arte e [in]materialidade: acaso, ação e ordem -...
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16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis
Arte e [In]Materialidade: Acaso, Ação e Ordem
Maria Celeste de Almeida Wanner Professora Titular - Escola de Belas Artes Universidade Federal da Bahia Pós-Doutoranda – CNPq - 2007 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Universidade Pontifícia Católica de São Paulo Semiótica – Supervisora: Lucia Santaella. Resumo Embora Charles S. Peirce não tenha desenvolvido estudo sobre a arte, sua arquitetura filosófica pode ser aplicada nas artes visuais contemporâneas, visto que os artistas do período pós-formalista inseriram nas suas obras objetos, materiais, elementos, imagens e máquinas, bem como o próprio corpo humano, o que veio a ser denominado de estética do cotidiano. De origem ordinária, da cultura de massa e da publicidade, a Matéria/Obra começou a ser analisada á luz da teoria dos Signos - Semiótica. Além dessa relação - [In]Materialidade e Semiótica -, através das três principais Categorias desenvolvidas por Peirce [Primeiridade, Segundidade e Terceiridade] é possível uma estreita relação com a Atividade ou Processo de Criação Palavras-chave:Artes Visuais Híbridas Contemporâneas; [In]Materialidade; Semiótica; Charles Peirce. Abstract Although Charles S. Peirce have not developed study about art, his philosophical architecture can be applied in contemporary visual arts, due to the way post-formalist artists started to work with objects, materials, elements, images and machines, as well as their own body. The art which introduced every possible found everyday materials into a new so called life and art aesthetic were close related to America´s mass culture and publicity of the 1960s. Therefore most of the art from this period on required a new way of critical analysis based on Semiotics. Also, beside the relation between the [In] Materiality and Semiotic, through the three main Categories developed by Peirce [Firstness, Secondness and Thirdness] it is possible a narrow relation with the Activity or Creative Process. Keywords: Hybrid Contemporary Visual Arts; [In]Materiality; Semiotic; Charles Peirce.
Este artigo é uma revisitação daquilo que tem tomado conta das minhas
investigações nos últimos 20 anos: a linguagem dos materiais nas artes visuais.
Se por um lado sentia como algo que já estava se esgotando; por outro, insistia
nos seus desdobramentos, com a certeza de que a [In]Materialidade tem exercido
um papel fundamental para a construção da arte contemporânea. Foi acreditando
nessas possibilidades que dei início ao aprofundamento de estudos na área da
Semiótica, aplicada à Construção de Linguagens Visuais Híbridas – Matéria e
Imagem -, como pós-doutoranda, bolsista do Conselho Nacional de
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Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq -, no Programa de Pós-
Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, tendo como supervisora a semioticista Lucia Santaella.
O diferencial atual é o foco teórico; quando antes estava mais voltado para as
teorias pós-estruturalistas, em geral, neste momento surge uma reinvestigação
com um olhar mais atento à revisão de conceitos da bela arquitetura filosófica
[Semiótica e Pragmatismo] de Charles Sanders Peirce1, a qual nos faz pensar o
mundo permeado por signos, um permanente contato com o outro, o alter, o
universo, tudo o que nos altera, não necessariamente um outro concebido como
um sujeito, um indivíduo, mas tudo que possui uma mente.
Por ser um espaço limitado, este artigo não comportaria um levantamento da obra
de Charles Peirce, dada à sua complexidade. Em razão desta, pesquisadores,
como Lucia Santaella, vêm se debruçando sobre a organização e tradução de
seus manuscritos originais, tratando sua obra, de certa forma, como uma área de
investigação. Poderia optar-se por aprofundar apenas a Semiótica em detrimento
dos largos laços que essa matem com a arte contemporânea. Todavia essa
tomada de decisão acabaria por dividir o eixo comum de caráter dinâmico e plural
existente no projeto de investigação proposto. Assim, a direção mais pertinente
conduz a considerações sobre a Arte e a sua [In]Materialidade, dialogando com
alguns conceitos da Semiótica - Acaso, Ação e Ordem, ao analisar a obra
Canyon, do artista americano Robert Rauschenberg.
Ao optar pelo estudo da Semiótica e Pragmatismo de Charles Peirce, dois
aspectos fundamentais foram levados em consideração. O primeiro deles é o
entendimento consensual de que a Arte é puramente Signo. O segundo aspecto -
pela aproximação que Peirce teve com o pensamento pré-socrático, a exemplo da
teoria especulativa de Tales (623-546), como também com idéias de todos os
demais filósofos da escola Jônica: a verificação da permanente transformação das
coisas umas nas outras e sua intuição básica de que todas as coisas são uma só
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coisa fundamental, ou um só princípio arché2 [ἀρχή]. Os primeiros pensadores
gregos explicavam que a razão conduz o ser humano a investigar os princípios e
as causas do objeto através de seus próprios meios, e dos seus sentidos: ver,
tocar, sentir. Ao ter que explicar qualquer coisa, eles consideram primeiro os
elementos de que são feitas; a matéria; causa material.
1. Acaso, Ação e Ordem
Tyché, em grego, é um acontecimento que ocorre por acaso [...] Pouco importa se a obra é, de fato, resultado de um cálculo minucioso. O que conta é o efeito do acaso... (BARTHES, 1979, p.57)
Ao definir o recorte deste artigo, como já apresentamos acima, consideramos
pertinente abordar alguns dos principais conceitos da Semiótica peirciana, como
Acaso, Ação e Ordem, pela possibilidade de aproximação que esses estabelecem
com a Atividade ou Processo Criativo nas Artes Visuais, assunto que também
permeia minha linha investigatória. Apesar de não ser historiadora nem crítica de
arte, como pesquisadora dos meios pelos quais a arte contemporânea híbrida é
construída, a história e teoria da arte, bem como a filosofia e estética são alicerces
transdisciplinares.
Charles Sanders Peirce, ao longo de sua vida, pesquisou, inquietantemente, a
possibilidade de construir uma teoria que abrangesse toda experiência possível do
conhecimento do universo chegando a três Categorias, incluindo a natureza, a
lógica e o real, a partir das quais:
Peirce chegou a três elementos gerais e indecomponíveis de todos os fenômenos: Qualidade, Relação e Representação. Deu-se aí o nascimento de suas categorias universais que iriam desempenhar o papel fundamental no desenvolvimento e na estruturação de seu pensamento lógico e filosófico (SANTAELLA, 2004, p. 29).
As Categorias ora mencionadas por Santaella - Primeiridade, Segundidade e
Terceiridade - são os principais elementos relacionados a tudo que aparece na
mente. Ivo Ibri apresenta a categoria de Primeiridade associada ao Acaso, a
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Segundidade à Existência e a Terceiridade à Lei, traduzidas para este artigo
como: Acaso, Ação e Ordem.
Desse modo, sem que se perca a relação da arte, iniciamos com a Primeiridade,
definida por Lucia Santaella, no seu livro intitulado O Método Anticartesiano de C.
S. Peirce, como sendo uma categoria “...ligada á idéia de acaso, oriência,
originalidade, presentidade, imediaticidade, frescor, espontaneidade, qualidade,
sentimento, impressão” (SANTAELLA, 2004, p. 30), ou como o próprio Peirce
afirma:
Sobre a Primeiridade, o próprio Peirce afirma: “Ela é a categoria da presença
imediata, do sentimento irrefletido, da mera possibilidade, da liberdade, da
imediaticidade, da qualidade não diferenciada e da independência (cf. CP 1.302-
303, 1.328, 1.531).
Vimos, portanto, que a Primeiridade é uma mera possibilidade, algo que ainda não
aconteceu; são idéias vagas, dispersas; uma instantaneidade; o instante em que o
insight é atingido; é estar sem mediação nenhuma com o objeto ou como nos fala
Ivo Ibri: é um estado Prima3, associado à Obra-Prima, que vem da palavra
primeiridade:
A Arte tem a liberdade de conformar seus objetos à representação de modo arbitrário e destituído de necessidade em relação à realidade exterior. O sentimento e o pensamento humano podem, neste caso, ser o sujeito da experiência, invertendo, de certo modo, o real sentido do vetor lógico que tipifica a alteridade (IBRI, 1992, p.28).
Se a liberdade da arte é destituída de qualquer relação exterior, como podemos
entendê-la dentro de um contexto histórico-social? Estamos diante de algumas
reflexões complexas, enigmáticas quanto à própria Arte. Talvez seja mais
esclarecedor considerar a Arte desprovida de um percurso linear, o que nos leva a
refletir que o seu curso siga o fluxo normal que a conduz segundo
intencionalidades, mesmo em momentos em que seu estado se torna indefinido,
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incompreensível, como já o esteve por muitas vezes na sua própria história.
Relembrando brevemente alguns desses momentos, entre tantos outros, a
contestação do crítico Chinês Chang Yen-yüan (815-875), que no século IX
lamentou: “contemporary paintings are chaotic and meaningless”4. Ele usa a
palavra contemporânea para denominar a arte do século IX; portanto a mesma
nomenclatura utilizada com referência à arte do século XXI. A terminologia
caótica e sem sentido reforça o modo de como apreendemos o “novo”,
entendendo, desse modo, como uma reação atemporal, reagindo à tudo que nos é
desconhecido, não obstante o artista tenha a capacidade de estar sempre em
processo de criar imagens, como nos afirma Santaella (1999) com bastante
propriedade:
Não há imagens como representações visuais que não tenham surgido de imagens na mente daqueles que as produziram, do mesmo modo que não há imagens mentais que não tenham alguma origem no mundo concreto dos objetos visuais (SANTAELLA, 1999 p.15).
Assim, nesse estado de Acaso, o artista aventura-se em busca da concretização
de sua(s) idéia(s). Contudo, é somente após o Acaso que advém a Ação, ou
evento, que acontece no momento do encontro do artista com a matéria e seus
instrumentos de trabalho. A palavra Matéria deve ser entendida aqui como
qualquer meio de concretização que possa viabilizar a construção da obra:
objetos, materiais e elementos de infinitas propriedades físicas, equipamentos
eletrônicos, digitais até o próprio corpo do artista etc. Trata-se, portanto, “de fazer
aparecer em todas as circunstâncias, a matéria como um fato (pragma)”
(BARTHES, 1979, p.60).
Estas considerações podem ser complementadas com citações da geneticista
Cecília Salles, “O desejo do artista pede uma recompensa material. Sua
necessidade o impele a agir, gerando um processo complexo de materialização”
(SALLES, 2004, p.52).
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De acordo com a seguinte citação de Winfried Nöth, Peirce não desenvolveu estudos
na área das artes plásticas:
Peirce did not elaborate a semiotics of painting...However, his general theory of signs and his many comments on pictures, photos, images, and icons provide a unified framework for pictorial semiotics applicable to figurative and nonfigurative pictures as well as to pictures of imaginary beings. (NÖTH, 2005, p.286).
Contudo, concordamos com Nöth e Santaella e outros pesquisadores quanto à
necessidade de aprofundar os estudos da obra de Charles Peirce no que se refere
às Artes Visuais e à Semiótica. Mesmo sem que esse pesquisador tenha
discorrido sobre essa relação, suas teorias chegam até o Século XXI com um
potencial de contemporaneidade, fazendo com que a arte contemporânea, como
um campo aberto de interação constante com outras áreas do conhecimento
humano, possa desfrutar não apenas da Semiótica e do Pragmatismo peirciano,
mas de todo o seu pensamento filosófico.
Consideramos a obra do artista Americano Robert Rauschenberg, Canyon, como
sendo a maneira mais apropriada para abordar alguns principais conceitos da
Semiótica - Acaso, Ação e Ordem, visto que a mesma possui aspectos que
dialogam com o assunto ora em discussão.
2. Robert Rauschemberg – Canyon
No período de transição entre o formalismo para o pós-formalismo, a arte aparecia
patinando em terrenos escorregadios, de uma certa forma desligando-se do seu
referencial tradicional; era o momento em que a arte perdia o interesse pelas
grandes narrativas, pelas grandes idéias e pela noção de grandes mestres. O
cotidiano e as sobras da sociedade de consumo denunciavam uma sociedade que
voltara a consumir, uma cultura de massa latente após a depressão que assolou a
América nos anos 1930 seguida da Segunda Guerra Mundial. Estar diante de
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reflexões sobre os novos rumos dessa sociedade era estar, ao mesmo tempo,
tentando adivinhar os novos caminhos pelos quais a arte trilharia, trabalho que se
tornou impossível para os críticos de arte dessa época, sobretudo para o mais
atuante deles, Clement Greenberg, considerado o defensor da arte puramente
formalista. Essa “nova” arte que surgia, nos meados dos anos 1950, pedia um
estudo de análise que só foi possível através da Semiótica e das teorias pós-
estruturalistas. Muito embora a Semiótica tenha sido aplicada pela primeira vez na
Pop Art para dar conta do confronto entre teorias e críticas, a obra de Robert
Rauschenberg5 antecedeu a essa estética ao aceitar objetos do cotidiano como
possíveis materiais de arte. Mais uma vez na sua história, a Arte aparecia como
lamentou o crítico Chinês: caótica e sem significado.
Ao reinventar a colagem e a assemblage, Robert Rauschenberg fez um complexo
jogo entre os objetos que representam o cotidiano e a história ocidental,
realizando uma organização visual refinada que demonstra o quanto esse artista
dominava o vocabulário técnico-formal e conceitual da arte. Canyon (1959),
combine6, uma das mais renomadas obras de Robert Rauschenberg, combina
pedaços de tecido, papelão, papel, fotografias, metal, tinta e muitos outros
elementos de colagem. À primeira vista a obra aparece como um amontoado de
coisas, um Acaso ou um Caos? O que sobressai é um tipo de celebração e
reverência à realidade precária, o cotidiano como Arte. Muitos dos elementos
incluídos no trabalho fazem referência à cultura popular Americana. O artista
fornece alguns indícios: uma fotografia preta e branca de um bebê com os braços
suspensos; do outro lado, uma imagem embaçada colorida da Estátua de
Liberdade, uma águia empalhada, um travesseiro pendente em direção ao chão
entre outros. A águia é o símbolo do patriotismo de uma América livre, assim
como a Estátua da Liberdade também é um símbolo Americano. Contrariando a
essa idéia, segundo alguns críticos, a águia na obra de Rauschenberg,
empalhada, não é patriota, mas uma ave abatida, que não carrega na sua imagem
a força do pássaro águia, está recontextualizada por outro espaço, fazendo com
que o Canyon seja uma denúncia de caráter político. Arthur Danto (1998) informa
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que Robert Rauschenberg, bem como de outros artistas desse período, como
Jasper Johns, estava com o interesse voltado para o arbítrio transformador que
estava sendo transmitido pela cultura de massa e pela publicidade, uma herança
da contracultura. Assim, a obra desses artistas surgiu em reação à pintura como
técnica, a principal Matéria utilizada no modernismo, a tinta sobre a superfície, o
ato de pintar e nada mais. Opostamente a esse tipo de Matéria, Rauschenberg
apresenta o que Danto denomina de esthetic taxidermy; a obra deveria ser,
efetivamente, da mesma maneira como eram os acontecimentos políticos dessa
época, os anos 1960. Quanto aos outros objetos e imagens supracitados pesam
sobre eles as inúmeras Possibilidades, porém nenhuma da ordem do Necessário.
Como nos informa Roland Barthes:
Os materiais são a matéria-prima, como para os alquimistas. A matéria-prima é o que existe anteriormente à divisão operada pelo sentido: um paradoxo enorme, porque, na ordem humana, nada chega ao homem que não seja imediatamente acompanhado de um sentido, o sentido que os outros homens lhe deram, e assim sucessivamente, em um infinito regresso (BARTHES, 1979, p. 58).
Numa citação famosa, Rauschenberg comentou sobre querer trabalhar na lacuna
entre vida e a arte, com as seguintes palavras:
All material has history [...] had to make a surface [...] which invited a constant change of focus and examination of detail. Listenning happens in time. Looking also happens in time.7
Fica evidente, nessa breve explanação que o artista não manteve o caos na sua
obra. De alguma maneira ele buscou dar Ordem ao Caos. Mesmo que caótica à
primeira vista, aparece uma intencionalidade relacionada à vida, ao cotidiano, à
arte, à história, à não linearidade de leitura visual, em relação ao espaço e ao
tempo, como também a afirmação de que todo material tem história. É importante
entender que a arte de Robert Rauschenberg, que antecedeu à Pop Art, é uma
arte Americana, e como tal, devendo, portanto, ser vista e analisada à luz dessa
cultura. Seu funcionamento envolve aquilo que o signo representa e aquele para
quem o signo representa algo, conforme citação de Peirce:
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Um signo ou representação que se refere a seu objeto não tanto em virtude de qualquer similaridade ou analogia com ele, nem por estar associado a caracteres que tal objeto eventualmente possui, mas porque se coloca em conexão dinâmica (inclusive espacial) com o objeto individual e, por outro lado, com os sentidos ou memória da pessoa para quem ele atua como um signo. (PEIRCE, 1972, p.131).
Buscar compreender a arte de Rauschenberg fora de um contexto histórico sócio-
cultural não é a melhor maneira, talvez a mais apropriada seria tentar descobrir os
múltiplos tipos de signos presentes nos objetos em seu conjunto, com base em um
conhecimento desse contexto, ou seja, a América dos anos 1950 e 1960, como
nos elucidam Lucia Santaella e Winfried Nöth (2004), com uma citação de Rüdiger
sobre a impressão de Adorno e Horkheimer, como exilados na América:
...devido á perseguição nazista, puderam experimentar a voracidade com que os meios de comunicação massivos se instalavam na América. Juntamente com Herbert Marcuse tornaram-se, a partir disso, os críticos mais ferozes da cultura de massas. Para eles, a cultura de massas, que é inseparável das tecnologias da comunicação, só adquire “sentido em relação ao todo social, do qual são, antes de mais nada, uma mediação e, por isso, precisam ser estudadas à luz do processo histórico global da sociedade” (SANTAELLA; NÖTH, 2004, p. 59).
Mais uma vez, recorremos a Cecília Salles, que no seu livro intitulado Gesto
Inacabado (2004), faz referência ao diálogo que se estabelece entre artista e
matéria:
No momento da recompensa material, o artista estabelece um relacionamento íntimo com a matéria, por meio do qual seu projeto torna-se palpável. No processo de manipulação e transformação da matéria há mútua incitação. Nessa troca recíproca de influência, artista e matéria vão se conhecendo, sendo reinventados e seus significados são, conseqüentemente, ampliados (SALLES, 2004, p. 128).
No texto intitulado Sabedoria da Arte (1979)– onde Barthes faz uma afirmativa
sobre a obra de Cy Twombly, a qual se aplica à obra de Rauschenberg: “O
primeiro tipo de ação consiste numa espécie de representação da cultura. O que
acontece são histórias” (BARTHES, 1979, p.66), histórias da cultura Americana e
de clássicos da História Ocidental.
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Se esses objetos ordinários - deslocados de um espaço do cotidiano, onde
cumpriam uma função determinada - entrarem no espaço da arte como passarão
a visto? Como olhar um Combine? Retomando as palavras de Barthes, vários são
os sujeitos que observam a obra, “e que o tipo de discurso que eles possuem
(interiormente) diante do objeto depende de que tipo de sujeito eles são...Há o
sujeito da cultura...Há o sujeito da especialização...Há o sujeito do prazer...Há um
quarto sujeito, o da memória” (BARTHES, 1979, p.74). Ou como declara Borges:
“Os indivíduos e as coisas existem na medida em que participam da espécie que
os inclui, que é sua realidade permanente” (BORGES, 2006, p.16).
Vincent Colapietro (1889), no seu livro intitulado Peirce´s Approach to the Self. A
Semiotic Perspective on Human Subjectivity, revela que para Peirce o
desenvolvimento de cada indivíduo em sociedade dá-se por um processo de
construção social do eu de cada indivíduo. Colapietro afirma, ainda, que os
processos sígnicos não devem ser tomados de modo fragmentário; assim, o
objeto não pode ser eliminado da essência do signo; um signo não pode ser
considerado sem se levar em conta a materialidade necessária para que este
possa existir. Ou seja, a representação não exclui a realidade, mas constitui-se,
neste contexto, em um processo de mediação o qual possibilita uma visão não
determinista, mas dinâmica da realidade. O autor deixa claro o pensamento de
Peirce em relação à importância do eu, a partir de uma concepção de
subjetividade, e não de subjetivismo, relacionada às idéias de Descartes, para
quem a subjetividade é fator de isolamento, ou seja, a subjetividade como fator
predominantemente exclusivo de cada indivíduo e a objetividade como fator
comum, pela observação dos fenômenos, conforme esses princípios do
pensamento ocidental. Poderíamos dizer que no pensamento de Peirce,
anticartesiano, baseado nas categorias triádicas, o eu se constitui mediante um
diálogo de cada ser humano com a coletividade, e não de forma isolada. Ele se
constitui através do outro, da alteridade, em um contexto tempo e espaço.
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Assim, o atual foco dessa reinvestigação, que ora se inicia, é um campo ilimitado,
que abrange os principais tópicos de minha pesquisa, [In]Materialidade nas Artes
Visuais Híbridas Contemporânea, Identidade, Alteridade, Atividade ou Processo
Criativo, Metodologia em Artes Visuais, com seus desdobramentos. Por ser o
Programa de Pós-Graduação em Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo um dos mais renomados centros de referência internacional para os
estudos sobre Charles S. Peirce [Semiótica e Pragmatismo], para o que
contribuem, além da supervisão da renomada semioticista Lucia Santaella, o
filósofo Ivo Ibri e a geneticista Cecília Salles colaborando para o descortinamento
de um universo de múltiplas possibilidades, tenho a certeza de que este objeto de
estudo ganhará fôlego ao ancorar seu embasamento na Semiótica e Pragmatismo
de Charles S. Peirce, considerando que dentro das Possibilidades deve haver o
Necessário, através das minhas próprias Escolhas.
1 Charles Sanders Peirce (1830-1914) nasceu em Cambridge. Filho de um conhecido matemático, licenciou-se em ciências e doutorou-se em Química em Harvard. Ensinou filosofia nessa universidade e na Universidade de John Hopkins. Foi o fundador do Pragmatismo e da ciência dos signos, a Semiótica. 2 Para os filósofos pré-socráticos, a arché (ἀρχή), seria um princípio que deveria estar presente em todos os momentos da existência de todas as coisas; no início, no desenvolvimento e no fim de tudo. Princípio pelo qual tudo vem a ser. Segundo Rudini Sampaio, “A fonte ou origem, foz ou termo último, e permanente sustento (ou substância) de todas as coisas”. Assim, é a origem, mas não como algo que ficou no passado e sim como aquilo que, aqui e agora, dá origem a tudo, perene e permanentemente. 3 Frase retirada de anotações de suas aulas da Disciplina Pragmatismo, PUC/SP, 2007.1 4 Chang Yen-yüan, c.847, Li-tai-ming-hua-chi, 1/6;see William Acker, Some T´ang and Pre-T´ang Texts on Chinese Painting (leiden:E.J.Brill,1954), p. 149. 5 Robert Rauschenberg fez parte do Grupo Neo-Dada, nos anos 1950, constituído por Jasper Johns, Jonh Cage e Merce Cunningham. Americanos, que cunharam o nome Estética do Cotidiano. 6 Os combines são hibrizições, processo de mistura entre a pintura e a escultura. 7 “Robert Rauschenberg: Combines,” Dec. 20, 2005-Apr. 2, 2006, at the Metropolitan Museum of Art, New York, N.Y.)
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c.1979, Whitney Museum of American Art.
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