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ISSN 1809-2616
ANAISVI FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTEEscola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2008-2009__________________________________________________________________
TELA CONTEMPORÂNEA: LINKS E BAIXA CONECTIVIDADEKatiucya Perigo∗
Resumo: O crescente desinteresse do público pela pintura motivou a reflexão sobre a produção e a exposição dessa arte na atualidade. No decorrer do texto apresentamos algumas situações em que isso ocorre e em seguida apontarmos para a possibilidade do uso das novas mídias na arte. Dentre as colocações, frisamos que a tecnologia é utilizada, inclusive, para atrair a atenção às pinturas. O filósofo e crítico da arte Arthur Danto orientou as reflexões sobre arte contemporânea, enquanto o brasileiro Arlindo Machado estimulou o estudo da parceria entre a arte e as novas mídias.Palavras-chave: Crítica da arte; Pintura; Novas Mídias.
A visita ao Museu da Língua Portuguesa em São Paulo impressiona pela
maneira como os recursos tecnológicos abrilhantam a produção dos nossos
literatos. Depois do vídeo sobre a origem das palavras, a tela do cinema começa a
subir convidando-nos a entrar no pátio multimídia onde o teto, o chão e as laterais
exibem surpreendentes projeções de fragmentos da poesia brasileira. É impossível
não se empolgar com o Epigrama de Gregório de Mattos, o Boca do Inferno, na voz
do rapper paulistano Rappin’ Hood. Ele declama sobre um arranjo de rap um poema
escrito no século XVII e o resultado é espantoso. Pouco depois, nossos olhos
acompanham o rápido sabiá virtual que voa de um canto ao outro ao som das várias
versões de Canção do Exílio.
Outra experiência curiosa é a visita ao Museu da Inconfidência em Ouro
Preto. No meio da exposição de inúmeros objetos do período é possível testar os
conhecimentos de história do Brasil participando de um jogo no computador. Basta
um clique nas caricaturas dos tais inconfidentes e ficamos sabendo quem eram,
como se comportaram no acontecimento e que destino tiveram.
Docente da Pós-graduação em Artes e Ensino das Artes da Faculdade de Artes do Paraná (FAP) e da Pós-graduação em Metodologia do Ensino da Arte do Centro Internacional de Pesquisa, Pós-Graduação e Extensão (CIPPEX).
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O Museu do Mar em São Francisco não fica muito atrás. Lá, há uma sala
escura que simula uma família de navegadores dormindo num barco em alto mar. A
luz adequada, o som e as imagens montadas promovem a sensação de adormecer
em alto-mar dentro de uma pequena embarcação.
Entre as inúmeras possibilidades do uso da tecnologia para o entretenimento
dos visitantes de museus destacamos aqui apenas o show multimídia, o jogo no
computador e a simulação. Há algum tempo os museus vêm investindo bastante em
tecnologia. Usa-se e abusa-se dela na divulgação de exposições de pintura, com o
intuito de atrair mais visitantes. Lamentavelmente, as exposições de artes plásticas
são pouco atrativas à maioria da população, perdendo inclusive para outras artes,
como o cinema – tal constatação nem é novidade.
Em São Paulo, por exemplo, já na primeira metade do século XX as salas de
cinematógrafo, os passeios e os esportes modernos tornaram-se formas mais vivas
de lazer do que as exposições de pintura. O público que realmente se mobilizava
para as exposições de artes plásticas começou a reduzir-se até se limitar à restrita
faixa dos atuais freqüentadores de museus e galerias.1
Walter Benjamin em seu texto A obra de arte na era da reprodutibilidade
técnica já dizia o quanto a pintura havia se tornado monótona aos olhos do homem
moderno. Benjamim compara a pintura com o cinema, esta sim, na visão do
pensador, uma arte mais satisfatória a esse indivíduo. Ele menciona que a pintura é
como um mágico que sem tocar no paciente promete curá-lo. O cinema, de outro
lado, se compara mais ao cirurgião que utiliza os seus instrumentos e o seu
conhecimento científico para curar o paciente, manipulando o interior do corpo. O
homem vê mais sentido nessa arte porque o cinema penetra mais profundamente na
realidade.2
Enquanto a pintura e o museu são monótonos e desinteressantes para uma
parcela de indivíduos, muitos se sentem atraídos por trabalhos que expressam os
limites do ser humano. O artista da fome, a artista Orlan, os corpos humanos
plastificados do médico alemão Günter Von Hagens, são vistos como espetáculo. As
pessoas se sentem atraídas, pois são acontecimentos que mostram alguma espécie
de agressão ao corpo, mas que ao mesmo tempo acontecem nos limites da arte –
no palco quase tudo é permito. Dizer “eu estava brincando”, “era só um jogo” redime
a pessoa de julgamentos ruins caso o acontecido tivesse sido feito de propósito.
1 DURAND, José Carlos. Arte, privilégio e distinção. São Paulo: Perspectiva, 1989. p. 68-69.2 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
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Afirmar “é arte” também pode redimir alguns acontecimentos. Dizer que tal coisa é
arte é tirá-la da realidade e dar-lhe uma nova categoria de existência.3
A artista Orlan, por exemplo, se submete a cirurgias plásticas que são ao
mesmo tempo performances. Tudo é filmado e a pessoa que quiser pode assistir ao
vivo pela internet. Durante as cirurgias ela dá conferências e até responde
perguntas. Em cada cirurgia ela modifica uma parte do corpo para se igualar a
alguma musa da história da arte: o queixo é modificado para que fique semelhante
ao da Vênus de Botticelli e por aí vai. Orlan quer ter seu corpo conservado após a
morte para expô-lo ao público. Ela é escultora do próprio corpo, vê suas cirurgias
como arte e se arrisca ao tomar apenas anestesia local para estar sóbria e
conversar com as pessoas durante o evento. Nas salas de cirurgia, que geralmente
são em galerias de arte, ela cria um ambiente kitsch. Esse projeto de modificar o
corpo conforme musas da história da arte chama-se “A reencarnação da santa
Orlan”, aconteceu na década de 1990 e se constituiu de nove cirurgias/
performances.
Apesar de todos os recursos que a tecnologia oferece, uma grande
quantidade de arte continua a ser realizada alheia às inovações, confirmando que a
utilização de técnicas e materiais tradicionais ainda não se esgotou. Hoje, o artista
pode ser um performer, mais adiante, aderir à pop art ou tornar-se um realista sem
achar que está desistindo de alguma coisa ou que é incoerente. “É parte do que
define a arte contemporânea que a arte do passado esteja disponível para qualquer
uso que os artistas queiram lhe dar.” Sobre isso, Arthur Danto, no livro Após o fim da
arte: a arte contemporânea e os limites da história, desenvolve uma tese bem
acolhida na atualidade. Para ele, após a arte moderna não há mais qualquer limite
histórico, tudo é permitido. Ele afirma que a arte contemporânea é a arte pós-
histórica. Os artistas, liberados do peso da história, podem produzir arte da maneira
que desejam, para quaisquer finalidades, ou mesmo sem nenhum propósito. Nesse
sentido, a arte contemporânea é, portanto, uma resposta à arte moderna, em que
era preciso ser coerente e seguir um estilo. Lá, cada nova vanguarda desbancava a
anterior acusando-a de retrógrada. Na arte contemporânea isso deixou de fazer
sentido: todos os estilos possuem o mesmo mérito, nenhum é melhor do que outro. 4
Um exemplo da utilização de técnicas e materiais tradicionais bem coerente
com o espírito da nossa época é a obra Exposição de Arte Contemporânea do 3 DANTO, A. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.4 DANTO, A. Op. cit., p. 7, 15-18, 42.
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paranaense Luciano Mariussi. É no espírito de vale tudo que esse trabalho se tornou
possível. Trata-se de uma instalação que ocupou todo o espaço de uma sala no
Museu de Arte Contemporânea do Paraná, o MAC PR. As paredes desta sala
exibem telas pintadas por artistas de uma famosa feira de artesanato de Curitiba, a
Feira do Largo da Ordem. Um dos quadros é abstrato e os demais são de temáticas
que variam entre natureza morta, vaso de flores, retrato, paisagem.
Figura 1 - Luciano Mariussi. Exposição de arte contemporânea 61º, São Paulo, 2005.
A exposição dessa obra numa mostra de arte contemporânea, junto de outras
ousadias das mais radicais, indica que o artista quer lembrar aos seus pares e aos
visitantes, que a despeito da produção artística de caráter transgressor, ainda
persistem trabalhos que observam os valores mais tradicionais, como a figuração, o
uso da tela, da tinta a óleo e do pincel. Essa arte, aparentemente deslocada do
tempo, continua sendo produzida para atender o grande público. Entretanto, colocar
esse assunto em discussão é complicado, porque não há possibilidade de falar dele
sem questionar o problema da sofisticada erudição da arte contemporânea voltada à
meia dúzia de entendidos.
Segundo Mariussi, o trabalho teve como objetivo promover o deslocamento
de objetos pertencentes a um circuito paralelo ao das artes para dentro do circuito
estabelecido. O artista quer instigar o público. Ele também realiza uma crítica
corrosiva aos intermediários da arte, às instituições e chama a atenção para a
relação da arte com o espectador, a do artista com o circuito artístico, a da arte com
o discurso e com a idéia de valor. Mariussi coloca a roupagem de curador e organiza
uma exposição dentro de outra exposição. Ele coloca em evidência o papel do
curador e a utilidade do espaço que abriga as exposições. Só que é no museu que o
seu trabalho é legitimado. De certa forma, compactua com o sistema que critica,
mas põe em cheque o significado da arte contemporânea.
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Na atualidade, há artistas que utilizam técnicas e materiais tradicionais com
as mais diversas intenções. Não podemos ignorar, por exemplo, a existência dos
artistas que atendem o grande público. Segundo os componentes do campo erudito,
eles fazem parte de outro circuito das artes, o comercial. Seus trabalhos são
encarados mais como artesanato. Já Exposição de arte contemporânea faz parte do
sistema erudito. Trata-se da reunião de pinturas numa instalação, que é uma das
principais modalidades da arte contemporânea. O conteúdo veiculado pela obra
também aborda uma das características da arte atual: o questionamento do circuito
artístico.
A pintura de Lucian Freud (1922) é bastante ilustrativa na exibição de outra
situação. O artista produz pinturas impressionantes que exibem uma verdadeira
predileção pelo retrato da fealdade. A expressividade que consegue nos trabalhos,
deixa adivinhar aspectos da personalidade do retratado. Apesar das técnicas e
materiais tradicionais, seus quadros apresentam um espantoso “quê” de atualidade.
Seu extremo realismo atrai e enoja, agrada e repugna, intriga e incomoda. Talvez,
por ter sido sempre um figurativo, um realista num mundo que até há pouco só
valorizava o abstrato, ele foi desprezado por décadas, mas enfim conquistou o
reconhecimento. Em maio de 2008 uma obra sua, Benefits Supervisor Sleeping, foi
vendida por 33,6 milhões de dólares pela Christie's de Nova Iorque, uma quantia que
um artista vivo jamais alcançou.5
Outra faceta é a do artista consagrado no passado por suas pinturas em tela
e que ainda hoje continua produzindo obras semelhantes. Trata-se de trabalhos que
exibem pouca variação se relacionados aos que eram produzidos no início da
carreira do artista. O caso de Fernando Velloso (1930) e de Domício Pedroso (1930)
aqui do Paraná é exemplar. Tais artistas fizeram parte da primeira turma da Escola
de Música e Belas Artes (EMBAP) em 1948. Nessa instituição, tiveram aulas com o
professor Guido Viaro, que, segundo depoimentos, era o que mais incentivava à
busca da própria linguagem. Inspirados no empurrãozinho de Viaro ao qual se
somaram uns anos de aperfeiçoamento no exterior, Velloso e Domício abraçaram a
tendência que estava em voga no início da década de 1960, o abstracionismo.
5 Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Lucian_Freud>.
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Figura 2 - Fernando Velloso, Figura 3 - Fernando Velloso, Composição castanha 1, 1961, Totem da floresta imaginária, óleo sobre tela, 80x40 cm, Paris técnica mista, 1986, 81x60 cm.
Figura 4 - Domício Pedroso, A favela, Figura 5 - Domício Pedroso, Metrópole, 2000. óleo sobre tela, 89,5x129 cm, acervo do MAC/PR, 1970
A produção uniforme de tais artistas, sem grandes variações, pode estar
ligada a uma adequação às exigências impostas pela consagração de mercado e/ou
simbólica.6 É bom pontuar que o reconhecimento simbólico são os títulos que uma
pessoa obtém – bustos em praças, nomes em ruas, presença em catálogos,
premiações conferidas pelas academias, pelos salões – são títulos de propriedade
simbólica que dão direito ao reconhecimento. O capital simbólico seria então a
glória, a honra, o crédito, a reputação, a notoriedade.7
Imaginamos a princípio, que na busca do reconhecimento os artistas não
alteraram as suas produções porque a arte que produzem se tornou uma marca que
imediatamente está associada aos seus nomes. Contudo, verificamos depois que
Domício se dedicou muito à administração da cultura e que a maioria dos trabalhos
que produziu ao longo da carreira ainda se encontra lá no seu ateliê, ou seja, ele
6 Tal assunto fez parte do conjunto de questões investigadas em nossa recente tese de doutorado. PERIGO, Katiucya. Circuitos da arte: a rua XV de Curitiba no fluxo artístico brasileiro (1940-60). Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2008.7 BOURDIEU, P. Meditações Pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand, s/d. p. 200-202.
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não vende muito e, portanto, não está totalmente a mercê do reconhecimento de
mercado. Velloso também passou boa parte de sua carreira atuando na
administração da cultura. O artista lamenta que não pôde se dedicar como queria à
pintura porque estava implantando as condições mínimas de sobrevivência ao artista
no Estado – o MAC PR é um exemplo disso. Dentre as inúmeras atividades que
realizou, Velloso criou e dirigiu por dez anos tal instituição. Só recentemente é que
teve a oportunidade de lançar um livro bilíngüe com os seus trabalhos.8 Se esse livro
tivesse sido lançado anos atrás, é provável que o seu nome fosse reconhecido
mundialmente. Velloso e Domício possuem poucas obras nas galerias e
possivelmente seus maiores apreciadores são seus pares, amigos, profissionais da
área de artes ou áreas afins. Parece-nos, então, que eles consideram que a pintura
que realizam ainda não esgotou todas as possibilidades.
O nosso propósito não é o de julgar a qualidade das obras e artistas
mencionados. O processo que levou à conformação das obras de Domício e Velloso
em determinado formato é inteiramente comum, não constitui uma exceção. Quando
provocaram uma grande ruptura, os artistas eram vigorosos, tinham tudo a fazer,
pois eram movidos por uma visão nova que permitia recriar tudo de maneira original.
Contudo, nos períodos em que persistem a estabilidade e a credibilidade, os artistas
trabalham apenas pequenas mudanças e variantes, mexendo na aparência sem
alterar a essência.9
Lembremos que além das situações exemplificadas pelas pinturas de Lucian
Freud, Fernando Velloso Domício Pedroso e pela instalação Exposição de arte
Contemporânea, há o pintor que atende o grande público com obras de cunho
exclusivamente decorativo.
Entre muitas reflexões, a instalação de Mariussi permite duas bem
importantes. Uma seria o fato de que na atualidade nós podemos desenhar como
homens das cavernas, mas não podemos nos relacionar com o nosso trabalho como
se vivêssemos na pré-história. Nossos desenhos não têm a mesma função que
aqueles. O argentino Canclini menciona, por exemplo, que um vaso pré-histórico
que hoje está no museu figurando como arte, no passado pode ter sido usado como
recipiente para alimentos, ou seja, tinha uma outra função diferente daquela que lhe
atribuímos hoje.10
8 BINI, F. Fernando Velloso: o seguro exercício da forma e da cor. Curitiba: Fundação Cultural, 2003.9 ZAMBONI, S. A pesquisa em arte: um paradigma entre arte e ciência. Campinas: Autores Associados, 2001. p. 32-37.10 CANCLINI, N. G. A socialização da arte: teoria e prática na América Latina. São Paulo: Cultrix, s/d.
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Outra questão curiosa a se pensar é que o trabalho de Mariussi deve ter
agradado tanto aos mais conservadores quanto aos mais contemporâneos,
obviamente por razões bem distintas. Os conservadores tranqüilizam-se com a visão
de imagens que fazem parte do seu repertório visual, enquanto os contemporâneos
se debruçam no questionamento que a obra propõe.11
Em cada período histórico, determinadas técnicas e materiais adequados
foram utilizados pelos artistas para materializar suas idéias. Quando os romanos
derreteram as esculturas gregas para utilizar o bronze em armamentos, tiveram que
acrescentar pedestais às réplicas, suportes que não existiam nas estátuas originais.
Isso ocorreu porque o gesso, material utilizado pelos romanos, não suportava
determinada posição de braços e pernas e a escultura poderia se quebrar.
O que queremos dizer é que com ferramentas e materiais adequados o artista
tem mais chance de obter sucesso no que se propõe a realizar. A ferramenta é a
extensão das habilidades. A agulha de tricô é um exemplo simples disso. A
ferramenta não é só uma extensão do corpo, ela é parceira. No caso do computador
como instrumento, há uma interação entre artista e máquina porque ela também tem
certa autonomia.12 As novas tecnologias podem fazer bem e melhor, coisas que
antes tomariam um tempão se fossem feitas por outros meios. Um bom exemplo são
as animações de desenhos infantis que no início eram feitas à mão, como no caso
do primeiro longa-metragem de animação, A branca de Neve e os sete anões. A
heroína ao gastar dois segundos para levantar o braço requeria que fossem feitos 48
desenhos do braço nas várias posições. Atualmente o computador agiliza muito
esse processo.
Como vimos, mesmo com as facilidades das novas tecnologias, no campo da
arte persistem artistas que insistem nas velhas formas. Retornando um pouco no
tempo, notaremos que uma grande preocupação dos artistas modernos era atentar
para as novas formas de dizer algo novo, ou seja, a inovação da linguagem.
Contudo, isso deixou de ter tanta importância na arte contemporânea. Verificamos
em mostras de arte contemporânea trabalhos em que um esforço físico enorme é
visível na produção. Sem querer desmerecer qualquer trabalho ou artista em
particular, a dúvida que fica é quais são os trabalhos agraciados pela crítica e pelo
júri de concursos pela perseverança do artista e o desgaste físico que eles sugerem
e quais são os reconhecidos pela real qualidade da obra.
11 DANTO, A. Op. cit., p. 19.12 DOMINGUES, Diana A arte no século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo: UNESP, 1997. p. 26.
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De outro lado, como não nos impressionar com trabalhos que demandaram
um grande esforço na realização. Os trabalhos que se materializam em objetos são
apreciados pelo grande público mais facilmente do que aqueles que têm uma
existência meramente virtual, existindo apenas como possibilidade, os que podem
ser acessados na Internet, por exemplo. É próprio do ser humano a necessidade de
possuir o objeto, a vontade de colecionar, o desejo da posse.
Adoramos objetos artísticos porque “como os antigos pagãos, preferimos
qualquer bezerro de ouro do que um incorpóreo Jeová.” Queremos nossas
divindades vivas, queremos ver a arte, senti-la, acariciá-la. O fato de a arte poder ser
tocada, embalada, pendurada, vista, exibida é irresistível. Podemos vê-la em cartões
postais, pôsteres, selos, álbuns e podemos até adquiri-la, desde que tenhamos
dinheiro para isso.13
No caso da arte que utiliza as novas mídias não há o único, não há o
reprodutivo, só o virtual. Uma obra disponível na Internet é democrática, sai do
museu, daquele santuário freqüentado por poucos e pode ser acessada ou vivida por
qualquer um. Dizemos vivida por que nesse tipo de trabalho o público interage. Ele
deixa de ser passivo e participa da obra. Geralmente são obras que além de serem
vistas também podem ser manipuladas. Há trabalhos em que o público manuseia os
dados criando novos seres, com cores e características diferentes, habitando um
mundo virtual. O público pode, inclusive, influenciar o desfecho do trabalho. A obra é
o processo e o público compartilha com o artista a responsabilidade da autoria.
Os veículos da arte mudam, muda a idéia de público e a idéia do que é arte,
até porque os conceitos tradicionais já não dão conta de definirem as
transformações ocorridas. É claro que há também uma mudança no significado de
artista. Ele pode ser um engenheiro, um cientista, como no caso do já citado médico
alemão Günter Von Hagens que plastifica partes de corpos humanos com objetivos
científicos, porém, também estéticos, como ele próprio já declarou. Certamente, há
muito ganho para a humanidade na parceria entre a arte e a tecnologia. Isso é
verificável não só no campo da arte, afinal, de nada adianta uma tecnologia de ponta
com conteúdo inadequado ou medíocre para veicular. É aí que a arte entra.
O artista pode estabelecer bem-sucedidas parcerias com outros profissionais,
um exemplo é a obra de Eduardo Kac. Em parceria com cientistas, Kac construiu um
trabalho interessante chamado Rara avis. Ele se constitui de uma gaiola gigante
13 GARDNER, J. Cultura ou lixo? Uma visão provocativa da arte contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996. p. 19, 25.
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onde Kac colocou uma arara robô convivendo com outros pássaros reais e plantas
artificiais. A pessoa coloca um capacete de realidade virtual e consegue enxergar
com os olhos do robô. Seus movimentos serão repetidos pelo pássaro. É arte e a
ciência se unindo para propiciar às pessoas a sensação de ver através dos olhos de
outro ser e de ter a experiência, ainda que no campo virtual, da sensação de voar –
eis a materialização não apenas do desejo de criar um outro ser, mas de poder
experimentar uma existência através de outro corpo, vendo através de seus olhos e
compartilhando seus gestos, ações.
O papel do artista que utiliza as novas mídias é subverter a função para a
qual a máquina foi programada, isso para não ser um mero apertador de botões. O
caráter lúdico precisa se sobrepor ao pragmático, como faz o poeta, que subverte o
uso das palavras enquanto o falante comum apenas as usa no sentido que elas
comumente possuem. Arlindo Machado em seu livro Máquinas e imaginários aponta
para essa necessidade.14
Charles Chaplin pode ser considerado um artista que conseguiu tal tipo de
feito. Através de filmes como Tempos modernos, ele utilizou a máquina (o
equipamento de filmagem) para denunciar de forma lúdica o problema da
escravização do homem pela máquina. Chaplin mostrou como a pessoa pode se
tornar alienada ao realizar durante boa parte do seu tempo uma tarefa mecânica
dentro das fábricas. O indivíduo já não tem idéia do todo que produz, como
acontecia ao artesão, porque fica horas apertando parafusos e faz somente parte do
objeto. Chaplin se vinga das máquinas em nome do humano, as utilizando para
denunciar essa possibilidade de alienação e como veículo para se promover, para
triunfar.15
Quanto à resistência ao uso e à apreciação da arte que utiliza as novas
mídias podemos nos concentrar em reflexões sobre a resistência que havia no
passado quanto à utilização da máquina fotográfica, da câmera de filmagem.
Provavelmente nos surpreenderíamos com as semelhanças.16
Não há como negar a importância das novas tecnologias no nosso cotidiano,
sendo que esta é cada vez mais utilizada para simplificar tarefas que anteriormente
14 MACHADO, A. Máquinas e Imaginário: o desafio das poéticas tecnológicas. São Paulo: EDUSP, 1996. p. 44.15 Não podemos deixar de mencionar, porém, que Chaplin não utilizava as câmeras em todo o seu potencial, ele fazia questão de filmar de um só ângulo, o central. Ele tinha ciência de que já havia em sua época novas possibilidades, mas preferiu ignorá-las.
16 MACHADO, A. Op. cit., p. 24.
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requeriam um maior uso de recursos e de tempo. Sendo assim, aos que anseiam
por previsões diríamos que a resistência é inútil. Se fecharmos as portas para as
novas mídias, elas entrarão pela janela.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muitos museus investem em tecnologia com vistas à atrair um número maior
de interessados – vivemos na era das novas mídias. A tecnologia é largamente
usada na divulgação da pintura, por exemplo. Há exposições, inclusive, em que
indivíduos espontâneos e descompromissados se dirigem primeiro aos
computadores espalhados no prédio para só depois ver rapidamente os trabalhos
expostos. Não há paciência para ver os quadros. O conselho do pintor alemão
Anselm Feuerbach (1829-1880) de que “é necessária uma cadeira para se apreciar
um quadro” caiu em desuso.17 Há uma preferência por trabalhos interativos que
permitem a participação do público que coloca pra funcionar todos os órgãos do
sentido.
Segundo o pensador Walter Benjamin já no início do século passado a pintura
era uma arte monótona aos olhos do homem moderno. Assim, ficamos curiosos em
observar algumas pinturas produzidas e expostas na atualidade, inclusive as alheias
às inovações. Escolhemos aqui alguns trabalhos e artistas para ilustrar as
colocações, tendo em mente que outras obras ou artistas igualmente ou mais
exemplares acabaram ficando de fora das reflexões. Sabemos também que há
outros casos que sugerem outras reflexões, porém nos obrigamos a fazer uma
seleção. Apresentamos a obra Exposição de Arte Contemporânea de Mariussi para
oferecer um exemplo inteligente da utilização da pintura na composição de uma obra
questionadora do circuito artístico erudito. A obra desse artista composta de telas de
artistas de rua ofereceu o gancho para mencionar a existência do circuito comercial
de arte voltado ao grande público que almeja ter aquele abstrato que combina com o
sofá da sala, a natureza morta que abrilhanta a cozinha e as flores que parecem sair
do quadro de tão realistas. Mencionamos ainda a atualíssima pintura de Lucian
Freud, que é, porém, realizada de forma tradicional, praticamente como eram
realizadas as pinturas quando da descoberta da tinta à óleo. Finalmente,
17 TREVISAN, Armindo. Como apreciar a arte: do saber ao sabor uma síntese possível. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990. p. 55.
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mencionamos sobre os trabalhos dos artistas que na atualidade continuam
produzindo pinturas que se assemelham às que realizaram quando eram vanguarda
no passado. Esse é o momento em que trazemos o exemplo dos paranaenses
Fernando Velloso e Domício Pedroso.
Tais divagações sobre a pintura na atualidade serviram ainda como pretexto
para discutirmos sobre os ganhos no uso das novas tecnologias pelos artistas
plásticos. A net arte, por exemplo, é bastante democrática porque qualquer pessoa
que dispõe de um computador conectado em rede pode acessá-la. Trata-se de
trabalhos em que o público interage, dividindo com o autor a responsabilidade da
construção da obra. Desaparece o objeto único, ele agora pode ter apenas uma
existência virtual. Um cientista pode atuar como artista ou pode haver parcerias
entre tais profissionais. Pesquisadores como Arlindo Machado pontuam a dificuldade
de se estabelecer quais trabalhos no computador seriam então considerados arte.
Ele mesmo arrisca uma resposta, mencionando a importância do caráter lúdico se
sobressair às outras funções. Daí fomos buscar o exemplo de Chaplin que já no
início do século passado utilizava a própria máquina para questionar a máquina e
ainda obtinha sucesso valendo-se dela como degrau.18
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
BINI, Fernando. Fernando Velloso: o seguro exercício da forma e da cor. Curitiba: Fundação Cultural, 2003.
BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand, s/d.
CANCLINI, Nestor Garcia. A socialização da arte: teoria e prática na América Latina. São Paulo: Cultrix, s/d.
DANTO, Arthur. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.
DOMINGUES, Diana. A arte no século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo: UNESP, 1997.
DURAND, José Carlos. Arte, privilégio e distinção. São Paulo: Perspectiva, 1989.
GARDNER, J. Cultura ou lixo? Uma visão provocativa da arte contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lucian_Freud
18 MACHADO, A. Op. cit. p. 44.
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MACHADO, Arlindo. Máquinas e Imaginário: o desafio das poéticas tecnológicas. São Paulo: EDUSP, 1996.
PERIGO, Katiucya. Circuitos da arte: a rua XV de Curitiba no fluxo artístico brasileiro (1940-60). Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2008.
TREVISAN, Armindo. Como apreciar a arte: do saber ao sabor uma síntese possível. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990.
ZAMBONI, Sílvio. A pesquisa em arte: um paradigma entre arte e ciência. Campinas: Autores Associados, 2001.