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RELATÓRIO PARCIAL DE PESQUISA INDIVIDUAL (2002/03) Projeto de Pesquisa Individual vinculado ao Departamento de Educação Musical do Instituto Villa Lobos da Universidade do Rio de Janeiro – Uni-Rio. Esse projeto faz parte da linha de Pesquisa Linguagem e Estruturação Musical do Mestrado e Doutorado em Música. TÍTULO: FUNDAMENTOS DE ESTÉTICA (Questões Estéticas) RESPONSÁVEL: Prof. PAULO JOSÉ MORAES PINHEIRO. NATUREZA DO PROJETO: Trata-se de um projeto de pesquisa individual em que se pretende analisar os seguintes itens relativos ao estudo da Estética: (A) Os temas que devem fazer parte de uma história da estética e (B) A história da Estética. INTRODUÇÃO: O filósofo alemão Martin Heidegger definia a Estética, em 1936, como “a ciência do comportamento sensível e afetivo do homem e daquilo que determina um tal comportamento”. Este determinante não é outro senão o belo, que tanto pode aparecer na natureza quanto provir de uma arte. Diante de noção do Belo – to kalón para os gregos – é pertinente afirmar que o homem se introduz como aquele que tanto se vangloria, com freqüência, de ser o autor como não saberia recusar, a princípio, a condição de testemunha. De fato, o termo estética foi introduzido em 1935 por Baumgarten na Meditazioni filosofichi su argomenti concernenti la poesia. Tratava-se, para esse discípulo de Leibniz, de religar a apreciação das belas-artes ao conhecimento sensível, propondo ou a cognitio sensitiva ou a aisthétiké épistémé, termo que caracteriza a posição intermediária dessa modalidade de saber, que se situa entre a pura sensação (obscura e confusa) e o puro intelecto (claro e distinto). No contexto do desenvolvimento da Estética, a crítica kantiana a Baumgarten e todos os leibnizianos e wolfianos, serviu sobretudo para depurar um pouco mais a noção de “estética”, insistindo quanto ao fato de que a intuição é intuição e não “conceito confuso”. Que a Estética tenha, desde o início, se preocupado com as formas, este fato encontra, no entanto, eco e comprovação em nada menos 1

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RELATÓRIO PARCIAL DE PESQUISA INDIVIDUAL

(2002/03)

Projeto de Pesquisa Individual vinculado ao Departamento de Educação Musical do Instituto Villa Lobos da Universidade do Rio de Janeiro – Uni-Rio. Esse projeto faz parte da linha de Pesquisa Linguagem e Estruturação Musical do Mestrado e Doutorado em Música.

TÍTULO: FUNDAMENTOS DE ESTÉTICA (Questões Estéticas)

RESPONSÁVEL: Prof. PAULO JOSÉ MORAES PINHEIRO.

NATUREZA DO PROJETO: Trata-se de um projeto de pesquisa individual em que se pretende analisar os seguintes itens relativos ao estudo da Estética: (A) Os temas que devem fazer parte de uma história da estética e (B) A história da Estética.

INTRODUÇÃO: O filósofo alemão Martin Heidegger definia a Estética, em 1936, como “a ciência do comportamento sensível e afetivo do homem e daquilo que determina um tal comportamento”. Este determinante não é outro senão o belo, que tanto pode aparecer na natureza quanto provir de uma arte. Diante de noção do Belo – to kalón para os gregos – é pertinente afirmar que o homem se introduz como aquele que tanto se vangloria, com freqüência, de ser o autor como não saberia recusar, a princípio, a condição de testemunha. De fato, o termo estética foi introduzido em 1935 por Baumgarten na Meditazioni filosofichi su argomenti concernenti la poesia. Tratava-se, para esse discípulo de Leibniz, de religar a apreciação das belas-artes ao conhecimento sensível, propondo ou a cognitio sensitiva ou a aisthétiké épistémé, termo que caracteriza a posição intermediária dessa modalidade de saber, que se situa entre a pura sensação (obscura e confusa) e o puro intelecto (claro e distinto). No contexto do desenvolvimento da Estética, a crítica kantiana a Baumgarten e todos os leibnizianos e wolfianos, serviu sobretudo para depurar um pouco mais a noção de “estética”, insistindo quanto ao fato de que a intuição é intuição e não “conceito confuso”. Que a Estética tenha, desde o início, se preocupado com as formas, este fato encontra, no entanto, eco e comprovação em nada menos do que na obra do próprio Kant: antes de delimitar a “estética” em função do juízo de gosto, ou seja, daquele que trata “do belo e do sublime na natureza e na arte” (Crítica da faculdade de julgar, 1790), o filósofo de Konigsberg denominou de estética transcendental o estudo do espaço e do tempo enquanto formas a priori da intuição sensível em geral (Crítica da razão pura, 1781). Retomando o processo histórico, percebemos com relativa facilidade que foram as noções de matéria e forma que tradicionalmente regeram, no Ocidente, o estudo da sensibilidade humana em geral.

O que concluir do que acabamos de dizer? Que a estética já existia antes da “Estética”, ou seja, antes da constituição de uma disciplina autônoma designada por esse nome. Que as doutrinas estéticas, longe de nos surgir como comentários relativos à história do gosto, se constituem através da concordância e do contraste com doutrinas anteriores, doutrinas que dizem respeito, como já foi dito, à sensibilidade humana em geral. Mas este caráter relativamente “abstrato”, esta distância tomada face à história da arte, garante também a fecundidade a qual, infelizmente, a história se recusa por princípio, pois lhe cabe sobretudo a enunciação, sem dúvida alguma valorosíssima, dos diversos exemplos e casos específicos que vão se reunindo e dando sentido à história. A estética certamente se diferencia da História da Arte, mas isso em nada ameniza o peso da “pré-história” da estética nos estudos atuais. Ela nos remete a princípio a Platão. Aquilo por meio do qual um ente difere de um outro ente, seu eidos

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ou idea, Platão toma como a raiz de uma distinção entre o limitante (a forma, morphé) e o limitado (a matéria, hylé). O que se mostra como a aparência mais fidedigna, o ekphanestaton, aquilo em função do qual se aguça o hylemorfismo ou a oposição entre matéria e forma, Platão o revela como sendo o próprio belo. Nada impede então a reflexão estética de fazer do ente mais belo um objeto ao qual caberá a um sujeito apreciar em função do seu valor. Em concordância com a dependência do par matéria-forma, a estética faz da coisa da qual ela se ocupa um objeto para um sujeito; o “sujeito” nada mais é do que o “homem sensível”, que percebe o objeto, ou seja, que o toma em busca de alguma fruição. Herdeira, nesse sentido, de um tipo de reflexão ocidental girando em torno do encontro sujeito-objeto, a estética não poderia existir fora do campo (histórico e geográfico) onde esse encontro teve lugar. Numa síntese generalizada, podemos dizer que as estéticas filosóficas do Ocidente passaram, pelo menos, por três fases diferenciais – históricas – bem demarcadas. A princípio devemos nos referir ao nascimento das teorias do belo e do fazer nas obras de Platão e Aristóteles, cujas influências se estenderam, não obstante as particularidades específicas de cada período histórico, pelo mundo latino, influenciando a Idade Média e a Renascença. Logo em seguida, devemos nos deter no deslocamento da ênfase no objeto da beleza para o sujeito que percebe; o que se evidencia com clareza nos escritos de Descartes, Kant, Schelling e Hegel. E, finalmente, na modalidade de descentramento face a secular preocupação com o belo que, a partir do século XIX, com Arthur Schopenhauer (1780-1860) e Friedrich Nietzsche (1844-1900) e, no século XX, com Martin Heidegger (1889-1976) e as estéticas fenomenológicas, viria a provocar a atomização cada vez mais crescente da estética em versões particularizadas e diferenciais. A multiplicação dos pensamentos e escolas filosóficas, de um lado, o estilhaçamento dos sistemas artísticos, de outro, levaram a uma pulverização de tendências teóricas e atividades de criação que não tem cessado de se expandir. As correntes estéticas, tanto no nível teórico quanto no nível da criação, têm se multiplicado a tal ponto que qualquer tentativa de mapeá-las num panorama global e representativo destina-se irremediavelmente ao fracasso. Tendo isso em vista, o Projeto de Pesquisa que atualmente desenvolvo não tem qualquer pretensão de esgotamento documental, mas a intenção de trabalhar com cada uma destas três etapas acima mencionadas. O que pude objetivamente notar, desde que cheguei ao departamento de Educação Musical do Instituto Villa Lobos, é que os alunos de um modo geral se interessam bastante pela cadeira de Estética Clássica; ao ponto de me pedirem aulas particulares sobre a História da Estética. Acredito, portanto, que um projeto visando a fomentar o estudo da Estética, ou seja, um projeto em que pudesse dispor de mais tempo para analisar e apresentar artigos sobre cada um desses autores que nortearam a reflexão estética, contribuiria, em muito, para a formação do nosso aluno que, via a regra, se ressente do desconhecimento nessa área.

A Estética será portanto analisada a partir do estudo de textos, procurando dar ênfase àqueles que tratam direta ou indiretamente da música. Platão, por exemplo, não escreveu diretamente sobre a música do seu tempo, mas a sua filosofia foi absolutamente influenciada pela noção de harmonia, provinda do pitagorismo, e pela reflexão de músicos como Damon entre outros, que cuidaram de aproximar a música à formação ético-moral. Tudo indica que a teoria da mimésis tal como foi aplicada por Platão à composição musical, foi, em grande parte, devida a Damon; visto que trata, em primeira instância, de uma analogia entre o movimentos dos sons e as impressões que eles produzem na alma humana, por onde podemos notar a assimilação do ensinamento da música à formação moral ou à formação da psiché. Aristóteles age de modo semelhante, embora tenda a introduzir a música no domínio mais específico das artes miméticas ou representativas; essa questão é abordada sobretudo na Poética. Plutarco na sua Moralia discorre ostensivamente sobre a música no seu Peri Mousikês (sobre a Música) e, mais tarde, Plotino, na Enéada VI, se refere a Beleza como aquilo que se constitui muito mais na vivência da proporção do que na proporção em si mesma. Santo Agostinho escreveu um tratado unicamente se referindo à música, De Musica, que começa por situar a música no conjunto das Artes Liberais. Descartes redigiu um Compendium musicae. Rousseau se refere diretamente à música no Ensaio sobre a origem das línguas e chega a compor um Dicionário da música. Hegel, em sua Estética, atribui à música um indubitável destaque, embora a situe num

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patamar dialético diverso ao da poesia e da filosofia. Nietzsche é praticamente um músico que, ao redigir a Origem da Tragédia no gênio da música, contribui tanto para a compreensão da música como fenômeno dionisíaco quanto para a definição do artista não mais vinculado à imagem apolínea e sim à sonoridade proveniente das práticas catárticas dionisíacas. Terminaria com Adorno, com sua Aesthetiche Theorie e os seus diversos estudos sobre a Filosofia da nova música, isso apenas para não me estender demasiadamente na enumeração dos momentos em que a música se tornou uma questão central na reflexão estética de pensadores que, de algum modo, concretizam e resumem a produção estética no ocidente.

Enfim, é relevante lembrar que um estudo dessa natureza se faz sobretudo em função da análise interpretativa de textos; da leitura propriamente dita. O que está sendo criado, no âmbito desse projeto, são alguns núcleos de análise e comentário de textos relativos à vasta literatura filosófica de que dispomos sobre Estética. A princípio esses textos são trabalhados em função de uma linha histórica que inicia, certamente, em Platão, se estendendo até as Estéticas do séc. XX. Trata-se aqui de um projeto amplo, atuando numa área vastíssima e intencionando, sobretudo, a formação de uma “visão histórica” desses cânones da literatura filosófica que concernem diretamente à formação do artista e, no nosso caso específico, do músico. Durante o primeiro ano de pesquisa procurei abordar apenas os temas relativos ao pensamento filosófico antigo sobre as artes, já que não se pode falar de uma Estética propriamente dita nesse momento, procurando abordar sobretudo os sofista, Platão e Aristóteles. O tema específico Platão, Aristóteles e a música foi desenvolvido nos anos anteriores passado (2000/01). Esse ano continuei respondendo a uma demanda dos próprios alunos, ou seja, a de “contemporanizar” os meus estudos, estabelecendo uma relação entre os gregos e um filósofo moderno-contemporâneo de importância fundamental para a modernidade e a pós-modernidade: F. Nietzsche. É preciso lembrar que ainda estou trabalhando com temas propostos pela reflexão filosófica antiga e que o estudo sobre Nietzsche, que realizei esse ano, volta-se, também, para o que poderíamos chamar de a questão desenvolvida por Nietzsche face aos gregos e à noção de Tragédia/Ópera.

OBJETIVOS: O objetivo deste Projeto de Estudo Fundamental é o de desenvolver a análise e a interpretação de textos considerados cânones da Estética no Ocidente.

ANDAMENTO DA PESQUISA: Durante este quarto ano de pesquisa (2002) continuei procurando elaborar uma espécie de propedêutica ao ensino de estética. Por esse motivo, procurei redigir artigos que pudessem esclarecer temas clássicos como a relação entre filosofia, música e arte em geral. Esse ano, procurei me concentrar no pensamento do filósofo alemão F. Nietzsche; o que culminou com a elaboração, junto com os professores Charles Feitoza e Miguel Barenechea (ambos desta Universidade), do do livro “Assim falou Nietzsche”. Preparei um estudo e uma tradução: (1) Drama e fidelidade em Nietzsche, sobre a relação entre Nietzche, Wagner e a noção de Tragédia Antiga (DpeA Editora); (2) Sobre a Passividade; tradução de um artigo do francês – Université de Paris I – Sorbonne, sobre a noção de passividade no pensamento nietzscheano. De fato, a minha pesquisa tem se orientado, cada vez mais, para o pensamento antigo: os artigos produzidos partem sempre de uma temática elaborada na reflexão filosóficas dos gregos.

CONCLUSÃO: Durante esse quarto ano de pesquisa foi possível, através do projeto Fundamentos de Estética, produzir textos que ajudam a esclarecer certas noções fundamentais ao estudo da Estética. Analisei alguns textos de F. Nietzsche que se ligam ao pensamento antigo. Continuo, portanto, procurando me ater aos temas da filosofia antiga (grega). Esse quarto ano não esgota, de modo algum, o tema da pesquisa, que é bem mais amplo e que visa a elaboração de uma série de texto sobre estética que possam ajudar na formação do aluno matriculado no Centro de Letras e Artes desta Universidade. O que pretendo, a partir do próximo ano, é adequar melhor o tema desse projeto de pesquisa individual, considerando a presença de alunos e pessoas interessadas, pois embora tenha trabalhado individualmente,

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procurei apresentar o resultado da pesquisa a pequenos grupos de alunos. Tudo o que produzi este ano foi ou vai ser publicado (em revista e em livro), o que muito me ajudou a avaliar o resultado efetivo do trabalho de pesquisa que desenvolvi durante o ano 2002.

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Reproduzo, a seguir, os dois estudos sobre Nietzsche produzidos ao longo de 2002:

DRAMA E FIDELIDADE EM NIETZSCHE

(A ORIGEM DO DRAMA MUSICAL GREGO E O TEMA DA FIDELIDADE NA IV INTEMPESTIVA)

“O que esperamos do futuro já foi uma vez realidade - em um passado que remonta há mais de dois mil anos.”“O que chamamos hoje de ópera, caricatura do drama musical antigo, surgiu como plágio direto da antigüidade.” “Que o estado de alma trágico não pereça. Uma lamanetação sem precedente seria ouvida sobre toda a terra se os homens devessem um dia perdê-lo completamente”.

Se por um longo período de nossa história a noção de fidelidade pode nos remeter aos critérios de uma virtude metafísica, capaz de nos livrar do conflito trágico e sem solução entre as partes; em outro, sem dúvida anterior ao que acabo de enunciar, a fidelidade foi tomada como a virtude que apenas reunia as partes antagônicas e, por vezes, não conciliáveis, que as colocava em relação umas com as outras e de uma tal forma que uma não deveria existir sem a outra. Por um longo e frutífero período, a fidelidade foi a virtude do combate ou a virtude que nos permitiu dramatizar e fazer soar uma harmonia que dizia respeito unicamente ao combate. Tal como a physis de Heráclito, a fidelidade também ama ocultar-se (pistis kryptesthai philei – physis kryptesthai philei1), mas o seu ocultamento é fruto de um intenso combate entre o surgir e o submergir, entre o aparecer e o ocultar-se . Assim, podemos designar, pelo menos, dois modos

1 A alusão feita aqui incide sobre o fragmento de Heráclito, citado por Temístio (Or., 5): fu/sij kru/ptesqai filei= (Diels-Kranz ?? - Fr. 123 - VERIFICAR), normalmente traduzido por “a verdadeira constituição das coisas gosta de ocultar-se”. O verbo crypto designa a ação de cobrir para esconder ou para subtrair do olhar. A natureza, nesse caso, gosta de se “criptar”, ou seja, gosta de ocultar-se e esconder-se. É como se disséssemos que a physis não é apenas o que surge ou aparece, mas também o que se oculta ou o que se recolhe, subtraindo-se à percepção comum. Há uma parte da natureza que permanece sob a terra, misturada, oculta, tal como a semente que tão pouco nos permite notar a presença da árvore que, de algum modo, já se insinua. Para Heráclito, a physis está sempre ocultando-se, sempre remetendo-se a um outro momento, a um outro lugar, em uma palavra ao movimento que faz com que todas as coisas se recolham e ressurjam sem atingir qualquer estado de permanência, o que, não obstante, não o impede de pensar na harmonia ímplicita nesse jogo contínuo do sugir e ocultar-se, ou melhor, do surgir ocultando-se. Vale também notar a tradução proposta por Heidegger para esse mesmo fragmento: “o surgimento favorece o encobrimento” (incluir texto em alemão), Heraklit (Heráclito, trad. por Márcia Cavalcanti, Editora?, Ano?, p.?). Essa tradução, ainda que sujeita a muita controversa, carrega o mérito de nos forçar a compreender que com o verbo crypto, Heráclito não quis se referir apenas ao ato de ocultar-se, mas ao gesto contínuo de ocultar-se a partir do que surge, e surgir a partir do que se oculta.

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de se compreender o verbo kryptesthai (ocultar-se): pelo combate, quando a luta faz surgir e desaparecer os agentes que estão mutuamente em ação - e nesse momento a fidelidade ainda está direcionada para a terra -; ou pela renúncia, pela resignação, quando a fidelidade se orienta para uma resolução definitiva do conflito, ou seja, quando ela quer transcender e sublimar toda a terra. Essa segunda forma, como julgamos saber, vigorou no ocidente. A fidelidade tornou-se, para nós, uma virtude de resignação. Ela nos remete à redenção ou à resolução do conflito e, nesse caso, pôde ser compreendida como “a fidelidade a um deus” que nos redime de todo o conflito. Eis o que, de algum modo, ocorreu entre Elizabeth e Tannhäuser na ópera de Wagner2. Mas não devemos esquecer que a fidelidade pode ser tomada, também, como fidelidade dramática, ou terrena, a que sustenta o conflito entre as partes, a que é praticamente um pathos – uma experiência vivida, um grande sentimento arrebatador – que, não obstante, nos leva à dramatização. Então, a fidelidade pode ser de renuncia ou resignada (fidelidade a algo maior que poderia nos livrar de toda situação conflituosa ou mesmo trágica), mas também pode ser dramática ou terrena, ou seja, a que nos situaria, justamente, no conflito, no que é trágico e, por si mesmo, dramático. O meu objetivo aqui, hoje, não é outro senão o de me referir a esta modalidade de fidelidada à terra, fidelidade ao drama ou dramática, fidelidade ao combate, que nos remete tanto à avaliação nietzscheana do drama musical antigo quanto ao que se passa, ao menos em sua primeira avaliação, com a obra e a personalidade do dramaturgo ditirâmbico de sua contemporaneidade, isto é, com R. Wagner.

De fato, o estudo que ora apresento procede de duas questões principais que se articulam entre si. A primeira diz respeito ao desenvolvimento do pensamento trágico em Nietzsche e à sua possível aplicação ao drama musical wagneriano. A segunda trata do tema da fidelidade, esta espécie de virtude originária que Nietzsche descobre na dramaturgia wagneriana e que nos permite pensar no modo de vida dramático que orienta tanto a existência do homem Wagner quanto a articulação entre as suas personagens. Trata-se, portanto, de um estudo em que nos manteremos atentos ao primeiro pensamento de Nietzsche, abordando, de preferência, a palestra proferida na Universidade de Basiléia sobre o Drama musical grego3 - e que, de algum modo, resume a polêmica reflexão nietzscheana sobre a origem da tragédia no gênio musical grego - e o que pensa Nietzsche a respeito de Wagner e sua obra de dramaturgo ditirâmbico na IV Intempestiva (Wagner em Bayreuth4). Esse tema pode dar margens a muitas dúvidas e controvérisas. Como é possível desenvolver um estudo sobre a noção de drama e de fidelidade num autor como Nietzsche? Pareceu-me, no entanto, importante desenvolver um tal estudo, sobretudo num Simpósio cujo tema central não é outro senão o da “fidelidade à terra”, tema que perpassa toda a saga do herói nietzscheano por exelência, Zaratustra. Logo no prólogo do seu livro, Nietzsche, na pele e na voz de Zaratustra, aconselha a todos que permaneçam fiéis à terra.

A ousadia a que me proponho aqui não é a de interpretar o tema nietzscheano da fidelidade à terra, mas o de construir uma reflexão que passo-a-passo nos permita relacionar o tema da fidelidade à noção de drama. A passagem que me levou a pensar numa tal relação surgiu da leitura da IV Intempestiva, onde Nietzsche se refere à fidelidade como uma condição inerente ao próprio Wagner. Trata-se do termo empregado por Nietzsche para se referir à relação entre as fases diversas da personalidade wagneriana e, também, da relação que sustenta os personagens deste compositor operístico que Nietzsche designa, como uma certa satisfação, de “dramaturgo ditirâmbico”. Mas o fato derradeiro é que a tradição nos acostumou a encontrar no termo

2 Tannhäuser, R. Wagner, 18??. 3 Conferência proferida na Universidade de Basiléia no dia 18 de janeiro de 1870. O texto

desta conferência e da seguinte, Sócrates e a tragédia, são precedidos do título: “Duas conferências públicas sobre a tragéfia grega”, por F. Nietzsche, Prof. ordianário de filologia clássica, Basiléia 1870. A versão manuscrita definitiva desta conferêndia encontra-se em [U, I 1, 2-57].

4 IV Consideração Inatual ou IV Consideração Intempestiva (Unzeitgemasse Betrachtungen), Wagner em Bayreuth, julho, 1876.

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“fidelidade” apenas uma noção metafísica, e mesmo transcendente, que caracteriza, sobretudo, a relação do homem com algo que lhe é superior, tal como um Deus. O termo nos conduz, quase diretamente, à noção de fé, fides para os latino e pistis para os gregos (tal termo nos teria surgido da noção de Credo, já utilizado nos idiomas indo-europeus). Pistis é uma das potências que, ao lado de dikê (justiça) e de peithó (persuasão), confere à palavra mágico-religiosa (ou à palavra mito-poética) o seu estatuto de palavra verdadeira (aléthes). A palavra do poeta é verdadeira desde que nela possamos encontrar uma articulação entre essas três potências. Assim, diké, pistis e peithó são termos que definem a potência que faz com que o velado (léthé) possa vir à luz, abrindo, para usar um termo de extração heideggeriana, uma clareira onde o que se desvela surge, bem diante dos nossos olhos, como o verdadeiro, ou seja, como o des-velado (alétheia). Esse tema foi trabalhado exaustivamente por M. Detienne num livro muito conhecido e que logrou de um certo prestígio nos cursos de história do pensamento antigo, a saber: Os mestres da verdade na Grécia arcaica (de 1967). Isso apenas para não citar, mais uma vez, o famoso § 44 de Ser e Tempo de M. Heidegger, onde a controvertida interpretação da verdade pré-platônica como a-létheia (desvelamento) foi apresentada. Como sabemos, para Heidegger, a verdade não será mais compreendida, após Platão, como o des-velamento e sim como a correção, a orthotes, que se elabora entre uma coisa e outra, entre uma ordem e outra como, por exemplo, entre a ordem dos discursos e a das próprias coisas 5. O fato é que, antes de Platão, a palavra poética não estava a serviço de uma relação entre ordens distintas, mas a serviço do próprio aparecer das coisas. Falar, poetizar, não é apenas a atividade por intermédio da qual adequamos uma ordem a outra, mas o ato mesmo de construir uma realidade em que a palavra empregada – descoberta - constitui a própria coisa que ela faz existir enquanto aparência, vislumbre, epifenômeno. É isso, justamente, o que se pode chamar de uma realidade poético-dramática, ou seja, uma realidade ou uma aparência que o drama trágico, enquanto palavra-poética, constitui. Ora, é bem possível que Nietzsche esteja nos remetendo a uma noção de palavra poética anterior às investidas socrático-platônicas. Nesse caso, atento a uma tradição poética pré-socrática, ele estaria, também, nos remetendo a uma noção de “fidelidade” que nada tem a ver com a noção que normalmente elaboramos do termo. O filósofo socrático-platônico é fiel à Idéia, ao eidos que paira como fundamento sobre a imagem (eidolon), essa mesma que nos constitui nesse mundo aparente de coisas-falantes. A fidelidade nietzscheana não é a do filósofo metafísico, não é a de uma dialética que nos depura das nossas falsas impressões e nos abre o acesso a um mundo de coisas em si, mas a que investe, justamente, na aparência, na imagem de superfície que se forma sobre um mundo que não planeja expandir-se para um extra-mundo de essências estáveis (bebaiotes tes ousias) mas que retorna regularmente, convulsivamente, dionisiacamente ou trágicamente, à terra. E a fidelidade à terra é também uma fidelidade ao drama, ou seja, à poesia, à palavra poética pré-socrática. A fidelidade nietzscheana é, portanto, uma noção ambígua: ela nos reconduz de volta à terra, mas nos torna também capazes de dramatizar, ou seja, de constituir uma poesia sem centro, sem narrador e que se forma, basicamente, da força expressiva do pathos, do sentimento que nos atinge e que nos norteia/desnorteia.

Por mais estranho que possa parecer a princípio, o fato é que o termo grego pistis não nos remete originariamente à fé, mas à confiança que se depositava no outro. Quando Sófocles escreve pístis échein tiní , ele está se referindo apenas ao ato de “ter confiança (échein pístis) em

5 Sobre essa questão, ver também Platons Lehre von der Wahrheit, estudo primeiramente apresentado em duas conferências públicas proferidas por Heidegger nos semestres de inverno de 1930-1931 e 1933-1934. Para um estudo mais detalhado vale a pena a leitura de O fim da filosofia e a tarefa do pensamento, M. Heidegger, trad. port. de Ernildo Stein, Os Pensadores, p.80. Ver também a tradução de J. Beaufret e F. Fédier, La fin de la philosophie et le tournant. Ed. franc., p.135 - Question IV: "On mentionne souvent et avec raison que, déjà chez Homère, le mot aléthesne se dit jamais que des verba dicendi, des paroles qui expriment une énonciation, et, dès lors, au sens de justesse de cette énonciation, de la confiance qu’on peut avoir en elle, mais nullement au sens du non-retrait de la chose."

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alguém (tini)”. Pístikos é um adjetivo que caracteriza aquele que é fiel, aquele que tem fé ou confiança em alguém. No Dicionário Etimológico da língua grega de Pierre Chantraine, podemos notar que os termos pístis e pistos participam do mesmo grupo que irá formar o verbo peíthomai. O aoristo de peíthomai é pithéstai e o adjetivo formado a partir do verbo, píthanos, qualifica apenas aquele que é persuasivo, que é capaz de persuadir e que assim chega a suscitar, no outro, a crença. Então, parece-nos evidente que a origem “baixa”, como quer Nietzsche, do termo “fidelidade” provém de uma profunda relação entre peithos e phitanós, ou seja, ter fé, pistis, tem o mesmo sentido de “ser persuasivo”. Pistis, antes de significar a relação de confiance e de fé que existe entre um homem e o seu deus, significou a relação de confiança que pode existir entre homens ou entre partes que se situam, por assim dizer, num mesmo plano de possibilidade. Confiar é antes de tudo persuadir, atuar, interagir. A fidelidade, pístei, é a potência que funda uma modalidade de relação entre os homens ou entre as partes de um todo que interage. Nela, as partes confiarão umas nas outras. E não se trata de uma confiança em que as partes são absolutamente estáveis, mas de um verdadeiro exercício de persuasão, quando uma só voz, um só ímpeto dionisíaco, uma só sonoridade, pode conduzir e influenciar muitos. O que interessa, no entanto, a Nietzsche, é observar que a fidelidade, essa influência entre as partes não dominadas mas passíveis de persuasão, pode conduzir ao drama. Foi o que aconteceu, em sua primeira avaliação ao menos, com Wagner. Para Nietzsche, o termo “fidelidade” está relacionado à drama. Poderíamos mesmo dizer que a fidelidade é, para o jovem Nietzsche, uma virtude relativa ao drama; mas também se trata de um verdadeiro pathos – o pathos da fidelidade ou pathos dramático, que parece emanar diretamente do drama e da situação dramática que caracteriza a própria existência do poeta dramático. Nietzsche, como já disse, descobre a fidelidade como o tema central que orienta a composição poética deste dramaturgo ditirâmbico que ele pensa encontrar na personalidade e nas personagens do próprio Wagner. Para Nietzsche Wagner passa a ter uma “existência dramática” no momento preciso em que se descortina a fidelidade existente entre as partes e as personagens da sua própria personalidade.

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Como sabemos, Nietzsche desenvolve uma hipótese, desde os seus primeiros escritos publicados, segundo a qual o drama trágico teria sua origem num certo pathos que encontraria a sua primeira forma de manifestação na música, ou melhor, no tipo de manifestação musical que acompanharia o culto ao deus dilacerado Dioniso. Tal expressão musical, se assim podemos dizer, não é, certamente, a música “ética” ou “convencional”, que já se praticava no território grego, mas uma música oriunda de uma insólita situação catártica, e mesmo caótica, que os gregos souberam transmutar em drama. A depuração catártica, depuração do medo e da compaixão, não seria, nessa nova versão nietzscheana, e contrariamente ao que pensava Aristóteles, o fim objetivado pela tragédia, mas o seu início, o seu ponto incial. Foi esse estado de catarse, tão comum aos metamorfoseados em sátiros e mênades que seguiam no séquito de Dioniso, que deu origem a uma modalidade de expressão musical que, mais tarde, seguindo um fluxo natural ou mesmo necessário, deu vez à dramaturgia trágica. Nietzsche quer, portanto, se referir à relação existente entre música e drama. Que modalidade de relação é esta? Como seria possível traçar o seu perfil genealógico? Como se vai da música ao drama? Música e drama se anunciam conjuntamente? Eis aí algumas questões que parecem interessar ao jovem Nietzsche, que, por sua vez, encontra bem a seu lado, no mestre e também amigo Wagner, a expressão atualizada do que até então só era possível encontrar entre os gregos. Wagner não é, para Nietzsche, um personagem de uma história que segue o seu rumo desde a mais tenra idade até o momento atual. A história seria, nesse caso, apenas a nuvem que torna turva a relação que Nietzsche pode perceber com extrema clareza: a relação entre Wagner e Ésquilo. Para Nietzsche a história se escreve num único capítulo que põe diretamente em contato Wagner e Ésquilo, o fundador do nova ópera dramática e o autor de uma dramaturgia em que o coro ainda ocupava o lugar central.

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A tragédia não se constitui, para Nietzsche, de uma seleção dos sentimentos mais ou menos adaptados a um determinado fim. O que os gregos consubstancializavam no culto a Dioniso era, primeiramente e antes de se constituir um sentimento ao qual corresponderia uma caracterização (ethos) bem definida, um pathos, um sofrimento, uma forte sensação que arrebatava a todos e que, segundo nos faz crer Nietzsche, era sentido de um modo inequívoco, ou seja, antes que a equivocidade pudesse se expressar por intermédio de uma linguagem. O sentimento que dá vez ao trágico é inequívoco. Os sentimentos são o que são. As palavras são instrumentos equívocos de uma estrutura conceitual muito posterior às manifestações sonoras e sensíveis. Isto porque as palavras tendem para o conceito; uma palavra já é a tentativa teórica de igualar o que é em si desigual. Com as palavras podemos nos referir a uma mesa, por exemplo, mas jamais a mesa na qual me sento e que, por ser exatamente a mesa na qual me sento, se diferencia de todas as demais mesas. As palavras generalizam, igualam o não igual. Algo absolutamente distinto acontece, segundo Nietzsche, com os sons. Se pudessemos estabelecer uma equação de igualdade no pensamento nietzscheano, esta se estabeleceria entre os sons e os sentimentos. É como se disséssemos que os sons são como os sentimentos. A experiência sonora é particular, é como um sentimento particular e incerto, difícil de se apreender e de se comunicar. Os gregos civilizados sentem, por exemplo, que o seu mundo está prestes a perder a sua consistência, que não há um termo metafísico para a consistência, que tudo se perde e se desintegra, que tudo retorna à terrra. Sentem que o som não quer se transformar em palavras e as palavras em conceitos. Os gregos, que puderam dar expressão ao sentimento trágico, sentem que o som constitui um simples devir singular, que não é permanente mas mutante e inconstante. Sentimento é aquilo que vivenciamos quando somos atingidos por algo. Não sentimos apenas o frio e o calor, o quente e o úmido; sentimos também o amor e a felicidade, a tristeza e o sofrimento. O sentimento é um pathos ao qual respondemos tomando parte no próprio pathos que, no entanto, desintegra a experiência individualizada da qual se desfrutava até então. O drama está profundamente ligado ao sentimento que o gerou. O jovem Nietzsche que profere a palestra sobre o drama musical grego na universidade de Basiléia está, sobretudo, interessado em revelar o projeto que liga a sensível sonoridade catártica do culto a Dioniso ao drama. Um tal drama não poderia ser senão trágico, ou seja, passível de um fim que não é o encontro derradeiro com uma permanência contemplativa, mas o simples reingresso numa condição primeira em que todo o processo, som-drama, reinicia de novo e assim continuamente.

Para Nietzsche, nós somos primeiro atingidos, sofremos primeiramente um pathos, e só então respondemos de um modo dramático. Uma arte dramática não é, então, um sistema de ação determinadas e com vistas a se alcançar um determinado fim. Ela é, antes de tudo, o resultado provisório de um pathos, que nos sobrevém da mobilidade frenética de todos os sentimentos e sensações que nos assolam, a princípio, simultaneamente. Não é preciso o drama para se chegar ao trágico. O trágico, ou o catártico, já se faz sentir muito antes do drama. É ele que funcionda como uma possibilidade de condição para o drama. E é ele, o pathos trágico, que retorna após a sua, por assim dizer, instância dramática. Diante do pathos trágico todos os homens reagem em uníssono. É dessa forma que a música ganha expressão entre os homens. A música é, então, para Nietzsche, o que reúne os homens (esses mesmos que seguem reunidos no comboio dionisíaco desde que ouvem as primeiras melodias entoada pelos aulios dos sátiros), identificados sob o efeito de um pathos, de um grande êxtase. Os homens produzem, se seguimos de perto as intuições nietzscheanas, um pathos sonoro quando deixam de entoar as canções éticas que lhes garantiam o princípio de individuação, ou seja, quando deixam de ser apolíneos. Não é fácil imaginar o que seria esta cena distante. Imaginemos um grupo de homens que reagem como animais selvagens, ou seja, que reagem como bestas ferozes. Eles não são homens individualizados. Eles sequer possuem um sistema de linguagem que lhes permitiria delimitar seus próprios corpos. Eles formam um grupo coeso embora em conflito. Atuam um sobre o outro, mas não advém disto que sejam indivíduos. Eles são apenas as partes mal delimitadas de um todo que se expande e que se contrai. Eles respiram, agem e interagem, sofrem e se regosijam. Formam um massa sonora de ações e reações. E como não há linguagem, não se confundem, não são de modo algum astuciosos. Não são ainda os homens que

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constumamos valorizar quando nos dedicamos à cultura épica, isto é, não constituem ainda o universo dos bravos heróis astuciosos que ganham forma e expressão na posia homérica, na grande epopéia. Podemos dizer que estamos apenas diante de forças que interagem entre si. Esse grupo coeso e sem linguagem que estamos tentando imaginar, se movimenta, a princípio, em todas as direções. Mas as suas partes não são indivisíveis. Elas, de fato, se misturam, se embaralham, se confundem, pois a subsitência do mesmo, a manutenção em um “em si” é frágil o suficiente para se transformar continuamente em um outro ou em uma outra coisa. E esse emaranhado de partes metamorfoseadas formam sons. São esses sons que reúnem os homens, os homens épicos e líricos constituídos pelas práticas poéticas vigentes, que passam, assim, a conduzir a cena trágica que está em vias de se contituir. A tragédia, como sabemos, constitui um episódio tardio na civilização grega.

Tudo nos leva a crer que é dessa forma que Dioniso pastoreia as suas feras. Ele seria, portanto, o som mais fortemente sentido. Qualquer força pode se fazer sentir de um modo mais forte, mais persuasivo (pistis, peithó). Nesse instante todas as demais forças, chocadas por um tal impacto, viriam ao seu encalço, reagindo, agindo. Todos esses sentimentos, todas essas afecções, são sonoros e, embora confusos e mal delineados a princípio, vão, com o tempo, criando relações entre si. Estamos, portanto, a um passo da formação de uma melodia. E o que é uma melodia senão o conjunto formado por diversos tons que agem e reagem uns com os outros. Essa estrutura melódica - como sabemos os modos gregos eram descendentes, ou seja, partem de um som mais forte e agudo para os mais grave e conciso - já constituem o primeiro esboço de uma estrutura dramática. Nela, os sentimentos se equacionam de um determinado modo. O drama sonoro já é o drama dos sentimentos e afecções. E isso constitue, para esses homens-feras que acabamos de imaginar, o momento de paz, de conciliação; o momento precioso - milagroso e misterioso - em que o combate contínuo ao qual estão fadados revela a sua outra face harmônica. Nesse caso, e é justamente isso o que nos interessa aqui, ou seja, na medida em que tentamos seguir as primeiras hipóteses desenvolvidas por Nietzsche, podemos supor a existência de uma profunda relação entre drama e música dionisíaca, e estou aqui me referindo à música dionisíaca como um conjunto disforme de sons singulares relacionados entre si. Múscia dionisíaca é a expressão que estou usando para me referir a um processo sensível e musical que ainda não cedeu lugar a nenhuma formação convencional. Caberia aqui ainda uma outra questão. Por que o drama e não uma outra forma qualquer de poesia? Por que não a epopéia ou a poesia lírica? A resposta a uma tal questão não é, decerto, fácil. Mas tudo nos leva a crer que a estrutura dramática, justamente por ser dialogal, por constituir um diálogo entre partes distintas que se prestam à harmonia, seria a que melhor se adequa ao que se passa no culto a Dioniso. Na poesia épica a figura externa do narrador se faz sempre necessária. A poesia épica é diegética. Ela inclui o narrador na estrutura do narrado. Platão, por exemplo, considerava essa poesia mais apropriada do que a dramática, justamente porque apresentava um narrador-sujeito exterior. Para Platão, esse “narrador” podia estar suficientemente distante da ação para que pudesse emitir, dela, um juízo de valor ou moral. Na poesia lírica era a própria situação do poeta que constituia a cena. O poeta lírico relata os seus próprios sentimentos, as suas próprias afecções, mas não chega, de fato, a dialogar com o outro. É na poesia dramática que essa relação entre partes distintas ocorre de um modo mais enfático. E é por isso mesmo que Nietzsche a privilegia, ao menos nesse primeiro momento de sua reflexão. Na república que Nietzsche certamente gostaria de reinventar, a poesia dramática - essa que não é nem a que se condiciona à figura do narrador nem a que se refere aos próprios sentimentos - será, justamente, a mais requisitada, ou seja, justamente a que produz as maiores comoções, a que nos deixa sem a figura pausada de um agente externo e mediador, a que mais se presta à imitação, a que mais emprega gestos, dansas e músicas, a mais perigosa sobre o ponto de vista do controle, mas também, sem dúvida, a mais catártica, a que mais confunde a vida com a própria ação executada em cena, a que mais diliu os limites, aquela na qual os homens sofrem juntos, a que cultuou para si um tipo de palco e um lugar para o espectador-agente. A república nietzscheana será, portanto, a mais dramática: “Nós outros que não vivemos de modo algum nesta República platônica, mas em um outro Estado, nós desejamos, nós requisitamos mesmo a vinda dos

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mágicos (criadores de imagens), ainda que seja para deles suspeitarmos - para que, justamente, nossa República atual, e a má razão, a má potência da qual ela é a incarnação, seja abertamente negada6.”

A origem do drama é, justamente, o tema que Nietzsche tenta desenvolver em seus primeiros escritos e palestras. E ele não pode prodeceder, senão revelando o quanto estamos distantes do que se passou, uma vez, entre os antigos gregos. E é bom lembrar que Nietzsche considera Wagner, nesse momento de sua vida, como um artista, um dramaturgo ditirâmbico, que retoma o projeto esquiliano. Wagner é um seguidor de Ésquilos e Ésquilo é, sem dúvida, para Nietzsche, o poeta dramático mais próximo da condição primeira que gerou o drama. Mas não é fácil abordar este tema a partir dos dias atuais. Nietzsche deve antes considerar a distância que existe entre os seus contemporâneos e o estado de êxtase dionisíaco que tornou necessário o drama. E para se dimensionar essa enorme distância basta pensar nas pálidas esculturas que nos chegaram dos gregos. Elas são pálidas, brancas e sem cor tal como a pedra de mármore na qual foram construídas. Mas há indícios, como nos revela Nietzsche, de que sobre elas tenham sido depositadas camadas de finas cores. Então, as estátuas gregas eram coloridas e apenas a passagem dos anos e, no caso, dos séculos e milênios, pôde nos legar a idéia tão fortemente arraigada de que os gregos não coloriam as suas estátuas (agalmata), e que, portanto, os seus ídolos e as suas imagens eram desprovidos de cor. Os gregos acreditavam nas suas imagens, na realidade de suas figuras. Melhor ainda, eles tinham que acreditar em suas imagens (eidola). Isso era visto como uma condição de possibilidade para se poder vivenciar o trágico: acreditar nas imagens e na relação dramática que elas compõem entre si. De fato, para Nietzsche, o termo drama não qualifica a única e exclusiva atividade do poeta dramático, ou seja, a composição do texto ou do poema, mas uma atividade plástica envolvendo todas as artes das quais podiam se servir (o recitativo épico, o canto, a música instrumental, o passo ritmado, a dança etc.). O culto a Dioniso era em si dramático, conflituoso, e a tragédia uma forma de expressão dramática que os gregos cunharam uma vez envolvidos com o esturpor causado por essa incarnação divina da primavera que o próprio Dioniso incorporava.

Como sabemos, o culto a Dioniso acompanha a chegada da primavera, ou seja, vem junto e é, portanto, uma espécie de extensão desse período de grande fertilidade. Como nos revela o próprio Nietzsche, o todo poderoso efeito da chegada da primavera se manifestava bruscamente, exaltando as forças vitais a um tal ponto que era possível se chegar ao estado de êxtase, a visões, à crença no encantamento. Nessas condições, os homens seguiam em uníssono, em tropas, pelo campo. E é assim que se encontravam como que no berço do drama. Não porque se disfarçavam e tentavam iludir um ao outro, mas porque saiam de si mesmos e se acreditavam transformados e enfeitiçados, e assim, nessas condições, se predispunham ao drama. Como afirma Nietzsche em sua palestra na Universidade da Basiléia: “Nesse estado em que se está “fora de si”, neste estado de êxtase, um passo é o bastante: não penetramos em nós mesmos, mas sim em um outro ser, de tal modo que nos comportamos como se estivéssemos enfeitiçados. É disto que nos surge, em última análise, o profundo assombro diante do espetáculo do drama: vemos tremer o solo, a crença na indissolubilidade e na fixidez do indivíduo. E como o inspirado por Dioniso acredita em sua metamorfose, contrariamente ao Bottom do Sonho de uma noite de verão, o poeta dramático crê na realidade des suas figuras. Aquele que não possui esta crença pode pertencer aos portadores do tirso, aos diletantes, mas não aos verdadeiros servidores de Dioniso, aos bacantes7.”

Os verdadeiros seguidores de Dioniso não são como os portadores do tirso, não estão ali meramente desempenhando uma função, não estão representando, mas vivendo, em carne e osso, a dissolução trazida pelo culto a Dioniso, que se experimenta, outrossim, na medida em que não somos mais nós mesmos, mas outros (esses outros que acreditam em suas figuras). Não se trata mais de estáveis indivíduos remetidos a uma imagem que poderia, por assim dizer,

6 F. Nietzsche, IV Consideração intempestiva, Wagner em Bayreuth (1876), seção 7 (p.132).7 F. Nietzsche, O drama musical grego, trad. francesa de Jean-Loius Backès, Paris,

Gallimard (Folio-Essais, nº 32), 1977, p.266.

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estabilizar a mutante volubilidade da vida, mas a constatação precária, e na própria carne, de uma exuberância que insiste em nos apresentar a outra face, o seu outro lado que acaba de sugir, quiçá pela primeira vez. Não se trata mais de homens cindidos, de partes bem definidas, mas de uma multidão indistinta. Como no mito de Hades, não são homens mas psichai, almas, que não se diferenciam uma da outra. Quando Ulisses vai ter com os mortos8, ele deve fazer uma oferenda de sangue. O sangue é aqui a parte mínima de corpo que é preciso sustentar diante dos mortos para que eles possam se individualizar. Mas o culto a Dioniso não é, certamente, um culto aos mortos. Se podemos falar das almas é apenas na medida em que procuramos uma imagem que nos permita falar de elementos, sementes, que estão a um passo de vir à luz do dia. A primavera é o momento priviligiado para o culto a Dioniso. É na primavera que as formas ressurgem, que toda a mistura oculta na terra fértil se apresenta num novo turbilhão de vida. O culto a Dioniso fala de uma dissolução, mas também nos remete a esse estágio fecundo em que o dissolvido retorna à vida e o que estava sob a terra retorna à superfície ou à terra, onde surgem as imagens, as aparências e as aparições. Por isso é tão dificil representar o culto a Dioniso. Em tal “culto” estamos falando tanto de dissolução quanto de renascimento. E não se trata mais de homens individualizados, mas de algo que antecede o indivíduo, de algo que se presta ao drama que não é mais o drama dos indivíduos - dos seus hábitos e costumes mais ou menos aceitos e, sobretudo, dos seus conflitos mundanos -, mas o drama que retorna à sua condição primeira, que retorna ao seio da terra onde tudo, de novo, se confunde e se dispersa antes mesmo de o drama poder gerar os seus indivíduos, as suas estátuas, as suas imagens permanentes e “sem cor”. São muitos os portadores do tirso, mas onde estão os verdadeiros seguidores de Dioniso. Eis uma questão que, decerto, interessa a Nietzsche.

A tese nietzscheana, no entanto, não é fácil de se demonstrar, nem muito menos de se provar. Nietzsche leva em conta todo um longo processo de erros e desvio que nos tornou incapazes de descrever esse longo processo que leva ao nascimento da dramaticidade trágica. Mas, de um modo geral, a sua tese pode ser resumida numa única frase que atrevo-me aqui a repetir: “O que chamamos hoje de ópera, caricatura do drama musical antigo, surgiu como plágio direto da antigüidade.” Essa frase tão simples, de entendimento tão fácil, não é, de fato, simples, nem de entendimento tão fácil. Sua compreensão é lenta e é o próprio Nietzsche que se encarregará de exclarecer o seu sentido ao longo da palestra proferida na Basiléia. Trata-se, com efeito, de um “plágio direto” e não de um paulatino desenvolvimento histórico. Sabemos que na II Intempestiva (Sobre a utilidade e inutilidade da história para a vida) Nietzche já havia se debruçado longamente sobre a concepção que normalmente se tem da história. A noção de história que Nietzsche apregoa não se atém unicamente ao movimento metódico da memória, que avançaria naturalmente seguindo uma linha de tempo capaz de acompanhar, na medida do possível, todos os acontecimentos de relevância. De fato, Nietzsche não se oporá a essa visão monumental e tradicional da história, mas estará sensivelmente atento aos danos que porventura possa causar aos homens, em um palavra: ele estará atento à utilidade ou à inutilidade dos estudos históricos para a vida. A história deve incluir essa questão capital, ou seja, a perspectiva de um tal saber-discurso no que diz respeito à vida e, também, se preocupar com esses longos lapsos, saltos de um tempo histórico a outro que, de um modo geral, mesmo o historiador mais atento, está acostumado a executar. Para Nietzsche, a história deve poder se referir ao seu ponto inicial, ao momento de onde parte. Isso implica numa concepção de história que pode nos levar, de um só salto, no que tange, por exemplo, à história do poema dramático musical, das tragédias esquilianas à ópera wagneriana. O que Nietzsche nos diz na palestra de 1870 (O drama musical grego) é que a ópera atual nos surge como um plágio direto do drama musical antigo. Trata-se, portanto, de um movimento que vai, diretamente e “voluntariamante”, do drama musical antigo à ópera wagneriana. Um grego, aliás, segundo nos faz crer Nietzsche, não seria capaz de notar qualquer relação entre o drama shakespeareano e o drama musical antigo. A tese “histórica” - e para constituí-la precisaríamos estar, tal como Nietzsche, atentos as diversas variações e estilos em arte - deveria partir da nova comédia ática ao drama shakespeareano, passando pelo drama

8 Homero, Odisséia, Canto ??,

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romano, os mistérios e as moralidades germânicas da época romana9. Tudo indica, portanto, que a relação entre drama moderno e drama musical antigo se perdeu ao longo dos anos. Nosso “monumental” esforço “histórico” nos levaria, unicamente, até a nova comédia ática, comédia de costumes, provavelmente. Mas a genealogia histórica que Nietzsche está começando a desenvolver deve ser capaz de nos remeter ao que houve, ao que aconteceu, para que o laço que une o drama antigo à ópera tivesse que se dar a partir de um ligação imediata, ligação que não poderia ser percebida se levássemos em conta unicamente o quadro de estilos que nos foi legado ao longo dos anos. Algo se rompeu, tornou-se invisível, e esse algo, não obstante, não impede a Nietzsche, e talvez aos verdadeiros discípulos de Dioniso, de se referir à origem do drama musical grego.

De fato, o drama musical é o resultado de uma reunificação das artes, que constituia o objeto de fruição artística de um “homem completo”. Mas, segundo Nietzsche, a sociedade atual (e ele está se referindo aos seus contemporâneos) atrelou-se ao princípio estético segundo o qual a reunião de duas ou mais artes não diz respeito a um autêntico prazer estético, mas, ao contrário, representa uma confusão bárbara do gosto. Para Nietzsche, esse princípio apenas prova o triste hábito de uma época na qual os homens são incapazes de desfrutar da arte enquanto “homens completos”: “as artes isoladas nos despedaçam e nós só as desfrutamos em partes, ou como homens da escuta ou como homens do ver (...)10.” No que tange à poesia, o que temos é a reunificação da poesia épica com a poesia lírica que, de algum modo, já se expressava através das práticas ditirâmbicas. A poesia épica da vez ao recitativo e a poesia lírica pode ser encontrada, no drama musical trágico, na expressão do coro e das cenas de paixão. Estas, por sua vez, são o resultado direto da explosão imediata dos sentimentos que, se seguimos as intuições nietzscheana, são musicais e dramáticos. O drama musical é uma expressão imediata dos sentimentos provenientes dessa grande paixão (pathos) que os homens sentem na medida em que se deixam levar pelo frescor que acompanha a chegada da primavera. Como vimos anteriormente, Dioniso é o deus anunciador da primavera, isto é, o deus estrangeiro cujas ações constituem o tema principal tratado por esta encenação poético-musical que a primavera evocava. Tal arte, repito, seria para Nietzsche o objeto de fruição de um “homem completo”, um tipo de homem que não se encontra mais, ao menos com facilidade, em seus dias e que é incapaz, por isso mesmo, ou seja, por não ser mais um “homem completo”, de compreender à necessidade do drama musical antigo. Esse homem completo teria morrido com o desaparecimento da arte trágica; e o homem cindido, esse mesmo que não considera com bons olhos a unificação de duas ou mais artes, seria, portanto, incapaz de compreender o projeto genealógico que vai do drama musical à ópera moderna. Seu erro capital seria, justamente, o de não ter partido da unificação dionisíaca, ou seja, de uma instância não individualizada da experiência e sim das eruditas divisões entre as artes, divisões que, inclusive, diferenciam de um modo muito acentuado o espectador, do ator e do poeta. No drama musical o ator é como uma expressão figurada e exagerada de caracteres profundamente conhecidos pelo espectador e a poesia o efeito produzido por um poeta que é igualmente músico. O homem completo constitui aqui uma referência tanto ao espectador quanto ao ator e ao poeta. Enfim, o erro cometido consiste em se ter tomado o drama não a partir do pathos dionisíaco, relativo à reunificação e à não cisão do homem - e da alegria que acompanha esse despojar-se de si mesmo e tornar-se outro11 e em se ter tomado o drama musical como uma expressão de um ethos específico, composto por partes bem definidas cuja a mais importante seria a composição do drama, ou, como nos diz Aristóteles, a systasis tôn pragmatôn, o agenciamento dos fatos, a reunião dos acontecimento; numa palavra: a composição da história. Mas, como nos revela Nietzsche, no

9 F. Nietzsche, O drama musical grego, trad. francesa de Jean-Loius Backès, Paris, Gallimard (Folio-Essais, nº 32), 1977, p.261.

10 Ibid, p. 263.11 Nesse caso o outro é tudo aquilo que nos tornamos quando não somos mais o individuo

cindido do resto que éramos até então, pois não existe um outro no qual nos tornamos mas tão-só uma profusão de outros que se insinuam em nós mesmos.

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drama grego o acento repousa no sofrimento e não na ação: “podemos mesmo dizer que, em seus graus anteriores de evolução, a antiga tragédia não visava a ação, o drama (dra=ma), mas o sofrimento, o pathos (pa/qoj).” (p.270) A antiga tragédia era pobre em ação e em tensão. Ela era tudo, menos semelhante à nova comédia de costumes que se desenvolveu ainda em solo grego - e que nos levaria até o drama shakespeareano.

Mas se nos tornamos incapazes de notar os temas que estavam em questão no nascimento do drama trágico, temos, a nosso favor, o fato de podermos observar cada um dos detalhes que orientaram a formação de Wagner. Nietzsche se dedica a Wagner como quem se dedica à poesia que uma vez existiu em nosso mundo e que retorna, por plágio direto, na obra de Wagner. Não vou, portanto, discutir aqui todos os temas relativos ao declínio do homem trágico ou completo - o que, para ficarmos apenas atentos ao território grego, nos remeteria, decerto, ao empobrecimento da função do coro em Eurípides, à dialética socrática, ao sistema de valor desenvolvido por Platão e às divisões valorativas propostas por Aristóteles em sua Poética - mas vou, tal como Nietzsche, dar um salto direto para a análise do poeta ditirâmbico que Nietzsche encontra bem a sua frente. Passemos, então a segunda parte deste estudo, ou seja, a uma breve análise do tema da fidelidade desenvolvido por Nietzsche na sua IV Consideração Intempestiva (Wagner em Bayreuth).

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Como sabemos, não são poucos os pontos de contato que Nietzsche irá encontrar, ao longo de sua IV Intempestiva, entre Wagner e o mundo grego. A noção de história que Nietzsche já havia se encarregado de criticar na II Intempestiva, no caso de Wagner estaria apenas prejudicando a observação desses pontos de contato que ele consegue perceber com tanta argúcia. Nietzsche compara Wagner a Ésquilo, a Heráclito e a Demóstenes, ou seja, ao representante mór, ao lado de Sofocles, do teatro trágico, ao filósofo obscuro da natureza (physis) e ao homem político por exelência, respectivamente. A obra de Wagner responde diretamente a estes três grandes homens sem, no entanto, deixar de responder a uma necessidade do seu próprio tempo: a Schopenhauer, no que diz respeito à filosofia; e a Beethoven, no que tange a uma modalidade de música que não segue mais o velho estilo eloqüente e retórico que se atinha aos aspectos duráveis do homem - ao ethos. É com Beethoven que a língua do pathos, da vontade, da paixão e dos dramas que se desenvolve no interior do homem, ganha expressão na cultura ocidental. E Wagner reconhece o grande tributo que ele tem a pagar a Beethoven, esse que, primeiramente, fez a música falar um idioma novo: a língua até então proibida da paixão, do pathos, do sofrimento e da alegria reunidos12. O que, obviamente, não diminui em nada a herança grega que Nietzsche encontra, a cada instante de sua análise, em Wagner: é a tragédia e o espírito trágico que se renovam e reganham força na obra de Wagner. Mas o fato de descobrir esse laço, espécie de fio condutor histórico, que une Wagner a Ésquilo, Heráclito e Demóstenes, pode muito bem nos sugerir que Nietzsche estava querendo, antes de tudo, se referir não apenas à obra de Wagner, mas também ao próprio homem Wagner: a obra de Wagner traduz o que se passa com o próprio Wagner. A IV Intempestiva chega a se confundir com um trabalho de cunho biográfico. Quem era Wagner? Como Wagner se transformou em um “dramaturgo ditirâmbico”? Essa resposta não é fácil de se obter. Tudo nos leva a crer que são muitos os fatores que devem entrar em confluência. Uma coisa, no entanto, parece certa aos olhos de Nietzsche: Wagner, tal como um herói trágico antigo, conseguiu conciliar aspectos dificilmente conciliáveis de sua própria condição. Conciliar não significa, obviamente, a eliminação de uma possibilidade em função de uma outra. A conquista de Wagner não se traduz na eliminação de uma parte para que a outra possa, então, projetar-se; para que o lado luminoso, por exemplo, possa se expressar em detrimento da sua personalidade injusta e irritadiça.

12 F. Nietzsche, IV Consideração intempestiva, Wagner em Bayreuth (1876), seção ?? (p.152).

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A amplitude de uma obra se deve a esta capacidade de não excluir qualquer parte ou possibilidade. A presentificação de uma luta de aspectos não conciliáveis parece gerar no homem Wagner a sua condição virtuosa. A virtude, ao menos quando podemos nomeá-la, consiste na vitória momentânea sobre paixões diversas, díspares e mesmo antagônicas. A virtude é algo gerado a aprtir do conflito das paixões. Uma parte de Wagner permanece fiel a uma vontade impetuosa, uma força pura e livre, segundo nos relata Nietzsche, um direcionamento da vontade para o bem e para a generosidade. Uma outra parte estava fadada a sofrer de um excesso interior que o deixava irritadiço e voltado para a injustiça. Uma esfera da sua condição era, portanto, criativa, inocente e luminosa; enquanto uma outra esfera era sombria, indomável e tirânica. E Nietzsche nos revela, já nas primeiras páginas da sua IV Intempestiva, que uma esfera do ser de Wagner permaneceu fiel a outra: “em função de um amor livre e sem qualquer egoísmo, a esfera criativa, inocente e luminosa permaneceu fiel à esfera sombria, indomável e tirânica”13. Esse amor livre e sem qualquer egoismo é o que, a princípio, permite a Nietzsche se referir à “fidelidade desinteressada”, ou seja, a essa virtude ou a esse traço de caráter que condiciona não só a vida de Wagner, mas também a relação que une as personagens que, mais tarde, ele irá desenvolver em suas óperas. Enfim, a “fidelidade desinteressada” é o que permite a Wagner, segundo a análise nietzscheana, passar da vida meramente casual, a esse modo de ser “necessário” que caracteriza a “existência dramática” de Wagner. Nem sempre Wagner existiu dramaticamente. Apenas a partir de um momento preciso, Wagner pôde lançar mão do drama como a forma poética capaz de dar expressão a este conflito inicial gerado pela própria fidelidade. Wagner parece servir, simultaneamente, a pelo menos dois senhores. A fidelidade é o que Nietzsche encontra como sendo a expressão propriamente wagneriana, a que constitui tanto Wagner quanto os seus personagens dramáticos. A fidelidade foi uma opção do homem Wagner, dilacerado entre opções opostas e rivais, que optou, justamente, pela manutenção do conflito, pela sustentação das partes antinômicas. Tais partes, tais paixões antagônicas deram voz à fidelidade, que passou a ser o traço comum entre essas diversas partes que Nietzsche encontra no trabalho de Wagner. Essas partes dialogam e dramatatizam sobre esse fundo de rivalidade trágica, dilacerante, que pode também ser vista como harmônica e alegre; é a fidelidade desinteressada entre as partes que nos permite notar o ciclo harmônico entre as partes antagônicas, entre o que, a cada instante, rivaliza e dilacera. Eis então no que consiste, para Nietzsche, a fidelidade dramática que Wagner soube, até certo ponto, sustentar.

É como se disséssemos que a fidelidade se extrai da própria condição primeira de Wagner. O que temos, a princípio, é a presença de um Wagner que é apenas um homem como todos os homens, ou seja, fadado a viver nessa malha comum de acasos e acontecimentos contingentes sobre os quais uma lei do verossímel e do provável tenta delinear os limites. Wagner, como sabemos, nasceu numa família de atores. Desde criança ele frequentou o palco. Desde a mais tenra idade, ele esteve sempre voltado para esse mundo de “artistas”, sem, no entanto, despontar para a condição que, de fato, o constitui como o Wagner que todos irão um dia conhecer. A nossa questão aqui consiste em saber como a fidelidade pode ser encontrada nesse caos, nessa série de acontecimentos contigentes que, até então, regiam a existência de Wagner. Como a fidelidade, que une e põe em relação os seus personagens, pode estar incluída nessa fidelidade maior que une sem excluir qualquer das partes. A princípio, a fidelidade a todas as partes deve conduzir Wagner a uma certa equipolência entre todas as possibilidades. Wagner vive de todas as possibilidades. Ele é, por assim dizer, um homem dionisíaco, completo. Ele se estende em todas as direções. Mas, num determinado momento de sua existência, momento que coincide com o seu próprio processo de composição - com a sua poiêsis -, a fidelidade começa a se fazer notar como o laço que coloca em relação as suas diversas partes. A partir desse momento, a vida de Wagner, não é mais casual, não se dá mais apenas em função do acaso que conduz sucessivamente a outros acasos e assim por diante. Desse momento em diante, Wagner passa a existir dramaticamente, ou seja, a partir desse momento ele se expressa de um modo dramático:

13 Ibid, p. 106.

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Wagner passa a ser um homem cujos personagens se relacionam e que se influenciam sempre regidos pela “fidelidade desinteressada”. (Elizabeth é fiel a Tannhäuser, Senta ao Holandês, Elsa a Lohengrin, Isolda a Tristão etc).

Mas a fidelidade é como uma faca de dois gumes. Ela pode conduzir Wagner à sua condição, por assim dizer, dramática, essa que emana de uma situação sem dúvida alguma trágica. Mas pode conduzir, também, a algo bem mais imóvel, a algo, portanto, bem mais estável do que uma constituição dramática. A fidelidade pode se tornar uma idéia, pode se tornar uma virtude cristã e metafísica; pode se tornar um princípio a ser conquistado em si mesmo e, portanto, desligado, desde então, da sua constituição dramática. Nós não erraríamos se disséssemos que, para Nietzsche, a fidelidade é uma característica imanente ao drama trágico, que nada tem a ver com o drama da nova comédia ática de costumes que nos levaria até o drama shakeespeariano. Nem todo drama é trágico. Mas o drama que se constitui a partir da fidelidade desisteressada entre as partes é, necessariamente, trágico, pois reconduz ao combate e a harmonia possível que subjaz no seio do próprio combate. Essa harmonia, no caso Wagner, recebe o nome de fidelidade. E ela que conduz o combate não apenas à destruição pura e simples mas a esse estado de caoticidade que dá origem e conduz a própria situação dramática. E o que interessa a Nietzsche em Wagner é, justamente, a fidelidade que, amante de todas as partes, pode dar ensejo ao drama e à expressão poética musical wagneriana.

Fidelidade é, no entanto, para nós, um termo geral que designa uma virtude mais ou menos aceita sem muita contestação. Para Nietzsche, por sua vez, a fidelidade é apenas uma palavra já gasta pelo seus anos de uso e se prestando mal a qualificação de uma virtude que parece pertencer apenas a Wagner. Nietzsche não está procurando a fidelidade como idéia geral e estável que se expressaria por intermédio da obra de Wagner, mas a fidelidade que se constitui em função da propria experiência dramática de Wagner, ou seja, Nietzsche está a procura dessa fidelidade particular a Wagner. Ele bem que poderia utilizar um outro termo, mas por que o faria se o termo fidelidade se adequa tão bem ao seu propósito? Cito aqui apenas um exemplo intempestivo que vem, no entanto, a calhar: quando Daphnis e Cloé, os protagonistas da história (ekiphrasis) narrada por Longus no séc. II d.C, se interessam um pelo outro, eles não sabem designar com palavras o que sentem. Eles não sabem que existe um termo que se adequa perfeitamente ao que sentem um pelo outro: eles estão apaixonados. O amor é a palavra que poderia muito bem expressar o que sentem, mas eles não conhecem a palavra. Com o passar dos dias e das noites, com o suor e o frenesi provocados pela paixão que nutrem um pelo outro, eles reconhecerão na palavra amor o termo para designar o que sentem. Dafnis e Cloé conhecem o amor antes de saberem como o nomear. A palavra é aqui uma busca singular. Pouco importa se já foi ou não usado por outros, quer se trate de um povo, de uma cultura ou de uma civilização. A palavra é, para eles, a designação do que sentem um pelo outro e não um termo que corresponde a um significado preciso ou mesmo exato. A palavra que designa o que eles sentem se constitui de um sentido, de uma entonação, totalmente próprio, e isso apesar de se servirem de uma palavra já exisatente na língua em que se expressavam. Fidelidade é, nesse momento, uma expressão singular. O termo está longe de ser tomado como um conceito. A fidelidade só pode ser compreendida se levamos em conta o que se passa com o próprio Wagner e, sobretudo, o que se passa com os seus personagens.

É dessa mesma forma que devemos pensar na fidelidade que Nietzsche descobre em Wagner. Trata-se de uma virtude particular, singularizante, cujo sentido se extrai da própria vida e obra de Wagner. A princípio, portanto, fidelidade é o que existe entre as partes do “sujeito” Wagner. Depois, é o que orienta a ação dos seus personagens e, finalmente, é aquilo que servirá ao projeto transcendente de Wagner, à sua decadência, por assim dizer. Mas antes de a fidelidade se tornar um “conceito”, uma palavra que corresponde a um significado preciso, ela deverá ser pensada como uma espécie de expressão imanente da tragicidade que caracteriza a condição primeira de Wagner - que é uma condição primeira que, aliás, pertence a todos os homens, embora a maior parte a desconheça. A fidelidade é imanente à condição wagneriana. É como se pudéssemos dizer que o pathos wagneriano, na medida em que se expressa dramaticamente, constitui essa virtude comum entre as partes diversas, que é a fidelidade. Como

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é possível que a fidelidade, essa paixão entre as partes, possa singularizar a própria experiência pessoal e artística de Wagner? Em outros termos, como é possível que toda a experiência em Wagner se reúna constituindo um único pathos, um único “sofrimento-júbilo” que pode ser, a posteriori, designado como “fidelidade desinteressada” entre as partes. A fidelidade seria, nesse caso, o traço singularizante e, não obstante, conflituoso, que, no caso de Wagner, nos permite observar a relação de imanência que existe entre o pathos e a sua resolução dramática momentânea, ou seja, o que nos permite ir do pathos ao drama e, vice-versa, do drama ao pathos. A fidelidade é uma virtude de relação, de relação entre as partes. A fidelidade pode ocorrer desde que antes existam as partes que a sustenta, ou seja, sem que uma parte elimine a outra. Os personagens de Wagner são fiéis entre si, fiíes e, não obstante, decadentes; pois, com o passar dos anos, Nietzsche perceberá que os personagens de Wagner são fiéis a uma modalidade de transcendência, à redencão, a uma solução definitiva para todo os seus males. Ora, não se pode mais falar, nesse caso, em fidelidade, mas, pelo contrário, em algo bastante distinto da fidelidade, pois que o que está em questão é, antes de tudo, uma “negação” do que estava implícito na própria idéia primeira que permitiu a Nietzsche se referir à fidelidade wagneriana. Nietzsche enganou-se a respeito de Wagner, o que, de fato, não invalida em nada a sua reflexão sobre a fidelidade. Para Nietzsche, a fidelidade é uma virtude da relação entre partes. Trata-se, provavelmente, da mais trágica das virtudes, a que, de certo modo, deu nascimento à filosofia, ao grupo dos fiéis amigos que desde os primórdios do pensamento filosófico, se reuniam, justamente, para divergirem entre si. Mas Nietzsche parece estar bem atento quanto ao fato de que a diversidade só pode ser afirmada por um curto intervalo. A diversidade não pode ser afirmada como um todo. Afirmar a diversidade é negar a sua própria natureza, pois não há identidade na diversidade. O diverso é o que se altera a todo instante, é o que difere de si a cada instante. A diversidade só pode ser experimentada enquanto um pathos, um grande sofrimento/júbilo. E a diversidade só pode se manter enquanto houver fidelidade entre as partes. Então, ela é a virtude, por excelência, capaz de sutentar a tensão trágica, tensão que constitui o drama das partes que não se anulam entre si, mas que, não obstante, se relacionam e criam dramas (dramatizam). O drama não é jamais, para Nietzsche, um sistema em que uma parte anula a outra. O drama é antes uma condição que emana da afirmação sofrida e jubilosa de todas as partes, por isso mesmo é que o drama é trágico. A ação dramática não exclui o jogo catastrófico das paixões adversas. Existe, no entanto, uma articulação entre as partes e Nietzsche nos dá fortes indícios de que, no caso de Wagner, o canto soberano entre as partes é o canto da fidelidade, canto da terra, sem dúvida alguma, canto imanente e sem qualquer trancendência que os “verdadeiros” bacantes sabem fazer soar em uníssono. A fidelidade é a virtude que sustenta a tensão entre as partes. Se a fidelidade se transforam em “virtude” decadente, então, ela não será mais a virtude que sustenta a tensão, mas justamente a não-virtude que resolve a tensão, a infidelidade que dissolve a relação entre as partes. A tensão e a harmonia entre as partes, se dissolvem com o projeto transcendente da redenção. Eis contra o que Wagner não foi capaz de lutar. Mas a princípio Wagner foi, para Nietzsche, um artista no qual a fidelidade consistia, de fato, na afirmação da tensão entre as partes.

É preciso tomar a fidelidade como algo que de algum modo se objetivou. A fidelidade foi construída por uma série de forças e vontades, a princípio, apenas fadadas ao conflito mútuo, desintegrante e dilacerador. Mas logo a fidelidade tornou-se uma espécie de linha mestra que se extrai do próprio modo de ser das diversas forças que antagonizam e lutam entre si. A fidelidade tornou-se a linha mestra que orienta a relação, sonora e dramática, entre os personagens que Wagner deverá criar ao longo de sua obra. Ela é também, no entanto, o fruto da ação dos personagens, que agem de um modo fiel. Se Elizabeth ama Tannhäuser, a fidelidade a esse amor se fará sentir em todos os instantes, até mesmo a morte de Elizabeth ocorre em nome de Tannhäuser. Sob esse tênue fio da fidelidade todos os personagens tentam se equilibrar. A princípio, são meros impulsos que reagem em conjunto, ou em uníssono, a um fluxo objetivo de vida. Essas forças em ação são como pretensões mal fundadas, tentativas, sempre legítimas, de se pertencer a esse fluxo maior da fidelidade que os atrai. A atração entre as partes que não se excluem é o tema central abordado por Nietzsche quando tenta desvelar o processo de

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construção do drama wagneriano. Trata-se de uma das primeiras descobertas de Nietzsche a respeito de Wagner. A fidelidade é contruída a partir da ação dos próprios personagens e, no entanto, ela corresponde a esse fluxo maior de vida, de virtuosidade, de compromisso entre as partes. Mas a fidelidade também exclui. Afinal, como é possível que os persongens não rompam em algum momento a cadeia da fidelidade? A fidelidade mantém as partes unidas, em relação. Como é possível que esta mesma virtude queira, num momento, tudo separar? Num momento, a virtude é a lei maior que orienta a relação entre partes adversas embora não-excludentes. Num outro momento, a fidelidade separa e age tal como o filho pródigo dionisíaco que parte. Num momento ele quer manter tudo unido, tanto o impluso destrutivo que quer dispor todo o processo a um outro fim, quanto o impulso a preservar, a perserverar, a ser justo e compassivo. Sustentar a fidelidade desinteressada entre as partes implica em manter unido sensações antagônicas, ou seja, algo que a um só tempo abraça, reunindo; e dilacera, separando. A fidelidade é a principio um paradoxo, algo que deveríamos apenas sentir, e sentir musicalmente. É só com o passar do tempo, e com os incríveis processos que levam a decadência do homem ocidental, que a fidelidade, como aliás qualquer outra virtude, pôde estabelecer-se como um paradigma a ser seguido, um conceito de conduta, que doravante apontará para a resolução definitiva do fiel conflito das relações. Mas nesse momento a fidelidade não será mais a virtude de relação entre as partes, mas o princípio de uma transcendência que se dá na direção de um Deus que paira acima de qualquer relação extrínsica entre partes. Nesse momento, a fidelidade não será mais tomada como a virtude trágica e imanente. Será então a vez de uma fidelidade transcendente que nada mais tem a ver com a antiga noção de fidelidade que Nietzsche começou a desenvolver logo nas primeiras páginas de sua IV Intempestiva. Doravante, não se tratará mais de uma virtude da relação, mas da exclusão em nome de uma pacificação definitiva que parece excluída da própria noção de fidelidade – já que ela punha em relação aspectos discordante e antagônicos, no caso de Wagenr a justiça e a injustiça. A fidelidade será comprendida como o laço último de união e respeito a um deus transcendente que redime o homem do conflito trágico que a própria fidelidade, em sua antiga acepção, fazia questão de acentuar. Se queremos de fato o que tem Nietzche a dizer em sua primeira avaliação de Wagner, precisamos tomar a fidelidade em seu sentido primeiro, ou seja, em seu sentido não-transcendente e mesmo “terreno”. A fidelidade deve ser agora re-orientada para a terra, locus comum onde as partes se confundem e não se anulam, não se negam, não se excluem, embora lutem: o lugar mais fértil no qual Zaratustra ousou colocar os pés e caminhar.

Paulo J M PinheiroUniRio – CLA – IVL

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SOBRE A PASSIVIDADE

David Lapoujade

Encontra-se, na Genealogia da moral, um célebre texto sobre a passividade dos fracos, comparada à atividade dos fortes: “... enquanto homens completos, transbordando em energia e, por esse motivo, necessariamente ativos, eles [os aristocratas] não sabiam separar a atividade da felicidade – para eles ser ativo pertencia necessariamente ao cômputo da felicidade (...) – tudo isto em oposição à “felicidade” que se encontra no âmbito dos impotentes, dos oprimidos, de todos aqueles que ruminam a malevolência e a animosidade, e para os quais a felicidade é essencialmente narcótica, obesa, repouso, paz, “sabá”, descanso da alma e relaxamento do corpo; em uma palavra, passividade14.” Desta oposição, com frequência repetida por Nietzsche, é possível que se vislumbre o retrato do tipo superior em Nietzsche como exclusivamente ativo, animado por uma “vontade de potência”, por um complexo de forças dominadoras e afirmativas. Encontrar-se-ia, de um lado, a passividade dos fracos; de outro, a atividade dos fortes como potência de afirmação e de criação. Mas, ao se apresentar as coisas deste modo, chega-se rapidamente a não mais se diferenciar dois complexos de forças, mas antes duas naturezas, em oposição mesmo à concepção nietzscheana. Desaparece, então, uma questão que é, no entanto, essencial em Nietzsche: como tornar-se ativo?

Pode-se multiplicar as respostas: pela afirmação do devir, graças à faculdade positiva do esquecimento, por uma “destruição ativa15”, tornado-se um indivíduo legislador etc. Mas nota-se com clareza que estas resposta supõem, a cada vez, o que está em questão. Já é sempre a atividade o que nos torna ativos. Sempre o superhomem perdura como uma espécie de tipo ideal, ao qual se tem acesso por meio de uma conversão, uma transmutação, na qual a atividade já está subentendida, mas jamais engendrada. Tudo se passa como se a passividade, situada do lado da “fraqueza”, não dissesse respeito às formas superiores de vida, a não ser sob as formas já ativas da apropriação e da dominação. Logo, a atividade parece agir como um princípio que se confunde com a própria potência da vida. Ora, Nietzsche não pára de repetir que o ser ativo não está dado, é algo que devemos conquistar; é um devir, é mesmo o que devemos nos tornar. Trata-se de uma das tarefas essencias da filosofia, ou seja, nos tornar ativos. É preciso, então, admitir a passividade fundamental na qual se engendra esta atividade, para que a atividade não seja uma condição ou a expressão de uma natureza, mas um processo, um devir.

É nesse momento que surgem certas dificuldades. Como elaborar a distinção entre os tipos de passividade? Há uma diferença entre a passividade do fraco e a do forte? De qual tipo deve ser a passividade suscetível de engendrar a atividade? Qual lugar e qual status é preciso atribuir à passividade para que ela seja ao mesmo tempo ativa, ou para que ela engendre a atividade? Como evitar que ela transforme a vida em tantas narcoses, “descanço da alma e relaxamento do corpo”? É nesse nível, tudo indica, que os tipos se distinguem, que o aristocrata se distinguirá do padre judeu, que o tipo ativo se distinguirá do tipo reativo e não nas consequências, onde tudo já está constituído. A questão mais geral que se pode elaborar é então a seguinte: que relação é possível estabelecer com a sua passividade para se tornar ativo. Não é esta a via de um novo tipo de subjetivação? Não se trata, definitivamente em Nietzsche, de edificar um novo sujeito moral como processo potente, são, ou seja, ativo?

14 Genealogia da moral, I, 10.15 Cf. Deleuze, Nietzsche et la philosophie, PUF, V, 9 p.200-201: “A destuição ativa

significa: o ponto, o momento da tansmutação na vontade de nada. A destruição torna-se ativa no momento em que, a aliança tendo-se quebrado ente as forças reativas e a vontade de nada, converte-se e passa para o lado da afirmação, repostando-se a uma potência de afirmar que destrói as próprias forças reativas. A destruição torna-se ativa na medida em que o negativo é transmutado, convertido em potência afirmativa”.

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“... enquanto homens completos, transbordando em energia e, por esse motivo, necessariamente ativos, eles [os aristocratas] não sabiam separar a atividade da felicidade – para eles ser ativo pertencia necessariamente ao cômputo da felicidade (...) – tudo isto em oposição à “felicidade” que se encontra no âmbito dos impotentes, dos oprimidos, de todos aqueles que ruminam a malevolência e a animosidade, e para os quais a felicidade é essencialmente narcótica, obesa, repouso, paz, “sabá”, descanso da alma e relaxamento do corpo; em uma palavra, passividade16”. Esse texto constitui a causa de muitos equívocos. De um lado, encontra-se um homem ativo, energético e “feliz”; de outro, desenvolve-se um homem reativo, animado pela “malevolência e a animosidade”, fundamentalmente passivo. A passividade do impotente é engendrada pelo ressentimento deste. Isto não quer dizer que o ressentimento não se encontre também no homem nobre, pelo contrário. O aristocrata está sujeito ao ressentimento, mas, como afirma Nietzsche, “quando ele se encontra no homem nobre, [ele] se manifesta e se esgota em uma reação instantânea, de tal forma que não chega a envenenar”. São as duas reações do homem nobre que o definem, aqui, como ativo: tanto ele reage instantaneamente quanto esquece definitivamente; e, evidentemente, as duas operações estão entreligadas. É o caso de uma consciência sã ou normal, declara Nietzsche. O que distingue os dois tipos é, a princípio, o tempo de reação, e sobretudo o fato de que, em um caso, o ressentimento passa; enquanto que, no outro caso, não passa. E ainda mais: ele se torna a perspectiva em função da qual tudo o que passa é apreendido: “Não sabe mais libertar-se de nada, não pode concluir coisa alguma – tudo vos fere. Homens e coisas se aproximam com uma perigosa insistência, as experiências vividas afetam muito profundamente, a lembrança é uma ferida que supura17”.

É preciso insistir um pouco mais sobre o ressentimento. Por que o ressentimento é transitório em alguns e não em outros? Pode-se invocar com Nietzsche “o bom funcionamento dos instintos reguladores inconscientes” que determina a faculdade positiva do esquecimento ou ainda a coragem, a temeridade face ao perigo. No momento, nota-se apenas que a reação instantânea e o esquecimento definitivo, portanto a consciência do homem nobre, tornam possivel a passagem a outra coisa. Em outros termos, ele não se deixa fixar pela pulsão reativa. Donde a instauração de um certo sentimento de distância face às feridas e aos afetos em geral. Este é um dos sentidos do famoso “pathos da distância”: no lugar em que “homens e coisas se aproximam com uma perigosa insistência”, como é o caso do indivíduo doente, eles são colocados à distância, enquanto passam ou enquanto nós passamos diante deles. Assim, é a afirmação da passagem do tempo que instaura as distâncias salutares entre “os homens e as coisas” e nós. O “pathos da distância” é a afirmação de um tempo a uma só vez destruidor e criador.

Inversamente, o que se passa com o homem do ressentimento? Nietzsche o trata, com frequência, invocando a imagem da indigestão: o afeto reativo se fixa porque o homem não pode mais atuar em suas reações, ele só pode ressenti-las. A ferida da ofensa não passa. Essa impotência supõe, como Deleuze o demostrou, a constituição de uma memória das marcas18. Isto quer dizer que a dor da marca começa a invadir todo o campo da consciência, ao ponto em que mesmo as coisas ou os seres belos e amáveis só serão percebidos em função de uma ofensa, de uma impotência sempre viva. Como afirma Deleuze, “a memória das marcas é raivosa em si mesma e por si mesma”19, porque o indivíduo deve tornar o objeto [de sua raiva] responsável por sua própia incapacidade de eliminar a marca. Como se observa, as distâncias se desmancham. O tempo pára de deixar passar, não afasta mais nada; ao contrário, aproxima “homens e coisas”, não pára de ativar esta marca. Ou melhor, cria-se um tempo que não é passagem de nada, onde nada se torna passado – como declara Nietzsche: a raiva do “era”. O tempo torna-se memória, exclusivamente memória.

16 Genealogia da moral, I, 10.17 Ecce Homo, I, 6.18 Ver as páginas admiráveis de Deleuze sobre o ressentimento, op. cit., IV, 1-4. 19 Op. cit. p. 133.

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Ainda que as percepções a reanimem, a marca não é percebida por si mesma, ela age desde as profundezas inconcientes. Isto porque tornou-se a condição em função da qual tudo é percebido. Não há mais, com efeito, percepção que não reative esta dor ainda viva da marca ou que a tente evitar (no entorpecimento). Não há percepção que não esteja condicionada por esta memória reativa. O ressentimento deixa de ser um afeto entre os outros, como é o caso do indivíduo ativo, e torna-se constitutivo da própria subjetividade. O indivíduo torna-se sujeito na medida em que se assujeita a sua memória reativa. Trata-se de um sujeito essencialmente constituído pela vingança, o rancor, a dívida e o cálculo. Como descrever esta subjetividade? Nietzsche a descreve como envenenamento ou infecção. Aonde ocorre a infecção? É que o ressentimento desenvolveu-se tanto que passa a comandar toda a perspectiva. O indivíduo fica inteiramente invadido pelo afeto e, do afeto, não há mais qualquer meio de se distinguir. Ele se desenvolve como sujeito no afeto. O ressentimento cresce à proporção que a potência do indivíduo torna-se reativa. Trata-se, certamente, de uma luta, de um combate onde, como diria Lewis Carroll, toda questão consiste em saber quem comanda.

O que Nietzsche entende por doença, por degenerescência, quer, a princípo, dizer: a impossibilidade de fazer variar a perspectiva, não mais dela se distinguir e, ainda como consequência, proclama-la como verdadeira. A verdade como atributo do produto de um afeto é o sintoma de uma passividade profunda, tomada como dominação do afeto e do instinto. Compreende-se, então, porque a felicidade é essencialmente repouso, narcose etc, pois é preciso se repousar dos sofrimentos que reanimam sem parar as percepções. No limite, a passividade do indivíduo é dupla: uma primeira vez, face ao afeto ou ao instinto que toma conta do indivíduo e que comanda sua reatividade, que o comanda enquanto sujeito; e, uma segunda vez, na inércia na qual ele mergulha para se outorgar um pouco de descanço. Como afirma Nietzsche, o repouso é necessário ao homem do ressentimento para que ele não se torne inteiramente doente. “Para o doente, o ressentimento é, em si, a coisa interdita – é, para ele, o mal absoluto: é também a sua tendência natural” (EH, I,6). Ser doente não é nada. A verdadeira doença surge quando o remédio, inventado para dela se livrar, pertence ainda à doença. É, evidentemente, o que ocorre no caso das “narcoses”. Segundo a belíssima expressão de Nietzsche, o indivíduo não está simplesmente doente; ele está doente de si mesmo. Sua doença é ele mesmo. Sua subjetividade é a própria doença. Também só se pode “curar” sob condição de se fazer variar a perspectiva, ou seja, sob condição de se inventar os meios de uma nova forma de subjetividade.

Aqui, toda a questão consiste em saber como a criação de um sujeito ativo é possível? Como se chega a constituir um sujeito que não se faz na dor das marcas e não se reduz à expressão passiva das marcas? Não se poderia apenas invocar o esquecimento. Porque o esquecimento só é possível, em si mesmo, se a marca não se constituiu como marca, ou seja, como uma dor que invade a consciência e comanda a perspectiva da própria consciência. Trata-se de nada menos do que ultrapassar o ressentimento ou de não se constituir como sujeito nele [no ressentimento]. Como isto seria possível? Poder-se-ia ainda formular de outro modo a questão e a desdobrar. Pois duas questões, com efeito, estão apresentadas: a princípio, o que permite ao homem ativo dizer “sim” ao que lhe ocorre?; em seguida, é preciso determinar se o fato de dizer “sim” não é uma forma de passividade. Se tal é o caso, no que esta passividade se distingue, então, da passividade do homem do ressentimento? Para dizer de outro modo, come se libertar de uma memória da marca (o que constituirá, aliás, o problema central da psicanálise)?

A esse repeito há um texto essencial nos fragmentos póstumos, do qual cito os principais elementos que gostaria de comentar com um pouco mais de detalhe: “Por que amo o fato de ser um livre-pensador? Como última consequência da antiga moralidade (...) Ser imparcial a respeito de tudo, para além da inclinação e da aversão, posicionar a si mesmo na série das coisas, estar acima de si, ser corajoso e sobrepujar não apenas o que é pessoalmente hostil, penoso, mas também o que é ruim nas coisas (...). Renunciar à ação (quietismo) em função da incapacidade de dizer: “É preciso mudar” – repousar em Deus, de qualquer modo em um Deus em devir. Toda realização da moralidade só pode ter lugar no seio de um eu: na medida em que é vivo, formador, desejante, criador, e na medida em que resiste, a cada instante, à submersão nas coisas, “pois conserva uma força que lhe permite acolher, em si, sempre mais coisas,

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fazendo-as mergulhar nele mesmo.”20 A grande importância deste texto reside na apresentação de regras éticas para a constituição de um novo tipo de subjetividade. Pode-se ressaltar quatro pontos essenciais: 1) a passividade, 2) o “eu” do livre-pensador, 3) o repouso no devir, 4) a imparcialidade.

Para começar, a passividade. Sobre esta questão, eu gostaria de partir da belíssima análise de Barbara Stiegler em sua obra Nietzsche e a biologia, na medida em que ela reavalia o lugar da passividade nos seres ativos. O que quer mostrar B. Stiegler é que a importância da biologia em Nietzsche ultrapassa a simples biologização do sujeito cartesiano e kantiano tal como o apresenta Heidegger. A que conclusões chega Barbara Stiegler? Por um lado, à tese formulada por Wilhem Roux (que Nietzsche estudou muito atentamente), segundo a qual os viventes se definem, acima de tudo, pela sua potência de assimilação. E a assimilação se define pelo fato de tornar idêntico, de reduzir a alteridade ao semelhante. A assimilação é um processo de apropriação. Tem-se aqui um sujeito ativo, o próprio modelo da atividade para Nietzsche. Mas esse poder de assimilação é precedido de uma exposição às excitações. Antes de toda resposta ativa, a excitação provoca uma alteração passiva. Um vivente só é ativo “sobre o fundo” desta passividade primeira. Há, segundo os termos de Stiegler, um “sofrer originário” dos viventes na medida em que todo vivente se expõe à alteridade, do não-eu. Já se tem aqui um esquema onde a vida deve, pela sua atividade de assimilação, tornar-se capaz de suportar a alteridade da excitação.

Mas Stiegler desenvolve as consequências desta relação e permite corrigir a imagem de um Nietzsche fascinado pelo tema da atividade. Evidentemente, Nietzsche não pára de invocar a atividade, a assimilação, o crescimento como a mais elevada manifestação da vida. No entanto, as verdadeiras hierarquias se articulam noutro lugar. Como afirma Stiegler: “Não é em sua capacidade de se fechar em si mesmo (tornar idêntica a alteridade própria ao trabalho de assimilação), mas na maior abertura possível ao que precede o compreender (pois compreender é uma forma superior da assimilação), na maior apitidão a suportar o outro, o novo ou o estrangeiro como tais, ou “a manter, face aos espinhos, as mãos abertas”, que é preciso procurar “o critério de uma vida superior”21. É preciso, com efeito, proteger-se contra as afecções grosseiras, mas abrir-se aos “mais sutis golpes” para tornar-se mais ativo e assim manifestar uma espécie de “gosto”, um gosto que é, ao mesmo tempo, uma prudência, pois permite avaliar ao que se deve ou não se expor. Como ainda afirma Stiegler: “Entre [a] vida superior, continuamente exposta ao risco do ferimento, e a baixa vida, quase mineral, exite todas as nuanças e os graus possíveis da individuação: há a vida deste homem aqui, constrangido a sustentar suas defesas contra a irrupção continua das excitações e de se fechar a algumas delas, se não pretender correr o risco de se fechar para sempre, e se pretende continuar tentando abrir-se sempre mais”22.

Isto nos esclarece, com muita precisão, sobre o tipo do homem ativo. Esta análise de B. Stiegler permite compreender a passagem que nós citamos, quando Nietzsche afirma que o livre-pensador “conserva uma força que lhe permite acolher, em si, sempre mais coisas, fazendo-as mergulhar nele mesmo.” Para dizer de outro modo, para tornar-se ativo e não reativo, ele, a princípio, deve tornar-se passivo, deve possuir a extrema coragem de ser passivo. No que consiste uma tal coragem? No fundo isto quer dizer retonar até as marcas, aceitar o sofrimento das marcas para que ela passe, ao invés de se conservar; para que ela, de preferência, passe no tempo, ao invés de impedir o tempo de passar. Ou seja, é preciso passar por uma espécie de afrontamento, e mesmo por uma espécie de morte: “O sofrimento é necessário àqueles que criam. Sofrer é se transformar; a morte está presente em tudo o que se apresenta no mundo”23. Não é preciso ler esse aforismo como uma fórmula romântica sobre os sofrimentos

20 Fragmentos póstumos, vol. IX, 1[42].21 Barbara Stiegler, Nietzsche et la biologie, PUF, coll “Philosophies”, 2000, p.40. Stiegler

cita Ecce Homo.22 Ibid., p.42. 23 Fragmentos Póstumos, vol. IX, 5[1] 226.

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do artista, mas, de preferência, como a coragem relativa a uma certa passividade: deixar-se destruir pelo tempo, saber deixar morrer partes de si mesmo ou ainda saber lhes dar fim. Podemos precisar: sofrer é fazer passar o sofrimento (eis ao que não tem acesso o homem do ressentimento, sempre infectado). E, uma vez o dissipando, desaparece, com ele, o eu reativo, fundado e criado no próprio sofrimento.

A prova do sofrimento é inseparável da morte do eu reativo, ou seja, do deslocamento da subjetividade provinda do ressentimento. E, de um modo mais geral, os diversos “eus” engendrados no ressentimento morrem também, na medida em que passam. Nós estamos na situação do organismo no qual mortes parciais são necessárias para a mais grandiosa vida do conjunto. Trata-se do sacrifício e da crueldade da vida sobre a qual Nietzsche insiste com frequência. A morte dos “eus” faz com que se passe a ter afetos com os “eus” relativos, ou seja, afetos ativos. A coragem é então dupla: consiste, por uma parte, em afrontar os sofrimento constitutivos da memória reativa e, por outra parte, a terminar consigo como ser de memória (livre para que a memória seja reapresentada após esta morte, mas não mais como uma forma reativa ao tempo). Trata-se de deixar morrer uma certa relação a si, um certo tipo de defesa (reativa) no que diz respeito ao próprio tempo. Pois a reação é, a princípio e antes de tudo, reação ao tempo, na medida em que este passa, na medida em que produz passado, o “era”, e na medida em que permite morrer. O homem reativo é, a princípio, aquele que teme morrer - das mortes parciais em relação à morte final, que o tempo não pára de nos recordar. Em consequência, ele só pode constituir sua subjetividade neste estado de medo fundamental – donde nasce o ressentimento face ao próprio tempo. O último objeto do ressentimento é a passagem do próprio tempo. Ora, “não somos criados para querer um só estado, vivemos, ao contrário, na necessidade de tornar-mo-nos criaturas periódicas = como a existência”24.

Compreende-se então como a passividade do livre-pensador, decerto seletiva, engendra, ao mesmo tempo, a maior atividade. Pois sofrer, experimentar o sofrimento, consiste em criar um Eu passivo, um Eu que deixa passar, que permite agir o sofrimento (ao invés de reagir contra). Um sujeito imparcial e aberto se cria, justamente, quando os afetos tornam-se em si mesmos ativos e liberam suas cargas intensivas. Essa forma de subjetividade aberta não é mais tributária das subjetividades reativas, “interiores” a cada afeto. No que isto constiste? De fato, esta subjetividade aberta se cria, no entanto, à medida em que se distingue dos afetos que a atravessam. Ela não mais se edifica em um afeto (o medo, o ressentimento), mas na passagem e na liberação de suas cargas. Pode-se dizer; de um tal modo que se constitui uma subjetividade aberta, móvel, independente da liberação dos afetos, ou seja, “imparcial”, e dizer que esta subjetividade é múltipla enquanto é atravessada pelas subjetivações que produzem os próprios afetos: um sujeito colérico, um sujeito crítico, um sujeito amoroso etc., afetos “parciais” (que se enunciam através de cada aforismo) que não param de transitar na abertura de um sujeito imparcial. Como definir, então, esse sujeito imparcial? Ele é o instante que se confunde com o princípio da liberação dos afetos.

Este sujeito aberto se distingue, então, do que o afeta, ou seja, do que poderia encerrá-lo em uma perspectiva invariável. Como afirma Nietzsche, ele “resiste a cada instante à absorção nas coisas”. De modo inverso, na medida em que o homem do ressentimento se identifica ao seu sofrimento, na medida em que se constitui como sujeito no sofrimento, ele permanece profundamente parcial, uma vez que tem como condição o afeto que o engendra. Ele possui, de fato, um instinto de conservação, duplicado por um institnto de afirmação de si, mas ele não se afirma no bom lugar, se assim se pode dizer. Ele se afirma no interior, ao invés de se afirmar fora do afeto. O eu se afirma justamente onde só é possível reagir. Eis porque sua sua liberdade é sempre uma fraqueza, ou seja, uma obediência. O sujeito do livre-pensar, ao contrário, se constitui fora dos afetos (na medida em que passivo e ativo se excluem). Esta subjetivação, portanto, exterior aos afetos, “para além da inclinação e da aversão”, acentua Nietzsche, sem dúvida é o que a torna passiva, aberta (enquanto que o ressentimento é ativo no interior do afeto, ou seja, não é nada além do que a consciência reativa da marca). Eis porque é preciso distinguir

24 Ibid., IX,1 [70].

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entre o que é ativo no interior de um afeto (o tipo próprio do reativo) e o que é passivo fora de um afeto (o tipo próprio do ativo).

Subsiste ainda uma última questão: com efeito, se a passividade torna-se ao mesmo tempo a mais alta atividade, se a própria passividade é a condição desta atividade, por que conservar, apesar de tudo, um primado da atividade? Por que essa atividade é, ao mesmo tempo e em si mesma, uma atividade? O que faz com que, num sentido, sejamos duplamente ativos? O que há de ativo nesta passividade (que, no mesmo instante, a distinguirá definitivamente da passividade reativa)? É fácil responder a esta questão: é o seu carater afirmativo. Porque a passividade, em seu ponto culminante de abertura, é a própria afirmação do devir. Ela é a mais alta abertura possível do indivíduo. O texto nos esclarece perfeitamente: Renunciar a ação (quietismo)” em função da incapacidade de dizer: “É preciso mudar” – repousar em Deus, de qualquer forma em um Deus em devir”. Isto significa que a afirmação é sempre dupla. Experimenta-mo-nos como mestre porque não estamos presos no afeto, mas também porque o vemos preso no Todo do devir. Nós deixamos de ser interiores a nós mesmos para passar ao interior do Todo, ou seja, para entrar em uma relação de imanência com o próprio devir. Assim percebe-se a fatalidade, cúmulo da passividade. Trata-se, ao mesmo tempo, do sentido último da imparcialidade: perceber-se como fatal, ou seja, “por cima de si”. É o profundo paradoxo do neo-estoicismo de Nietzsche: a maestria como passividade e abertura.

(traduzido do francês por Paulo J M Pinheiro)

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