculturalismo | Néstor García Canclini

A arte e o 11 de setembro | Arthur C. Danto

Repensando o Ocidente |A. Raghuramaraju

PÁGINA DUPLA Alvo fácil: jogue a bomba aqui - Museu de Serralves, Porto, Portugal, 2008 - Bolsa Iberê Camargo, residência no Espaço Maus Hábitos | Ronald Duarte

RESENHAS

Caminhos da arte popular. O vale do Jequitinhonha | Rosza vel Zoladz

Nova Arte Nova | Felipe Scovino

Cildo Meireles - Tate Modern, Londres| Rodrigo Krul

Estética relacional | Luciano Vinhosa

As ilhas sonham | Marisa Flórido Cesar

Arte & Ensaios 17, 2008

No Hemisfério Sul | Entrevista com Artur Barrio

ARTIGOS

Celeida Tostes e a narrativa do feminino | Isabel Hennig

A arte de copiar: gravura, pintura e artista colonial | Raquel Quinet Pífano

Escultura como imagem | Cristina Salgado

Para chegar ao mictório deve-se descer a escada (em dois lances de 8 ou 80) | Milton Machado

O projeto de Revitalização do Museu D. João VI da EBA / UFRJ, a reinterpretação do acervo do museu e sua nova curadoria | Sonia Gomes Pereira

COLABORAÇÕES

Arte e deriva: a escrita como processo-invenção | Cecilia Cotrim

Circuito, cidade e arte: dois textos de Malasartes | Patricia Corrêa

Estratégias para não se perder na cidade Derivas urbanas de Sophie Calle | Cláudia França

Idéias-em-forma: invervenções de

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011224 225SUMÁRIO DAS EDIÇÕES ANTERIORES

Gordon Matta-Clark | Elena O’Neill

Abordagens da cultura popular carioca: Hélio Oiticica, Dias & Riedweg, Paula Trope e Rosana Palazyan | Beatriz Pimenta Velloso

HOMENAGEM Dossiê Luciano Fabro | Simone Michelin, Glória Ferreira, Carlos Zilio, Vanda Klabin e Carla Vendrami

REEDIÇÃO A escultura no campo ampliado | Rosalind Krauss

TEMÁTICAS

Táticas de jogo da Internacional Situacionista | Libero Andreotti

A polêmica em torno de Tilted Arc:: um precedente perigoso? | Harriet F. Senie

Um lugar após o outro: anotações sobre site-specificity | Miwon Kwon

O romance do espaço público | Adrián Gorelik

PÁGINA DUPLA Sítios arqueológicos | Luciano Vinhosa

RESENHAS

As coleções do Museu Nacional do Azulejo de Lisboa | Raphael Fonseca

Colors of the world: a geography of color | Rosane Bezerra Soares

Anita Malfatti, no tempo e no espaço | Messias Basques

Experiência neoconcreta: momento limite da arte | Elizabeth Catoia Varela

Últimos lançamentos da coleção Arte+ | Ivair Reinaldim

Nova York delirante: um manifesto retroativo para Manhattan | Rodrigo Krul

Bia Medeiros: trajetórias do corpo | Alexandre Emerick

Arte & Ensaios 16, 2008

A gente vai para o que ama | Entrevista com Ernesto Neto

ARTIGOS

Perguntas ordinárias em percursos existenciais – algumas considerações sobre a produção artística em contextos urbanos | Enrico Rocha

As charges políticas e seu reflexo na sociedade | Octavio Aragão

Antônio Bento e a vanguarda artística brasileira no final da década de 1950 | Ana Paula França Carneiro da Silva

Conversas em exposição: sentidos da

arte no contato com ela | Lígia Dabul

No olhar da imagem | Carlos Alberto Murad

COLABORAÇÕES

A fragmentação do corpo do herói e a sensibilidade do final do século 19 | Maraliz de Castro Vieira Christo

Território: um evento que dá lugar à experiência estética | Luciano Vinhosa

Corpo, caminhos e lugares | Alexandre Emerick

Retrato fotográfico oitocentista: o corpo visto através do “olhar iluminista” | Lícius da Silva

HOMENAGEM Dossiê Eliane Duarte | Paulo Venancio Filho, Chacal e Viviane Matesco

REEDIÇÃO Breviário sobre o corpo | Lygia Clark

TEMÁTICAS

O corpo é imagem | Jean-Marie Schaeffer

Masculino, feminino ou neutro? | Adrian Forty

Vídeo: a estética do narcisismo | Rosalind Krauss

Seguindo Acconci/visão direcionada | Christine Poggi

PÁGINA DUPLA Ângelo Venosa

RESENHAS

A arte da performance – do futurismo ao presente | Alexandre Sá

Espaço e performance | Alexandre Emerick

The preference for the primitive | Rosane Bezerra Soares

L’image ouverte | Cezar Bartholomeu

Arte & Ensaios 15, 2007

Tornar o real .... | Entrevista com Iole de Freitas

ARTIGOS

Como se existisse a humanidade | Marisa Flórido Cesar

Como fazer cinema sem filme? | Livia Flores

As narrativas fotográficas de Marcel Gautherot: estudo visual do guerreiro a lagoano e do bumba-meu-boi maranhense | Patrícia Pereira Peralta

Cotidiano e cultura no Rio de Janeiro na década de 1950: os cinejornais da

Agência Nacional | Renata Vellozo Gomes

Arquitetura moderna brasileira e as experiências de Lucio Costa na década de 1920 | Ana Slade

Imagens migrantes | Janaina Garcia

COLABORAÇÕES

O Ateliê livre de gravura do MAM-Rio 1959/1969: projeto pedagógico de atualização da linguagem | Maria Luisa Luz Tavora

Exercícios estéticos de ampliação de espaço e liberdade | Maria Luiza Tristão de Araújo

A estética fenomenológica de Merleau-Ponty | Rosa Werneck

A utopia expressionista de Kandinsky | Sheila Cabo Geraldo

Instauração: um conceito na filosofia de Goodman | Noéli Ramme

A ironia e suas estratégias na obra de Cildo Meireles | Felipe Scovino

Arte contemporânea brasileira nas fronteiras do pertencimento | Marcelo Campos

Off register: o retrato por Andy Warhol | Fernanda Lopes Torres

Universos paralelos: Paul Klee e Mira Schendel | Beatriz Rocha Lagoa

Compreender é julgar | Entrevista de Danièle Cohn a Glória Ferreira e Cezar Bartholomeu

HOMENAGEM Jean Baudri l lard – enigmas e paradoxos da imagem na era do simulacro | Rogério Medeiros

REEDIÇÃO Modelos europeus na pintura colonial | Hannah Levy

TEMÁTICAS

Gênese de uma pintura de Paul Gauguin: manifesto e auto-análise de um pintor | Dario Gamboni

Buren sobre Ryman, Moritz sobre Winckelmann: a crítica constitutiva da história da arte | Roland Recht

Estúpida | Yve-Alain Bois

Arte e política | Ana Mendieta

Táticas para viver da adversidade. O conceitualismo na América Latina | Mari Carmen Ramírez

Francastel e Panofsky: o espaço como problema | Jean Duvignaud

PÁGINA DUPLA Carlos Murad.

RESENHAS

O documentário de Eduardo Coutinho: cinema, televisão e vídeo | Beatriz Pimenta.

Auto Retrato - exposição na Fundação Serralves | Márcia Valéria Teixeira Rosa

Manet: uma mulher de negócios, um almoço no parque e um bar | América Cupello

O fim da história da arte | Mauro Trindade Escritos de artistas-anos 60/70 | Isabela Pucu

Arte & Ensaios 14, 2007*

Edição Especial - Correspondência Transnacional

Livros, botes e pássaros | Sutapa Biswas entrevistada por Michael Asbury

COLABORAÇÕES

Longe ou perto demais para saber do que se trata | Moacir dos Anjos

Sombras / Shadows | Michael Asbury

A re-locação da autenticidade e os dilemas transnacionais | Oriana Baddeley

O sonho americano (sonhos que o dinheiro pode comprar) - Notas sobre o inter-nacionalismo na cultura moderna | Guilherme Bueno

Diálogos espaciais: os derramamentos de caramelos de Felix Gonzalez-Torres | Deborah Cherry

Ar te e po l í t i c a à margem do multiculturalismo | Fernando Cocchiarale

Capítulos à parte | Glória Ferreira

Este Corpo é Todo Poros | Milton Machado

Vicissitudes do valor da anglicidade em Hamburgo do século 19: Nikolaikirche, a prefeitura e o sistema de água e esgoto | Toshio Watanabe

Mira Schendel: rumo a história de um diálogo | Isobel Whitelegg

Goeldi: um expressionista nos trópicos | Paulo Venancio Filho

Justamente o contrário | Carlos Zilio

Gostava da arte que produziam e gostava deles como pessoas. Assim, nos tornamos amigos | Entrevista de Guy Brett a Linda Sandino

TEXTOS DE REFERÊNCIA

Introdução de Information | Kynaston McShine

Rumo a uma nova localidade: as bienais e a “arte global” | Hou Hanru

Nosso Bauhaus, barraco dos outros | Rasheed Araeen

Modernos fora dos eixos | Paulo Sergio Duarte

Da arte nacional brasileira para a arte brasileira internacional | Tadeu Chiarelli

O tango local e a dança global: Uma

conversa inacabada entre Vasif Kortun e Cuauhtémoc Medina | Cuauthémoc Mediria e Vasif Kortun

DOSSIÊ CORRESPONDÊNCIAS

Introdução | Malu Fatorelli

Carta à mãe | Édouard Manet

Carta a Anita Malfatti | Mário de Andrade

Carta à família | Mário Pedrosa

Carta a Mira Schendel | Vilém Flusser

Carta a Hélio Oiticica | Lygia Clark

Carta a Lygia Clark | Hélio Oiticica

Brígida Baltar - Conversas por e-mail com Amal Saade e Christine Lemke, 2001 | Brígida Baltar

PÁGINA DUPLA David Medalla | Lúcia Nogueira

RESENHAS

l shall be the tropical sun | Suzana Vaz

DoubtfuI Strait um modelo da celebração da incerteza | Joanne Harwood

Tópicos sobre coletivos de artistas | Daniela Mattos/Alexandre Sá

London, London | Cristina Salgado

Questionando a necessidade de circular; fisicamente. Um encontro com Judy Freya Sibayan | ErikaTan

Arte & Ensaios 13, 2006

Que história é essa?! | Entrevista com Carlos Zilio

ARTIGOS

A obra de arte na era de sua reproduti-bilidade turística | Alexandre Sá

O belo e o sublime românticos nas paisagens de mundos virtuais online | Martha Werneck

Esplendor e sigilo: o Brasil na cartografia portuguesa dos séculos XVI e XVII | André Monteiro de Barros Dorigo

Read Me, Ready Me: a caixa preta do ser em tempo real | Ricardo Maurício

Os pintores de letras: um olhar etnográfico sobre as inscrições vernaculares urbanas | Marcus Dohmann

A importância do uso na preservação da obra de arquitetura | Cyro Corrêa Lyra

COLABORAÇÕES

Salões Oficiais de Arte no Brasil – um tema em questão | Angela Ancora da Luz

Kosuth com Freud – Imagem, psicanálise e arte contemporânea | Tânia Rivera

Uma conversa com José Damasceno | Sandra Vieira Jürgens

Formalismo e Modernidade | Guilherme Bueno

Lances de Hubert Damisch. Pensando a arte na história | Ernst van Alphen

Por um último Ring-Gespräch | Catherine Bompuis

Da prática da arte às outras práticas. O papel da arte na produção de realidade | Luciano Vinhosa

HOMENAGEM Linguagens Visuais – 10 anos

DOSSIÊ Instituições de arte no Brasil – relatos de experiências | Interface

REEDIÇÃO Salão de 1879 | Ângelo Agostini

TEMÁTICAS

Os espaços discursivos da fotografia | Rosalind Krauss

Entrevista a Harald Szeemann | Carolee Thea

Abertura da cilada: a exposição pós-moderna e Magiciens de la Terre | Thomas Mc Evilley

Um meio à procura de sua forma as exposições e suas determinações | Katharina Hegewich

Do indício ao índice ou da fotografia ao museu | Daniel Soutif

PÁGINA DUPLA Simone Michellin

RESENHASArt since 1900 | Alexandre SáDada | Cezar BartholomeuPoét ica(s) dos F luxus: a lgumas considerações | Daniela Mattos Marcia X: clichês | Felipe ScovinoTropicália: uma revolução na cultura brasileira | Michael AsburryEscritos de Artistas nos Anos 60/70 | Patricia GuimarãesPrague Biennale 2 Expanded painting / acción directa | Pedro MeyerBig Bang: destruição e criação na arte do século 20 | Sheila Cabo Le mouvement des images - Art et Cinéma | Valéria Faria

Arte & Ensaios 12, 2005*

Tornar real a realidade | Entrevista com Carmela Gross

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011226 227SUMÁRIO DAS EDIÇÕES ANTERIORES

ARTIGOS

Não-habitável como poética de espaço | Regina de Paula

Imagens e signos de Santa Teresa: movimentos artísticos e culturais de um bairro carioca | Luciane de Siqueira

A figura nos concursos de magistério | Ivan Coelho de Sá

Translocalidade | Giordani Maia

Imagem fotográfica na República Velha: um estudo sobre a coleção Rondon do Museu Histórico do Exército e Forte de Copacabana | Elizabete Mendonça

A pintura histórica de Antônio Parreiras: a temática do herói nacional e o imaginário republicano | Reginaldo da Rocha Leite

COLABORAÇÕES

Escarificações na pele ingênua da arte | Guilherme Vaz

A instalação em situação | Stéphane Huchet

Retrato de Dorian Gray – uma pintura in progress | Ligia Canongia

O momento que dura para sempre | Sean Scully

Semiótica aplicada à análise da imagem: a corte no Rio de Janeiro nos desenhos de Joaquim Cândido Guillobel | Rosana Ramalho

Bellevue II: uma visão não tão bela da sociedade de consumo | Antônio Sena Batista

Crítica em tempos de guerra: Ruben Navarra e os anos 40 | Vera Lins

REEDIÇÃO Sobre pintura moderna | Ruben Navarra

DOSSIÊ Soto

TEMÁTICAS

O artista como etnógrafo | Hal Foster

Quando (onde) a obra acontece | Jean-Marc Poinsot

O pós-artista | Peter Plagens

O debate crítico e os problemas estéticos | Rainer Rochlitz

A função crítica da arte entre recusa e indeterminação | Serge Bismuth

ENCARTE Milton Machado

RESENHAS

Marcel Duchamp – uma biografia | Alexandre Sá

Luz e letra | Carlos Augusto Nóbrega

Proust e a fotografia | Cezar Bartholomeu

Experiência crítica – textos selecionados: Ronaldo Brito | Fernanda Lopes

Os artistas contemporâneos e a filosofia | Glória Ferreira

Sobre um lugar – Torreão | Malu Fatorelli

A peregrinação de Watteau à ilha do amor | Rogério Medeiros

Imaginário brasileiro e zonas periféricas – algumas proposições da sociologia da arte | Valéria de Faria Cristofaro

O Pensamento Crítico Brasileiro | Viviane Matesco

Arte & Ensaios 11, 2004

Movimento aleatório disciplinado | Entrevista com Abraham Palatnik

ARTIGOS

Imagem digital e interatividade: considerações sobre o estatuto de obra e autoria nas representações expostas na rede | Yoko Nishio

Vítor Meireles e a tradição pictórica | Alexandre Linhares Guedes

Ações pontuais no espaço telemático: rádio e webrádio | Romano

Aloisio Magalhães: o artista, a arte e o design brasileiros na óptica de seus contemporâneos | Isis Fernandes Braga, Isis Braga

A Exposição do Centenário e o meio arquitetônico carioca do início dos anos 20 | Ruth Nina Veira Fereira Levy

O longe e o perto como distâncias contemporâneas | Malu Fatorelli

COLABORAÇÕES

Depois de História do Futuro (arte) e sua exterioridade | Milton Machado

Lygia Pape: gravuras ou antigravuras? Deslocamentos possíveis da tradição | Maria Luisa Luz Tavora

A (outra) Arte Contemporânea Brasileira: intervenções urbanas micropolíticas | Fernando Cocchiarale

Cildo Meireles: A indústria e a poesia | Moacir dos Anjos

Sub specie ludi: Função e estrutura de uma “arte lúdica” | Marion Hohlfeldt

Um copo de mar para navegar | Luisa Duarte

Interações, hibridações e simbioses | Carlos Augusto Moreira da Nóbrega Guto Nóbrega

HOMENAGEM Dossiê Lygia Pape

TEMÁTICAS

O impulso alegórico: sobre uma teoria do Pós-Modernismo | Craig Owens

A atividade fotográfica do pós-modernismo | Douglas Grimp

A visualização de dados como uma nova abstração anti-sublime | Manovich

Curadorias do fluxo – os desafios do intercâmbio colaborativo e do espaço das novas mídias | Sarah Diamonds

Tempos subjetivos & tempos objetivos da fotografia | François Soulages

Arte na vanguarda da Net: O futuro será úmido! | Roy Ascott

ENCARTE Livia Flores

RESENHAS

Arte e Vida no Século XXI e Redes Sensoriais | Valéria de Faria Cristofaro

O quarto iconoclasmo e outros ensaios hereges | Ricardo Cristofaro

Forma e Imagem Técnicas na Arte do Rio de Janeiro: 1950-1970 | Fernanda Lopes

Zoom out | Glória Ferreira

Lance 36 | Romano

O artista em meio à era do indivíduo | Rosza vel Zoladz

Fronteiras: arte, crítica e outros ensaios | Guilherme Bueno

Lygia Pape – Entre o Olho e o Espírito | Viviane Matesco

Arte & Ensaios 10, 2003*

Superfícies em distúrbio | Entrevista com Eduardo Sued

ARTIGOS

O espaço de representação e as representações do espaço | André Amaral

A Vontade Poética no Diálogo com os Bichos: o ponto de chegada de uma arte participativa no Brasil | Felipe Scovino

Angelo Agostini: a arte de levar a sério um trabalho bem-humorado | Octavio Aragão

COLABORAÇÕES

Desenho, composição, tipologia e tradição clássica – uma discussão sobre o ensino acadêmico do século 19 | Sonia Gomes

Duas visões sobre a Pop Art: Clement Greenberg e Arthur Danto | Fátima Couto

História, Antropologia e Arte: uma proposta de abordagem transdisciplinar

para o tema da “natureza exuberante” nas artes brasileiras | Helio Vianna

REEDIÇÕES

Milton Dacosta: vinte anos de pintura | Mário Pedrosa

Born to be Famous: a condição do jovem artista, entre o sucesso pop e as ilusões perdidas... | João Fernandes

TEMÁTICAS

O que é um artista (hoje)? | Nicolas Bourriaud

Linguagem internacional? | Gerardo Mosquera

A idé ia de obra-pr ima na arte contemporânea | Arthur C. Danto

Quando a forma se transformou em atitude – e além | De Duve

Entrevista a Carolee Thea | Dan Cameron

O ensino da arte conceitual | Charles Harrison João Fernandes

ENCARTE Regina de Paula

RESENHAS

O Meio Como Ponto Zero – metodologia da pesquisa em artes plásticas | Malu Fatorelli

Pensando a Arte na Escola | Marcelo Campos

Revistas de arte: biopolíticas em mídias gráficas | Newton Goto

A vanguarda como software | Romano

L’artiste en personne | Glória Ferreira

A Semiologia da Imagem Francesa e o Contexto Brasileiro | Rogério Medeiros

Arte & Ensaios 9, 2002**

O lugar que vejo | Entrevista com Antonio Dias

ARTIGOS

O ateliê do artista | Marisa Flórido Cesar

Galeria do Poste Arte Contemporânea: estudo etnográfico sobre arte e inventividade no espaço urbano | Laura Martini Bedran

Projeto Urubu na Ilha do Fundão | Gisele Ribeiro

Entre a alegoria e o deleite visual: as pinturas decorativas de Eliseu Visconti para o Theatro Municipal do Rio de Janeiro | Ana Maria Tavares Cavalcanti

COLABORAÇÕES

Chega de futuro? Arte e tecnologia diante da questão expressiva | Paulo Sergio Duarte

Barnett Newman: Pintura escrita / escrita pintura | Mel Bochner

Riegl e Benjamin: arte, história e teoria moderna | Sheila Cabo Geraldo

E Agora? | Ricardo Basbaum

Revista de Art[istas] dos anos 1968-79 | Sylvie Mokhtari

Sinceridade como conceito | Christine Tichatschek

REEDIÇÃO Belas-Artes | Gonzaga Duque

HOMENAGEM Dossiê Lucio Costa

TRADUÇÕES

Arte e objetidade | Michael Fried

Expanded Body. Variations V e a conversão das artes na era eletrônica | Marcella Lista

Arte híbrida? Um olhar por trás das cenas globais | Hans Belting

Sociologia visual: seguindo o olhar de Robert Frank | Howard Becker

RESENHAS

O trágico tematizado no imaginário | Rosza W. vel Zoladz

Uma história do espaço – de Dante à internet | Malu Fatorelli

O espaço moderno | Guilherme Bueno.

Palatnik: a luz e o movimento no pioneiro da fusão arte e tecnologia no Brasil | Felipe Scovino

Arte & ensaios 8, 2001**

As coisas vêm chegando | Entrevista com Aluísio Carvão

ARTIGOS

Giulio Carlo Argan, Clement Greenberg: a teoria para a arte moderna como projeto | Guilherme Bueno

A construção de um imaginário moderno: as capas da Editora Civilização Brasi leira (1960-1975) | Amaury Fernandes da Silva Junior

O pêndulo do sentido: distâncias indiciais e oscilações alegóricas | Ricardo Maurício

“Como todos os outros”: arte e estética na antropologia modernista | Kátia Maria Pereira de Almeida

O imaginário e seus contextos de referência no Brasil | Rosza W. vel Zoladz

Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro: revisão historiográfica e estado da questão | Sonia Gomes Pereira

Emprestar a paisagem – Daniel Buren e os limites críticos | Glória Ferreira

COLABORAÇÕES

O feminino na arte | Viviane Matesco

A reinvenção do realismo como arte do instante | Luiz Renato Martins

Atrocidades maravi lhosas: ação independente de arte no contexto público | Alexandre Vogler

Adrian Piper | Cyríaco Lopes

REEDIÇÃO Propósito experimental | Jorge de Oteiza

TRADUÇÕES

Terra e museu – local ou global? | Guy Brett

Jean-Luc Nancy / Chantal Pontbriand, uma conversa | Chantal Pontbriand

Circuito das heliografias: arte conceitual e política na América Latina | Mari Carmen Ramírez

Regionalismo | François Loyer

A rede de Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas | Alfred Gell

HOMENAGEM Paulo Houayek. Dia-a-dia | Carlos Zilio

RESENHAS

O cotidiano digital | Marcelo Simão de Vasconcellos

As diferenças culturais | Luciane de Siqueira

O fotógrafo e o historiador ilustrado | Cezar Bartholomeu

Mestre Valentim | Anna Maria Tavares Cavalcanti Volpi

Ivan Sá e Vera Hermano | Flávio de Carvalho

Alexandre Pessôa. The Pleasure of Beholding | Marcia Campos

Zona Franca | Adriano Melhem de Mello

Voici | Ítalo Bruno, Zalinda Cartaxo e Malu Fatorelli

De onde vem e para onde vai o fio da faca (construtiva) | Luiz Renato Martins

As instituições da arte | José Luiz da Silva Nunes

Arte & Ensaios 7, 2000**

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011228 229SUMÁRIO DAS EDIÇÕES ANTERIORES

Pano-de-roda | Entrevista com Cildo Meireles

ARTIGOS

Da polifonia poético-visual nas artes armoriais | Daniel Bitter

Justificação de um gesto | Edwiges da Silva Henriques

Klaxon: um percurso de leitura | Marcus Vinícius de Paula

A propósito do imaginário e suas representações culturais | Rosza W. vel Zoladz

Picasso e a história | Paulo Venancio Filho

Anna Bella Geiger: inquietações no corpo fragmentado | Maria Luisa Luz Tavora

Os labirintos do imaginário. Influências estéticas no cinema de Glauber Rocha | Rogério Medeiros

Projeto MN.02: ensaio no espaço de telecomunicações da cidade do Rio de Janeiro | Simone Michelin

Imagem e idéia – a propósito da experiência artística | Angela Ancora da Luz

Corpos escritos. Paisagem, memória e monumento: visões da identidade carioca | Margareth da Silva Pereira

(?)? Pergunta dentro da pergunta | Ricardo Basbaum

Considerações sobre a escultura urbana de Richard Serra | Renato Rodrigues

Ecco: uma experiência de arte a distância | Ricardo Maurício

REEDIÇÃO

Formação do artista no Brasil | José Resende

ENTREVISTA | Paulo Mendes entrevista João Fernandes

TRADUÇÕES

Uma perspectiva sociológica sobre a continuidade entre as práticas cotidianas, as atividades artísticas e a sensibilidade estética | Jean Pierre Silvestre

A arte da natureza | Gilles A. Tiberghien

Procedimentos alegóricos: apropriação e montagem na arte contemporânea | Benjamin H. D. Buchloh

Arte sem paradigma | Arthur C. Danto

RESENHAS

Um olhar aprisionado na imagem-máquina – as novas tecnologias virtuais de transmissão de imagens e sua ação diluidora de uma visão do real | Elizabeth C. Paiva Silva

O mais novo Laocoonte | Guilherme Bueno

O que vemos, o que nos olha | Renata Camargo

Cibercultura: para uma compreensão do contemporâneo | Etinete A. do Nascimento Gonçalves

A psique exterior | Luis Andrade

A imagem da cidade | Luciane de Siqueira

Nosso século 21 – notas sobre arte, técnica e poderes | Laura Bedran

Estampas Eucalol: imagem, cultura e nostalgia | Regina Lucia Schiefler da Cunha Tessis

O humanismo lírico de Guignard | Adriano Melhem de Mello

A cultura do papel | Paula Wienskoski

Arte & Ensaios 6, 1999**

Entrevista com Amilcar de Castro

ARTIGOS

Base Central Cão Mulato viralata em processo | Edson Barrus

Carybé, obra e tradição: o universo mítico afro-brasileiro | Marcelo Campos

A dobra e a diferença: colagens de Picasso | Marisa Flórido Cesar

O mundo em metamorfose. Análise semiológica de Paisagem Brasileira, de Lasar Segall | Rogério Medeiros

Identidade e estratégias do gosto artístico no Rio de Janeiro setecentista | Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira

“Fazer de dois um multiplica o rir”. Depoimentos sobre Lygia Clark em Paris | Glória Ferreira

Arte com filtro – XXIV Bienal Internacional de São Paulo | Roberto Conduru

As bienais – formatos abertos x conteúdos fechados. Reflexões sobre identidade e função das bienais | Luiz Guilherme Vergara

Hélio Oiticica e a morte do cinema | Cláudio Dacosta

Quase Cinema, Block-Experiments in Cosmococa CC 3: Maileryn. A fragrância narcótica da arte | Luis Andrade

Do caráter mercantil, monetáro e, ainda assim, autônomo do objeto de arte | Moacir dos Anjos

REEDIÇÃO Jorge Guinle: Raciocínios de um pintor | Jorge Guinle Filho

TRADUÇÕES

Narciso barroco. Hubert Damisch · Tradução Maria Flórido · Revisão Glória Ferreira

Douane-Zoll | Jean-Claude Lebensztejn Tradução Glória Ferreira · Revisão Antonio Guimarães

Mesa-redonda: a recepção dos anos 60 | Tradução Carlos Feferman · Revisão Paulo Venancio Filho

RESENHAS

A arte no contexto do lugar | Arthur Leandro/Alexandre Vogler

FARMAX – passeios na densidade | Fabiana Izaga

A crítica capaz | Luis Andrade

A herança da arte | Resenha Muriel Caron Tradução Fabiana Santos

A noção de estilo | Guilherme Bueno

Les raisons du paysage | Lenice da Silva Lira

O crítico Walter Benjamin | Beatriz Rocha Lagôa

Le primitivisme dans l’art moderne | Rosza W. vel Zoladz

Clássico anticlássico | Rosana de Freitas

Limites do moderno, o pensamento estético de Mário de Andrade | Marcus Vinicius de Paula

Arte & Ensaios 5, 1998**

Entrevista de Lygia Pape a Paulo Venancio Filho, Glória Ferreira e Ronald Duarte

DOSSIÊ Lygia Pape

ARTIGOS

Arte em explosão: rompimento dos limites entre as categorias artísticas | Renata Wilner

Da arte: sua condição contemporânea | Luciano Vinhosa Simão

Materialidade Situs: um recorte espacial | Ronald Duarte

Artista, formação do artista, arte moderna | Carlos Zilio

O ensino de arquitetura no Brasil no século 19 – uma contribuição ao estudo do tema | Cybele V.N. Fernandes

Claude Monet quer que a catedral se torne uma esponja de luz | Maria Luisa Luz Tavora

História, cultura periférica e a nova civilização da imagem | Paulo Venancio Filho

Vitalidade e socialidade da arte: a estética de Guyau | Annamaria Contini

Reinterpretar a modernidade | Entrevista de Thierry De Duve a Glória Ferreira e Muriel Caron

Kant depois de Duchamp | Thierry De Duve

RESENHAS

Sob o domínio da imagem banal | Elizabeth Paiva

Compulsive Beauty | Monica Mansur

L’informe, mode d’emploi | Glória Ferreira

Carta de Lord Chandos, Hugo Von Hofmannsthal | Paulo Houayek

Arte & Ensaios 4, 1997**

A influência do computador na arte contemporânea | Luiz Antonio Fernandes Braga

Primitivismo no Les Demoisel les d’Avignon: universalidade na tradição | Lígia Dabul

Bastide, a arte e os outros | Jean Duvignaud

Umbandacarnaval | Luiz Felipe Ferreira

Cela e mundo – o conflito de Mondrian na tridimensionalidade | Cristiane Monteiro Flores

Exposições universais: duas diferentes abordagens em obras francesas recentes | Ruth Vieira Ferreira Levy

A leitura visual de Viva Jacaré. Uma ilustração cinematográfica de Rui de Oliveira | Marisa de Oliveira Mokarzel

O cinema em cartaz. Um estudo de caso: Fernando Pimenta | Carlos Eduardo da Silva Valente

Arte & ensaios 3, 1996**

Os “Tecelares” de Lygia Pape | Maria Clara Amado Martins

Os abebés. Os espelhos do ventre | Elena Maria Andrei

São Miguel Arcanjo. Duas esculturas policromadas | Fátima Justiniano

A cidade e a arte contemporânea | Anne Cauquelin

Decadentismo e maneirismo em relações de personalidade | Francisca Maria Teresa dos Reis Baltar

O objeto industrial na linguagem cinematográfica - Um estudo da formação da cultura de massa perante o objeto industrial, através do cinema | Vicente Cerqueira

A expressão da natureza na obra de Paul Cézanne | Marcelo Duprat Pereira

Arte & ensaios 2, 1995**

Sobre Celeida | Helena Severo

Celeida de Barro | Regina Célia Pinto

Um módulo vida na Universidade Federal do Rio de Janeiro | André Bazzanella

A cerâmica como processo. Uma experiência prática no Centro Integrado de Cerâmica EBA/UFRJ | Marcos Varela

A cerâmica como elemento aglutinador para três domínios diversos. O barro, a madeira, a informática | Isis Braga

A cidade de terra | Amauri Ferreira Macedo

“Teapot Po Ris Malevich” | Piedade Epstein Grinberg

Fazer cerâmico. Fazer urbano, fazer imaginário | Andréa Pessôa Borde

Arte & ensaios 1, 1994**

Entrevista com Carlos Zilio

Formação do artista plástico no Brasil – o caso da Escola de Belas Artes | Carlos Zilio

O hedonismo rococó através da pintura de temática carnavalesca |Ivan Coelho de Sá

Mãos na pedra – a repetição do gesto primevo na Toca da Argila, região arqueológica da Central, BA | Angela Rabelo

Grupo Frente e o experimentalismo emergente de Lygia Pape, Lygia Clark e Hélio Oiticica | Eileen M.F. Cunha

Um sonho que se mostra – a criação da Casa do Pontal | Maria Angela S. Mascelan

Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 2011230 231SUMÁRIO DAS EDIÇÕES ANTERIORES

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIROCENTRO DE LETRAS E ARTESESCOLA DE BELAS ARTESPROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS

O Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais destina-se a proporcionar formação cultural e artística, ampla e aprofundada em níveis de mestrado e doutorado, desenvolvendo a capacidade de ensino e pesquisa no campo teórico e do fazer artístico.

árEas dE ConCEntração

História e Teoria da ArteTeoria e Experimentação em Arte

linhas dE pEsquisa

História e Crítica da Arte (HTA)Imagem e Cultura (HTA)Linguagens Visuais (TEA)Poéticas Interdisciplinares (TEA)

Corpo doCEntE pErmanEntE Amaury FernandesAna Cavalcanti Ângela Leite LopesCarlos Alberto Murad

Carlos Augusto NóbregaCarlos AzambujaCarlos TerraCelso Pereira GuimarãesCybele Vidal Neto FernandesHelenise Guimarães Livia FloresMarcus Dohmann Maria Cristina Volpi Nacif Maria Luiza FragosoMaria Luisa TavoraMarize MaltaMilton MachadoPaulo Venancio FilhoRogério MedeirosTadeu CapistranoSimone MichelinSonia Gomes Pereira

ColaboradorEs

Angela Ancora da LuzCezar Tadeu Bartholomeu (LV)Doris Kosminsky (PI)Felipe Scovino (LV)Giselle de Carvalho Ruiz (PI)Glória FerreiraMaria Clara Amado (HCA)Rosa Werneck

publiCaçõEs

Revista Arte & EnsaiosCaderno de Pós-GraduaçãoAnais do Encontro do Programa de Pós-Graduação

Para envio de colaborações, consultar www.eba.ufrj.br/ppgav/arte&ensaios ou pelo e-mail [email protected]

Endereço para correspondênciaPrograma de Pós-Graduação em Artes Visuais | EBA/UFRJAv. Pedro Calmon, 550 / sala 704 | Prédio da Reitoria | Cidade Universitária | Ilha do FundãoRio de Janeiro | RJ | Brasil | 21.941-901 | Tel.: (21) 2598 1643www.eba.ufrj.br/ppgav/arte&ensaios | [email protected]