arte e movimento estudantil

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  • 7/28/2019 Arte e Movimento Estudantil

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    Revista Brasileira de Histria. So Paulo, v. 25, n 49, p. 77-97 - 2005

    Arte e movimento estudantil:

    anlise de uma obra de Antonio Manuel1

    Artur Freitas2

    UFPR

    RESUMO

    Podem as manifestaes visuais, e no li-

    mite a prpria visualidade, participar

    crtica e reflexivamente dos grandes de-

    bates do espao pblico? Em linhas ge-

    rais, justamente a crena nessepoder

    de interveno crtica que manteve ace-

    sa, no caso das artes plsticas, uma in-

    tensa atividade pblica, contestatria e

    coletiva das vanguardas brasileiras du-

    rante o regime militar, sobretudo em

    seus primeiros anos de vigncia. E a

    partir desse contexto histrico que esteartigo pretende analisar algumas impli-

    caes estticas e ideolgicas presentes

    na obra Movimento estudantil 68, seri-

    grafia de Antonio Manuel premiada no

    Salo Paranaense de 1968.Produzida em

    plena efervescncia poltica do movi-

    mento estudantil, mas exibida ao pbli-

    co nos primeiros dias de vigncia do AtoInstitucional n 5, Movimento estudan-

    til 68ser aqui entendida como uma tra-

    ma discursiva em que se cruzam hist-

    ria e visualidade.

    Palavras-chave: Arte e poltica; Arte bra-

    sileira; Antonio Manuel.

    ABSTRACT

    Can the visual manifestations participate

    critic and reflexively of the great debates

    of the public space? Usually, during the

    first years of military regime, the plastic

    arts believed in this participation, and

    this faith sustained the public, opposi-

    tional and collective activity of the

    Brazilian vanguards. In this historical

    context, therefore, this article will ana-

    lyze some aesthetic and ideological

    implications presents in the workMovi-

    mento estudantil 68, engraving of Anto-nio Manuel rewarded in the Salo Para-

    naense of 1968. Movimento estudantil 68

    was produced in the political efferves-

    cence peak of student movement, but it

    was exhibited for the public in the first

    days of Act Institutional number 5.Thus,

    this art work will be understood here as

    a discursive plot, a crossing betweenhistory and visuality.

    Keywords: Art and Politics; Brazilian

    Art; Antonio Manuel.

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    INTRODUO

    As manifestaes visuais, sua maneira, tm sempre algo a nos dizer,

    algo que, de outra forma, no seria de nenhum modo dito e permanece-ria, portanto, para sempre calado, inefvel. O conhecimento historiogrfico,assim, simplesmente no pode desprezar a contribuio das visualidades pa-ra a construo do saber histrico. E sob essa perspectiva que afirmo pa-ra trabalhar com exemplos que a histria das artes plsticas, e sobretudodas vanguardas, no Brasil, entre o golpe de 1964 e o Ato Institucional n 5, de1968, consiste num captulo importante da histria cultural brasileira. A re-lao entre contestao poltica e experimentalismo potico dado comumao teatro, ao cinema e MPB da poca tem no campo da produo arts-

    tica brasileira desse perodo uma arena privilegiada. A necessidade de expan-dir as possibilidades expressivas no campo das artes plsticas, atravs da dis-soluo dos conceitos tradicionais de escultura e pintura e da proposio deuma arte voltada cultura de massa, potica do objeto, dos mltiplos, dosambientais e dos happenings, seguepari passu necessidade de fazer do meioartstico um espao vivo de opinio pblica. Curiosamente h, nesse perodo,e como bem sabido, uma relativa liberdade de expresso ideolgica de es-querda entre 1964 e 1968; e as vanguardas brasileiras das contravenes

    do grupo Rex, em So Paulo, ao ativo experimentalismo crtico da vanguardacarioca no deixaro de ter parte ativa nesse processo. Contudo, com o AtoInstitucional n 5 (o AI-5), o panorama poltico-cultural do pas se altera con-sideravelmente. A represso torna-se a nota dominante do regime, e a censu-ra ou a auto-censura estende seus braos sobre a produo cultural. Oambiente outro, com um horizonte de clara opresso ideolgica, e aos crti-cos da ditadura cabe o silncio, a metfora ou a guerrilha.

    Tendo em vista essa conjuntura mais ampla, este artigo analisa uma seri-

    grafia intitulada Movimento estudantil 68 uma obra do artista Antonio Ma-nuel que foi premiada no Salo Paranaense de 1968. Ao partir de um aconte-cimento muito simples, portanto, em que um artista da vanguarda brasileiraenvia uma obra contestatria a um salo de arte, a anlise da obra seguir aquipor caminhos diversos de interpretao, procurando levar em conta que mes-mo coisas aparentemente pouco significativas podem ajudar na hermenuti-ca de um acontecimento histrico. Do conturbado contexto dos movimentosestudantis natureza do prmio oferecido obra, da tcnica serigrfica bas-tante peculiar ao envio da obra a um salo de arte, e mesmo do silncio namdia anlise das imagens, cada ponto da interpretao das manifestaesvisuais se volta histria. E vice-versa.

    Artur Freitas

    Revista Brasileira de Histria, vol. 25, n 4978

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    DA CONVULSO AO SILNCIO: 1968 E UM SALO DE ARTE

    Ao longo de pouco mais de um ms de exposio, 925 pessoas se deramao trabalho de assinar o livro de visitas do Salo Paranaense de 1968 umdos principais sales anuais de artes plsticas do pas e que, naquele ano, co-mo alis desde 1954, ocorria na Biblioteca Pblica do Paran, em Curitiba. Onmero de pessoas que registraram sua presena no Salo de 1968 era o maiordos ltimos dez anos, a contar do tempo em que, em meados da dcada de1950, o evento chegava a ultrapassar a marca de 1.500, 1.700 assinaturas portempo de exposio.3

    Apesar disso o Salo Paranaense de 1968 foi, digamos, silencioso. Qua-se nada se comentou sobre ele. Nada de anormal, nenhum debate nos jornais

    sobre as decises do jri, nenhuma exclamao elogiosa, tampouco qualquerdetrao pblica, como j ocorrera tantas vezes. Se houve divergncias ou po-lmicas, largaram-se, por certo, ao plano privado, ou no mximo a algum pla-no sem registros como as conversas de bar ou as salas de aula. Nada relevantea no ser o silncio, o que por si s, j nos diz muito. Quando, na data come-morativa de emancipao poltica do Estado do Paran, dia 19 de dezembro,o Salo abriu suas portas em sua 25 edio, o pas sofria j por seis dias, ain-da atnito, os efeitos do AI-5 conhecido mecanismo poltico de institucio-nalizao definitiva da repressono regime militar brasileiro.

    J na noite do dia 12, uma quinta-feira, diversas redaes de jornal, r-dio e televiso do pas foram invadidas por censores e soldados do exrcito.4

    O controle da opinio pblica era pea fundamental da ao militar naquelemomento. No certamente pela necessidade de qualquer tipo de aliciamentodas massas, pois estratgias populistas como essa no ocupavam espao norepertrio poltico de um governo que parecia no precisar da aprovao po-pular para poder governar, mas simplesmente pela maximizao da capaci-dade repressora naquele momento estratgico, de golpe dentro do golpe,

    como se convencionou dizer. A partir de ento o arbtrio e a violncia se ins-titucionalizavam enquanto prticas constantes, quase rotineiras, especialmen-te nas prises militares, onde a tortura transformava-se de ato de exceo amtodo de coero. No dia 13, o fatdico, agentes do governo pem em aoa operao de caa s bruxas, em que a priso de figuras pblicas como oex-presidente Juscelino Kubitschek j dava mostras de que ningum estariaa salvo da caada.5 No plano poltico o Ato dava plenos poderes ao Executi-vo, viabilizava o fechamento do Congresso, permitia a interveno nos Esta-

    dos e Municpios, admitia a suspenso dos direitos polticos de qualquer ci-dado, legitimava a cassao de mandatos e suspendia, inumanamente, ohabeas corpus: era o enrijecimento definitivo dos contornos repressivos do re-

    Arte e movimento estudantil: anlise de uma obra de Antonio Manuel

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    gime militar. A censura imposta grande imprensa e o controle sobre a cir-culao de idias e notcias convertia uma via potencial de esclarecimento einformao numa via de frouxido e languidez da opinio pblica. O mo-mento era de apreenso, de falta de notcias e de incertezas. O tempo estava,realmente, propenso ao silncio.

    Entretanto, o ano de 1968, encerrado naquele 13 de dezembro, no foi,como se sabe, um ano silencioso. A juventude de classe mdia e universitria,sobretudo em sua frao mais politizada e militante, chegou a incomodar oregime. Enquanto consumidores potenciais esses jovens conseguiam, j hum certo tempo, manter viva a chama de um mercado cultural de protestoem que Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil e Geraldo Vandr des-pontavam como dolos. Os festivais de msica, que deviam parte de seu su-

    cesso televiso, eram, sob esse ngulo, arena privilegiada e fundamental. Emmeios mais restritos como o teatro e o cinema de vanguarda despontavam fi-guras combativas e contraditrias como Z Celso (Roda viva) e Glauber Ro-cha (Terra em transe), cujo consumo fechava-se em circuitos menos abran-gentes. Surge o Tropicalismo como crise das manobras tradicionais deengajamento, como reviso do lugar da cultura na sociedade brasileira, inser-o no mercado e transformao das sensibilidades numa ambigidade crti-ca: ao invs do mero recuo em funo da transparncia da mensagem (o na-

    cional-popular), a recolocao de seus termos no quadro maior das novasestruturas de mercado.6 Nas universidades lia-se Marx, Lnin, Mao, Lukcs eMarcuse. Nas livrarias, em sua primeira edio em portugus, surgia O capi-tal, publicado audaciosamente na ntegra pela Revista Civilizao Brasileira,ento o maior veculo aglutinador da intelectualidade de esquerda e onde co-laboravam nomes como Ferreira Gullar, Paulo Francis, Fernando HenriqueCardoso, Leandro Konder e Nelson Werneck Sodr. Na literatura o grupo devanguarda Poema-Processo realiza o poema coletivo, espcie de happeningde protesto onde vrios livros so queimados e picotados; surge o poema co-

    mestvel.7 Nas artes plsticas, o conceito de participao, em seu duplo juzo,esttico e poltico, fundamental para compreender, por exemplo, algo comoApocalipoptese, acontecimento de rua coordenado por Hlio Oiticica quecomportava simultaneamente a noo potica fenomenolgica de participa-o do espectador e a noo de participao e engajamento poltico. 8 Um be-lo exemplo dessa conjugao ocorreu na interveno do artista Antonio Ma-nuel, que espalhava pela rua suas Urnas quentes(caixas hermeticamentefechadas contendo em seu interior frases e imagens sobre a violncia da dita-

    dura) e pedia aos transeuntes para arrebent-las a machadadas. Fervilhava osentido poltico.O efeito social mais visvel provocado pela natural politizao de uma

    Artur Freitas

    Revista Brasileira de Histria, vol. 25, n 4980

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    juventude de esquerda numerosa a ponto de formar um bom mercado9 epelo recrudescimento contnuo da brutalidade policial do regime, especial-mente durante o ano de 1968, foi uma seqncia inacreditvel de manifesta-

    es de protesto, algumas mais pacficas, outras bastante violentas.

    Testar os limites da ao permitida torna-se uma rotina comum aos membros

    das oposies intelectualizadas: o que se pode escrever em uma coluna de jor-

    nal, o que se pode compor e cantar, o que se pode encenar ou ensinar sem atrair

    represlias pessoais; que grau de represso enfrentar o protesto pblico o

    panfleto, a assemblia, a passeata, o comcio, a manifestao.10

    Antes mesmo do Maio francs, a morte do secundarista dson Lus, as-

    sassinado pela polcia carioca durante uma pequena passeata, j funcionaracomo plvora acesa ao movimento estudantil brasileiro. Quando, naquelemomento, 50 mil pessoas acompanharam o enterro do estudante no Rio deJaneiro, pela primeira vez a opinio pblica se sensibilizou pela luta da juven-tude. Uma semana depois, exatamente no dia 2 de abril, essa sensibilidade sefortaleceria quando, durante a missa de stimo dia de dson, uma multidofoi encurralada e massacrada pela cavalaria nas escadas da Igreja da Candel-ria. As agresses, de parte a parte, vo se tornando mais e mais constantes. As

    agitaes estudantis, como um incndio desvairado, espalham-se por todo opas. Em Fortaleza, o Servio de Informaes dos Estados Unidos destrudopor manifestantes; em Recife cerca de dois mil universitrios realizam umapasseata h pouco proibida; em Belm, os estudantes so retirados fora daUniversidade; em Natal, pipocam greves em todas as universidades; na Bahiaum estudante ferido pela polcia revolta a populao, enquanto na capital dopas, a Universidade de Braslia, ocupada pelos estudantes, cercada pela po-lcia. Dois estudantes so baleados em Goinia e trs em Minas Gerais, onde

    um policial ferido gravemente por um paraleleppedo e um carro oficial incendiado. Em junho, dia 26, no Rio de Janeiro, diversos setores da socieda-de civil organizam uma vultuosa demonstrao de descontentamento contraa violncia do regime, a Passeata dos Cem Mil.11 No Paran, por sua vez, ape-sar da aparente sonolncia de oposio poltica reinante num Estado entogovernado por um costista assumido como Paulo Pimentel, o movimento es-tudantil tambm escreveu algumas pginas de efetiva militncia: pela derru-bada do ensino pago, vrios alunos da Universidade Federal do Paran, ar-mados de coquetis molotove estilingues, enfrentaram as armas e os cavalosda polcia militar, num saldo geral de seis policiais derrubados a pedradas ecinqenta estudantes presos.12

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    Artur Freitas

    Revista Brasileira de Histria, vol. 25, n 4982

    Figura 1. Antonio Manuel. Movimento estudantil 68 A. 1968.Serigrafia de flan. 122 x 80 cm.

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    A resposta do governo Costa e Silva foi desproporcionalmente violenta.Acuado pelos militares radicais em represlia deciso do Congresso em pro-teger o deputado Marcito (Mrcio Moreira Alves), o presidente da Repbli-

    ca leva o projeto do Ato Institucional no

    5 votao extraordinria. Com vin-te e dois votos a um, o Ato passou a vigorar, previsto inicialmente para durarapenas oito ou noves meses, mas com vigncia efetiva de mais de uma dca-da. Durante os dez anos seguintes, seis senadores, 110 deputados federais e161 estaduais, 22 prefeitos e 22 vereadores foram cassados, num universo demais de mil e seiscentos cidados punidos. No campo da produo cultural, aao da censura foi igualmente nefasta: 500 filmes, 450 peas de teatro, 200livros, 100 revistas, 500 letras de msica, dezenas de programas de rdio, uma

    dzia de captulos e sinopses de telenovela todos parcial ou integralmentevetados.13 O movimento estudantil, ao menos em seu perfil utpico de revo-luo coletiva mais ou menos organizada, foi completamente desarticulado.O atnito silncio inicial, portanto, prevalecia.

    Por outro lado, se a muda receptividade do Salo Paranaense de 1968 jnadava nas guas turvas desse novo e sombrio panorama, algumas das obrasnele expostas ainda guardavam as marcas agitadas do momento anterior.Curiosamente, no dia 11 de dezembro, quando o jornal paranaense Gazeta

    do Povodivulgava, como de costume, em profiltica nota os resultados daspremiaes no Salo daquele ano, um conjunto de trs obras igualmente pre-miadas era, por descuido talvez, simplesmente omitido.14 Os artistas laurea-dos tiveram seus nomes publicados, e aos primeiros colocados de cada cate-goria (pintura, escultura, desenho, gravura) publicavam-se tambm os ttulosde suas obras. Tudo rapidamente, em poucas palavras, de modo bem sintti-co, refletindo quem sabe, naqueles poucos centmetros quadrados de papel

    jornal, o pequeno espao que uma exposio de artes plsticas ocupava na vi-da pblica dos leitores, ou ainda, o que mais provvel, a pequena atenoque a Gazetadispensava s artes visuais.15

    Ordenadas alfabeticamente em A, Be C, a srie de trs obras premiadasno Salo e omitidas na Gazeta do Povointitulava-se, de maneira sugestiva,Movimento estudantil 68(Figura 1) e pertencia a Antonio Manuel16 o mes-mo autor da violenta proposta das Urnas quentes, conhecido artista radicadono Rio de Janeiro, a cidade dos mais veementes confrontos do movimento es-tudantil e da mais intensa oposio artstica ao regime, ao menos nas artesplsticas.17

    Combativo, Antonio Manuel pertence a uma gerao de artistas que as-sumiu a destruio da interioridade da obra ao mesmo tempo em que a utili-

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    zou como veculo de provocao poltica.18 Com ele, artistas distintos comoArtur Barrio, Carlos Zlio e Cildo Meireles tinham em comum sem no en-tanto formarem um conjunto homogneo o fato de assumirem e incorpo-

    rarem sem pudores essas contradies, de menosprezarem qualquer formade engajamento didatizante e de combaterem tanto o elitismo institucionalda cultura quanto a represso do sistema poltico. Se de um lado a dennciado imobilismo tanto esttico quanto poltico fez desses homens, sim, artistaspolitizados,de outro,o experimentalismo potico e o comprometimento cons-tante com questes de linguagem, fez deles, sobretudo, artistas.

    Sob o vis do engajamento poltico, o caso de Antonio Manuel por essestempos, no Brasil, to peculiar que representa um dos poucos exerccios

    desse tipo bem-sucedidos

    19

    e nessa perspectiva que surge a srie Movi-mento estudantil 68, conjunto de obras que por sua vez faz parte de um temamais amplo do artista Eis o saldo em que ele lida com imagens da mo-vimentao dos estudantes contra a ditadura.

    Consagrada no Salo Paranaense de 1968, essa srie deve ter causado al-gum impacto nos visitantes do evento. Sua literalidade temtica, ao primeirocontato, to evidente, e to agressiva, que dificilmente algum duvidaria desua criticidade, ainda mais em momento to delicado quanto aquele de re-

    centssima divulgao do AI-5.

    MOVIMENTO ESTUDANTIL NO SALO DE 1968

    Como em qualquer manifestao artstica, Movimento estudantilguarda,na soma de seus limites formais e scio-culturais, as possibilidades de suaprpria interpretao. Num primeiro contato, uma srie de associaes bsi-cas emerge de pronto. Uma mesma frase interrompida e desmembrada em

    duas partes aparece, insistentemente, repetida quatro vezes pela superfcie daobra, o que, de certa forma, nos impe uma leitura inicial:

    POLICIAL MILITAR MATA ESTUDANTE

    A QUEIMA ROUPA [sic]

    A provvel apelao informativa de cadeias associativas desse tipo refor-a o sabor de denncia contido na mensagem. A ao violenta prevista emmata a queima roupa refora a idia de morte brutal ou assassinato, enquan-to o estudante (morto) representa, aqui, uma parcela organizada e resis-

    Artur Freitas

    Revista Brasileira de Histria, vol. 25, n 4984

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    tente da sociedade civil, vtima dos desmandos arbitrrios de um poder p-blico repressivo indicado em sua ponta de contato mais evidente pela noode policial militar (que mata, queima-roupa, estudantes).

    Como sabemos, as palavras, quando agregadas extenso de obras vi-suais, no implicam necessariamente hierarquias de significados, e muito me-nos ordens preestabelecidas de leitura. Antes, conforme nos mostram diver-sos exemplos na histria da arte moderna, implicam, isso sim, uma certaalterao expressiva, uma renovao das relaes verbo-visuais. O jogo detransliterao no fechado, direto ou inequvoco e se d, basicamente, deduas maneiras: atravs da incorporao plstica dos aspectos visuais das le-tras e palavras ao conjunto da obra o que implica uma espcie de acentua-o de sua realidade bidimensional e planar e atravs dos eventuais cruza-mentos dos contedos lingsticos com os imagticos que por sua vezsupem novos meandros de interpretao.

    Se por um lado, consideradas num plano abstrato, as frases impressas emMovimento estudantilnos falam somente sobre o ato poltico da denncia e

    nada sobre a dimenso estticada obra, por outro elas suge-rem, enquanto contedo ver-bal, uma das possveis e imedia-

    tas interpretaes narrativasdas imagens apresentadas. En-quanto mera figurao, porexemplo, as cenas representa-das na obra possuem conte-dos especficos que s podemser descritos com certa precisoa partir da associao temtica

    tanto com as frases apresenta-das quanto com o ttulo. Nessenvel de interpretao, o estra-to cultural bastante amplo egenrico, exigindo pouco, por-tanto, para sua decodificao. Ataxa de redundncia mais ele-vada, um razovel grau de na-

    turalismo das representaes e

    Arte e movimento estudantil: anlise de uma obra de Antonio Manuel

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    Figura 2. Detalhe.

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    o apoio mais geral das palavras ajudam a prever uma descrio razoavelmen-te primria da obra como um todo.

    Isoladas em seus mundos particulares e em suas histrias de luta, cada

    micro-cena, cada pequena caixa de imagens de Movimento estudantil umtestemunho das aflies e utopias de uma sociedade jovem, esclarecida e mi-litante. Em cada ambiente, a multido , ao mesmo tempo, o pretexto e o cer-ne, a potncia do coletivo, o resduo positivo do homem como ser social, mas tambm uma acepo plstica, confusa e curiosamente ordenada em cadacontorno retangular, a composio dos contrastes, a dissimulao da men-sagem, a ascendncia do gesto potico. A massa, de formas e cores, de homense dores, sobrepe-se todo o tempo. No fosse a veemncia afirmativa das pa-lavras, sua rigorosa imposio de prumo, a multido provavelmente desapa-receria numa srie de articulaes frenticas entre vermelhos e pretos nu-ma srie de agitaes formais confinadas e rigorosamente articuladas pelageometria dos retngulos, pela vontade de divisar a tragdia da reflexo, e,talvez, da futura ao. A cada ambiente, uma nova definio, uma sugestono-linear de leitura. Trs cenrios distintos, verticalizados uns sobre os ou-tros, repetem-se pela obra, quatro vezes ao todo, invertendo-se em negativose positivos, resultando em quatro painis rubro-negros (Figura 2). Entre aspequenas cenas, a primeira e maior a de mais apelo, a razo da denncia,

    a atrocidade em si, a morte pura e simples (Figura 3).

    Artur Freitas

    Revista Brasileira de Histria, vol. 25, n 4986

    Figura 3. Detalhe.

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    O corpo, que jaz inerte, traz como os outros, eretos, que o rodeiam, a mar-ca maior da indefinio e a da impessoalidade. Quando se acha, na mancha ouno trao, um rosto ou um brao, se v igualmente que tal pormenor to in-

    til quanto sua discriminao. J no importa quem seja o estudante baleado,quem sejam aqueles que o velam e tampouco os que o lamentam, logo abaixo.Se um estudante est morto, a denncia supe e demonstra que algum outrono est. E diante de to absurdo funeral, as expresses pessoais arrefecem e seentregam crua exposio dos fatos.A ordem, a essa altura, necessria even-tual arregimentao da massa social. E elas surgem, a ordem, a massa, integra-das em unssono, num pequeno espao da obra, dois quadros abaixo do espaoda morte. No limite inferior de cada painel, aplaca-se a fera; senta-se, ouve-se, etalvez se discuta (Figura 4). A massa, de formas, catica, mas quase homog-

    nea, compacta, como a massa humana, inerte, resolvendo a histria. Incont-veis pessoas, estudantes, fixam olhares num mesmo destino, num flagrante deobedincia, de conteno absoluta, aptos no entanto a agir, com todos os vigo-res e as utopias da juventude. E logo acima deles, como uma lembrana, vem aligao e ao mesmo passo a separao com o smbolo do risco mximo, o as-sassinato autorizado. Entre a esperana, a organizao e o projeto utpico daquadra inferior, e o limite final da aventura estudantil da quadra superior, sur-ge uma quadra indefinida, um espao de possibilidades, um esquema formal

    que quase pura plasticidade, sem contedos determinados.

    Arte e movimento estudantil: anlise de uma obra de Antonio Manuel

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    Figura 4. Detalhe.

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    Como hmen das concretudes sociais, a realidade da obra se impe, poisa arte, afinal, no um lugar de definies, nem um jogo de bom senso, denarrativas lgicas bem resolvidas. Entre a frase a queima roupa e uma man-

    cha que somente puro contraste, h apenas um suave perfil horizontal mais uma vez da multido, que se consome, amorfa, na nica grande man-cha sangrada e sem moldura da obra, na nica massa que, realmente indefi-nida, ao ser arte, tambm a descrio do coletivo.

    Entretanto, se de um lado, o olhar crtico lanado obra constri a baseprimria de sua apreenso e essencial sua inteligibilidade, de outro exis-tem certas camadas de sentido que simplesmente no se desvelam desse mo-do. Negligenciar esse dado esperar que a obra, sozinha, nos revele alguns se-

    gredos que de qualquer forma no lhe pertencem, pois que a antecedem e sofeitos de outra matria; confiar, ingenuamente, que o olho nos d respostasque no lhe competem; tonificar o mito da arte ontologicamente paralela histria. A simples presena de Movimento estudantil, como obra premiada,naquele Salo Paranaense de 1968, j razoavelmente elucidativa, e pode ser-vir como exemplo do que digo. No que a mera reconstruo mental dessapresena me baste para alcanar certas snteses interpretativas que venho bus-cando, mas sem a considerao dessa circulao emprica da obra, certas con-

    cluses me seriam muito mais custosas quando no mesmo inviveis.Se na confrontao direta com Movimento estudantilconsegue-se dedu-zir uma considervel srie de cruzamentos analticos variveis conforme a si-tuao do observador, existem certas informaes marginais a meu ver,indispensveis pesquisa que no podem ser assim apreendidas. Dentreelas, destaco algumas, cada qual ligada outra e, naturalmente, situao co-mo um todo: a obra enquanto produo material especfica; a obra enquantocomponente da produo maior do artista e de sua biografia; e a obra en-quanto centro e libi de um circuito cultural concreto e, conseqentemente,enquanto efetivo agregado de valores simblicos e econmicos. Em poucaspalavras: a produo, o produtor e o lugar da obra no sistema.

    Movimento estudantil, por exemplo, com sua superfcie muito lisa e umpouco reluzente, seu suporte de madeira, sua fatura exata e a reproduo qua-druplicada de algumas mesmas cenas aparentemente fotogrficas, denunciaem partes seu processo produtivo: uma serigrafia, conhecido processo degravura criado no sculo XX e freqentemente utilizado durante os anos 60por artistas de toda parte.20 A impessoalidade do processo em si, se no geralre-adapta mo do artista ao re-adaptar seus elogios, no caso especfico des-sa obra, surge to contedo quanto as indecifrveis personalidades das multi-

    Artur Freitas

    Revista Brasileira de Histria, vol. 25, n 4988

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    des ali representadas. A tcnica, nesse caso, e como quase sempre, causa eefeito do trabalho, eleita por uma necessidade ao mesmo tempo em que selhe impe como limite. Todavia isso apenas um incio de assunto. Lanan-

    do hipteses, creio que coube uma pequena dvida ao visitante do Salo da-quele ano se, ao chegar obra, dobrou-se um pouco como de costume parainformar-se sobre ela atravs das inevitveis etiquetas laterais de identifica-o.21 Alm de informaes elementares sobre autoria e ttulo, Movimento es-tudantilestaria ali sendo apresentada, do ponto de vista tcnico, como umaenigmtica serigrafia deflan.

    Se de um lado, como se disse, a serigrafia um dos mais conhecidos eutilizados processos de impresso, de outro, o uso de umflan uma pea de

    oficina grfica, descartvel e utilizada como matriz das superfcies cilndricasem impressoras rotativas dos jornais dirios, posteriormente substituda pelooff-set como matriz de gravura de arte algo bastante incomum. Esse ges-to, alm de original enquanto possvel expresso plstica, viria a se tornar, nasmos de Antonio Manuel, um ato de guerrilha cultural. Oflanseria, na po-tica desse artista, reutilizado enquanto processo produtivo, surgindo comomatriz de sua prpria serigrafia. Matriz invisvel, entretanto; que no se apre-senta, que no se denuncia na obra e sim na etiqueta que a identifica e no-

    meia. Nesse registro, a respirao das cenas em Movimento estudantilalteraseu ritmo, muda seu sabor, comporta novos contornos. A contradio ine-lutvel, pois aquelas imagens descobrimos ao serem figuras em segun-do grau,22 so to ficcionais quanto documentais.23

    Como foram diversas as baixas entre a juventude militante, o estudantemorto da serigrafia poderia ser qualquer um, ser simplesmente uma lembran-a geral, apenas a idia-tipo de uma situao-limite plasmada pela imagina-o do artista. Mas no . Aquele estudante, de fato, a ocorrncia da morte.No sabemos de quem, mas sabemos que logo ganharia as manchetes de al-gum jornal dirio carioca. Porm, vale lembrar que, na obra, o discurso jor-nalstico com suas letras garrafais e suas fotos apelativas, com sua preciso in-formativa e com seu forte cheiro de documentao histrica, se subverte. Adiluio e o embaado das representaes, a repetio excessiva das mesmascenas, as pequenas interferncias da mo do artista, a inverso em negativode dois painis e a permanente incerteza da narrativa, nada disso colaboracom a limpidez de sentidos, com a comunicao imediata e alargada, caracte-rsticas freqentes de uma grande imprensa ainda no completamente viola-da pela censura prvia.

    Nas madrugadas de 1968, Antonio Manuel atuava incessantemente.

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    89Junho de 2005

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    Continuei a trabalhar com o jornal, aproveitando o material do dia-a-dia, fre-

    qentando as oficinas doJornal do Brasil, Correio da Manh, O Globoe o Paiz,

    de madrugada, s duas ou trs horas, para selecionar osflans, pois eles so con-

    siderado material de sucata, e corria o risco de perd-los, como perdi alguns. Oflan essa matriz do jornal que tem seus altos e baixos-relevos necessrios im-

    presso. Mas oflan um material muito bonito e quase invisvel, e assim tinha

    de trabalhar sobre determinados enquadramentos de luz. Tinha que jogar a luz

    em diagonal, ou de frente, para enxergar o que estava registrado nele. Alguns so

    inditos, porque no se podia mostr-los naquele tempo, e so quase todos rela-

    tivos idia da violncia de rua.24

    Do ineditismo de algunsflansbrotam mais algumas possibilidades de in-terpretao: se j sei que as imagens de Movimento estudantilso coletadas ere-trabalhadas a partir de matrizes de grandes jornais cariocas, via de regra desuas manchetes de capa, conforme nos revela Frederico Morais,25 de outro mo-do j no certo que essas primeiras-pginas chegaram efetivamente a circularpelas bancas do pas. Ou seja: se a manchete especfica de Movimento estudan-tilfoi realmente publicada, cresce a possibilidade de que o visitante do Salode 1968, ao reconhec-la na obra, desconfie de sua fonte documental. Mas, se

    aquela manchete foi vetada, seja pela censura interna do rgo de imprensa,seja pela censura externa da fora policial, e conseqentemente no ganhou ascapas de algum jornal carioca, a transgresso do gesto do artista ganha entocontornos de subverso poltica, pois corresponderia divulgao pblica deuma mensagem recentemente proibida pela lgica coercitiva do regime.26

    O apelo realidade, o uso da iconicidade, da figurao, a temtica agres-siva, o mergulho nas especificidades dos problemas brasileiros, a reprodutibi-lidade da serigrafia, a iconografia de massa, a reapropriao de imagens pbli-cas, os rudos na comunicao e o processo tcnico elaborador enquantomtodo de referncia censura, todo esse caldo de dados, tudo isso junto mar-ca Movimento estudantilcomo produto de seu tempo, de fins dos anos 60, tal-vez especificamente de 1968. Ainda guardam-se esperanas nas foras do cole-tivo, no protesto de rua; ainda no se encarou o silncio das aes armadas. Emesmo na trajetria pessoal de Antonio Manuel, a obra ainda formalizaoesttica radicalmente diferente de sua produo ulterior. Mesmo que as Urnasquentes, tambm de 1968, guardassem em seu interior excertos dessesflans,Movimento estudantilainda no sugere, em si, essa participao. Ainda ma-tria posta contemplao, mesmo que indignada, mas ainda . Se as Urnasquentesde Antonio Manuel ou os Parangolsde Oiticica j operavam no regis-

    Artur Freitas

    Revista Brasileira de Histria, vol. 25, n 4990

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    tro do acontecimento, da ao performtica, e no mais no do retiniano (co-mo diria Duchamp), no se pode dizer o mesmo de Movimento estudantil.27

    Nos anos seguintes, com a confirmao de toda a potncia da arte con-

    ceitual, bem como com o recrudescimento da brutalidade do regime e comas benesses classe-mdia do milagre brasileiro, o contexto outro, as pro-dues culturais tambm. O happening, no sentido mais amplo de aconteci-mento, embora nem sempre compreendido, torna-se a sntese plstica da no-va expressividade. A arte como processo levada s ltimas conseqncias,aos limites da vanguarda.

    Por ora, contudo, convm ainda destacar mais um aspecto que relacionaMovimento estudantilao seu tempo.

    DA VANGUARDA NO SALO IRONIA DO JRI

    Note-se que osflansque deram origem ao radicalismo de Urnas quentesso os mesmosflanscomportadamente premiados no Salo Paranaense de1968; e que o artista que, numa praa pblica, cobra dos passantes uma aoviolenta e lhes oferece machados em vez de olhos, o mesmo que envia suasrie de combativas obras ao julgamento oficial de um jri de seleo e quedispe, portanto, suas obras merc da lgica institucional do mundo da ar-te. Por qual razo, afinal, um artista que, sob a gide das operaes das van-guardas brasileiras e que portanto trabalha num registro de crtica no sao regime militar mas sobretudo s prprias instituies artsticas , acabapor sujeitar suas obras ao julgamento de um salo de arte? Esse aspecto, alis,se realmente contraditrio, no entretanto de todo incompreensvel.

    Durante os anos 60, uma parcela significativa das artes plsticas brasilei-ras re-adaptava certos expedientes antiinstitucionais das vanguardas histri-cas s necessidades dos novos contextos. Ao longo desses anos, medida queo meio artstico no Brasil reforava suas instituies e valores, paralelamentealguns artistas fizeram dos esforos de combate institucionalizao e ofi-cialidade de uma cultura conservadora uma prtica constante. Da decorre ofato de a arte de vanguarda ter tanto ido para as ruas ou seja, para forados museus e das galerias, como por exemplo em Domingos da Criaoou DoCorpo Terra, ambos organizados por Frederico Morais quanto combati-do de dentro as instituies artsticas como por exemplo o Happeningda Crtica, de Leirner, ou o Manifesto, de Artur Barrio , para ficar nos exem-plos mais conhecidos. No entanto, preciso destacar, em detrimento de toda

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    potncia do gesto vanguardista,que esses mesmos espaos institucionais com-batidos serviam, em ltima instncia, como meios indispensveis de consa-grao e subsistncia, mesmo ao mais rebelde dos artistas. Os Sales, as Bie-

    nais, os acervos consagrados, as palavras do crtico e o mercado de arte instituies por princpio questionadas pela vanguarda crtica ainda resis-tiam no somente como a nica fonte possvel de reconhecimento e ganhosmateriais, mas, principalmente, resistiam como a esfera legtima de reprodu-o de certos valores comuns ao entendimento da arte moderna, esfera essaem que, de qualquer forma, os artistas ainda circulavam entre pares, julga-vam-se entre iniciados e se resguardavam de certos desmandos da sociedadeem geral.

    E nesse sentido que convm ter em conta tanto a anlise da obra quan-to a anlise das instituies culturais: tanto uma quanto outra, dialeticamen-te, influenciam-se de modo recproco, influenciam as transformaes percep-tivas e culturais de certas formaes sociais, ao mesmo tempo em que sotambm influenciadas por elas. Algumas instituies culturais, por exemplo,como certos sales de arte, se de um lado agregam valores e sentidos s obrasque veiculam, de outro se alteram e se deformam, da mesma maneira, pelolegado dessas mesmas obras.

    A esse respeito no exceo o Salo Paranaense de 1968, o ltimo or-ganizado por Ennio Marques Ferreira, diretor do Departamento de Culturada Secretaria de Estado da Cultura do Paran desde 1961. A presena, duran-te os ltimos cinco ou seis anos, de artistas premiados como Anna Bella Gei-ger (1963), Antonio Dias (1963), Rubens Gerchman (1964), Frederico Nasser(1965-1967) e o prprio Antonio Manuel (1966-1968), entre outros, e de cr-ticos como Mrio Barata (1963), Walter Zanini (1964), Geraldo Ferraz (1966),Jos Roberto Teixeira Leite (1966) e Clarival do Prado Valladares (1967), semdvida corroborava a seriedade do certame e, o que mais importante, suavocao contemporaneidade. A simples presena desses nomes, to carosao campo artstico dos grandes centros brasileiros, injetava doses de certo re-conhecimento grife Salo Paranaense, ao mesmo tempo em que lhe con-feria, enquanto instituio abalizada, a devida autoridade de julgar e, portan-to, de consagrar. Naquele ano de 1968, compunham o jri de seleo o prprioEnnio Marques, que substitua, na qualidade de suplente, a Pietro Maria Bar-di, alm dos artistas plsticos Loio-Prsio e Ivan Serpa, este ltimo ex-profes-sor de Antonio Manuel no Rio de Janeiro.28

    Quando pensamos no processo seletivo de um salo de arte, importan-te no perder de vista, portanto, que se de um lado uma obra se torna inequi-

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    Revista Brasileira de Histria, vol. 25, n 4992

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    vocamente de arte graas ao batismo das escolhas do jri, de outro, o pr-prio jri de seleo, em seu projeto de legitimao institucional das obras, as-sina com suas escolhas uma espcie de contrato de cumplicidade com elas.

    No temos, claro, como saber quais foram exatamente as eventuais leiturasque Loio-Prsio, Ivan Serpa e Ennio Marques fizeram de Movimento estudan-til poca daquele salo, nos idos de 1968, mas fora o fato de a terem escolhi-do e premiado, h ainda um ltimo dado curioso que vale a pena mencionar.

    Como ocorreria at 1976, as premiaes nesse ano foram majoritaria-mente concedidas pelo governo do estado do Paran, atravs de diversos deseus rgos. De um total de NCr$ 16.100,00 em dinheiro, mais da metade(NCr$ 8.500,00) veio dos cofres pblicos estaduais.29 Curiosamente, talvez

    por alguma ldica e inteligente sutileza da comisso julgadora que quemdecide qual prmio de qual instituio vai para qual obra , o nico prmiofederal coube justamente obra de Antonio Manuel. A prpria premiao,aqui, no deixa de conter em si a evidncia de uma pequena blague, quando,ao garantir NCr$ 1.000,00 ao bolso do artista, Movimento estudantilse v iro-nicamente laureada com o prmio Universidade Federal do Paran emaluso ao maior palco da movimentao estudantil paranaense em 1968.

    NOTAS

    1 Pesquisa realizada com apoio financeiro da Capes.

    2 Doutorando em Histria pela Universidade Federal do Paran e bolsista pela Capes. Autor,

    entre outros, de Histria e imagem artstica: por uma abordagem trplice publicado no

    dossi Histria e Imagem da Revista Estudos Histricos, n.34, 2004; de Poticas polticas:

    as artes plsticas entre o golpe de 64 e o AI-5, em Histria: Questes e Debates, n.40, 2005; e

    de A autonomia social da arte no caso brasileiro, ArtCultura, n.11, 2005 (no prelo).

    3 Dados retirados da seguinte coletnea de documentos: JUSTINO, M. J. (Org) 50 anos deSalo Paranaense. Curitiba: Clichepar, 1995, p.270.

    4 MARCONI, P. A censura poltica na imprensa brasileira: 1968-1978. So Paulo: Global,

    1980.

    5 VENTURA, Z. 1968: o ano que no terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p.291-2.

    6 FAVARETTO, C. Tropiclia: alegoria, alegria. So Paulo: Ateli Editorial, 1996; NAPOLI-

    TANO, M. A repblica das bananas: o tropicalismo no panorama da MPB. In: Seguindo a

    cano: engajamento poltico e indstria cultural na MPB (1959-1969). So Paulo: Anna-

    blume, Fapesp, 2001, p.233-86.

    7 MORAIS, F. Cronologia das artes plsticas no Rio de Janeiro: 1816-1994. Rio de Janeiro:

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    Topbooks, 1995, p.305; HOLLANDA, H. B. Impresses de viagem. So Paulo: Brasiliense,

    1980.

    8 Hlio Oiticica, por exemplo, alertava sobre a premncia dessa noo, dizendo que o que

    [Ferreira] Gullar chama de participao no fundo essa necessidade de uma participaototal do poeta, do artista, do intelectual em geral, nos acontecimentos e nos problemas do

    mundo ... Desde as proposies ldicas s do ato, desde as proposies semnticas da

    palavra pura s da palavra no objeto, ou s de obras narrativas e s de protesto poltico

    ou social, o que se procura um modo objetivo de participao OITICICA, H. Texto pu-

    blicado no catlogo da exposio Nova objetividade brasileira, Museu de Arte Moderna,

    Rio de Janeiro, 1967.

    9 SCHWARZ, R. O pai de famlia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p.62.

    10

    TAVARES, M. H. e WEIS, L. Carro zero e pau-de-arara: o cotidiano da oposio de clas-se mdia ao regime militar. In: SCHWARCZ, L. M. (Org) Histria da vida privada no Bra-

    sil: contrastes da intimidade contempornea. So Paulo: Companhia das Letras, 1998,

    p.330.

    11 VENTURA, Z., op. cit., p.109-64; MARTINS FILHO, J. R. Movimento estudantil e dita-

    dura militar: 1964-1968. Campinas: Papirus, 1987.

    12 HAGEMEYER, R. R. 1968: ano da derrubada do ensino pago no Paran. In: MARTINS

    F,J.R.(Org) 1968 faz 30 anos. Campinas: Mercado das Letras, So Paulo: Fapesp, So Car-

    los: Ed. UFSCar, 1998, p.115-6.13 VENTURA, Z., op. cit., p.263-86.

    14 Gazeta do Povo, Curitiba, 11 dez. 1968.

    15 Ao contrrio de jornais como o Estado do Parane principalmente o Dirio do Paran, a

    Gazeta do Povopublicou, durante os anos 60, notas muito espordicas sobre artes visuais.

    De qualquer forma, a dcada de 1970 seria muito mais prdiga a esse respeito, sobretudo

    pela incansvel atuao da crtica de arte Adalice Arajo que, a partir de 1968, assinaria

    semanalmente a coluna de artes plsticas do Dirio do Paran, passando, ao final dos anos

    70, a escrever para a Gazeta do Povo. A essa poca, Aramis Millarch e Aurlio Benitez, am-bos jornalistas, tambm escreviam regularmente sobre artes plsticas.

    16 Manuel, Antonio da Silva Oliveira (Avels de Caminha, Portugal, 1947). Artista plstico.

    Chega ao Brasil em 1953, fixando-se no Rio de Janeiro. Em meados da dcada de 1960 es-

    tuda na Escolinha de Arte do Brasil, com Augusto Rodrigues, e no ateli de Ivan Serpa.

    aluno ouvinte da Escola de Belas Artes. Em 1967 realiza sua primeira exposio individual,

    na Galeria Goeldi. No ano seguinte, no evento Apocalipoptese, organizado por Hlio Oi-

    ticica, cria em praa pblica as Urnas Quentes, oferecendo machados aos transeuntes e lhes

    pedindo que destruam algumas caixas de madeira hermeticamente fechadas que conti-nham em seu interior imagens e textos jornalsticos sobre conflitos sociais causados pela

    represso militar. Nesse mesmo ano, embora selecionado para representar o Brasil na Bie-

    Artur Freitas

    Revista Brasileira de Histria, vol. 25, n 4994

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    nal de Paris, acaba no indo Frana, pois a exposio prvia brasileira, ainda em solo na-

    cional, fechada pelo exrcito. premiado, em 1969, no Salo da Bssola, com uma obraalusiva situao poltica da Amrica Latina. Em 1970, inscreve a obra O corpo a obra

    no 19 Salo Nacional de Arte Moderna, sendo recusado pelo jri. Ainda assim, impe sua

    obra ao pblico, descendo nu as escadas do MAM-RJ. Trs anos mais tarde, enquanto pre-para uma individual sua no MAM-RJ, a exposio, por medo da censura oficial, acaba sen-

    do censurada internamente, pelo prprio pessoal do museu. Antonio Manuel recolhe omaterial e o expe em seis pginas impressas e publicadas emO Jornal: era a exposio

    De zero s 24 horas nas bancas de jornais. Nesse mesmo ano, realiza os filmes Loucura e

    Cultura, premiado no 3 Festival de Curta-Metragem do Jornal do Brasil e Semi-tica,queseria premiado como melhor filme socioantropolgico na 5 Jornada Brasileira de Curta-

    Metragem de Salvador, em 1975. Em 1984, ganha bolsa de pesquisa no Primeiro Concur-so Ivan Serpa, realizado pela Funarte. Em 1990, Rogrio Sganzerla dirige o vdeo Annimo

    e Incomum, sobre os trabalhos do artista.

    17 Desde aquela poca, e at os dias de hoje, o Salo Paranaense mantm a seguinte poltica

    de aquisio de obras para formao de acervo: do conjunto das obras (normalmente trs)premiadas de um artista, uma obrigatoriamente fica disposio da organizao do even-

    to, sendo incorporada coleo do rgo promotor do salo na ocasio. Das trs obras de

    Antonio Manuel premiadas no Salo daquele ano, graas a essa poltica de aquisio e con-servao, uma nos chega at hoje, como parte do acervo do governo do Estado. Essa obra,

    intitulada Movimento estudantil 68 A e tombada sob o n 70/0082, pertence ao Museu de

    Arte Contempornea do Paran.18 BRITO, R. Annimo e comum [1983]. In: MANUEL, A. [et al.]. Antonio Manuel. Textos

    de Frederico Morais, Hlio Oiticica, Mrio Pedrosa e Ronaldo Brito. Rio de Janeiro: Fu-

    narte, 1984, p.9.

    19 DUARTE, P. S. Anos 60: transformaes da arte no Brasil. Rio de Janeiro: Campos Ge-rais, 1998, p.69.

    20 Serigrafia: gravura a cores baseada no princpio do estncil, e que permite, evidentemen-

    te, a reprodutibilidade de uma mesma imagem-matriz. Graas, sobretudo, pop, e pro-

    duo de Andy Warhol em especial, a serigrafia ecoava com certa facilidade por esses anos.21 Como se sabe, assim como no h espao para a imparcialidade durante um processo dejulgamento, seleo e premiao de produes culturais, tambm no h neutralidade em

    qualquer processo de montagem espacial e simblica de uma exposio. Vrios so os fa-tores extra-estticos que colaboram na justaposio de novos significados s obras expos-

    tas. A disposio de uma obra em relao outra, em relao arquitetura do museu ou

    da galeria e em relao ao corpo do visitante j sugere, por si s, mltiplos percursos deleitura e, conseqentemente, imposies mais ou menos rgidas de contedos, hierarquias

    e valores. Um dos dispositivos mais comuns de alta interferncia significante e mesmo deinverso de sentidos a etiqueta identificadoradas obras, um pequeno adesivo colocado

    ao lado delas contendo informaes fundamentais ao visitante como nome do autor, ttu-

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    95Junho de 2005

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    lo da obra, dimenses exatas do trabalho, data de produo e descrio dos materiais uti-

    lizados. Via de regra, tais etiquetas no cumprem apenas a funo de legendas informati-

    vas, mas atuam dubiamente acopladas identidade da obra, sugando-lhe a linguagem par-

    ticular justamente ao guiar-lhe os valores estticos, histricos e econmicos. Atravs dessas

    pequenas bssolas simblicas o mito da autenticidade e da raridade, to caros sociedade

    capitalista, confirma e legitima seu status quo. O nome do artista, em primeiro lugar, in-

    formao basilar: ao crtico, pode ser a cauo do valor esttico; ao marchande o seu fre-

    gus, a garantia de converso da aura em valor econmico; ao historiador, a segurana da

    relevncia e da veracidade. O ttulo da obra, por sua vez, suga sua importncia de um ges-

    to de vontade do artista, que em muitos casos opta por influenciar na interpretao sem-

    pre polissmica das suas imagens atravs da imposio de significados lingsticos. O teor

    pragmtico, por exemplo, do ttulo em Movimento estudantil, se de um lado no contraria

    o discurso visual da obra, de outro delineia certezas narrativas: a crer no ttulo, as imagensso instantneos flagrantes de uma conhecida histria social.

    22 DUARTE, P. S., op. cit., p.69.

    23 Uma vez que as imagens presentes nessesflansso apropriaes de uma srie tcnica de

    reproduo que tem seu incio numa fotografia, a dimenso semitica desses produtos po-

    de guardar certa relevncia prpria argumentao. Embora eu no tenha aqui interesse

    em me alongar a respeito das discusses sobre a ontologia da imagem fotogrfica, cumpre

    por ora destacar que compreendo a fotografia tanto como tcnica quanto como lingua-

    gem. Como tcnica, ou seja, como imagem produzida por aparelhos (FLUSSER, V. Ensaiosobre a fotografia: para uma filosofia da tcnica. Lisboa: Relgio Dgua, 1988, p.33), a fo-

    tografia guarda certas relaes fsico-qumicas com seu referente, o que equivale a aceit-

    la, enquanto processo produtivo, como um ndicedo objeto fotografado. (PEIRCE, Ch. S.

    Semitica. So Paulo: Perspectiva, 2000. p.65.) sob essa perspectiva que o carter docu-

    mental de Movimento estudantilse evidencia, pois que indica, de fato, uma conexo fsica

    com seu objeto. Sob outro aspecto, entretanto, a fotografia surge como linguagem aut-

    noma, e como tal, como resultado cultural de um duplo processo simblico, tanto forma-

    tivo quanto interpretativo. (DUBOIS, Ph. O ato fotogrfico e outros ensaios. 2.ed. Campi-

    nas: Papirus, 1998, p.25-53.) Ou seja, a fotografia tambm resultado, a um s tempo, decertos esquemas conceituais do fotgrafo, bem como das possibilidades interpretativas do

    observador, o que faz que ela, ao ganhar em fico, liberte-se da falcia da objetividade.

    24 Depoimento de Antonio Manuel em MANUEL, A. [et al.] Antonio Manuel, cit., p.45.

    25 MORAIS, F., op. cit., p.30.

    26 Conforme nos lembra Paolo Marconi, de acordo com os artigos 61, 62 e 63 da Lei de Im-

    prensa instituda em 1967, o Ministrio da Justia poderia apreender, a qualquer momen-

    to, e sem mandado judicial, qualquer veculo de imprensa que contivesse propaganda deguerra ou que promovesse incitamento subverso da ordem poltica e social ou ofen-

    dam a moral pblica e os bons costumes (artigos 61,62 e 63). MARCONI, P., op. cit., p.33.

    Artur Freitas

    Revista Brasileira de Histria, vol. 25, n 4996

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    27 Para Oiticica, o flan q era desenho ou gravura matriz / torna-se / elemento-cerne en-

    cerrado na caixa / caixa fechada q aberta a marteladas: pra possuir-se o cdigo potico /tem q violar a integridade do objeto-caixa acabado / ACABAR COM O ACABADO / den-tro o flan / no-gravura / no pster / no-serigrafia. OITICICA, H. Urnas quentes de

    Antonio Manuel, 22 abril de 1973, New York. Se oflan no-gravura e no-serigrafia, s o na medida em que se encontra encerrado na caixa, no calor das urnas. Antes, entretan-to, e esse o caso de Movimento estudantil, oflanera desenho ou gravura matriz.

    28 De acordo com artigo publicado pelo crtico de arte Walmir Ayalla, previa-se uma co-misso julgadora formada pelo crtico Pietro Maria Bardi, diretor do Museu de Arte de

    So Paulo, pelo artista Ivan Serpa, professor do Museu de Arte Moderna do Rio de Janei-ro, e um terceiro membro escolhido em eleio a ser realizada em Curitiba, podendo nelavotar os artistas que tenham sido, anteriormente, aceitos no Salo Paranaense. AYALA, W.

    Salo Paranaense,Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 3 dez. 1968.29 Atravs do Teatro Guara, da Fundepar, do Museu Paranaense, da Biblioteca Pblica doParan ou da prpria Secretaria de Educao e Cultura.

    Arte e movimento estudantil: anlise de uma obra de Antonio Manuel

    Artigo recebido em 03/2005. Aprovado em 05/2005